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COLEGAO HOMEM, CULTURA € SOCIEDADE ee ete ati Peter METCALF TRADUGAO Ariovaldo Griesi REVISAO TECNICA Danilo Ferreira da Fonseca Cientista social pela USP, doutor em Hist6ria pela PUC-SP, professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Parand CAD Saraiva Digitalizado com CamScanner CAPITULO 1 Deparando-se com diferencas culturais INTRODUGAD A antropologia é uma aventura. Ela nos dé a oportunidade de explorar outros mundos, onde as vidas se desdobram de acordo com diferentes entendimentos da ordem natural das coisas. Isto é, diferentes daqueles que se toma como certo. Ela possibilita que fujamos da claustrofobia de nossas vidas cotidianas. Porém, a an- tropologia nao é mero escapismo. Pelo contrario, ela exigira o maximo de nés para a. compreendermos. 1.1 LONGE DE CASA, PERTO DE CASA Os antropélogos viajam para cada canto do globo terrestre para realizar suas pes- quisas. A primeira geragao deles, no final do século XIX, dependia de relatos de viajantes e exploradores para obter informagoes. Consequentemente, a antropolo- gia pode ser vista como fruto da vasta literatura de viagens que se acumulou, em idiomas europeus, apés os grandes descobrimentos do século XV. No século XX, 05 antropélogos chegaram a conclusao de que tais relatos nao eram suficientes e que eles precisariam ir aos locais ¢ ver com os préprios olhos. Os modos de pesquisa Por cles iniciados, claborados para evitar a0 maximo as “armadilhas” do precon- ceito, formaram a base da disciplina moderna, Entretanto, para a maior parte das pessoas do mundo contemporaneo, ndo é preciso viajar e se afastar muito de casa para cruzar fronteiras culturais. Pelo contra- rio, mudangas culturais sutis acontecem a todo momento ao nosso redor, e quanto mais soubermos sobre antropologia, mais seremos capazes de detecti-las e avaliar seu significado. Cada vez mais os antropélogos se convencem de que nunca houve uma época em que os seres humanos viveram em tamanho isolamento a ponto de nao saberem nada uns sobre os outros, ¢ a historia da humanidade é, sobretudo, uma histéria de choques e ajustamentos culturais. Mas existe tamanha mobilidade Digitalizado com CamScanner no mundo de hoje que, para muita gente, tais interagdes culturais fazem parte do cotidiano. Por isso, as questdes da antropologia nao precisam ser abstratas ou dis tantes; muitas vezes nos deparamos com elas tio logo saimos de casa. ‘QURDAO 1.1 CULTURA Cultura é uma palavra-chave em antropologia, mas os teéricos enfatizam diferen- tes aspectos. Em termos gerais, podemos definir cultura como todas as coisas que sfe plantadas em ume crionga pelos mas velhos companheitos 3 medida que | ela vai crescendo - tudo, desde maneiras 4 mesa até religido. Hé varios aspectos importantes a serem observados a respeito dessa definigao. Em primeiro luger, ela | exch tages que sto vansmitidos geneticamente, sobre ce quale falaremos mois no | préximo capitulo. Em segundo lugar, ela é bem diferente do uso comum da palava | para significar “cultura elevada", como formas de artes elitizadas. Pelo contrario, | ela se refere igualmente as coisas mundanas, tais como cultivar ou fazer compras, | assim como distinguir 0 certo do errado, ou de que forma se comportar perante os | outros. Em terceiro lugar, como estes exemplos demonstram, ela cobre uma ampla | gama de coisas que as pessoas precisam aprender em cada uma das diversas cul- | tures, oferecendo aos antropélogos um espectro igualmente amploa ser estudadc. | 1.2 CIENTE DAS DIFERENCAS CULTURAIS Entretanto, a aventura termo “choque cultural’ nplica seus riscos. Nos anos 1970, comegou a circular 0 Como usado originalmente pelos antropélogos, ele des- crevia a desorientagao que muitas vezes pega de surpresa um antropdlogo que efe- tua trabalhos cientificos de campo ao retornar para casa apés um longo periodo de imersao em outra cultura. Todos os tipos de coisas que outrora eram totalmente familiares de repente parecem estranhas, como se ele as tivesse constatando pela primeira vez. Consequentemente, tudo se torna questionavel: “Por que sempre fiz isso ou supus aquilo?”. Esta atitude questionadora talvez seja a caracteristica mais basica da antropologia. A maioria das pessoas, na maior parte do tempo, simples- mente continua vivendo suas vidas. Dificilmente poderia ser diferente, dado tudo que ha para ser feito. Somente diante de circunstancias especiais é que paramos para refletir, e a experiéncia de outra cultura é um estimulo comum. Porém, quando os jornalistas comecaram a usar 0 termo, deixaram de lado a perspectiva da reflexao. “Choque cultural” passou a significar simplesmente a rea- 40 de adentrar outra cultura, ¢ apenas isso jé pode ser o bastante para desorientar uma pessoa. Imagine-se encontrando um grupo de desconhecidos pela primeira vez. ‘Mesmo que vocé seja uma pessoa extrovertida, provavelmente se sentir inseguro. COLEGKO HOMEM, CULTURA E SOCIEDADE - Cultura @ sociedade Digitalizado com CamScanner Voce comega a pensar em coisas que so automiticas em outras ocasides: a forma de andar, onde colocar sua maos. Este esforgo torna seus movimentos nao natu- . Nessas condigdes, para muitas pessoas, demanda pritica ¢ forga de vontade turalmente’ Ser orientado por um amigo a relaxar apenas piora se comportar “r a situagao, Choque cultural é algo préximo a este processo, exceto pelo fato de se estender por um periodo mais longo. O nervosismo momentanco de adentrar um ambiente pode ser superado com poucos minutos de conversa. Porém, choque cultural pode perdurar por dias ou semanas. 1.3 RESPOSTAS EMOCIONAIS “Acrescente a isto as complicagées do idioma. Mesmo uma giria que nao Ihe seja familiar ou um dialeto diferente ja é suficiente para indicar sua condigao de foras- teiro. Sera muito pior caso esteja apenas comecando a aprender o idioma daqueles que esto a sua volta, Quando as pessoas so suficientemente gentis para Ihe diri- girem a palavra, vocé fica angustiado por se tornar um estorvo para a fluidez da conversa, falando aos trancos ¢ barrancos ¢ cometendo erros primarios. Se seus anfitrides falarem devagar, tentando favorecé-lo, fica evidente que estao the falando num tom condescendente, como com uma crianga. Quando nao somos capazes de seguir instrugées simples, estamos sujeitos a sermos pegos pela mao ¢ conduzi- dos. Pode ser dificil suportar tal tratamento, e vocé pode se sentir invadido por um grande ressentimento, muito embora saiba perfeitamente que todos estao tentando do choque cultural. ajudi-lo, Sao estas as emogdes contradito ‘As emogées nao sao apenas confusas, mas também intensas. Incapaz de acom- panhar tudo o que se passa, vocé nao sabe que tipo de expresso demonstrar em seu rosto. Para evitar parecer entediado, pode tentar sorrir para todos de forma alentadora. De repente, o sorriso natural se transforma em um sorriso largo e forgado e, antes de perceber onde se encontra, vocé esta prestes a derramar algumas ligrimas. O problema de suas proprias emogies se agrava por Vocé nao ter certeza do que as pessoas a sua volta estio sentindo. Se elas algam a voz, vocé pode pensar “sera que estado bravas?” Mas se, pelo contrario, elas permanecerem em silencio, vocé fara a mesma pergunta asi mesmo. Além disso, as diferengas culturais nao se expressam apenas por meio de palavras. Existe também o que € comumente denominado “linguagem corporal”, Se ‘as pessoas se postarem diante de vocé a uma distancia mais proxima daquela & que estd acostumado, vocé pode se sentir invadido; porém, caso elas se posicionem mais tir isolado. Algumas pessoas insistem em manter um con- afastadas, vocé pode se sual direto, a ponto de irritar. Outras desviam o olhar, de forma educada, para tato vi evitar ficar olhando fixamente, levando-o a uma sensacio ainda maior de nao saber 0 que esta se pasando, Neste estigio, a paranoia se encontra a um passo. CAPITULO 1 - Deparando-se com diferengas culturais Digitalizado com CamScanner 1.4 A REALIDADE DA CULTURA Apés uma experiéncia dessas, nunca mais vocé colocard em diivida a realidade da cultura. Uma cultura estrangeira parece envolvé-lo, até que vocé possa quase toca- -la, Parece que vocé vive dentro de uma ténue bolha que se desloca com vocé atra- vés de um meio diverso, Mais ainda, apés ter passado por essa experiéncia, vocé pode imagina-la acontecendo com outros. Ao retornar para o seu préprio meio, é capaz de identificar estranhos se movimentando de forma incerta dentro de suas proprias pequenas bolhas. Os antropélogos nao séo imunes a tais reagdes. O maximo que o treinamento Ihes pode proporcionar é ensind-los o que esperar. Eles entendem que precisam ser parcialmente “ressocializados” (veja o QUADRO 1.2). Ou seja, eles tem que “de- saprender” todos os tipos de pequenas coisas aprendidas na infancia, como boas maneiras, estilos de conversacao e postura corporal, e reaprendé-los na nova cul- tura. Esse processo explica a estranha sensagao de regresso a infancia, com todas as suas vulnerabilidades e frustragdes. Algumas vezes, os antropdlogos descrevem isso como trabalho de campo “com imersio total’, significando que eles mergulham na nova cultura e ai permanecem até terem conseguido se sentir razoavelmente confortaveis nela. Eles 0 fazem com ansiedade, mas conscientemente, pois sabem © que querem alcangar no processo. QUADRO 1.2 SOCIALIZAGI Definimos cultura em termos de “plantar” ensinamentos na pessoa jovem. A palavra apropriada para este processo é socializa¢ao, pois abrange tanto a educa¢ao esco- lar formal - em lugares onde ela existe - quanto todos aqueles modes pelos quais as criangas S80 persuadidas e estimuladas a se comportarem conforme suas fami | lias pensam, bem como aprender o que os membros de suas comunidades acham | que elas devem saber. invariavelmente, as mies desempenham um papel central na socializagao das criangas, mas 8 medida que elas vao crescendo, mais pessoas acabam se envolvendo. Os avés e mais velhos em geral ensinam por meio de his- t6rias. Os irmaos e amigos também séo importantes, jé que a maioria dos jovens sente-se ansiosa por ganhar popularidade entre seus companheiros. Eles também ‘querem aprender determinadas habilidades ou fazer parte de certos grupos e, por- tanto, poderdo procurar professores especializados. HEE cotecio Homen, cuLTURK € SOCIEDADE - Cultura e sociedade Digitalizado com CamScanner 1.5 0 QUE SE GANHARA COM ISSO? ‘A nogao de “choque cultural” enfatiza os aspectos desagradaveis de cruzar fron- teiras culturais. Porém, tendo se esforcado ao maximo para superi-las, segue-se a empolgagao da descoberta, Mesmo que a interagao seja limitada, qualquer tentativa real de comunicagio logo gera resultados. Algum detalhe Ihe chama a atengao e, entio, vocé precisa saber mais. sidade é a fonte da antropologia, ¢ 0 que ela promove é uma necessidade intelectual, Colocando de outra mancira, a viagem 0 turismo internacional é um dos maiores ta cur por si sé nao é suficiente. Hoje em setores de atividade no mundo, mas a maioria dos turistas tem apenas uma intera- do muito superficial com as pessoas locais. Onde se pensa que existe 0 “exdtico’, a maioria o deseja empacotado de modo acurado para ficil consumo, em tours orien- tados por guias ou “shows culturais” Para o turismo, exético ¢ algo que se consegue fotografar. Para a antropologia, isso nao é verdade. No apenas a viagem no basta, como ela al as vezes existem outras culturas a serem exploradas dentro de uma tinica co- mesmo pode ser desnecessaria. M munidade e, certamente, clas existem nas grandes cidades. Certos antropélogos realizam pesquisas nfo muito distantes da propria casa, simplesmente pegando um “Snibus, ¢ ela pode ser téo drdua quanto um trabalho de campo no exterior. O cho- que cultural pode ser negociado outra vez em cada visita, ¢ trata-se de uma figura rara aquela pessoa capaz de transitar de uma cultura para outra de forma fluida. Seja lé como isso acontega, © que se segue é um mundo expandido no qual se pode descobrir interesse e prazer. Nao é nem preciso desistir de alguma coisa no processo, Vocé nao esté mais correndo o risco de perder sua propria heranga cultural da mesma forma como ocorreria se tivesse aprendido outra lingua. Pelo contrario, vocé pode aprecid-la num sentido mais profundo. Os antropélogos sio prédigos em sua admiragao daquilo que poderiamos chamar de fluéncia cultural. Seja lé onde for encontrada, ela se constitui em uma expresso Gnica do espirito humano, e é duplamente admiravel ter acesso a mais de uma. 1.6 ETNOCENTRISMO ‘Como esperado, ao longo da histéria muitas pessoas recusaram a aventura e viram nela apenas algo perturbador e ameagador. A vontade delas é aconchegar-se no fa- s pessoas. Essa reagio é chamada etnocentrismo, isto & literalmente estar centrado em sua propria cultura ou etnicidade, Por si proprio, miliar e dar as costas As outra © etnocentrismo nao é nem incomum nem imoral. A maioria das pessoas, na maior parte do tempo, precisa de algum claro senso de identidade em que se apoiar, € nao ha nenhuma razao para nao valorizarem aquilo que seus pais lhe ensinaram. Digitalizado com CamScanner CAPITULO 1- Deparando-se com cterengas cultrais ES © perigo esta no fato de o etnocentrismo se transformar em chauvinismo, ou seja, a convicgao de que tudo © que elas pensam ou fazem é correto, ¢ tudo que todos os demais fazem ou pensam é errado, pouco razoavel ou até mesmo cruel. A an- tropologia nio pode funcionar diante do chauvinismo, ¢ etnocentrismos normais idade de adentrar, mesmo devem ser colocados de lado caso exista alguma possibi parcialmente, nos mundos de outras pessoas. 1.7 PIONEIROS DA ANTROPOLOGIA E normal que escritores que fazem relatos de viagens scjam monotonamente chau- vinistas, mas sempre existiram aqueles cuja curiosidade suplantou préprio chau- vinismo. No século V a.C., Herédoto partiu da Grécia, atravessou 0 mar geu, alcangou a Asia Menor e, depois, o Egito. Em sua célebre Histdria, ele faz vividos relatos dos costumes das pessoas que encontra ao longo da jornada. Entretanto, nao dissimula suas opinides. Por exemplo, Herédoto acha sem sentido o fato de 0s egipcios rasparem suas cabegas em sinal de luto. Como cidadio grego, cle sabe que 0 apropriado é nao cortar 0 cabelo, e sim deixé-lo crescer. Caso classifique a reacao dele como ingénua, vocé deve perguntar a si mesmo qual o comprimento € estilo do cabelo ¢ 0 que representa em sua prépria cultura, e perceber como é facil ter exatamente a mesma reacdo de Herédoto em relagao aos habitos alheios. O quea primeira geracio de antropélogos fez foi coletar e comparar toda a li- teratura sobre viagens a que puderam ter acesso, desde Herddoto até os relatos que acabavam de chegar dos exploradores na Africa. Isso abrangia trés séculos de escritos sobre os povos das Américas, alguns fantasiosos, outros atentos. Por exemplo, em sua Grands Voyages, escrita no século XVII, De Bry faz uma descrico dos tupinam- bas que povoavam a costa brasileira, com seu valor inestimavel permanente, mas que foram rapidamente dizimados devido a doengas e & subjugacao aos coloniza- dores. Para os estudiosos europeus, tais relatos daquilo que era literalmente o Novo Mundo nutriam suas imaginacbes. La pelos idos do final do século XVI, 0 ensaista francés Michel de Montaigne insistia na moralidade dos costumes exdticos, mesmo quando eles fossem contrarios a0 cédigo moral da prépria pessoa. Seus exemplos foram extraidos das sociedades indigenas americanas. No final do século XVIII, viajantes dos Mares do Sul provocaram uma sensagao ainda maior. As expedices do capitao Cook ao Havai e ao Taiti foram cuidadosamente documentadas por es- tudiosos que o acompanharam. Mas a demanda por informagées era tao grande na Inglaterra que versées nao oficiais rapidamente passavam a circular, baseadas nas histérias contadas por marujos. No século XIX, a teorizagdo com base em relatos de viagens deu forma a um campo de estudo distinto, e seus expoentes comecaram a se autodenominar COLEGAO HOMEM, CULTURA E SOCIEDADE - Cultura e sociedade Digitalizado com CamScanner antropélogos. O material deles foi ampliado por uma onda de interesse pelos cos- tumes dos camponeses curopeus, relacionado com o surgimento de novos naciona- lismos em todo 0 continente. O problema com todos esses dados era, obviamente, sua cnorme variagio em termos de confiabilidade. Além disso, numa época em que novas c incriveis descobertas estavam sendo feitas, era dificil fazer relatos de- sapaixonados, mesmo a partir de pura fantasia. Em 1875, por exemplo, um marujo francés alegou ter passado nove anos no cativeiro em um reino desconhecido no interior da Nova Guiné. Seu sensacional relato descreve palacios dourados e cidades fantasticas ~ todos, desnecessario dizer, totalmente falsos. Mesmo em casos menos extremos, a sede por informagées era tal que fontes nao corroboradas eram citadas livremente. O influente antropélogo inglés Edward Burnett Tylor usou todo tipo de fonte em sua pesquisa global sobre a cultura “primitiva’. Um dos fragmentos aparentemente teria sido obtido de um homem que ele encontrara no trem, ¢ que havia viajado pela Africa vendendo uisque. 1.8 PRIMEIROS EXPERIMENTOS COM O TRABALHO DE CAMPO Ao mesmo tempo, porém, ocorriam iniciativas, particularmente nos Estados Unidos, para produzir dados mais consistentes sobre os quais basear a teorizagao antropologica. Lewis Henry Morgan, cuja influéncia foi igual & de Tylor, baseou sua descrigao de 1851 da League of the Ho-de-no-sau-nee, or Iroquois (obra nao publicada em portugués) em informagées que obteve diretamente de informan- tes iroqueses no norte do estado de Nova York. Frank Hamilton Cushing foi além, mudando-se para o “pueblo” (vilarejo no alto da montanha) do povo zuni do Novo México ¢ aprendendo seu idioma. De forma interessante, seus colegas do museu Smithsonian, em Washington, inicialmente ficaram chocados por ele fazer uma coisa dessas. Foi apenas mais tarde que o diretor do museu viu o valor do trabalho de Cushing, vindo a se tornar seu patrocinador. Homens como Cushing lentamente levaram a disciplina para além da “antro- pologia de salio” do século XIX, no sentido de sua forma moderna. Entretanto, as técnicas de trabalho de campo normalmente sto associadas ao trabalho de Bronislaw Malinowski nas ilhas Trobriand, na extremidade leste da Nova Guiné. Malinowski gostava de deixar implicito que suas descobertas resultavam de circunstancias tini- cas, aumentando, portanto, sua propria originalidade. Diz-se, por exemplo, que ele ficou internado na Nova Guiné durante a Primeira Guerra Mundial por que, na con- dicdo de cidadao austriaco de descendéncia polaca, era considerado um estrangeiro ‘Membro de uma confederagio indigena norte americana, as Cinco Nagdes, compreendendo os mohawks, oneidas, onondagas, cayugas e senecas e, mais tarde, os tusearoras. (N. do.) CAPITULO 1 ~ Deparando-se com diferengas cultursis Digitalizado com CamScanner inimigo. Na realidade, a administracao australiana nao impés nenhuma restricdo a ele, ea sugestio de uma pesquisa mais profunda e de longo prazo ja havia partido de seus professores W. H. R. Rivers ¢ Alfred Cort Haddon, Estes haviam participado anteriormente de uma “expedigao” cientifica a Torres Straits, um canal repleto de ilhotas situado entre a Nova Guiné ea extremidade norte da Australia. O significado disso na pratica era que uma equipe de pesquisadores havia percorrido a regido, parando aqui ¢ ali para coletar artefatos ¢ administrar diversos testes psicolégicos no povo local. A partir dessa experiéncia, Haddon e Rivers concluiram que para a disciplina avangar seria necessario trabalho de campo de melhor qualidade. 1.9 AS TECNICAS DO TRABALHO DE CAMPO Nao ha grande mistério sobre as técnicas de trabalho de campo. Uma forma de se pensar a seu respeito seria como uma experiéncia de choque cultural controlado. Ou seja, os sentimentos previsiveis de desorientagio sio empregados de modo a focar a atengao exatamente naquilo que é diferente. Por exemplo, toda vez que ocorrer uma sensagao de embarago, é um sinal para se prestar mu modo como seus anfitrides se portam, se movimentam e se posicionam enquanto conversam, Isso por si s6 ¢ um estudo que vale a pena ¢ que rapidamente ira per- mitir que vocé se ambiente melhor. a atengdo no Em suma, 0s trés elementos basicos de um trabalho de campo sao: 1) Residéncia de longo prazo: Malinowski ficou famoso por montar sua tenda no meio do vilarejo de Kiriwina, nas IIhas Trobriand. Mas 0s arranjos residenciais riam tanto em torno do mundo que nao pode existir uma unica maneira de fazer as va- coisas. Em muitos lugares, seria impossivel ou, pelo menos, muito excéntrico viver em uma barraca. Certas vezes existem regras claras de hospitalidade, o que facilita as coisas, Entretanto, pode haver desvantagens até mesmo num arranjo conveniente como este. Se, por exemplo, 0 costume exigir que vocé permanega com um lider da comunidade, talvez. vocé seja visto como seu aliado ou cliente, impedindo, as- sim, a comunicagio com outras facgdes. Por outro lado, as pessoas podem viver em propriedades rurais dispersas, e vocé precisa encontrar uma familia anfitria. Isso pode ser dificil. Afinal de contas, nao é nada facil encontrar pessoas que hospedem uma pessoa totalmente estranha por meses a fio. Em alguns lugares, é impréprio para alguém que no seja um parente préximo até mesmo entrar na casa, ¢ 0 an- tropélogo deve encontrar uma casa livre para viver e interagir 0 maximo possivel com as pessoas fora de suas casas. Quando 0 famoso antropélogo britanico Edward Evans-Pritchard realizou um trabalho de campo no Sudao, nas décadas de 1920 € 1930, sua recepgao variou muito de pessoa para pessoa. “Entre os azandes’, diz ele, COLEGAO HOMEM, CULTURA E SOCIEDADE ~ Cultura e socledade Digitalizado com CamScanner tre os nuers fui forgado a ser um mem- “fui obrigado a viver fora da comunidad bro deles. Os a: Na verdade, existem imimeras complicagées e compromi: ‘0: tornar possivel interagir diariamente com as pessoas da forma ndes me trataram como um superior; os nuers, como um igi sos. Porém, pelo menos 0 objetivo é cl ive. mais direta pos 2) Dominio do idioma: a mesma proposta se aplica as interagdes linguisticas, O traba- Iho de campo efetivo nio pode ser realizado usando-se um intérprete. As razbes para isso sao bastante dbvias. Nao apenas os significados podem facilmente ser distorcidos pela tradugaio mas, além disso, podem existir ideias que simplesmente nao podem ser traduzidas. O pior de tudo, a tradugio destréi toda a possibilidade da ocorréncia de conversagdes abertas ¢ informais, que sao a chave do trabalho de campo gratificante, Por isso, em geral, 0 trabalho de campo requer o aprendizado de uma lingua, € um aprendizado profundo, Os viajantes podem aprender umas poucas fras suficientes para pedir informagées de como se chegar a um determinado lugar, reservar um hotel ¢ coisas do género. Mas 0s antropélogos precisam ser suficiente- mente fluentes para tomar parte de atividades sociais cotidianas durante os meses de trabalho continuo. exigéncia por si s6 torna claro por que o trabalho de campo precisa ser estendido por um periodo longo. Como regra pratica, um ano é ‘a antecipada. 0 minimo em que é possivel aprender uma lingua relevante de mane’ Isso, na verdade, serve para algumas das linguas mais faladas no mundo, aquelas provavelmente ensinadas nas universidades. Mesmo com a vantagem de tal treina- mento, levara algum tempo para se sentir & vontade para atuar de forma integral no novo meio. Mas existem milhares de outras linguas no mundo, e pode haver fa até mesmo dos materiais de aprendizagem mais basicos, como dicionarios ¢ gra- miticas. Sendo assim, os antropdlogos muitas vezes se viram diante de uma lingua com a qual nunca tiveram um contato anterior. Entao eles nao tém al- nao escrit ternativa a nao ser construirem eles mesmos os materiais linguisticos necessarios, comegando com uma ortografia, isto é, as letras e simbolos necessirios para escre- . Quando isso é necessario, o tempo minimo preciso para um ver os sons da lingu: trabalho de campo bem-sucedido pode ser de dois anos ou mais. A familiaridade que os antropélogos tém com a diversidade das linguas deixa claro por que a disciplina sempre teve uma ligacio préxima com a linguistica, ¢ muito tera que ser dito sobre isso nos proximos capitulos. Devemos notar, entre- tanto, que no existe uma regra que diga que os antropdlogos tém que trabalhar com linguas estrangeiras. E perfeitamente possivel cruzar fronteiras culturais sem 2. Evans-Patrcitann, Edward. The Nuer of the Southern Suda ‘Oxford University Press, 1940. In: African Political Systems. London CAPITULO 1 = Deparando-se com diferencas culturais, Digitalizado com CamScanner ficar mudando de lingua, embora possam existir variagdes de prontincia ou voca- bulério. Imagine, por exemplo, as fronteiras das classes sociais, ou das comunidades imigrantes em uma grande cidade. Alem disso, os antropdlogos podem optar por retornar aos seus proprios paises para trabalho de campo, aps terem estudado antropologia em algum outro lugar. Um exemplo disso poderia ser um antropélogo indiano que estudou nos Estados Unidos ou no Reino Unido, e que depois retorna a india para realizar pesquisa: Cruzar e recruzar toda uma série de fronteiras culturais complicaria sua experién- cia de choque cultural. 3) Observacio participante: esta caracteristica do trabalho de campo é a mais di- ficil de ser definida. Basicamente, significa que o antropélogo tem uma participagao na vida das pessoas nativas, vivendo da mesma forma que elas ¢ fazendo © que elas fazem. Na pratica, entretanto, esse é um objetivo que pode ser atingido apenas parcialmente. E mais provavel que o antropélogo simplesmente nao seja capaz de fazer 0 que as pessoas locais fazem. Malinowski fez questo de ir pescar com seus anfitrides de Trobriand, mas nao conta quantos peixes conseguiu pescar. Acima de tudo, 0 antropélogo nao pode despender © tempo necessario para cultivar uma lavoura, por exemplo. Ele tem que continuar com a pesquisa. Enfim, é provavel que existam atividades das quais © antropélogo sera excluido por razio de sexo ou status. Podem existir ritos para mulheres, ou simplesmente conversas que jamais acontecerio se um homem, 0 antropélogo ou qualquer outro, estiverem presentes. Por outro lado, uma antropé- loga pode ser restrita em seus movimentos, ou ter dificuldade de obter informagdes sobre questdes politicas. Além disso, podem existir circulos que sao fechados para todos, exceto para os especialmente iniciados. © que isso acrescenta na pratica é a impossibilidade de se viver exatamente da mesma forma que os residentes locais. Nao obstante, a tentativa de fazer isso é importante. Quando Malinowski foi pescar, na verdade ele no estava tentando pegar peixes. Ao contrario, estava aprendendo, em primeira mao, como pescar; as técnicas, o linguajar especializado ¢ as tradigdes. Na realidade, o desejo de tomar parte de tudo o que esta acontecendo da melhor forma possivel pode ser visto como algo que engloba os demais requisitos, da residéncia em longo prazo ao dominio de idiomas. Consequentemente, as técnicas de trabalho de campo muitas vezes sao sintetizadas no termo “observacao participante”. COLEGAO HOMEM, CULTURA E SOCIEDADE ~ Cultura e sociedade Digitalizado com CamScanner

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