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A —_ DE ARISTOTELES Mimese e verossimilhanca “RETOMBADO 4g. 98 0300042413 . a: _—_— Editor Nelson dos Reis Preparagao de texto Claudemir Donizeti de Andrade . Revisaéo \ Carlos José da Silva Felix ‘ rie Edigdo de arte (miolo) i Sumario Milton Takeda : Coordenagao grafica Jorge Okura Composig¢ao/paginagao em video José Anacleto Santana Maria Alice Silvestre Capa Ary Normanha Antonio Ubirajara Domiencio “QUARR $08.5 C833 40 1. Introdugao eon, A quest&éo da mimese umpresto eacabamenio gengrat 2. Revisdo comentada da Poética Tel: 296-1630 5 oe ess—SS O texto aristotélico __-____..._—s= si 9 9 Abertura do texto (cap. I, §§ 1 e 2) Critérios distintivos da mimese (cap. I, § 3, ao cap. III) 10 A poesia e suas espécies (cap. IVe V)_________ 13 A teoria da tragédia (cap. VI a XXII) _______ 18 A teoria da epopéia (cap. XXIII e XXIV) 37 ISBN 8508 04055 5 A poesia (arte literdria) e a verossimilhanga (cap. XXV) 40 - 1992 A superioridade da tragédia sobre a epopéia Todos os sireites reservados (cap. XXVI) ____________________ 44 Editora Atica S.A. 7 toe Rua Bardo de Iguape, 110 — CEP 01507 3. A mimese e a verossimilhanga na Tel.: PABX (011) 278-9322 — Caixa Postal 8656 Poética 47 End. Telegrfico “Bomlivro” — Fax: (011) 277-4146 ot $40 Paulo (SP) Principais aspectos do texto ________________ 47 Proposic6es conceituais _________ 53 4. A permanéncia do conceito de mimese na teoria da literatura contemporanea_____________ 55 Mimese e lingiiistica estrutural _________-~—=—Ss‘ 56 Mimese e representacdo social ___________ 59 Mimese e hermenéutica tA 5. Concluséo___ 6. Vocabulario critico_.... 7 7. Bibliografia comentada____ Ss 5 Faculdade de Ciencias ¢ Lewes A questado da mimese Nos comegos da civilizagéo grega, a palavra mimesis ndo se apresentava com uma significacdo unica. A ativi- dade de imitar, que estava na base de todas as suas acep- Ges, nunca correspondeu, entretanto, a qualquer realismo grosseiro. Entre os antigos, Platéo (4272-347? a.C.) concedeu A palavra importancia capital, compreendendo-a como um tipo de produtividade que nao criava objetos ‘‘origi- hais’’, mas apenas cépias (eikones) distintas do que seria a “verdadeira realidade’”’. Platdo € 0 primeiro a expor, com clareza e fundamentacao, as afirmacées surgidas sobre as teorias do belo no inicio do pensamento ocidental. Ele — sa_a ligacdo existente, em toda a Antigiiidade, entre a concepgio dearie © o caréter onaldgico de valores meta fisicos e empenhativos. Vinculada a uma origem divina e misteriosa, a arte participa, nessa concepgao, do ser origind- tio, devendo por isso ‘‘imitar’’, no seu contetido, a reali- dade das formas ¢ das idéias primigénias. Como na maioria das vezes isso nao acontece, ou seja, a mimese é apenas 4 verossimil e nao visa esséncia das coisas, nem a verdadeira natureza dos objetos particulares, ela é falsa e ilusdria, sendo prejudicial € perigosa ao discurso ideal do fildsofo. Distante das mais altas exigéncias pedagdégicas e morais e limitada a representar, num terceiro nivel, as formas origi- narias, a mimese foi depreciada por Plato. Privilegiando a verdade, o filésofo considerou as imagens miméticas como imitacao da imitacao, j4 que elas imitavam a propria pessoa e o mundo do artista, os quais, por sua vez, j4 eram imitacdo (sombra e miragem) da “verdadeira’”’ realidade original. — ~~ “Discipulo de Platdo, Aristételes (384-322 a.C.) recebeu do mestre a palavra mimese. Refutou, contudo, o conceito platénico, enaltecendo o valor da arte justamente pela auto- nhomia do processo mimético face a verdade preestabeleci- ds. Adstieles ransformou a obra numa produ Dye tiva e carente de empenho existencial e alterou, « cor a relagéo que ela apresentava com a sacralidade « De ontoldgica, a arte passa a ter, com ele, uma concepcao estética, ndo significando mais ‘‘imitago’’ do mundo exte- rior, mas fornecendo “‘possiveis”” interpretagdes do real através de acSes, pensamentos ¢ palavras, de experiéncias existenciais imagindrias. Afastada da perfeicéo, da di dade e da verdade primigénia, a mimese afirma-se como a representacdo do que “poderia ser”, assumindo o cardter de fabula. O critério do verossimil, que merecera a critica de Platao por ser apenas ilusdo da verdade, torna-se, com Aristételes, o principio que garante a autonomia da arte mimeética. O texto aristotélico Reconhecido como o texto fundador da teoria da lite- ratura do Ocidente, a Poética consiste no primeiro tratado sistematico sobre o discurso literario. E discurso literdrio, no texto aristotélico, identifica-se com a nogéo de mimese poética. Na verdade, a Poética € um texto eliptico e obscuro, um conjunto de anotagées resumidas para serem utilizadas didaticamente por Aristételes nas suas atividades como pro- fessor. Os enunciados ndo‘.desenvolvidos que compdem seus 26 capitulos justificam a resisténcia que a obra apre- senta, para uma elucidacdio mais univoca de seu conteido ao longo do tempo. Mal conhecida na Idade Média, época ligada mais aos problemas légicos ¢ metafisicos, a Poética passou a sér divulgada na Europa em principios do século XVI, quando humanistas italianos do Renascimento traduziram, comenta- ram e interpretaram o texto, praticamente estabelecendo a doutrina aristotélica. A partir dai, exerceu ampla e significa- tiva influéncia nos séculos que se seguiram. _A_mimese & reconhecida como. a nogdo de capital importancia na Poéfica, ainda que Aristételes nao tenha _chegado a defini-la nitidamente nos seus escritos. Junto com a mimese, 0 mito e a catarse formam a base de sua teoria da arte poética (literdria). O texto, contudo, circunscreve- se aos limites da tragédia e da epopéia, oferecendo apenas como promessa o estudo posterior de outras espécies de “‘poesia’’, como € o caso da comédia, citada no inicio do capitulo VI. Nao hé4, entretanto, nenhuma referéncia con- creta da existéncia de outro documento dessa natureza con- tendo a continuagdo prometida do estudo teérico das demais espécies. As-edigdes existentes da Poética, atualmente, baseiam- dois manuscritos gregos: 0 Parisinus 1741, que data do século X e é o manuscrito principal, e 0 Ricardianus 46, datado do século XIV, o qual, embora mutilado, com- plementa o Parisinus 1741; © um manuscrito arabe: a Versdo Arabe, do século X, que remete ao texto grego através de uma versao siriaca; 8 3s FFs * dois manuscritos latinos: 0 Toletanus, escrito em torno de 1280, e o Etonensis, de 1300, os quais testemu- nham a tradugdo latina da Poética, efetuada em 1278 por M. Moerbeke. 2 Revisao comentada da Poética Uma leitura/reescritura completa da Poética, pautada no seu contetido e ordem seqiiencial através do cotejo de tr@s traducdes! e das notas e estudos que as complementam, permite uma remontagem exegética do texto, capaz de fun- cionar, por um lado, com a objetividade de um sumédrio abrangente e, por outro, como um quadro referencial eluci- dativo para as indagacGes progressivas acerca da mimese. Considerando o tema de que trata, a Poética pode ser seccionada em sete tépicos, conforme a disposi¢do e subdi- vis6es apresentadas a seguir. Abertura do texto (cap. |, 88 1 e 2) — proposta de estudo da poesia e de suas espécies como artes miméticas No paragrafo inicial do primeiro capitulo, Aristoteles aponta a poesia como o alvo de sua investigacdo e dimen- + As tradugdes utilizadas foram: ARIsTOTELES, Podtica; ARISTOTE - Hordcio, Lonaino, A poética cldssica. Trad. e notas de Jaime Bruna. Sao Paulo, Cultrix, 1981; ARISTOTE, La poétique. 10 siona, como num indice, a extenséo de seu estudo acerca da arte poética: trataré da poesia em si mesma (como géne- ro); de suas espécies — consideradas segundo sua finali- dade prépria; da maneira como devem ser compostos os mitos (histérias ou fabulas), para que o poema resulte per- feito; e da natureza das partes que constituem o poema. Quando diz, no final do pardgrafo, que comecara, como é natural, pelas coisas primeiras, fica evidenciado que se utili- zara do método de classificagéo do naturalista, que obe- dece 4 ordem prépria da natureza, comecando pelas nogées mais elementares. No segundo paragrafo, 0 autor procede 4 enumeracdo das espécies de poesia — epopéia, tragédia, comédia, diti- rambo, aulética e citaristica —, ressaltando, primeiro, o Ponto comum entre elas: todas séo, em geral, imitagdes? (construgdes_miméticas); depois, fala de suas diferencas: diferem entre si porque imitam segundo meios, objetos ou modos diversos. i e escultores) e também a voz (suporte sonoro), Aristdteles passa a enfatizar aqueles que séo os meios-prépries~das ‘artes poéticas: o ritmo,.a linguagem-—(canta).¢ a harmonia (metro). A_aulética e a citaristica exemplificam as artes que se utilizam somente da harmonia e.do.ritme; a danca serve-se apenas do ritmo e, desenhando coreograficamente figuras com 0 corpo, imita caracteres, emogGes e agées; a arte que se vale exclusivamente da linguagem como Messificados) ow nio_(peaea.como_combinas diferente 9s ou nao Usar nenhum, nda possui denominacao espe- 3 —> Risse fato determina que as diversas composigées imita- tivas, como os mimos de S6fron e de Xenarco e os didlo- OS socraticos, ndo possam ser indicadas por um termo comum/Ao contrario, 0 que acontece é a designacdo dos ‘poetas pelo tipo de metro que usam e ndo pela imitacéo que praticam, como é 0 caso dos chamados ‘‘poetas elegia- os’? — os que usam 0 distico elegiaco: um hexdmetro ‘seguido de um pentémetro — e dos ‘‘poetas épicos”” — os /Srsvios distintivés da mimese J cap. |, § 3, ao cap. Ill) ‘que usam o metro herdéico: hex4metro dactilico. . — Aristoteles ressalta criticamente a inadequacdo do termo \ OB poeta?” a todo Sa Meee Ae ee — meios, objetos e modos x om m_assunto, /€ita Empédocles e Homero para mostrar o ss Ainda no primeiro capitulo s4o apresentados os meios através dos quais se da a imitacdo. Citando as cores e as figuras como meios utilizados por alguns artistas (pintores 2 De maneira geral, o termo grego mimesis & traduzido por “imitacéo”’, como aparece nas traducdes de Eudoro de Sousa e Jaime Bruna. Na verso francesa de Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot, entretanto, 0 termo é traduzido por ‘‘representaco”’, preferido a ‘‘imitagao” por guardar um sentido teatral ¢ por conter polivaléncia semantica propria da mimese: a de nao privilegiar nem 0 objeto-modelo, nem o objeto Produzido, contendo a ambos simultaneamente (Introduction. In: ArisToTE. La poétique. Paris, Seuil, 1980, p. 17-20). primeiro como mais naturalista (fisidlogo) do que poeta, e © segundo, como poeta propriamente dito, apesar de os dois serem versificadores. Com isso, reforga a importancia do critério dos objetos sobre 0 dos meios na abordagem da arte poética e exemplifica essa posic&o, estendendo e legi- timando a condic&o de poeta a Querémon, que, mesmo “3 Jaime Bruna aponta o termo “‘literatura’’ para designar a reunido des- ¥ sas composigdes imitativas (A poética cldssica. Sao Paulo, Cultrix, 1981, cap. I, nota 3, p. 19). Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot referem esse conjunto geral como “composition en mots” (La poétique, cap. 1, nota 8, p. 150). ce a wy 12 combinando todos os metros, construiu uma representagdo: a rapsddia Centauro. O capitulo I fecha-se voltando a sintese reiterativa de que ha artes que se utilizam nao sé da linguagem (canto), mas também dos dois outros meios (ritmo e metro), como € 0 caso da poesia ditirambica, dos nomos, da tragédia e da comédia, que diferem entre si, porque os usam conjun- tamente e, outras, em separado. Na seqiiéncia do estabelecimento das diferencas entre as artes miméticas, o autor passa a tratar do objeto da imi- tacao, representado nos homens em acdo. Estes se caracte- rizam eticamente como bons ou maus, uma vez admitido © principio de que 0 vicio e a virtude distinguem as pesso em_matéria de cardter. A imitacfo que o poeta faz sera, necessariamente, de homens melhores, piores ou iguais a nds, a exemplo do que fazem os pintores, como Polignoto, que representou homens superiores, Pauson, iferiores, e Dionisio, homens semelhantes ands. Essa diferenca quanto ao objeto de imitacdo esta pre- sente também na arte da danga, da flauta e da citara, como nos géneros poéticos que usam a linguagem em prosa ou verso como meio; a mesma diferenga € responsdvel ainda pela distingao entre tragédia e comédia: a primeira repre- senta os homens melhores do que sao e, a segunda, piores. Nesse capitulo (II), Aristoteles associa a mimese, a i \do dominio poético, coma transformagao ética do objeto- modelo, para melhor (como faz Homero) ou para pior (como Hegémon de Tasos e Nicdcares). ~ A Poética reconhece explicitamente como géneros somente a tragédia, a epopéia e a comédia, ou seja, as espé- cies miméticas que implicam a transformacdo do cardter do modelo (homem comum) para melhor (tragédia e epo- péia) ou para pior (comédia). A representacao de seres semelhantes aos comuns, como o fazem Dionisio (na pintu- ra) e Cleéfon (na poesia), mesmo que dada como possivel / 13 (§ 1, cap. II), nao engendra a formagdo de um género poé- tico na tipologia de Aristdteles. ¢ O modo como se realiza a imitagao € 0 terceiro critério distintivo da mimese. Os modos sdo dois: 0 narrativo, quando se narra pela voz de uma personagem, a exemplo de Homero, ou em primeira pessoa, e 0 dramatico, quando as préprias pessoas imitadas agem, sdo os autores da representacao. Comparando as artes miméticas, a imitacdo de S6fo- cles (autor de tragédias) ¢ a. de Homero (autor de epopéias) s¢_aproximam, s¢ for_considerado_o-abielo-aue-imitam: ambas representam seres superiores aos ins. Sofocles, igualmente, pode ser comparado a Aristéfanes (autor de comédias), do ponto de vista do modo da imitagéo. Ambos imitam pessoas agindo, fazendo o drama. A partir do fato_ de que os poetas imitam pessoas em acdo (drontas), Arist6- teles registra a afirmacao, defendida por alguns, de ser essa a origem etimoldgica, a causa do uso da palavra ‘‘drama’”’ para tais formas de composicao. O final do pardgrafo que conclui o capitulo III retine, no entanto, elementos que reve- lam a situagdo polémica quanto as origens da tragédia e da comédia, através da etimologia dos termos em que sao expressas. A poesia e suas espécies (cap. IV e V) a) causas do aparecimento (IV) Duas causas naturais d4o conta do surgimento da poesia: _ * o homem tem uma tendéncia congénita para imitar e encontrar prazer nas imitacGes; * o homem tem uma disposicdo congénita para a melo- dia ¢ o ritmo. 4 A observacdo é desenvolvida por Roselyne Dupont-Roc ¢ Jean Lallot, quando examinam as relaces entre a mimese e a ordem ética (op. cit., cap. 2, p. 157-8). 14 oe Com relagéo a primeira causa, o texto indica que a congenialidade da imitacéo no homem manifesta-se tanto na producao das representacées como na sua Tecep¢ao, ou seja, no prazer que os homens experimentam diante delas. A afinidade com a representacdo mostra-se, entretanto, vin- culada a outra tendéncia também natural no homem: a aprendizagem, o conhecimento. A produgio de representa- g0es, consistindo num trabalho de abstracdo da forma pro- pria, corresponde a uma aprendizagem, uma vez que se constitui numa maneira de o homem elevar-se do particular para o geral.* Por outro lado, o conhecimento decorrente da contemplacao das representacées é explicitado pelas pré- prias palavras da Poética: Nos _contemplamos com prazer as imag mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnancia, Ror exemplo, (as representagdes de) animals terozes € (de) ‘eres. Causa 6 que 0 aprender nao sO multo apraz aos fildsofos, mas também, igualmente, aos cemats nomens, se bem que ‘menos paricisonr dele- Efstiamente-Tare-wmronve Por que se deleitam perante as Imagens: OMmango-as, apren- dem e discorrem sobre o que seja Cada uma deltas, (6 dIraoy- por exemplo, “este 6 tar © Evidencia-se, a partir dai, que o prazer para o qual a representacdo aponta é um _prazer intelectual e de reconhe- cimento, que associa a forma imitada com um objeto natu- ral conhecido.” O autor inclusive salienta que “se suceder que alguém nao tenha visto o original, nenhum prazer lhe advira da imagem, como imitac4o, mas tao-somente da exe- $ Essa forma de conhecimento operada pela mimese, enquanto producdo, € explicada por Roselyne Dupont-Roc e Jean Lailot (op. cit., cap. 4, nota 1, p. 164). 6 Trad. de Eudoro de Sousa (cap. IV, Poética, Porto Alegre, Globo, 196, p. 71). 7 Sobre o prazer que a representacdo proporciona, Roselyne Dupont-Roc ¢ Jean-Lallot esclarecem: ‘‘O quadro que abstrai a forma exata do modelo apela para as faculdades de raciocinio e proporciona, através do reconhecimento, o prazer da descoberta que é, a0 mesmo tempo, o prazer do espanto e o prazer da compreensio: ‘Olha, € ele e, portanto, esta é sua forma particular’ ” (op. cit., cap. 4, nota 3, p. 165). Seni Ree 15 cacao, da cor ou qualquer outra causa da mesma espécie’’. 8 nao houver, portanto, o conhecimento prévio do modelo ‘al, também nao podera haver o prazer que a mimese ‘mina ‘azer de reconhecimento, que se acompa- a de uma aprendizagem. T/A segunda causa para o nascimento da poesia é a dis- posigao também natural no homem para a melodia e ° ritmo, o qual inclui os metros ou versos; essa tendéncia determinou improvisacées por parte das pessoas mais bem dotadas, que, com isso, fizeram surgir a poesia/A diferenca do carater dos autores fez com que os géneros poéticos se diversificassem: os de indole elevada representavam a¢gGes € pessoas nobres e compunham hinos e encémios, enquanto os de baixa inclinacéo imitavam agdes igndbeis e compu- nham vitupérios. Da época anterior a Homero, nao existem provas de que poemas desses géneros mais inferiores tenham sido produzidos. Com Margites e outros poemas semelhan- tes, nos quais foi introduzido o metro jambico (usado para injurias), Homero mostrou no sé ter trabalhado no género, como também que os autores antigos foram poetas tanto de versos herdicos como de jambicos. Homero sera considerado por Aristoteles como o poeta supremo, no género austero ou sério, e o precursor tanto da tragédia quanto da comédia; a Iliada e a Odisséia mani- festam analogia com a tragédia, assim como o Margites, com a comédia. Dependendo de sua inclinagdo natural, os Poetas voltaram-se para um ou outro género de poesia: “Uns tornaram-se, em lugar de jambicos, comedidgrafos; outros, em lugar de épicos, tragicos, por serem estes géne- Tos superiores Aqueles e mais estimados’’.? O grau de per- feicado atingido pelas formas trdgicas, a esse ponto de seu desenvolvimento, correspondia a uma outra questio; o importante para 0 autor, no momento, era o estabeleci- * mento dos géneros poéticos. 8 Trad. de Eudoro de Sousa. Op. cit., cap. IV, p. 71. 9 Trad. de Jaime Bruna. Op. cit., cap. IV, p. 21. ¥ 7 16 Fe b) historia da tragédia (IV) Tendo apresentado a diferenciacao dos géneros, o texto Passa ao desenvolvimento da historia de suas origens e de sua evolucdo. Tanto a tragédia como a comédia nasceram de improvisagées: a tragédia originou-se dos solistas do diti- /tambo e a comédia, dos solistas dos cantos falicos. A tragédia, enquanto género, sera a primeira exami- nada pelo autor. Quando ele diz: ‘*... até que, passadas muitas transformagées, a tragédia se deteve, logo que atin- giu sua forma natural”’, '° reitera seu raciocinio em termos naturalistas, ja que a histéria da poesia 6 dada como um Processo acabado, fendo a tragédia compreendida como uma espécie natural, cujas transformacées sofridas a teriam conduzido a alcancar sua natureza propria. fi O final do capitulo (IV) discorre sobre a evolucdo do género tragico, através das modificacdes Por que passou e que sao de varias ordens, como as referentes 0s meios concretos de realiza- gao da forma dramatica — alteragdes_produzidas por Esquilo e Séfocles — € a0 metro utilizado nas composicdes do género — o jambico —» que, por ser mais coloquial, substituiu o tetrametro trocaico, ©) histéria da comédia (V) Retomando a definicdo jé formulada anteriormente e em paralelo com a tragédia (cap. II), ou seja, de que a comédia é imitagdo da agdo de homens inferiores, 0 autor acrescenta-lhe, como elemento novo, a relacdo do cémico com o feio. Salienta, porém, que a comicidade se constitui m “‘um defeito e uma feitira 1 sem dor nem destruigéo; um + Vexemp) byio é a mascara cémica, feia e contorcida, mas eee eomica, tela € contorcida, mé tr Trad. de Eudoro de Sousa. Op. cit., cap. IV, p. 72. '" A visio da tragédia, como espécie transformavel até a medida propria da natureza do género, recebe tratamento critico pelos tradutores france- ‘es Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot (op. cit., cap. 4, nota 17 p. 175). oF dor’’. 2 Esses elementos, que complemen- Se tina da “comédia, entation a como enero oe ie ae sposino is “homens superiores (cap. II) ioléncia . XI). ‘ ladies otienea cue ao oe ire do ‘que Ocorreu A a i restigio do género \. Prova die teria side a tardia substitui¢ao do coro ge voluntarios pelo coro de comediantes, fornecido pelo arco ne (magistrado executivo em Atenas), 3 e o conbecimen "fe nome dos poetas cémicos somente apés o género j or mas definidas, como o uso de mdscaras, prdlogo, plur: dade de afores, etc.,'4 as quais nao se sabe também quem introduziu. A origem da comédia na Sicilia, a composisio de suas fabulas ou histérias, pelos poetas Epicarmo e Fér- mis, e as modificagées realizadas por Crates, em Atenas, sao assinaladas, na seqiiéncia, pelo Estagirita. 2) d) comparacao entre a epopéia e a tragédia (V) Lox O género nobre volta 4 cena da Pottica na compara. ¢Ho entre a epopéia e a tragédia. Como ° capitulo , ant cipara, elas se no objeto que == homens iores —e¢, parte, pelo meio de que g ul —ai @ verso. Diferem, entretanto, ainda cot como meio, enquanto a tragédia usa 0 SoS 2.8 PE ®, tan 10 imitagéo — , (canto); e, também, com relagdo a a i ivo e a tragédia, pelo a enoptia fo narratvo ea tragéie, pelo "2 Trad. de Jaime Bruna. Op. cit., cap. V, p. 24. B A eapleago da palavra “‘arconte’’ foi registrada segundo a tradugao de Jaime Bruna (op. cit., cap. V, nota 15, p. 24). e ne {A enumeracdo dessas formas aparece na traducdo francesa Rosel Dupont-Roc e Jean Lallot (op. cit., cap. 5, nota 3, p. 179). modo atico. 15 Na extensio, elas igualmente diferem: a tragédia tem m duragdo de agao limitada, é um poema rela- tivamente curto; a epopéia tem duracio ilimitada e é, ao contrario, um poema longo. Quanto as partes, os dois géne- ros tém alguma coisa em comum, sobressaindo-se a tragé- dia, primeiro, por possuir todas as partes da epopéia e ainda outras exclusivas; segundo, por submeter-se a epopéia aos itérios de valor préprios do género tragico. A teoria da tragédia (cap. VI a XXII) A teoria da tragédia é a base de toda a teoria da arte contida no texto aristotélico. Dos 26 capitulos da Poética, dezessete sio dedicados ao estudo da tragédia. Aristoteles considera a tragédia como a arte mimética por exceléncia e Ihe concede um tratamento minucioso, que parte de sua definicdo, enquanto composic¢o especifica, e atinge as diversas partes e elementos nos quais se compée ou com Os quais se relaciona. a) definicao (VI) A tragédia é definida como uma forma especifica de mimese, segundo os critérios que diferenciam as artes mimé- ; ticas e o efeito que a representagdo determina no especta- dor. Trata-se de uma representacio de acées de homens de carater elevado (objeto da imitag4o), expressa por uma linguagem ornamentada (meio), através do didlogo e do espetaculo cénico (modo), e visando a purificagdo das emo- gGes (efeito catartico), 4 medida que suscita o temor e a pie- dade no espectador. 15 Sobre as semelhancas ¢ diferencas entre a tragédia e a epopéia, encon- tram-se referéncias na tradug4o de Eudoro de Sousa, cap. V, Comentd- Tio, §§ 24 € 25, p. 117-8, e na tradugao de Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot, cap. 5, nota 1, p. 177-8. 19 b) partes qualitativas: mito, cardter, pensamento, elocucao, melopéia e espetaculo (VI) Apos a explicacéo do que significa linguagem orna- mentada, sao arroladas e comentadas, no texto, as seis par- tes qualitativas da tragédia; primeiramente, as externas ou materiais, ligadas 4 representagao cénica: espetaculo, melo- péia (canto coral) e elocucdo (falas, expressao); e, em seguida, as internas:'° carater (qualidade moral), pensa- mento (elemento Idgico) e mito!” (imitacéo e composicdo de acées). O fato de a tragédia ser imitagao de uma agao qualifi- cada eticamente e de os caracteres serem nela subordinados & acdo impde a necessidade de a8 personagens que agem e se apresentam serem também qualificadas pelo carater e pelo pensamento. Numa sintese recapitulativa, Aristételes dispGe as par- tes qualitativas da tragédia, conforme os principais tracos distintivos da mimese. Objeto da representacdo s4o o mito, oO carater e 0 pensamento; meios sao a elocugdo e a melo- péia; modo é o espetdculo. De todos os elementos qualitati- vos (‘‘partes’’), 0 mais importante é o mito, que arranja 'sistematicamente as agGes. Na tragédia, o relevante vem a ser a finalidade do homem, ou seja, a sua acdo e vida, e Indo 0 cardter que o qualifica: ‘a superioridade da acéo (mito) sobre o estado (cardter) é lugar-comum na filosofia de Aristételes”’. '§ '6 A designapao das partes qualitativas da tragédia, como externas e inter- nas, baseia-se na leitura feita por Eudoro de Sousa (op. cit., cap. VI, Comentério, §§ 28 ¢ seguintes, p. 122). 47 0 termo grego mythos é traduzido por Eudoro de Sousa como “mito”, por Jaime Bruna, como “fabula’”’, e por Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot, como “‘histoire”’. Neste reexame da Poética, a preferéncia sera dada para o termo ‘“‘mito”’, de acordo com a tradugdo de Eudoro de Sousa (op. cit., Introdugdo, p. 57), pela ambigiiidade semAntica que a © .palavra encerra, significando tanto ‘‘ac¢4o a imitar’’ (matéria-prima) como. “‘agio imitada”’ (fabula). 484 observicio ¢ de Eudoro de Sousa (op. cit., cap. VI, Comentario, $ 32, p. 123). Tanto a acdo é o elemento central da tragédia que, sem ela, o género nao poderia existir, ao passo que sem caracte- Tes, por exemplo, hipoteticamente ela poderia realizar-se. O valor do mito é novamente reiterado quando so citadas duas de suas partes, a peripéci: reconhecimento, como os principais meios de fascinacdo da tragédia. O mito é rati- ficado como principio e alma da tragédia, somente depois vindo os caracteres. O final do capitulo VI trata das demais partes, apare- cendo definidos 0 pensamento — capacidade de dizer 0 que é inerente a um assunto e o que convém; o caraéter — manifestagao de deciséo, do fim para o qual tende ou repele; ¢ a elocugado ou expresso — enunciado dos pensa- mentos por meio das palavras, com efetividade igual em Prosa ou verso. A melopéia, nas partes restantes, corres- ponde ao principal ornamento, enquanto o espetdculo cénico, eaubora sendo o mais emocionante, é.0-menos artistica 2.0 mais estranho 4 poesia. ragédia, na opinido do Estagi- rita, prescinde do espetaculo e de atores para determinar seus efeitos préprios. c) o estudo da tragédia como mito (VII a XI) Sendo considerado como o elemento mais importante da tragédia, praticamente identificado com ela, o mito recebe uma anilise especial na Poética através de determi- nados tépicos: 1°) a agdo corresponde a um todo de certa extenso e uno (VII e VIII) Os dois tragos principais do mito — ag&o que forma um todo e extensio — identificam-se como 0 contetdo- base desenvolvido no capitulo VII. Primeiramente, 0 ‘‘to- do’’ é que aparece esclarecido na sua definig&o e nos ele- mentos que 0 compdem. Descrito como o encadeamento ordenado de partes constitutivas (principio, meio e fim), constrdéi-se sob critérios de necessidade ou probabilidade. 2 A observancia a esses critérios é enfatizada a ponto de estar presente a afirmacao normativa de que os mitos nao podem comecar e nem terminar ao acaso: ao todo corresponde uma unidade que o necessario determina. O belo é designado nao s6 como sendo uma composi- do ordenada de partes, mas correspondendo a uma deter- minada extens4o. Explicando-se, diz o autor que nao pode- ria ser belo algo de dimensao reduzidissima, porque a viséo tornar-se-ia confusa; e nem algo imenso, porque faltaria aos espectadores a visio de conjunto, que permite contem- plar a unidade e a totalidade. Analogamente aos corpos e organismos viventes, os mitos devem ter certa extenséo que a memoria possa reter. Ha vinculagao do belo e do mito com 0 efeito produzido no espectador; o olhar deste deter- mina e controla a priori a ordenagdo e extensdo do objeto mimético. O limite para a extensio das tragédias corresponde aquele que a propria natureza das coisas impée: Desde que se possa apreender 0 conjunto, uma tragédia tanto mais bela sera, quanto mais extensa. Dando uma defi- nigéo mais simples, podemos dizer que o limite suficiente de wma tragédia 6 0 que permite que nas agdes uma a outra sucedidas, conformemente a verossimilhanga e a necessi- dade, se dé o transe da infelicidade a felicidade ou da felici- dade a infelicidade. Na seqiiéncia do estudo sobre 0 mito, 0 texto passa a considerar a questo de sua unicidade (cap. VIII) quanto A acdo, descartando uma possivel relacdo entre essa unici- dade e a presenca de um unico herdi. Salientando o erro dos autores que compuseram Heracleidas e Teseidas® e outros poemas congéneres, por acreditar que, referindo-se a um s6 heréi, as acdes ganhariam unidade, Aristételes renova o elogio & superioridade de Homero, o qual, ao 9 Trad. de Eudoro de Sousa. Op. cit., cap. VII, p. 77. 2 Heracleidas: poemas sobre Heracles (Hércules); Teseidas: poemas sobre Teseu (cf. Jaime Bruna, op. cit., cap. VIII, nota 16, p. 27). 2 escrever a Odisséia, narrou sobre. Ulisses-somente os-fatos cuja ocorréncia era determinada pela necessidade ou praba- bilidade dos outros. Homero compés a. Odissia 2.a Iiada em torno de uma a¢do-una. ~ A exemplo do que acontece com as outras artes mimé- ticas, nas quais a unidade da imitaco depende da unidade do objeto, também o mito deve consistir na imitagio de uma acdo una e que forme um todo, onde qualquer parte que sofra deslocamento ou supressdo determina a altera- ¢do ou a confusao na ordem do todo. Se n4o ocorrer alte- Taco sensivel é porque o elemento deslocado ou suprimido nado fazia parte desse todo uno. A idee, de aco do mito resulta, portanto,-da unifi- & _construcdo. poética opera ao conjugar unidade histérica com unidade poética. 2°) poesia e histéria (IX) A definic4éo de mito como conjunto elaborado de ele- mentos escolhidos e agenciados segundo uma ordem neces- sdria, que se opde a diversidade aleatéria dos acontecimen- tos reais, a | subentende a distinglo entre aobra do. poeta e IX da Poétic “Cabe ao poeta representar nfo o que aconte- ceu realmente, mas 0 que poderia acontecer, ou seja, 0 pos- sivel, na ordem do verossimil ¢ do necessdrio. A diferenca entre o-poeta-e 0 historiador n4o est no meio que émpre- gam para escrever (verso ou prosa), mas no_contetido daquilo que dizem: enquanto o poeta representa © verossi- mil ¢.0 necessdrio, o historiador narra _os_acontecimentos que realmente sucederam. A poesia (arte literdria), entao, sendo anunciadora de verdades mais gerais (universais), é mais filosdfica do que a histéria, circunscrita a relatos de 21 Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot enfatizam os procedimentos de sele- $0 ¢ ordenacdo dos fatos como marcas diferenciais da obra do pocta com relacdo a do historiador (op. cit., cap. 9, nota 1, p. 221). 23 acontecimentos particulares. O geral ou universal, préprio da poesia, decorre do encadeamento causal que estrutura a acdo e se configura naquilo que responde as exigéncias Iégicas do espirito (necess4rio) ou 4 expectativa comum de todos os espiritos (verossimil). 7 A comédia-é-citada como. exemplo-de_carater_univer- Sal_da poesia, porque nela a designacao das personagens por nomes inventados também se subordina A composi¢aéo da fabula, segundo a verossimilhanga{ Na tragédia, entre- tanto, séo mantidos os nomes que realmente existiram, sendo o fato explicado pelo Estagirita em razdo de que o ossivel é persuasivoy(crivel, plausivel) e as coisas que id PD ontocetiny ean Te i i 7 or outro lado, fica declarado que tal procedimento é v: vel na tragédia, podendo haver nela mistura de nomes conhecidos com ficticios, ou até desconhecidos (ex.: Anteu de Agatao)\(O sucesso da tragédia junto ao publico inde- pende, assim, do reconhecimento de herdis conhecidos ou de fatos particulares, néo havendo, pois, necessidade de fidelidade aos mitos tradicionais, que sdo 0 assunto das tragédias. f Q poeta é definido. mais-como aquele que-compée- his- térias (mitos), do que como. yersificador,. j4 que se identi- fica como poeta pela representacdo.de acées, que padem até, "verossimilmente,. -provir de-eventos reais. Seu campo de acio cobre todo o dominio do persuasivo, ou seja, daquilo que o espectador aceita crer. Seu fazer corresponde a capacidade de organizar uma histéria, um mito, nao lhe sendo exigidas, por Aristételes, nem a invencdo original, nem a fidelidade aos mitos tradicionais. 3°) niveis de qualidade do mito: episddicos-(inferio- Tes).¢ com _efeito.de surpresa.(superiores) 22 Essas colocagées para o entendimento do ‘‘necessdrio”’ e do ‘“‘verossi- mil” esto de acordo com a interpretagdo dos tradutores franceses (op. cit., p. 221). ua ‘ Quanto a qualidade, os mitos classificam-se em episd- dicos e com_efeito de surpresa. Os episddicos s4o aqueles em que a relacdo entre um e outro episddio nao é necess4- ria nem verossimil, sendo por .isso considerados como-os. Piores. “Os mitos com efeito-de-surpresa, nos quais as emo- Ges se manifestam a partir de fatos inesperados para o espectador, so considerados os melhores, ainda que devam ser decorrentes, de preferéncia, do encadeamento causal, verossimil e necessdrio das acdes. 4°) espécies de mito: simples ¢ complexos, (X) O capitulo X apresenta os mitos em espécies — sim- ples e complexos —, segundo o tipo de agées imitadas, e passa ao seu estudo. Os. mitos complexos_se diferenciam dos simples-porque operam.a-mudanga de sorte através de dois ¢ elementos: a peripécia e/ou o reconhecimento. Com 0s mitos simples, a mudanga ocorre sem esses elementos. O autor sublinha, entretanto, que a peripécia e 0 reco- nhecimento devem surgir da estrutura interna do mito, o que significa que devem decorrer da causalidade prépria ao encadeamento necessdrio ou verossimil dos fatos, situa- go que em muito difere da mera sucessividade cronoldgica. —S 5°) partes do mito: peripécia, reconhecimento e catds- trofe (XI) As trés partes do mito, peripécia, reconhecimento e catastrofe, séo definidas por Aristételes. A peripécia corres- ponde a uma mutag4o de acées em sentido contrario, mas sempre obedecendo 4s leis do verossimil e do necessario. Reconhecimento é a passagem do ndo-conhecimento ao conhecimento, situagZo que ocorre com o fim de revelar uma alianca ou hostilidade entre personagens do drama, culminando para um estado de felicidade ou infelicidade. Ainda que haja outras formas de reconhecimento, o mais 25 belo € 0 que acontece junto com eee porque € 0 ique mais se integra ao mito e A ac40, e determina, a partir } 4o conjunto que forma, os sentimentos de temor e piedade, {:: presentes nas acdes que a tragédia imita. A par de outras possibilidades de reconhecimento, o ‘texto define a terceira parte do mito, a catdstrofe, como igeZo representada que produz destrui¢ao ou dor, efeito vio- Mento, a exemplo das mortes cometidas em cena, das dores ‘veementes, ferimentos, etc. a) partes quantitativas: prologo, episddio, éxodo, coral (pa- todo e estasimo) e kKommos (XII) A teoria do mito complexo, desenvolvida de inicio no > Reaminande a v ragédia quanto a extensdo e as secdes mn que pode ser dividida, Aristdteles nela estabelece as intes partes constitutivas: prélogo — ‘‘parte completa tragédia, que precede a entrada do coro’’; episédio — arte completa entre dois corais’’; éxodo — “‘parte com- Aleta, a qual nao sucedg. canto do coro’”’; coral — ‘‘entre corais, 0 parodo é 0 primeiro, e o estdsimo é um coral sprovido de anapestos e troqueus”; kKommds — ‘‘canto Aamentoso da orquestra e da cena a um tempo’’. 25 Enquanto “prélogo, o episédio, 0 éxodo e 0 coral séo comuns a “[...] no Edipo, quem veio com o propésito de dar alegria a Edipo e bertd-lo do temor com relagdo 4 mac, ao revelar quem ele era, fez 0 itrario.”” Este é o exemplo que Aristételes dé para o reconhecimento ito com a peripécia. A traducao é de Jaime Bruna (op. cit., cap. XI, 30). afirmagao aparece em Eudoro de Sousa (op. cit., cap. XII, Comentd- }, P. 130) e em Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot (op. cit., cap. XII, *mota 1, p. 235). f*:Trad. de Eudoro de Sousa. Op. cit., cap. XII, p. 81. 26 todas as tragédias, os cantos dos atores sobre a cena e os kommos s&o peculiares apenas a algumas. e) situagdo e herdéi tragicos -\_ Tratando do mito complexo, o capitulo XIII relaciona- se diretamente com o contetdo do capitulo XI. Objetiva apontar as situagdes que devem ser buscadas e evitadas quando se compdem os mitos, bem como os meios a serem utilizados para que seja alcancado o efeito da tragédia. Uma vez que a estrutura da tragédia mais bela é com-" \plexa e que ela deve representar fatos que despertam o itemor e a piedade, cabe averiguar que espécie de peripécia ‘provocara essas emog6es, ou seja, qual sera a configuracao tragica ideal para que se produza o efeito proprio do género. Aristételes expGe situagdes possiveis para 0 tragico, envolvendo implicitamente dois fatores: a presenca da felici- dade/infelicidade, como pardmetros naturais do sentido da Teviravolta, € a qualificacdo ética das personagens, por meio ida virtude/vicio ou da bondade/mediocridade.** Os casos apresentados sintetizam-se da seguinte forma: nado devem ser representados homens nem muito bons e nem muito maus, que passem da boa para a mé fortuna, nem da md para a boa fortuna. A rejeicdo dessas situacgées é justificada pelo fato de elas nao satisfazerem do ponto de vista dos efei- tos exigidos pela tragédia ou, ainda, porque se afastam dos sentimentos humanos. O caminho certo estar4 na represerita- ¢ao do herdi'em situacdo intermedidria, que é a situagdo: ..do homem que ndo se distingue muito pela virtude e pela justiga; se cai no infortunio, tal acontece n&o porque seja vil e maivado, mas por forga de algum erro; e esse homem ha de ser algum daqueles que gozam de grande reputagao e for- tuna, como Edipo e Tiestes ou outros insignes representan- tes de familias ilustres. 2” 6 Quem aponta dois fatores para a situagdo tragica é Roselyne Dupont. Roc e Jean Lallot (op. cit., cap. 13, nota 2, p. 239). 2” Trad. de Eudoro de Sousa. Op. cit., cap. XIII, p. 82. 27 gs: Esse homem é 0 que equilibra a virtude e 0 vicio, sendo falivel ¢ passando da dita a desdita (‘‘cai no infortunio’’), em conseqiiéncia de um erro (hamartia). ® * Recapitulando alguns dados, Aristételes prescreve con- dicdes para o sucesso do mito: ele deve ser antes simples do que duplo, isto é, concluir apenas com aco de desgraca € ndo com duas acGes diferentes; deve passar da felicidade & infelicidade, em conseqiiéncia de um grave erro por parte de um herdi ‘‘intermedidrio’”’, ou, de preferéncia, melhor que pior. A freqiiéncia, na época, de tragédias cujos herdis sofreram desgracas terriveis, é exemplificada no texto com vistas 4 comprovagao das afirmagées, quanto a estrutura da tragédia mais bela. Euripides é citado por Aristételes como 0 mais tragico dos poetas por ter observado com cor- regdo a estrutura da tragédia, ainda que fosse merecedor de critica quanto 4 economia da obra. O final do capitulo XIII atribui o segundo lugar a tra- gédia de dupla intriga, que tem, para agrado do publico, desfechos diferentes para os bons e os maus; a Odisséia, mesmo sendo uma epopéia, é dada como exemplo. Com- plementando o assunto, o autor diz que o prazer resultante da tragédia de dupla intriga mostra-se como mais préprio da comédia, porque corresponde ao desaparecimento da desgraca ¢ da violéncia, como no caso de Orestes e Egisto que se conciliam, nenhum sendo morto pelo outro. A tragé- dia, propriamente dita, exigiria, ao contrario, que fosse satisfeita verossimilmente a condi¢do de desgraca dos bons. 2 Roselyne Dupont-Roc ¢ Jean Lallot relacionam o erro tragico com a verossimilhanea da aco, na ordem ética, e com o reconhecimento: ‘‘Em resumo: (a) Temos como evidente que 0 erro, do ponto de vista da Poé- tica, tem como fungao essencial, ao manifestar a falibilidade do herdi, contribuir para a verossimilhanca da aco, na ordem ética dessa razdo, enquadrando-se na Iégica da Kkatharsis. (b) Temos como plausivel que ‘9 elertlento'de ignorncia, que faz parte integrante do erro, relaciona~ se dialeticamente com 0 momento constitutive da acdo complexa que é © reconhecimento; por essa razAo, 0 erro integra-se vigorosamente ao sistema’de fatos que é a histéria tragica’’ (a traduedo do texto em fran- cés pata o portugués é nossa. Op. cit., cap. 13, nota 3, p. 245). f) 0 efeito proprio da tragédia e as agdes que levam 4 sua producao (XIV) Reportando-se a tese de que o temor ¢ a piedade devem, preferencialmente, proceder da intima conexdo dos fatos, mesmo que também possam surgir do espetaculo, Aristéte- les enfatiza a composic¢ao do mito como a responsavel pela produgdo daqueles efeitos, a tal ponto que, apenas com a \audig&o dos fatos que se sucedem, sem a visdo de sua repre- sentac4o, surgem naturalmente os sentimentos de temor e compaixio. Edipo, de Sdfocles, é mais uma vez citado como exemplo, agora, quanto ao papel da mediagao da palavra na instalagdo do efeito catartico. O espetaculo é tido como aspecto exterior a arte, sendo um erro procurar através dele 0 monstruoso, como elemento tragico, pois 0 prazer proprio da tragédia provém da piedade e do temor, provocados pela imitacao e decorrentes da imitacio dos fatos. Detendo-se nos eventos relacionados ao temor € a pie- dade, o autor estipula que as ages desse género, violentas, devem suceder-se no coragdo das aliangas, como: irmao contra irmo, filho contra pai, etc. Na realizag&o dessa tarefa, o poeta deve servir-se dos mitos tradicionais, nao os alterando essencialmente — como evitar o matricidio de Clitemnestra e Erifila —, mas usando artificialmente os dados da tradicao, isto é, organizando um sistema de fatos capaz de produzir o efeito tragico. As agdes, como as pen- savam os antigos, podem ser praticadas de trés formas: — a personagem conhece os fatos e age violentamente (ex.: Medéia, de Euripides, matando os filhos); — a personagem age, desconhecendo que ha malvadez nos seus atos, s6 sabendo disso depois (ex.: Edipo, de Séfo- cles); — a personagem ird agir de forma terrivel, por desco- nhecimento, mas, antes de fazé-lo, reconhece a vitima. 7 29 A presenca ou auséncia do conhecer e do agir, sob com- ' binagées diversas, determinam, portanto, a forma de aco Para os poetas. Na hierarquia dessas combinagées, a pior é a da personagem que conhece a situacdo, propde-se 4 ago e ndo age, causando a repulsa, mas ndo o tragico, pois nao ha efeito violento (ex.: ameaga de Hémon a Creonte, seu pai, na Antigona, de Séfocles). Caso melhor € 0 da acdo t! execu ignorancia e seguida de reconhecimento, por-// que nao ocorre_a repulsa e produz-se o efeito de surpresa — do reconhecimento. ar combinagao superior a todas é a da Personagem que esta para agir com monstruosidade, por ignorancia, mas, reconhecendo a malvadez de seus atos, antes, ndo os pratica (ex.: Mérope, que deixa de matar o filho, no Cresfonte). g) 0 estudo dos caracteres e da verossimilhanca (XV) Discorrendo sobre os caracteres, 0 capitulo XV busca tragar o perfil normativo da personagem tr4gica. Quando as palavras ou uma _ escolha i . carater, segundo o autoy. Quatro propriedades caracteri- , Zam esse elemento qualitativo da tragédia: bondade, conve-/ | niéncia, semelhanca e coeréncia. Hd, portanto, obras em i que tais exigéncias nfo sao observadas, como no Orestes, onde Menelau representa desnecessdria maldade de carater. Aristételes acentua a import4ncia de a representagdo dos caracteres estar sujeita a lei do verossimil ¢ do necess4- // ; rio, quanto ao agenciamento sistematico dos fatos no mito.!' As regras do verossimil e do necessdério devem justificar tanto as palavras e atos das personagens de cardter como @s sucessos de ac4o para ac4o no mito. Dai, segundo a Poética, ser evidente que os desenlaces também decorram do préprio mito e nao do deus ex machina,® a exemplo do que ocorre na Medéia, que se evade no carro do sol (aparelho cénico) apés matar os filhos, * ¢ na Iliada, na 3 Trad. de Eudoro de Sousa. Op. cit., cap. XV, p. 85. A explicagao é de Jaime Bruna (op. cit., cap. XV, nota 27, p. 35).

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