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3. AFANTASIA NAS LEMBRANCAS, NNAREPETIGAO E NA CRIAGAD *0 pslconeurético fantasia o que o perverso realiza” (Sigmund Freud, 1905) Otermo “lembrancas encobridoras” é constituido por Freud para compreender a relagao entre as lembrangas que 0s adultos tem da propria infancia e as vivencias ¢ impressbes primitivas mais significativas e plenas de afeto a elas associadas. Essas lembrancas indiferentes, ‘como um dos processos de deslocamento, representam, por meio de associacao, outro contetido que ¢ impedido de se manifestar ou de ser lembrado devido ao proces- so de recalque. Como o funcionamento da meméria ¢ submetido nao somente aos processos conscientes, mas também aos inconscientes, muitos tragos mnémicos podem estar relacionados a essas lembrangas encobri- doras, ocultando outro contetido mnémico submetido a resisténcias, Em sintese, a lembranga evocada de um evento de forte conteudo afetivo da infancia pode, em Freud, 5. "Lembrangas encobridoras™ bl — 1 funcdo da resistencia imposta a essa lembranca origin- ria, sofrer deslocamento por associagdo, gerando uma nova lembranca, modificada e de aspecto indiferente, que persiste nessa outra memoria. Duas memorias po- dem ser descritas: a das impressdes primitivas e a das, embrangas a elas relacionadas, e distorcidas em sua representacéo por meio da agdo do recalque. Freud se depara com o enigma das complexas fun- des da meméria de “esquecer” e de “reter” e considera que ambas se referem a uma falha no proceso de recordar e, por mais paradoxal que parega, encontram- -se interligadas. Na medida em que a memoria deveria ‘cumprir sua fungdo de lembrar o que foi experienciado, la reproduz outra lembranca, substituta da primeira. A introdugdo das “lembrancas encobridoras” na dinamica psicanalitica possibilita investigar um dos mais importantes enigmas do psiquismo humano: 0 esquecimento que os adultos tém de sua propria in- fancia. A suposigao de que as experiéncias vivenciadas nos primérdios da infancia ndo possuem registros mnémicos reais e efetivos, e s6 podem ser significadas ‘em elaboragoes posteriores, abre um caminho paraarti- cculara relagao da memoria com os processos primérios € secundarios, As chamadas “lembrancas encobrido- ras” passam a ser equivalentes as proprias recordagdes da infancia, na medida em que se trata daquilo que € possivel lembrar. Freud estende essa analogia ontoge- nética as lembrancas da infancia dos povos, passiveis n de serem compreendidas em suas sagas, lendas e mitos. Essa perspectiva aproxima a ontogénese da filogenese. Os primeiros tracos mnémicos da experiéncia infantil nao desaparecem. Contudo, s6 podem ser elaborados 1 posteriori por meio da linguagem, em fungao das exiggncias das forcas psiquicas posteriores. Os contos de fadas que tanto afetam as criangas si0 também compreendidos como “lembrancas encobrido- ras”, e esse vinculo tao estreito entre experiéncia | vivida esimbolismo literdrio fica bem patente na observagao do comportamento infantil diante desses textos. Ha uma uta pelo significado de tais roteiros; se alterados pelo adulto numa contagao de historias, por exemplo, geram ‘muita anguistia e resistencia por parte das criangas. O ‘mesmo acontece com um grupo de pessoas que compar- tilham uma mesma erenga religiosa e que se indignam. Giante de questionamentos e mudangas na leitura dos seus mitos da criagao do mundo. A arte, 0 psiquismo individual e o coletivo estio muito mais proximos do que se supde, e 0 elo que os une fantasia. Freud sinaliza que o esquecimento estd ligado a uma fungao de desprazer. Esquece-se, porque a lembranga nos causa desprazer. Os afetos podem estar ligados a ‘meméria, provocando situagdes de desprazer. Ha uma analogia com a fisiologia neste caso, quando Freud relaciona o empenho defensivo de esquecer e de evitar o desprazer com uma manifestagdo do reflexo de fuga em presenca de estimulos que provoquem dor. Em seu rR artigo sobre a Gradiva de Jensen* declara que ninguém esquece algo sem um motivo oculto. © valor das lembrancas encobridoras retorna a0 longo da obra freudiana, com a perspectiva de nao representar somente algo que foi esquecido, mas sim a totalidade do que € essencial. Repensando a origem de ‘marcas inscritas em momentos muito precoces da vida, Freud’ se encontra diante do desafio de decifré-las. E ‘esse se constitui como um dos enigmas fundamentais, da psicandlise, em toda a sua dimensto clinica. Como elaborar esses tracos mnémicos traumaticos experien- ciados em momentos muito primitivos da historia de um individuo, tracos estes que nao tém acesso a representagdo? Um dos caminhos indica que essas re- cordagdes reprimidas, quando nao elaboradas, tendem a se repetir em atos. O outro se dirige no sentido de ‘compreender os mistérios das fantasias origindrias.” Com relagdo a tendéncia a repetir em atos (atuagdo/ ‘acting out) 0 que nao pode ser elaborado, compreende- -e que estas recordagdes sto de tal forma reprimidas que geram uma tendéncia a constituir-se como uma compulsdo a repeticdo. O individuo repete aquilo que fot marcado como uma experiéncia de sua histéria, na qual se manteve fixado e da qual nao tem consciéncia. Eessa ‘ Frend, §.-Delirios e Sonhos na Gradiva de Jensen’ “ Freud,$. "Recordar, repetrereelaborat. In: Novas recomendagdes sobre a tecnica da psicandli 1 Freud, S. “Historia de uma neurose infantil’ B compulsio a repeti¢ao é a forma pela qual o individuo € capaz de recordar. Recorda ao repetir. Re} consciente, marcada e expressa regularmente na: cotidiana para com certas situagdes de vida. O sujeito rTepeteaquilo de que ndo écapaz de se dar conta. Atitudes expressas por ele proprio, que geta respostas do mundo quase previsiveis e recorrentes, o que faz com que, na grande maioria das vezes, o sujeito atribua ao mundo ‘externo aquilo que ele proprio incentiva, inconsciente- Durante a andlise, o individuo tende a repetir seus sintomas, e 0 analista deve compreender que nesta repetigdo estd implicitamente presente sua forma de recordar, de trazer A tona as lembrancas submetidas as resistencias. Torna-se uma das fungdes do anali ser capaz de observar e interpretar, de forma gradual, essas manifestagdes que o individuo produz diante do mundo e na andlise sob transferéncia. Ajudé-lo a compreender que o faz, mesmo sem sabé-lo conscien- temente, é um dos primeiros caminhos para romper as barreiras da resistencia e buscar uma retificagao, de modo que o individuo possa se ver implicado nos atos que repete em suas relagdes. ‘A fantasia se coloca de forma ampla sob a condigo de repeticao. Primeiramente, como fantasia incons- ciente, constituida em formas de agir que tendem a colocar em atos situagdes experimentadas na infancia 4 ¢ submetidas ao recalque. Segundo, como fantasia projetada para o ambiente, que parece aos olhos do individuo reagir sempre da mesma forma, sem que ele perceba que as reagdes séo resultantes de suas proprias aces. Fantasia que se dirige também ao proprio ana- lista, sob a forma de transferéncia, tentando repetir € encontrar na analise as mesmas reacdes geradas por suas atitudes. Para o analista, uma das grandes artes de sua técnica esta em ser capaz de acolher essa fantasia dirigida a sie ir se deslocando gradualmente deste lugar outorgado pelo individuo. Deste modo, 0 analista possibilita ao sujeito desvelar e abandonar, apesar das resisténcias, suas fantasias tao assertivas € confirmatorias de uma realidade psiquica imposta pela sua histéria, como determinante tinico de seu destino e de seu Eu. Considera-se esse o maior desafio do analista: desconstruir o sintoma em busca de novas formas criativas do exercicio do Eu. Traduzindo-seem termos de fantasia, trata-se de desfazer uma crenga de sie do mundo para construir outra, sempre de acordo com o prinefpio da realizagao de desejo, do qual nao se pode escapar. Enfim, se trata de trocar uma fantasia mais repressora por outras que permitam ao sujeito expressar de forma mais abrangente seus afetos e sua forma de estar no mundo. A fantasia que reprime pode se transformar em sublimagao criativa. ‘Oanalista nao deve focalizar essas repetigBes somen- tecomo processos vinculados ao passado, mas sim como B forcas atuantes na vida presente do as quais ¢ preciso agir para modifics-las, na medida em que o sofrimento ¢ uma experiéncia real vivida em tempo presente. Porém, o trabalho psicanalitico come- ¢a.a demonstrar que algumas compulsdes a repeticdo apresentam barreiras intensas, em que os individuos resistem obstinadamente a abrir mao dos seus sintomas. Diante de tal dificuldade no caminho clinico, Freud in- clui uma nova origem a essas repeticoe Jembrancas encobridoras. Esta se consti pulsio a repeticdo independente, uma pulsio paralela a Eros, baseada no principio de inércia: a pulsio de morte. Dora, fantasias e transferéncia ‘No artigo da anilise de Dora, Freud reafirma a con- cepcao de que o sonho ¢ um dos desvios pelos quais 0 recalque pode ser evitado, tratando-se de um dos princi- pais recursos da chamada “figuracio indireta no interior do psiquismo”.* Durante a descrigdo do caso, Freud cha- ma a aten¢do para um mecanismo psiquico que ele tem dificuldade de elucidar e que € muito importante para o estudo das neuroses. Trata-se da inversdo de afeto, ou seja, de como é que forma em desprazer. ‘Outra pergunta sobre a histeria, que se estende A analise da relacdo entre 0 somatico e o psiquico, = “Fragmento de andlisis de un caso de histeria’, p. 15, ‘Tradugao do autor 1% refere-se a questo da origem dos sintomas entre esses dois polos. Freud responde que “até onde Ihe ¢ pos- sivel ver™® ha uma participagdo solidaria de ambos na origem dos sintomas. A submissdo somatica que se expressa corporalmente (ou telacionada ao corpo) pode estar vinculada a processos normais ou patol6- ‘gicos. Quando o paciente repete o mesmo sintoma que ‘se expressa por uma conversto corporal, encontra-se tum quadro de histeria. Esse mecanismo de repeticao requer uma intencionalidade ps(quica inconsciente, ‘um sentido que ¢ emprestado ao sintoma histérico, que ‘busca expressar-se por essa via em virtude do recalque. Na sequencia, Freud estabelece a relacdo da doenca ‘com seus ganhos primarios e secundarios, ao que ele daria o nome de fuga para a doenca. Algumas doencas sto dirigidas a uma pessoa espectfica e desaparecem quando esta se afasta. So resultados da intencao, ‘muito comum, de as criangas adoecerem para ganhar o afeto e a atencio de seus pais. ‘Apesar de ja ter colocado a questao da sexual nos sintomas histéricos, Freud pela vez formula — como universal — que um sintoma ¢ a representacdo, a realizacdo de uma fantasia de con- tetido sexual. Se, logo apés, ao ressaltar que “melhor dizendo, pelo menos um dos signific: um sintoma corresponde a representagdo de uma fan- * Tbidem, p. 37 tasia sexual, enquanto que os outros significados nao esto submetidos a essa restricto em seu contetido!”” ‘Aletado por seus estudos sobre asexualidade infantil, Freud comecaareconhecer a importancia da cultura na Constituigdo das neuroses e perversdes e, com essa com- preensio, passa a desvendar um dos mais importantes enigmas da constituigao do psiquismo. Em principio, analisaa contextualizaclo dos sintomas de acordo com cada pertodo s6cio-historico. Por exemplo, o que paraa sociedade vienense era considerado perversdo—tal qual © amor sexual entre os homens - em outras culturas, como a grega, que, segundo seu julgamento, era muito superior, era nao s6 cultivado como considerado “digno de importantes fungdes sociais"* Em seguida, Freud estabelece 0 conceito de per- versio como nao equivalente ao sentido patético de “bestialidades” e "degeneracdes”,” mas sim ao cardter transgressivo de certas condutas da fungdo sexual em relagao ao proprio corpo e ao objeto sexual. Sub- vertendo a nogdo da natureza da sexualidade e sua expressio na vida adulta, Freud afirma que, em sua origem, aquilo que chama de perversoes € a expres so da disposicao sexual indiferenciada das criangas. Diante do sufocamento dessas forcas pode emergir um * Thidem, p42. * idem, p45. © bidem. Tedirecionamento para metas nao sexuais por meio da sublimacao, produzindo atividades culturais. O desenvolvimento da crianga parece ter de seguir um umo visando a inibicdo dessas disposicées - 0 que, no caso de no ocorrer, revela o cardter perverso do psiquismo em sua forma ulterior. Ou seja, ninguém se torna perverso; continua a s¢-lo, Os psiconeuréticos so aqueles cujo recalque incide sobre essas forcas primarias, tornando-as inconscientes durante o desenvolvimento. As inclinagdes perversas estdo presentes na base do psiquismo e constituem-se como fantasias inconscientes na formacio das psico- neuroses. O psiconeurotico fantasia o que o perverso realiza. Assim, compreende-se que a psiconeurose €0 negativo da perversio. Por esse motivo, 0 “néo” ndo existe no inconsciente, ele é um produto do recalque. Nas fantasias e nos sintomas histéricos nao é ne- cessério que os diferentes significados dos sintomas sejam compattveis entre si e se organizem num todo articulado; basta que este todo seja constituido pelo tema que deu origem a essas fantasias, Freud relata que os sintomas de Dora se organizavam em torno, ialmente, de uma fantasia de vinganca, e, em segundo lugar, sobre uma fantasia de defloracdo. Ambas emer- ‘gem nos sonhos mas, como foi citado anteriormente, as fantasias ndo se complementam; ha elementos de origem sexual presentes nelas, o que as torna envoltas, ‘por um tema comum. Mais adiante, Freud relata uma n terceira fantasia, a da espera de um noivo. E assim se- gue descrevendo as fantasias de Dora, algumas como complexos que retinem uma série de outras fantasias produzidas diante da frustracao e do fracasso de certos desejos. Um ataque histérico como uma suposta crise de apendicite de Dora leva Freud a perceber que se trata de uma fantasia de parto, reforcando a teoria de que muitos dos sintomas histéricos, ao atingirem seu maior grau de desenvolvimento, podem representar uma situagdo fantasiada da vida sexual, tal como uma cena de comércio sexual, gravidez, parto etc. © fim da andlise com Dora se efetua por meio de ‘uma interrupcao que parte da prépria jovem, quando Freud insistira em interpretar seus sintomas como um afeto nao correspondido pelo Sr. K. A primeira interpretagao de Freud assinala que um psica que “evoca os mais malignos demOnios, apenas conti- dos, que habitam o peito humano, e os combate, tem que estar preparado para a eventualidade de nao sair incolume desta luta”.® A segunda interpretagao afir- Ma que os neuroticos, quando se veem frente a uma realizacio de intenso desejo, buscam evité-lo, Diante da realidade, se protegem sob 0 manto da fantasia, © que se pode interpretar como uma defesa contra a insuportabilidade do desejo. Os neuréticos séo domi- > Freud, S. "Fragmento de andlisis de un caso de histeria’, p. 96. ‘Tradueto do autor. a nados pela oposicdo entre a realidade e a fantasia, e a incapacidade para cumprir a demanda real de amor um dos tracos de cardter mais essenciais da neurose. No epilogo do artigo, Freud retoma as questoes igadas a interrupcao do tratamento de Dora e se dé conta de que o amor de Dora nao era dirigido ao Sr. K, mas sim a Sra. K. Ele nao pode perceber isso antes porque nao tinha ainda estabelecido a importancia da corrente homossexual nos neuréticos, Essa ignorancia havia provocadé algumas interrupcdes também de ‘outros pacientes. No caso de Dora, ao insistir no amor pelo Sr. K, Freud reforgou o que seria um aspecto da resistencia do analista Sobrea transferéncia, Freud assinala alguns de seus fundamentos mais importantes neste caso clinico. Em principio, descreve-a como recriacdo das mogées (impulsos) ¢ fantasias que, a medida que avanca a anilise, vio despertando e se tornando conscientes. 0 ico € a substituicao de uma pessoa anterior pelo analista, de modo que uma série de vivencias psiquicas anteriores ndo sio revividas como algo do passado, mas sim vinculadas a pessoa do analista no ‘momento do tratamento, ‘A transferéncia deve ser descoberta pelo analista comas poucas pistas oferecidas pelo paciente e deve-se ter cuidado para nao interpreté-las prematuramente. A ‘cura psicanalitica nao criaa transferéncia, apenas re- vvela, da mesma forma como faz com outros contetidos ocultos do psiquismo. Na andlise, todos os impulsos s80 despertados, desde os ternos e amistosos até os hostis. Tornar conscientes estes impulsos transferenciais € objetivo da psicanalise. Longe de ser um obstaculo, a transferéncia torna-se o mais poderoso aliado do ana- lista, Quando nao consegue expressar suas fantasias € Tembrancas no tratamento, o paciente acaba atuando, ou seja, transformando em ato o que esté na fantasia. Ao final, com a interrupcéo do tratamento por parte de Dora ea elaboragio posterior de Freud, constata-se ‘quanto foi fundamental para o futuro da psicandlise a compreensao da dinamica da transferéncia. Fantasia, crlagdo edelirio lugar da psicandlise na ciéncia € uma questo relevante nos textos de Freud, que reflete constante- mente sobre o que as aproxima e as distancia. Em Principio, a psicandlise retoma o conhecimento dos povos primitivos acerca da crenca na significacao dos sonhos, a qual a ciéncia se opde. Freud rechaca a ideia de que os sonhos sejam somente um produto de nosso ‘mecanismo fisiolégico, opondo-se a grande parte da ciencia, que afirma que os sonhos nao so um produto do psiquismo, nem tém significado proprio. Acconcepgio dos antigos de que poderiamos prever o futuro é rechacada por Freud, dentro do contexto da Freud, 5 Delitios e sonhos na Gradiva de Jensen” interpretagdo simbdlica, Por outro lado, essa ideia traz implicita a importancia de um dos pontos principais da teoria freudiana dos sonhos ~ 0 de que, sob certo aspecto, o sonho pode vir a ser um guia do futuro, na medida em que se trata da realizacio de um desejo, da busca de algo que se quer obter num plano futuro. Em prinefpio, Freud questiona o livre-arbitrio, na medida em que considera que muitas de nossas decisdes so submetidas ao inconsciente, quigé a sua totalidade. Muito daquilo que denominamos acaso € que consideramos como mera casualidade do destino estd, muitas vezes, regulado por leis que nossa cons- cigncia desconhece. O uso do termo fantasia pode ser emprestado a muitas solugdes para a complexidade e 5 desafios que nos impde o psiquismo. Freud estabe- lece uma diferenciagdo entre a memoria e o recalque, demonstrando que o que € recalcado nao desaparece da ‘memeéria. Contudo, esse contetido nao pode ter acesso irrestrito a consciéncia, em virtude das imposicdes dos motivos que geraram o recalque, geralmente de cunho erético. Entretanto, a pressio do que é recalcado retorna com toda a sua fora quando algum elemento externo assim 0 provoca, mesmo que inconscien- temente e, muitas vezes, revestido de outra forma, numa outra linguagem, que nao a original. Enfim, 0 que foi recaleado retorna, emergindo da propria forca Tepressora ~ sendo que uma dessas formas, se pode concluir, é por meio da fantasia. A fantasia cumpre a fungao de dar um sentido, mesmo que submetido ao recalque, ao contetido latente nao consciente. Trata-se de um substituto, uma saida, um caminho para essas forcas recalcadas. Um dos produtosculturais que Freud destaca, para defender ideta da rela¢do do sonho com contetidos inconscientes, sio as construgées produzi- das pelo que ele chama de escritores criativos. Quando aborda a produgdo de “escritores criativos", Freud expressa que esses autores se situam a frente da cigncia. Em outras palavras, antecipam, na arte poética, aquilo que vai ser compreendido pela cigncia, Neste contexto, fantasia é um sindnimo de criacao. Elaretrataa capacidade do autor de, mesmo sem ter consciéncia disso, refletir sobre elementos da realidade. Realidade incons- ciente. Mesmo que o escritor determine que se trate de fantasia, léestdo presentes, em cada um dos personagens eno enredo, as leis, as marcas da historia inconsciemte aquilo de que se constitui o psiquismo humano. E 0 acaso, esse acontecimento que nos parece tdo inexplicavel, pode muitas vezes ser produto deste saber inconsciente, donde aponta que “a fuga o ins- trumento mais seguro para se cair prisioneiro daquilo que se deseja evitar’.®* Em funco dessas relagdes estabelecidas entre o saber inconsciente e 0s eventos externos, o vinculo entre. fantasia ea realidade passa ser estreitamente proximo. Mas como prové-lo pelos > der, p. 48. ee caminhos da ciéncia, que nao aceita as provas subje- tivas da existencia desse inconsciente? Freud sugere que © psicanalista nao ignore os caminhos criativos trilhados pelo escritor, na medida em que estes podem ‘guid-lo a compreender o que parece ser incompreen- sivel. Antecipa-se, neste ponto, o poder que a criacdo subjetiva exerce na direcdo da elaboracio dos contlitos, por meio da arte, inclusive nos delirios, Freud esboga na teoria pontos de contato impor- tantes entre fantasia e delirio, A fantasia ocupa toda a primazia psiquica tanto de individuos quanto de grupos, governando as agdes e se constituindo como uma mo- dalidade de crenca. As crengas, nao se pode deixar de registrar, fazem parte de todo o arcabouco mitolégico, religioso, ideolégico e politico com o qual se consti- tuem os humanosem seus grupos. Pode-se dizer que as ccrencas fazem parte de um deltrio coletivo, socialmente aceitavel. Quando radicalizado, esse delirio pode chegar 40s fundamentalismos que cumprem o supremo objetivo de afirmar sua verdade como universal e inico caminho para o exercicio existencial da experigncia humana, nem que seja necessario negar todas as diferencas para se afirmar como tal. Nesse sentido, os delirios socialmente aceitaveis se diferenciam dos delirios individuais pelo fato de que os segundos nao se tornam coletivos. Mais além, Freud retoma esse aspecto da religiao, restabelecendo uma conexao entre a neurose obsessiva eas crengas religiosas. Inicialmente, analisa o papel da ‘compulsto nos atos obsessivos que o individuo realiza sem entender seu sentido principal, que é inconsciente. Estabelece uma analogia entre os atos obsessivos in- dividuais e os atos cerimoniais e ritualisticos que os individuos exercitam nas praticas religiosas, por vezes cientes de seu contetido simb6lico —no caso dos sacer- dotes -, e, em outras, realizando tais atos sem ascen- der ao significado simbélico e consciente do mesmo. Mesmo que o sujeito ascenda ao conteido simbélico ritualfstico, no entanto, as inten¢gdes inconscientes subjacentes aos rituais permanecem desconhecidas. Tal como ocorre em varias partes de sua obra, Freud aproxima os processos mentais individuais dos pro- cessos mentais coletivos, sociais. ‘A nogaio de sentimento inconsciente de culpa emer- ge nesse texto para explicar a motivagdo que domina 0 individu, provocando compulsdes e proibicdes. O inconsciente diz respeito, mais uma vez, a0 fato de 0 individuo nao ter consciéncia de por que deve praticar tais atos. Entretanto, diante da sua percepgdo interna da tentacdo de realizar o proibido, surge 0 medo da unico, gerando angustia, Para evitar o desprazer causado por esta tltima, 0 individuo cria seus cerimo- niais como uma defesa, uma protegao transformada em atos. Como essa pulsdo inconsciente nao cessa de insistir, oindividuo se ve repetidamente diante de pos- siveis fracassos. Em fungdo desses fracassos, seus atos defensivos tem de se manter cada vez mais reforcados ¢,assim, ele os repete incessantemente. Em seu sentido social, a formacdo da religido tem como base o recalque das mogdes pulsionais por meio a remincia, Nao se pode definir essas mogdes repri- midas como de cardter eminentemente sexual, pelo ‘menosa principio, Tais interdigbes tendem a estabelecer limites para pulsdes egoistas que possam prejudicar a sociedade, mas, no fim, trata-se de mogdes da ordem da sexualidade. Os cerimoniais religiosos funcionam de forma a autorizar atos que até entdo estavam interditos € encontram permissio para poder ser realizados, por uum lado —tal como um casamento autoriza a prética das relacOes sexuais —, ou, de outro, criam mecanismos de penitencia e expiacao dos pecados, por meio de oracdes € outras formas da libertacao da culpa. Articulando os sintomas neuroticos com seus correlatos sociais, Freud “concebe a neurose obsessiva como um correspondente patologico da formacao da religido, qualificandoaneu- rose como uma religiosidade indi como uma neurose obsessiva univers © inconsciente nao pode ser reduzido, exclusiva- mente, a um produto do recalque, e a obra freudiana vai demonstrar, a partir de 1915, que nem tudo que é inconsciente é recalcado, Em outras palavras, emerge um inconsciente que € anterior ao recalque. Na ligacdo entre as forgas psiquicas e os afetos, e em sua relacdo ® Freud, S. "Acciones obsesivas y practicas religiosas",p. 109, ‘Tradugae do autor, com o recalque, destaca-se que o recalque das ideias ocorre em virtude do recalque dos afetos a elas asso- ciados, e que devem ser evitados. Os afetos recalcados somente sio perceptiveis por meio das associagdes com as ideias. E como ficam os contetidos inconscientes destituidos da linguagem? Essa questo sera mais bem esclarecida na segunda topica freudiana. Sobre a relacdo entre fantasia e ciéncia, Freud pos- tula certa ignorancia da cigncia em nao reconhecer os rocessos inconscientes, e, nesse sentido, quem ocupa © seu lugar € 0 escritor criativo, Freud chega mesmo aafirmar que “€ \cia que nao resiste a criagao do autor” Na criagao literaria dos escritores, observa-se que estes uiltimos a produzem como um conhecimento e que nao tem consciéncia das leis e dos propositos do inconsciente que regem suas produgdes. A criacdoéum produto transformado em arte, a partir daquilo que o autor vishumbra em sua propria alma, observando suas possibilidades de desenvolvimento, permitindo-se a ressdo sem submeté-la a um sufocamento por uma critica consciente, Em oposicao ao psicanalista, que foca sua atenc4o nos processos mentais alterados nos outros e em seus pacientes, o escritor se ocupa da criacdo daquilo que © psicanalista sé pode observar indiretamente, em es- ppecial as leis que regem o inconsciente. Nesse sentido 5 Freud, 5 ‘Delitose sonhos na Gradiva de Jensen’, p. 59. € que o escritor pode antecipar a ciéncia, pois as fan- tasias que sustentam a criacdo e os pensamentos nao ‘convencionais também sto regidas por leis. A arte surge como uma oposicdo a consciéncia critica, e a fanta nnesse sentido, deve ser tratada como conheciment Ao relacionar fantasias com os recalques, Freud explica que as primeiras sdo precursoras dos delitios, Em sua origem e natureza, as fantasias slo substitutos € rebentos de lembrancas recaleadas que nao conse- guem atingir a consciéncia de forma inalterada devido a uma resistencia, mas que sdo passiveis de se tornar conscientes ao se levar em consideracao, por meio de alteracées e desfiguragées, a censura da resistencia. ‘Uma vez consumado esse compromisso, essas recor- dagdes recaleadas se transformam em fantasias, sobre as quais a pessoa consciente incorre com facilidade em um mal-entendido, isto ¢, pode compreende-las no sentido da corrente psiquica dominante. Refletindo sobre a fonte dos sonhos e dos delitios, Freud afirma que ambos se originam do recalque e que “os sonhos sao 0s delirios, por assim dizer, fisiolégicos das pessoas normais”.* Outro adendo muito impor- tante a respeito da fantasia diz respeito a situacdes da vida cotidiana, por exemplo, quando se observam indi- vviduos muito pressionados pelos impulsos das mocdes afetivas—de forte intensidade — que exigem satisfacao. * Thidem, p68. Nestes casos, a razto é capaz de aceitar ideias absurdas, que escapem ao dominio da ldgica racional, fazendo com que os sujeltos ajam quase que como portadores de uma debilidade mental. Asustentagdo da ideia da existéncia de fantasmas, espfritos e almas que retornam, tao presente nas r sides, afeta boa parte das vivencias na infancia, e mui- tas vezes convive num paradoxo entre a racionalidade eas crengas religiosas. E aqueles que vivenciam fortes impactos emocionais nfo raro retornam a crer na exis- tencia desses espiritos, mesmo se na vida consciente sejam pessoas céticas e extremamente racionais. O delirio nao é uma farsa, uma mentira. Trata-se de ‘uma produgdo apoiada na verdade de cada individuo € na sua inabalavel conviccao de fé. Retomando a discussio sobre a crenga, podemos encontrar como suas caracterfsticas principais as motivacdes incons- cientes, acerteza ¢ a fé no que afirma e, nesse sentido, hé uma parcela de verdade inconsciente em cada um dos grupos que exercem suas crengas, por meio das identificagdes. O delirio sempre triunfa a cada novo conflito entre o erotismo e a resisténc Sobre a relacao entre corpo e conhecimento, Freud retoma a questdo da sexualidade infantil, que, embora recalcada por grande parte dos adultos, insiste no esfor- ¢0 das criancas em compreender aquilo que sentem e percebem no seu corpo eno dos outros. A crianga sente prazer nos 6rgios que nao sio necessariamente os de reproducdo, mas sim nas fontes corporais descritas por 90 Freud em sua concepeao ampla de sexualidade, que se cestende para além dos genitais. A crianga, na ignoran~ ‘ia sobre a origem dos bebes e da diferenca sexual, por texemplo, em que formular teorias para dar conta dessa compreensto do funcionamento biolégico, de modo & rganizar seu Eu, No esclarecimento que 0 adulto faz a crianga, sempre ha algo nao dito que se supde que a crianca nao estejainteressada em conhecer ou preparar da para ouvir, Entretanto, entende-se que ndo se trata somente de uma questo de cunho educacional, pots as questbes do prazer € do amor sto as de elaboracio mais dificil para o proprio adulto (pais, familiares, professores eic) assim tornam-se confusas, veladas, fruncadas e ambivalentes na transmissfo para ascrian- gas, mesmo que inconscientemente, Afora isso, ha a moval sexual apontada por Freud, que ~ embora seja negada por muitos profssionais na contemporaneidade a mantém-se presente sob formas muito diversas da que vigorava na Viena do fim do: século XIX e inicio do séoulo XX, exercendo sua fungdo de controle e dominio social por meio do recalque da sexvalidade. H4, ainda, ‘uma moral repressiva muito acentuada em diversas ‘comunidades fundamentalistas mundo afora, além das tdeologias socioeconémicas dominantes nas sociedades tltracompetitivas, nas quaisa constiuigio das identifi cagbes visa a exacerbar os individualismos narcisicos, tensionando e dissociando de forma mais profunda e contundente a relagao entre afeto e sexualidade, a As fantasias infantis constituem-se, portanto, @ partir da elaboragdo possivel com os elementos forne- cidos por sua propria investigacdo da natureza deseu corpo e das informagbes vindas do mundo exterior, do qual a crianca tem que dar conta na compreensio de sie do mundo. E, na matoria das vezes, a crianga elabora psiquicamente 0 que sente com a linguagem facessivel a ela, Este € um terreno fértil para a cons trucao das fantasias infantis sobre a origem da vida, a diferenca sexual ea capacidade de amar. Vale lembrar que, embora possa ter informacies a respeito, ainda é distante da crianga uma compreensao vivenciada do funcionamento de uma vida sexual adulta, na medida fem que suas fungdes sexuais secundarias ainda no foram desenvolvidas, Esse tema do surgimento da fantasia como compreensio de uma realidade cuja experiencia ndo acompanha a informacao é de uma importancia que extrapola, em muito, as fantasias conscientes ou nao. infant Afantasia, o artista e a introversao Seguindo o rastro do artista a0 conseguir driblar a realidade sem perder o sentimento de satisfacdo, Freud” vai descrever uma introversio como um C3 5 conferencia Frewd, 5 "Os caminhos da formagio dos XXIII de Conferencias introdudrias sobre a pslcandlise ‘minho regressivo que 0 individuo encontra ao se de- parar com os impedimentos ao seu prazer; produto concebido sob uma perspectiva libido, na qual a fuga da realidade busca retornar a0 ponto de fixagao inconsciente, inscrito pelo prazer € pela fantasia, Entretanto, a vida de fantasia € compartilhada pelo artista ou por outros membros da humanidade como algo que se tem em comum, poise trata de um material primitivo, constituinte do jiquismo dos individuos. O artista possui uma certa idade para expressé-lo, de acordo com nor- ‘mas sociais implicitas, na medida em que a arte pode produzir satisfagto nos outros individuos, quando se deparam com o mesmo contetido presente em sew inconsciente e que ndo tem acesso a representagao. A repressio impele essas fantasias dos individuos para ‘© campo dos devaneios, no qual ¢ permitido encenar ‘experiéncias de satisfacdo e desejos. J4 0 artista tema possibilidade de instaurar as fantasias na concretizagio da obra de arte. Fantasia como atividade psiquica: triagdoe arte Fantasias e sintomas sao criagdes singulares dentro de um universal colocado pelos esquemas das fantasias primordiais e por aquelas que escapam ao estatuto da neurose. O sintoma € uma criacao quando colocado sob a forma de fantasia em cena ou nas fantasias qvé cercam a divida. Ha de haver um autor para construit tesses sintomnas, mesmo que se considerem precérias.as condicdes impostas ao sujeito, ow mesmo que nao se ‘veja qualquer ato criativo nessas fantasias. Cada sujeito traz consigo um saber do qual néo tem conheciamento, ou seja, ele ndo sabe que sabe. ‘Oscaminhos da criagdo nao podem ser reduzidos 20s trabalhos dos grandes artistas, embora se reconhega neles a capacidade de reenviar a0 publico, por meio da arte, o que hé de mais profundo e ineonsciente no psiquismo humano. Quantos tratados e artigos se- Fiatm necessérios para traducir o impacto causado Por Fernando Pessoa a0 descrever os varios Eus que nos jpovoam, tanto em seus poemas quanto no exereicio da eyaheteronomia; ou mesmo a poesia de Chico Buarqve ‘Je Hollanda ao descrever: “O que sera que me dé? Que sme queima por dentro, que me perturba o sono, que no tem sossego [.],0 que ndo tem descanso, nem cansago, nem limite; 0 que ndo tem vergonha, nem juizo?” Pode-se pensar numa definicio mats preciosa da for- cada pulsio, sua pressio ea busca quase desesperada por um sentido? Aarte permite ocompartilhamento da fantasia por tocar no intocavel do inconsciente, O que pode ser expandido da obra freudiana € esse conceito carte, muito restrto aosartistas eas chamadas “obras tie arte” O caminko da arte € muito maior, maisamplo t diversificado. Nao € preciso ser um grande artista 4 para direcionar aquilo que se constitat como um fluxo criativo. E possivel a criagao irromper como matéria bruta sem a participacdo do Eu? Quanta capacidade criativa é necesséria para que o Eu encontre formas de mediar os conflitos entre o Supereu, 0 Id, € até o proprio Eu? E mesmo o Supereu, com seus ideais cul- turais —e todo 0 seu aspecto repressivo ~ nao estaria desempenhando um importante papel nesse processo? ‘A infancia se caracteriza pelo desejo da crianca de se tornar adulto e pelo fato dea brincadeira infantil ser ‘ material primario das criagdes futuras. Alem disto, nesta fase a repetigho ¢ fundamental paraa construgdo do psiquismo, em sua forma lidica e nao patol6gica. O brincar comeca muito antes do Fort-Da (brinca- deira criada pelo neto de Freud e comentada por ele em Alem do principio do prazer); ele tem inicio desde 6 nascimento, quando o bebé, na sua relagao com 0 ambiente, passa a construir a realidade. Os sujeitos se aproximam ee distanciam pela forma como o brincar primitivo se institui dentro de cada um. Trata-se da heranca infantil que permanece no adult.

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