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Tempos Diversos

Vidas Entrelaçadas
Trqetórlas Itinerantes de trabalhadores no
Extremo-Oeste do Paraná

Robson Laverdi
AOSQÜATW^(p!yBNTOS
T empos d iv er so s,

VIDAS ENTRELAÇADAS
Trajetórias itinerantes de
trabalhadores no
Extremo-Oeste do Paraná
AOS QUATRí^^VENTOS

Conselho Editorial

Ana Lúcia R. Barbalho da Cruz

Elizabete Berberi

Magnus Roberto de Mello Pereira

Cláudio DeNipoti

Antonio César de Almeida Santos


Ficha Catalográfica

Laverdi, Robson

Tempos diversos, vidas entrelaçadas; tra­


jetórias itinerantes de trabalhadores no extremo-
oeste do Paraná. Robson Laverdi.— Curitiba: 2005,
341 p.

Bibliografia.
ISBN 85.86534.73-0

1.História ; 2. História regional do Paraná


I. Titulo
CDD981.622m
981.62

Copyright ©2005 by Robson Laverdi

Capa: Lai Bottmann Pereira

2005
Todos os direitos desta edição estão reservados à
Casa Editorial Tetravento Ltda.
CNPJ 02.615.734/0001-00
R. XV de Novembro, 1222 - 204
80060-010 - Curitiba - PR

e-mai!: aosquatroventos@yahoo.com.br
ww.aosquatroventos.com.b
A Albcmo e Aparecida, meus pais
Ao Júlio, meu companheiro
A ilusão do migrante
Quando vim da minha terra,
se é que vim da minha terra
(não estou morto por lá?),
a correnteza do rio
mc sussurrou vagamente
que eu havia de quedar
lá donde me despedia.
Os morros, empalidecidos
no entrecerrar-se da tarde,
pareciam me dizer
que não se pode voltar, Novas coisas, sucedendo-se,
porque tudo é conseqüência iludem a nossa fome
de um certo nascer ali. de primitivo alimento.
As descobertas são máscaras
Quando vim, se é que vim
do mais obscuro real,
dc algum para outro lugar,
essa ferida alastrada
o mundo girava, alheio
na pele de nossas almas.
à minha baça pessoa,
e no seu giro entrevi Quando vim da minha terra,
que ao se vai nem se volta não vim, perdi-me no espaço,
de sítio algum a nenhum. na ilusão de ter saído.
Ai de mim, nunca saí.
Que carregamos as coisas,
moldura da nossa vida, Lá estou eu, enterrado
rígida cerca de arame, por baixo de falas mansas,
na mais anônima célula, por baixo de negras sombras,
e um chão, um riso, uma voz por baixo de lavras de ouro,
ressoam incessantemente por baixo de gerações,
em nossas fundas paredes. por baixo, eu sei, de mim mesmo,
este vivente enganado,
enganoso.

Carlos Drumonnd de Andrade


(Farewcll, Rio de Janeiro,
Record, 1996)
A gradecim entos

Este livro foi originalmente apresentado como tese


de doutorado no Programa de Pós-Graduação em História
Social da Universidade Federal Fluminense - UFF,
defendida em junho de 2003. Ao longo desta trajetória
tive o privilégio e a alegria de contar com inúmeras
contribuições. Inicialmente, agradeço a Marcelo Badaró
Mattos, pela interlocução e o respeito com que me orientou
na feitura do trabalho. Além do orientador, aos professores
Marcos Alvito, Magali Engel, Paulo Fontes e Yara Aun
Khoury, pelas participações nas bancas de qualificação e
defesa; agradeço a todos pelos comentários críticos e a
gentileza com que apresentaram suas sugestões. Sou grato
também a Antônio de Pádua Bosi, Aparecida D’arc de
Souza, Cássia Regina Gonçalves dos Santos, Célia Toledo
Lucena, Dilma Andrade de Paula, Edmundo Fernandes
Dias, Elder de Paula, Geni Rosa Duarte, Heloisa de Faria
Cruz, João Fabrini, Maria Aparecida de Morais Silva,
Marta de Almeida, Paulo Roberto de Almeida e Rinaldo
Varussa, pelas valiosas discussões desde os primeiros
passos da pesquisa. Aos professores da Pós-Graduação em
História da UFF, especialmente Vânia Leite Fróes e
Ismênia de Lima Martins. Aos meus alunos Liane
Frederico e Márcio Sbaraini, pela ajuda na transcrição das
entrevistas. Ao Curso de História da UNIOESTE pela
liberação das atividades acadêmicas durante minha ausência.
Ao apoio da CAPES, fundamental na viabilização da pesquisa.
Aos depoentes, pela alegria de compartilhar sua companhia e
narrativas. A minha família, e particularmente ao Júlio, agradeço
pela companhia sempre tão sublime.
P r e fá c io
Robson Laverdi, como ele mesmo explica na intro­
dução deste Tempos diversos, vidas entrelaçadas, migrou,
jovem, do norte paranaense para o Planalto Central, mais
precisamente para Araguari, em Minas Gerais. Lá, sua traje­
tória de migrante rural ganhou ares urbanos, com o ingresso
na Universidade, em Uberlândia. O abandono do labor agrí­
cola pelo oficio urbano do professor foi uma conseqüência.
De Uberlândia para São Paulo, onde cursou seu mestrado,
outro salto, do interior para a megalópole. A trajetória profis­
sional o levaria ao trabalho na Universidade Estadual do Oeste
do Paraná, no Campus de Marechal Cândido Rondon. Feliz­
mente, para mim, houve também uma passagem por Niterói,
responsável por nosso encontro.
Sua trajetória migrante, com todas as mudanças e
estranhamentos próprios, dotou-o de uma aguda sensibilida­
de para escutar, indagar, analisar e conhecer outras migra­
ções, como as que ele nos apresenta neste livro. E se esta
sensibilidade transpira de cada página que escreveu, não foi
o único ingrediente para a construção que me cabe apresen­
tar. Há aqui também uma elevada dose de inquietude intelec­
tual, um apurado senso crítico e a virtude da permanente des­
confiança em relação às respostas fáceis que caracteriza os
bons historiadores, como Robson.
Seu objeto de pesquisa foi sendo construído e
reconstruído conforme estas suas virtudes foram sendo exer­
citadas no desenrolar do estudo. Partindo do estranhamento
ante uma cidade que parecia estratificar-se rigidamente entre
os “de dentro” (chegados no início da colonização, na déca­
da de 1950) e os “outros”, “de fora” (migrantes mais recen­
tes), inicialmente se propôs a investigar a migração do cam­
po para a cidade daqueles setores que não se enquadravam
no estereótipo rondonense do colono, germano descendente,
importante para a auto-imagem oficial de uma cidade que se
esforçava para apresentar-se como a mais germânica do
Paraná.
Cedo constatou que suas preocupações iniciais, em­
bora justificadamente construídas, eram limitadas e foi mui­
to além. Constatou a imensa diversidade das origens dos que
migraram para Cândido Rondon. Achou, entre outros(as),
mineiros, baianos, capixabas, pernambucanos, mas também
catarinenses, gaúchos e paranaenses de outras regiões. Per­
cebeu, porém, que não migravam para Rondon. No mais das
vezes, sua trajetória de migrações incluía Rondon num rotei­
ro muito mais amplo, construído ao sabor da luta pela sobre­
vivência, da busca pelo trabalho, alimentada é certo pelo mito
da terra da fartura no Paraná e da fronteira aberta no Oeste do
estado. Migração rural urbana também não foi uma via de
mão única e a cidade aparece como um ponto da trajetória,
mais duradouro para uns, tão provisório quanto paradas an­
teriores para outros.
E não couberam facilmente na análise as imagens
tradicionais de “velhos” pioneiros, pequenos proprietários,
de origem nas famílias germânicas do Rio Grande e Santa
Catarina, conquistadores do território e empreendedores do
progresso, contrapostos aos “novos” migrantes, vítimas da
modernização agrícola e da chaga do latifúndio em outras
regiões do país, empurrados pelas circunstâncias para a re­
gião, na qual eram muitas vezes tomados por indesejáveis.
Indo mais fundo, na análise, Robson não apenas pode cons­
tatar a pluralidade das trajetórias dos “de fora” e seu peso na
construção da cidade, como demonstrou que trajetos de mi­
gração mais longos já eram visíveis desde os anos 1950.
Mesmo os “pioneiros” não foram todos incorporados como
pequenos proprietários e empreendedores, sofrendo muitas
vezes das mesmas dificuldades que os “de fora”, que os em-

Xll
purraram por caminhos de migração diversificados, que não
necessariamente desaguaram numa idealizada Rondon.
Marcos importantes das diferentes conjunturas - an­
tes a “marcha para o Oeste”; depois a ação da colonizadora
Maripá; mais tarde a construção de Itaipu e o surgimento do
lago que mudou a paisagem e a relação com a terra em parte
significativa da região; e mais recentemente a fase da propa­
ganda turística centrada na germanidade dos anos 1980 - são
inseridos na análise, a partir da escuta atenta dos depoimen­
tos de quase trinta pessoas, para esclarecer o quanto os
condicionantes sociais influíram nas escolhas, constrangidas
é certo, dos que viram a saída na itinerância.
Para tanto, Robson nos deu uma lição valiosa sobre
as possibilidades do trabalho com depoimentos, através da
história oral. E o fez fugindo às regras escolásticas dos ma­
nuais, mas atento aos referenciais teóricos sobre a memória,
os mundos do trabalho e os conflitos sociais, bem como aos
procedimentos metodológicos necessários para escapar à ten­
tação de procurar nos testemunhos apenas a confirmação das
certezas acumuladas pelo pesquisador em suas outras fontes.
Tudo isto sem cair na ingenuidade analítica de tomar a coe­
rência elaborada pelo depoente em tomo de uma trajetória
vista “de hoje” como algo que dispense o olhar crítico do
historiador. E, principalmente, com imenso respeito pelo que
tinha a dizer cada um desses entrevistados e grande capaci­
dade de traduzir não apenas seus sotaques e vocabulários
diversos, mas também seus sentimentos mais fundos, reve­
lados apenas porque entre entrevistado e entrevistador se es­
tabeleceu uma relação de confiança e, por que não, cumplici­
dade mesmo, entre sujeitos em diferentes papéis que com­
partilham ainda assim esperanças comuns.
0 que fica de mais marcante da leitura atenta deste
livro, no entanto, é que esses trabalhadores - sim, fundamen­

xiii
talmente estamos a tratar de trabalhadores e trabalhadoras e
a busca pelo trabalho foi em grande parte o guia de suas via­
gens - não foram simplesmente empurrados de um lado para
outro pela modernização agrícola, pelo alagamento da barra­
gem de Itaipu, ou pela crueldade do latifúndio em seus locais
de nascimento, embora todos esses constrangimentos este­
jam presentes em suas trajetórias. Robson nos mostra que,
apesar de tudo, seus depoentes foram, em grande medida,
protagonistas de suas próprias trajetórias: fazendo escolhas,
recusando situações consideradas absurdamente indignas e/
ou injustas, buscando melhores oportunidades e se recusan­
do a aceitar o prato frio como inevitável. Em certo sentido,
suas itinerâncias foram o resultado de uma atitude rebelde
em face da idéia de que “não há alternativas”. Como eles,
esperamos continuar a construir alternativas. Este livro, exem­
plar autêntico de uma leitura alternativa - crítica e rica - de
um passado fortemente atravessado pela memória oficial da
região do Oeste paranaense, é um estímulo e um exemplo
das outras possibilidades. Saibamos aproveitar sua leitura.

Niterói, setembro de 2004


Marcelo Badaró Mattos

xiv
S umário

Prefácio...................................................................................... xi
Introdução............................................................................. 01
Capítulo I - O passado colonial e a construção do “ outro”
O “outro” como problema histórico........................................... 19
A historiografia da colonização: usos e lugares da memória.... 27
Do local ao regional................................................................47
Migração rural-urbana e a urdidura de trajetórias...............54
Modernização agrícola e processos sociais...............................62
O presente germânico............................................................... 66
Memórias individuais, sujeito coletivo...................................... 70

Capítulo II - Por um mapa de itinerâncias


Os números da migração e as itinerâncias.................................85
Tempos diversos, vidas entrelaçadas.........................................92
Itinerantes do Sul ....................................................................121
Trajetórias transfronteiriças .................................................. 130
Trabalhadores urbanos gaúchos e catarinenses........................135
As itinerâncias e o olhar político............................................... 141

Capítulo III - Memórias dos estranhamentos


Dimensões plurais do estranhamento....................................... 153
Estranhamentos e trajetórias sociais........................................161
Afirmando identidades em meio ao estranhamento.................. 174
Os estranhamentos e a luta pela moradia................................193
Estranhamento e linguagem.................................................. 205
Os matrimônios.......................................................................213
Os estranhamentos na vivência escolar...............................219
Estranhamentos e alteridades no conflito de classes........... 224

Capítulo IV - T rabalho e inserção social na fronteira


As memórias do trab alh o ......................................................235
Pracinha e a importância da lembrança............................... 240
Trabalhadores de múltiplos tempos e lugares...................... 260

xv
Anos 80 e o trabalho das mulheres.............................. 273
O trabalho e a pobreza...............................................285
Mundos do trabalho e paisagemsocial esgarçada............ 292

C o n s id e r a ç õ e s f in a is ..................................................315

F o n t e s e B i b l i o g r a f i a ................................................ 324
I ntrodução

Muito tem se dito em favor da cultura de nossa região que,


infelizmente, até a presente data foi alvo de infiltração de todo e
qualquer tipo de cultura, oriunda de vários lugares, que às vezes
nem mesmoteveoutra finalidade a não ser de obterbons resultados
financeiros, desprezando a formação cultural própria do nosso
povo. Conscientes da necessidade de se evitar esses
atravessadores e procurando manter acesa a chama do
desenvolvimento cultural e da própria criação de valores culturais
(...) os diretores de departamentos de várias municipalidades da
região tomaram a peito o desafio de manter e elevar a cultura
autóctone do oeste (O Alento,1980).'

Este livro nasceu da preocupação de historicizar os


processos sociais da afirmação de um “outro” ou “de fora”,
constituintesdasexperiênciasdetrabalhadoresquemigraramparao
município de Marechal Cândido Rondon, localizado na porção
extrema Oeste do estado do Paraná, próxima da fronteira com o
Paraguai, nas décadas de 1970 a 1990. Inicialmente, o eixo dessa
formulação assumiu muitas direções, sobretudo a do meu
estranhamento, como morador chegado àquelacidade em 1997, à
insistênciadasvias institudonaispublicase privadas locais acercada
predominânciada identidade alemãcomo uma dimensão exclusiva
de suaformaçãopopulacional.
Aoestranhamentoiniáalsomavam-seoutrosekmentos, mais
concretos. Um deles é umpórtico imponente em estilo germânico
Enxaimel, eiguido na entrada principal da cidade. Aliás, o mesmo
estilo arquitetônicoespalhou-seprincipalmenteno centro da cidade,
estimulado pela Lei de Incentivo Fiscal 1627/86, que aufere por
tempo determinado descontos e/ou isenções do IPTU para os
comerciantese moradoresinteressadosnasuaadoção. Porfim, outro
elemento é a realização anual, desde 1987, da Oktoberfest (Festa
de Outubro), que sepretende ser“amais simpáticado Brasil”.Além
disso, era dignade destaquea circulaçãovariadadejornais, revistas,
cadernos c o m e m o r a t i v o s d e turismo e alguns outdoorsde
propaganda, que destacavam as qualidades de Marechal Cândido
Rondon, considerada“a cidade mais germânica do Paraná” ou “a
terceira cidade em qualidade devida do estado do Paraná”.
Noutramaigemdesse estranhamento, constatavaque, além
do projeto de implementação do turismo para o desenvolvimento
econômico local, tais propagandas ensejavamde muitos modos a
constituição de umamemóriahegemônica do lugar. Num primeiro
plano,já observavasua imersão emambigüidades e contradições.
Primeiramente, pda projeçãodaidéiade eldoradorepresentadapela
novafionteira. Alémdo esquecimentodastensõeshavidasnopassado
e vividasno presente, essetombuscariagarantiro prolongamentoda
corquistapelasforçasdominantes,travestidoemumuiànismoregionaL
Outrasvezes, a estruturação dessamemóriaapresentava-se calcada
emversões românticassobrea colonização ocorridanos anos 1950
e 1960 do século XX, legitimadas pelas memórias dos primeiros
migrantesmaisbem-sucedidoseoonômicaepoliticarnente.Alémdisso,
uma permanência da idéia deseletividadedo elemento humano?
de origem européia alemã e, em menor escala, italiana, cujas
quafidadesexponendaisforanivalorizadascomoatributosdistintivos
empregadospek CompanhiaIrdustrialMadeireiraColonizadOTaRio
Paraná SA - MARIPA,que executou a suacolonização.
Essa dimensão da ocupação, segundo a qual se buscou
selecionar os primeiros agricultores sulinos idealizados pela
colonizadora, deixoumarcasprofundasna memóriasocial regional,
chegando a setransformar emanimo hierarquizador das trajetórias
migratóriasaportadasnaqueleespaço posteriormente. Outrasvezes,
^douadelimitarumadiferenciaçãoentreosmigrantesquechegaram
antes dos quevieramdepois, para os quais seatribuíramestatutosde
pertendmento bemdiferenciados.
Subliminarmente, no cenário do viver cotidiano, observei
outrasquestõesquedesafinavamas cordasda memóriahegemônica.

2
Na paisagemsocial, bastantemarcadapda presençadetrabalhadores
comtraços fisionômicos de ascendência européia, provenientes do
Rio Grande do Sul e Santa Catarina, haviatrabalhadoresvindos de
diversas partes do país, alguns chegados à região no início da
colonização.
Nodia-a-dia, sendoeuummorador“defora”, inquietavam-
me as insistentes indagações ou classificações com que eram
recepcionadosos recém-chegados: “vocênão é daqui?’ou “vocêé
fora?’. Otom da expressão, enigmático, impressionavamais que o
seu conteúdo estrito, intrigando-mee a outros que compartilhavam
do meu convívio. De todas essas constatações, certamente a mais
contundente e artificialesca era a tentativa de constituição de uma
memóriaúnica, ancoradanaafirmaçãodeumaidentidadegexmânica.
No escopo dessas preocupações, preciso sublinhar a
circulaçãodo polêmicoProjeto deLei n°003/97-CM, apresentado
à CâmaraMunicipal em 14de abril de 1997, que visava instituir a
Carteirinha do Cidadão Rondonense, com a finalidade, dentre
outras, deidentificaro munídpe, possibilitaro ingressogratuito nas
festividadesoficiaisdo Município; garantiratendimentopreferendal
no Hospital e no Pronto Socorro 24 horas e o fornecimento de
medicamentos nas Secretariasfinsdo munidpio.3
Najustificativado projeto, afirmava-seque“o munidpio de
Marechal Cândido Rondontem se destacado, regionalmente, pelo
esforçoematendersobremaneirao seuMunídpegratuitamente. No
entanto, porfàltade critériosou parâmetroslegais, esseatendimento
vemsendoofereado a todos quantoschegaremao Munidpio’\4Em
termos práticos, “para obter o documento de que trata a Lei, o
interessadodeveráapresentarfotografiarecentee títuloeleitoralcom
domicíliono munidpio deMarechal Cândido Rondon”.5
O Projeto de Lei foi pardalmente vetado pelo prefeito da
época, em 2 dejunho de 1997, que questionou o seguinte: “a área
onde está situado o Parque de Porto Mendes não pertence para a
munidpalidade de Marechal Cândido Rondon, a qual é mera

3
detentora de permissão de uso cedida pela Itaipu Binacional”.6
Segundo os termos do veto, “há claro e inequívoco interesse da
admiristraçãopúblkarrijniàpalemprivatizaraáreadelazer(toParque
de Porto Mendes e, para tanto, as providências iniciais e cabíveis
estão sendotomadas”.7
Considerados os termos do Veto, pouco comprometidos
com o elemento essencial do debate, qual seja o pertendmento e a
classificaçãode diferentestipos de cidadania, a Lei regulamentouos
critériosde comprovação do domicOioeleitoral comoquesitopara a
obtenção da Carteirinha. Tal exigência pareceu estar muito
relacionadaa um dos argumentosfundadoresdainiciativa: regraro
atendimento público às populações transfronteiriças, talvez
prindpalmentede“brasiguaios”.
Alémdaproblemáticade fronteira, observavano cotidiano
dos moradores da periferia um universo de vida comum de
trabalhadorespobresedetrajetóriasmigratóriasvariadasecomplexas,
cujasdemandas eramfortementemarcadas pelalutaportrabalho e
pela sobrevivência social e material. Algumas dessas questões,
entretanto, impulsionaram a redefinição do projeto e passaram a
orientaras discussões.
Deoutromodo, emaisimportante, apesquisaganhounovos
sentidos e horizontes com o trabalho de História Oral, por abrir
caminhos para historidzar os significados e as dinâmicas sociais
narradas pelos próprios protagonistas, até então obscurecidas pela
historiografiae ausentesda memóriahegemônicaregional e local.
Comojá haviaumapreocupação acentuadacomos modos
de viver e as trajetórias dos trabalhadores, voltei o foco para suas
memórias e não para uma história dos grandes temas ou
acontecimentos, comoa colonizaçãoou asuacrise. Épredso ressaltar,
todavia, que essenão foi o caminhoque privilegiouos depoimentos
orais como a documentação principal. Ao contrário, a riqueza de
elementos substanciais que emergiram das narrativas modificou o
escopo da pesquisa, tomando imperiosa uma revisão das versões
sedimentadas.
Se por umlado os depoimentos orais contribuírampara o
alargamentodos horizontesespadai e temporal da análise, por outro
passarama restringiro conjuntodocumental de outros suportesque
havia levantado sobre o espaço local, particularmente o material

5
jornalístico e oficial relacionados com o projeto de germanização.
Desta feita, os depoimentos orais adquiriramum estatuto de maior
importânciaqueo planejado, pondoemquestãoo desafiodetrabalhar
comos dilemas inerentes ao seu uso quase exclusivo.
No que se refere à seleção dos depoentes, desde o início
buscou-se compreender os desdobramentos da colonização para
os trabalhadores migrados para Marechal CândidoRondoa Nesse
sentido, a definição dos primeiros depoentes privilegiou os
trabalhadoresmigradosdo campoparaa cidadeno período posterior
a 1970. Abem daverdade, numprimeiro momento optei por ouvir
os migrantesruraisque aportaramnacidadenastrês últimasdécadas
do séculoXX, tentandorecuperarosregistrosmemorialistaseoutras
indica<^esbfcliograficasmaiscristalÍ7^dasasprincipaistransformações
ocorridasnaregião durante esseperíodo. Contudo, na interceptação
da realidadedos migrados paraa região, surpreenderamosvariados
e inconclusostrajetos itinerantes de suasvidas. Pude constatar que
muitos deles haviam deixado o meio rural em épocas diferentes,
inclusive em períodos bem anteriores à década de 1970. Outros
relataramtrajetóriasbastante peculiarese pouco planejadas, iniciadas
emdiferentes regiões do solo brasileiro.
Naproduçãodosprimeirosdepoimentosjá foi sedelineando
umatramadetrajetórias de itinerários complexos que enriqueciama
compreensão daquela paisagemsocial, até então investigada sob a
óptica dapreponderânciade grupos migratóriosidentitárioscoesos.
Embora pretendesse estudar o período pós-1970, as narrativas
conduziran>meaumtempobemanterior, oda colonizaçãoplanejada.
Surpreso, pude interceptar trajetórias de trabalhadores chegados à
região nas décadas anteriores não como pequenos proprietários,
mas na condição de meeiros, parceiros, arrendatários, agregados e
assalariados, o que contrariava uma das bases da memória oficial,
segundo aqual os migrantes haviammigrado parao trabalho como
colonos, tomando-se mais tarde pequenos proprietários de terras.
Deoutromodo, o tecidocomplexodastrajetóriasdificultava

6
a composição de qualquer panorama estatístico populacional das
migrações para a região. Não se desejavamesmo esquadrinhar ou
agrupar, como propõemos estudos demográficose populacionais,
quaisquerdados sistematizadossobre essesmovimentos. Aquestão
central da pesquisa não se resolvia na apresentação dos números,
masna qualificação dos sujeitos sociais, a fimde desmistificar suas
imagenssimplificadasemnúmeros.
Embora municiado por alguns vetores dos estudos
migratórios sobre a ocupação paranaensedurante o séculoXX, foi
somentenotrabalhocomos depoimentosquepassa a compreender
melhora fragilidadedessasabordagens. Haviaverdadeirosvácuos
de sentidos, principalmente em relação aos fàzeres históricos das
trajetórias, subsumidosna abordagem da migração dos grupos, as
chamadas“frentes” de ocupação.
Quanto àstrajetóriassociais, elasde fàto não poderiamser
expressas emnúmeros, hajavistao grau de efemeridadedasestadas
ros diferenteslugaresporondeosmigrantespassaramouosmúltiplos
itineráriosde suastrajetórias, alguns dos quais inconclusos. Nesse
caso, cabelembrarque as narrativas selecionadas são de migrantes
que, porcircunstânciasvariadas, permaneceramno Oeste do Paraná
ou quemigrarampara outras regiões e depois retomado.
O primeirodesafioda discussão surgiu do fàto denão estar
investigandoumgrupofechadodemigrantes, quetivessemchegado
nummesmotempo oubuscassemseconstituircornoumgaipo coeso
emtomo de suasidentidades. Essaabordagemtalvezsó pudesse ser
trabalhadase priorizassea análisedos primeirosmigrantesdo tempo
da colonização, o que não era o meu propósito. Todavia, com a
maturação da pesquisa, fui percebendo que a contribuição estaria
justamente no tratamento dessa trama heterogênea de trajetórias
amalgamadas na constituição daquela fronteira, em grande parte
empobrecida pela memória oficial, esta, sim, alimentadapela noção
demovimentosmigratórioscoesosnosgruposfechadosdemigrantes.
Tal questão se apoiavana idéiàde que qualquer projeção estatística

7
estava fadada a se perder na rede pouco explicável da mobilidade
temporária que marcava esse espaço de fronteira. O desafio posto
eraencontrarumcaminhoatravésdoqualpudesseoperaressariqueza
de experiências no plano analítico, enquanto procedimento
metodológico de recortedasfontese emseutratamento.
Anecessidadedeavançarestavacolocadaenão haviaoutra
alternativasenãopôramão namassa. Compus, assim, umconjunto
de 28 depoentes, cujo principal critério de seleção foi a audição dos
trabalhadores chegados no espaço urbano entre os anos 1970 e
1990, independentemente dos tempos e lugares de origem Além
dessecritério, adotei comoprincípiogeral nãoprivilegiarmoradores
deumúnicobairro, deumúnico oficio, deumamesmafàixaetáriaou
de mesmo um marco cronológico de chegada Esse caminho
constituía-se num cuidado sempre lembrado, talvez não de todo
satisfatório, denão estereotiparaindamaisostrabalhadoresnointerior
da gangorra do ser ou não alemães, construída e alimentada pela
memóriaofidaL
Embora o horizonte da diversidade tenha sido um
compromisso levado com muita seriedade na composição do
conjunto, sempreestivecientedequeumaseleçãonuncaéneutra. E,
nesse caso, a diversidadebuscadafoi qualificadora dos sujeitos no
interiordadassetrabalhadora, emsuasmaisdiferentesestratégiasde
lutaeem seus modos devivo-e trabalhar. Emfàce da problemática,
não foi feita uma distinção entre aqueles trabalhadores pequenos
proprietários rurais ou mesmo agregados, assalariados ou meeiros.
Outro aspecto importante que vale lembrar é o da
aproximação e do envolvimento comos depoentes, assimcomo do
processo de feituradas entrevistas. Desdeo prindpio não organizd
um organograma dos informantes que entrevistaria. Procurei,
outrossim, construirumnúdeo inicial de depoentes quejá me eram
conheddos, atento às evidêndas trazidas por suas trajetórias, que
meaproximaramde outrosentrevistados. Tampoucoutilizd roteiro
ou temário na condução das entrevistas. Sua produção tentou
enveredar-se nas próprias narrativas e, sempre que possível, tenta
articular as narrativas com referenciais lembrados por outros
depoentes. Noutras palavras, busquei amarrar o conjunto dos
informantescomoumprocedimentoinspiradonofàzer“etnográfico”
de viverno meio social investigado. Procura evitar as tradicionais
indicaçõesde pessoas consideradaslegitimadasparafàlare passei a
ficar atento às indicações dos próprios trabalhadores. Assim, fui
compondo uma trama de informantes da mesma forma que os
informantes foram compondo minha problemática. Alguns
entrevistadosforaminterceptadosnarua, entreumaconversaeoutra
como transeunte, o gari, ojardineiro, a doméstica, adona-de-casa.
Os primeiros entrevistados foram moradores da Comunidade
Católica do Bairro Primavera, que conhecera em 1998 e 1999,
quando ajudarana formação deum núcleo daPastoral Operáriade
Marechal CândidoRondon
Naquda épocajá via nessacomunidadeuma outra cidade
muito diferente daquela apresentada pela memóriaoficial. No ano
de2001 retomei ao Bairro Primaveracomo pesquisador, movido
ainda por muitasinquietações acerca do distanciado abismo que se
abriaentre estes mundos fisicamentetão próximos. Ali começara a
tecer a trama dashistóriasdevida que, à frente, tinhamcomo certo
um inextricável desafio do viver humano, entre afetividades e
confidências, medose esperançascompartilhadas, cujaprofundidade
talvezsejainenarrável.
No âmbito das motivações pessoais que me levavam à
pesquisahá que sublinhar uma intersecção existente entre a minha
própria trajetória migrante com as histórias de vida investigadas.
Noutraspalavras, encontrava-menacondiçãode sujeitodapesquisa,
o quedenenhumamaneiratratei comoumproblema. Pelo contrário,
ajudou-me deveras na interpelação aos sentidos das memórias
migrantes.
Havia eu migrado com minha família, em 1988, do meio
rural de Cianorte, no Noroeste paranaense, para o mundo urbano

9
deAraguarí, uma média ddade da região do Triângulo Mineiro.
Nesse movimento, nos incorporávamos cheios de esperança, ainda
que já tardiamente, a outros grupos de trabalhadores paulistas,
paranaensesegaúctosquereocuparamafronteiraagríooladocerrado
brasileirono Planalto Central no pós-1970.
Comoummigrantebuscai algumentendimentodasnovas
realidades que encontravano novo lugar. Muito especialmente, das
descobertas feitas durante o Curso de História da Universidade
Federal de Uberlândia, onde ingressei em 1991; do movimento
estudantil; do meutrabalho de bóia-fnaetambémdavidaurbanade
uma casaalugada na periferia. Semcontartambémcomas perdas,
como adapequenapropriedadefamiliarnoParanáparaopagamento
de financiamentosbancários, alémdos amigose outras referências
do antigolugar. De algumamaneira, todas essassituaçõesdo êxodo
rural, em cujas pontas havia duas culturas tão diferentes, se
amalgamaram ao meu fàzer como pesquisador e profissional da
História.
A meio caminho da graduação abandonei o trabalho na
roçacomafemília. Não maisresistiaàquelarotinadetrabalhopesado
e estudo. Quando chegava da Universidade era noite avançada,
porque residia emAraguari e estudava em Uberlândia. As cinco
horas da manhã já predsava estar de pé, e de marmita na mão
enfrentavamaisumajornada detrabalho. Porumtempo fui caixeiro
de guichê rodoviário e professor substituto de diversas matérias,
inclusivede matemática, quando então memuda paraUberlândia,
em 1994.
EmUberiândiatoma-me professor-estudantenuma escola
de ensino fundamental na periferiada ddade, que tinha dificuldades
de compor seu quadro docente. Sobravam aulas, porque a escola
era longedo centro ou porque o bairro onde ficavaeraviolento. Ali
trabalhd por um ano e pude conhecer mais de perto os viveres dos
trabalhadoresurbanospobres. Muito diferentementedasadvertências
estereotipadasquerecebiados colegasdetrabalho, conseguiarealizar

10
atividadesimito interessantesdeinvestigaçãohistóricacomosalunos
acerca de suas trajetóriase dos mundos do trabalho dos moradores
do bairro.
Durante o curso de mestrado na PUC/SP, forjado pelas
dificuldadesde sobrevivência emSãoPaulo e Minas, lancei-me em
buscadetrabalho. Finalmenteem 1996ingressei comoprofessor do
Curso de História da UniversidadeEstadual do Oeste do Paraná-
UNIOESTE, no CampusdeMarechal CândidoRondon, localizada
na pequena ddade da fronteira para onde migrei e trabalho até os

Na UNIOESTE tive a oportunidade de desempenhar


diversas atividades. Umaddas, que memarcou especialmente, foi a
da coordenação do Centro deEstudos, Pesquisase Documentação
daAmérica Latina - CEPEDAL, onde por quase dois anos pude
íàmiliarizar-me, e inquietar-me, comastensõesimplícitasnaslutasde
memóriano espaço social do Oeste paranaense. No acervo, pude
constatarumagestãodadocumentaçãooraleescritamito organizada
emtomo da colonização e dos primeiroscolonizadores, sobretudo
em suas demandas de posteridade. Pude constatar também uma
fàrtaprodução historiográficano âmbito regional, constituídanum
conjunto de trabalhos monográficos, dissertações, teses e livros
memorialísticos sobre as pequenas cidades da região.
A configuração desse conjunto ajudou-me muito na
percepção dós grandes vácuos de significados dos atores nos
processosmigratóriosreferendados. Por outro lado, as dificuldades
na implementação de outros projetos de gestão da memória com
diferentessuportes documentais e/ou produzidos por outros atores,
fizeram-me atentar para os significados dessas demandas na
constituição de uma pretensa memóriaunificada, tanto quando no
esquecimento de outras memórias ou na perpetuação de silêncios
interessados.
No âmbitodovivercotidiano, comomigrante, predsei, mais
umavez, aprendere praticar novos códigos de sobrevivênciasocial

11
e deapartação comos quaissãoiniciadosos‘‘defora”.A dificuldade
de penetração nos espaços de convivência social ou mesmo o
estranhamento aos modos de viver, marcados pelo cultivo de uma
vidamaisprivadaemenos calorosa, fizeram-melutarpelainserção.
Todavia, nofàzer-mecomomigrante, e historiador, desvendeinovos
lugares,viveresemodosdetrabalhardesujeitospoucocontemplados
pelamemóriahegemônica.
Na produção dosdepoimentos, tomou-se necessáriauma
mudança de perspectiva da cidade de Marechal Cândido Rondon
para a trama regional do Oeste e da fronteira, tendo em vista
principalmente o conjunto ampliado dastrajetórias e dos itinerários
dos migrantes que formaram essa paisagem social. Embora os
depoentes tivessem passado a residir no município em tempos
diferentes, uma rede de motivações e significaçõeshistoricamente
constituídas, muitasvezes não restritas aoviverlocal, os colocavam
nummesmoplano.
Apesquisapassou então aarticulararelaçãoentreaddade
e o mdo regional maisamplo, por suavez subsumidadiantedamaior
visibilidadedoprojeto degermanização, emsuatentativade construir
uma identidade peculiarao munidpio. Épreaso sublinharque, até
1960, Marechal CândidoRondontinhaoutro nomeenão eraddade,
era distrito. O distrito GeneralRondon, do município de Toledo, o
centro da administração daMARIPÁ. A qualidadeque distinguiria
Marechal Cândido Rondon do resto do território seria uma
concentração de migrantes de ascendência européiagermânica
E preciso ponderar, ainda, que a imagemda germanidade
mostrou-se mais sedutora aos interesses econômicos locais, tanto
quanto foi compartilhadapor muitosdos moradoresde ascendência
germânica, hzya vista o poderio dos recursos simbólicos utilizados
para esse fim. Embora evidendando uma dimensão da experiência
sodal local, esta se mostrava muito descolada da formação dessa
fronteira agrícola e da região como um todo. As trajetórias dos
depoentesmostrarama importânciaemrestabdecera conexão entre

12
essesuniversoslembrados e esquecidos.
Tomar a paisagem social da fronteira do Oeste do Paraná
como umproblemahistóricotomou possível entretecer itinerários e
experiências de sujeitos que lutam por terra e trabalho na região
desde osanós 1950. Um dos caminhos importantes trilhados foi
tambémde buscar compreenderessapaisagemno interiorde outras
condições historicamente dadas desde a sua colonização, então
auspiciada púaMarvhapara Oeste, desde o governo de Getúlio
\fcigas.
Desde as discussões motivadoras desse estudo, haviauma
preocupação emtratar dastensõesvivendadospelostrabalhadores
diante do projeto de germanização, especialmente de Marechal
Cândido Rondon. No desenvolvimento da pesquisa com os
depoimentos oraisfoi se mostrando interessante dialogar não mais
comos referenciais delineadospela memóriaoficial e a bibliografia
credenciada. Tomava-se cadavez maisimportante uma discussão
do vivido na região como uma convergência de trajetórias e
experiêndas. Sob esse prisma observava que os trabalhadores
idealizavam o Oeste do Paraná como um lugar de destino igual a
tantos outros quepoderiamter sido escolhidos. Umavez eleito esse
destino, projetaramsonhosde conquistaos maisdiversos, o quetraz
àtonaaimportândadeumoutrodiálogocomasversõesgeneralizadas
sobreo papel sobrevalorizado da colonizadoraem suas vidas.
S

E predso considerar que até então preocupava-me em


demonstrar a pluralidade de sujeitosem detrimento da onipresente
identidade germânica Apesar de atento para as narrativas, deixd-
me aindaarrastar pela correntezadas afirmações ofidalizadas. Por
algumtempo tomd-me cativo da perspectiva de existênciade um
“outro”, que se alimentavado gérmenda memóriahegemônicaque
também ajudava a reproduzir. O alargamento do recorte espadai
paraapaisagemsocial emsuadimensãoregional contribuiudeforma
significativa para superar essas armadilhas postas no campo da
memóriadominante.

13
A História Oral foi utilizada como uma importante
metodologia de produção de narrativas individuais socialmente
compartilhadas. Asnarrativas não forampensadaspara comprovar
ou ilustrar os problemas de incompatibilidade entre as diferentes
memórias sob tensão. Até porque a seleção dos depoentes foi
mediada pelotrabalho de delimitação da problemática da pesquisa,
como um sentido integrante de sua feitura. Noutras palavras, não
busquei selecionar depoentes entre os tipos ideais consagrados e
legitimados; massugeridospda intuiçãode ofido e a minhavivência
nesse espaço.
Sobre esse aspecto predso ainda chamara atenção para a
questão dos usos dessas memórias. Elas não foram questionadas
quanto à veraddade acerca dos processos sodais lembrados, mas
tomadas como trabalhos da memória, em que os depoentes
mostraram-se como sujeitos históricos protagonistas das
transformações do lugare deles próprios.
Esse caminho foi acentuando a fragilidade dos projetos
identitáriosconstruídos, tendo emvistasuainexpressivaarticulação
com os agentes sodais. Contudo, predso assumir o ônus de uma
possível abordagembeligerante que mantive contra as memórias e
os projetos dominantes. Mesmo tendo sido considerada uma
perspectivaindesejadafoi a que se constituiu possível nas fronteiras
doolharpoítkx^conrcsu^sodaleinteriocutornodebateacadêmico
feito nesse espaçocircunscrito.
Emlinhasgerais, o texto apresentado buscará discutir, não
diretamente, comamemóriaoficial, maspormeiodaheterogeneidade
de memórias que lhes impõe pressões e reelaborações. Pretende-
se, desse modo, não apenas apresentar novas versões acerca da
composição da paisagem sodal do Oeste paranaense nas últimas
três décadas do século XX, mas também, e fundamentalmente,
apreender a riquezade significados desses processos, emparticular
os modos comoviveramasmigraçõese os mundosdo trabalhonas
intersecções do rural e do urbano, tanto quando seus fàzeres como

14
sujeitossodais emtransformação.
Nessesentido, comohistoriadore sujeitoda pesquisa, sinto
brotar dessa relação um entrelaçamento de significados da minha
própriaexperiênciamigratóriacoma tramacomplexadastrajetórias
dos depoentescomosquaisconvivoeinvestigo. No intuitode discutir
as questõesapresentadasoigarazãotexto emquatro capítulos, assim
constituídos:
Noprimeirocapitulo, “O passado colonial e a construção
do ‘outro”’, proponhoapresentara trajetóriadapesquisae promover
a discussão teórico-metodológica que lhe dá sustentação,
evidenciandoasquestõessuscitadaspelahistoriografiaproduzidano
circuito regional Oeste do Paraná Na mesma direção, buscarei
sublinharsilêndose esquecimentos recorrentesem suasabordagens
e discutir alguns dos temas que a põem num plano de reificação da
memória hegemônica Em particular, os rdativos a sua formação
populadonal desde a colonização. Ainda em relação a essas
preocupações, procurarei discutiros contornos de suacumpliddade
com projetos dominantes mais amplos da afirmação identitária
gexrnânicaúnica
Coloca-setambémcomotarefe do capítulo problematizar
osusosdasnoçõesde“outro” ou “defora”, quealimentamtipologias
sociaisidealizadasou estereotipadas, ou aindaaconstituição deoutros
estatutosde pertendmento, constituídos emparticularno conflito de
dasses.Assimtambém, cabediscutircomo essasclassificaçõesforam
plantadas na produção acadêmica ou mesmo perpetuadas no
memoriafismolocal
E preciso sublinhar que não se propõe esse caminho para
compreenderasbalizasda memóriahegemônica, mas simpara abrir
um outro campode investigaçãoquebuscahistoridzara diversidade
detrajetórias e bagagens cultuais formadoras dessa paisagemsocial
defronteira.
O segundo capítulo, “Por um mapa de itinerâncias”,
pretendemapearos itinerários detrabalhadorese os significados da

15
sua migração para o viver urbano em Marechal Cândido Rondon
depois de 1970. Com o aporte de números migratórios oficiais,
buscou-se discutir criticamente a abordagem demográfica dos
processos migratórios na ddade e na região. O eixo da análise é
historidzar as tramas das trajetórias relembradas pelos migrantes
oriundos de diversoslugares e chegados emdiferentestempos.
Propõe-se dialogar também com as trajetórias dos
trabalhadores gaúchos e catarinenses migrados para e na ddade
durantee depoisda colonização. A preocupação é desvendaralguns
dos silênciosque os absorvem, cujaspresençassãolembradasmuitas
vezes com argumentos para a defesada memóriahegemônica.
Emlinhasgerais, buscou-se daborarumadiscussãoacerca
do caráteritinerante e inconcluso dastrajetórias movidaspara esse
lugardefronteira. Emtermos metodológicos, procurou-se dialogar
comasmemóriasdetrabalhadoresprovenientesdevárioslugares e
chegados em diferentestempos sem prescindir de qualquer forma
de classificação ou tipologias idealizadas. O intuito é apreender as
transformações dos sentidosda migração, sobretudo os mediados
no embate de classes e não étnico.
O terceirocapitulo,“Memórias dos estranhamentos”, se
dispõe a discutiras memórias dos estranhamentosrecordadospdos
trabalhadoresmigrados, procurando explorar as dimensõesplurais
dessas tensões nos diversos espaços sociais do fazer-se da classe.
Entretanto, não se pretendeuma apreensão dos estranhamentostal
como supostamentetenham aconteddo, mas simdos trabalhos da
memória envolvidos com as lutas de enraizamento ou outras
transformaçõesde suasvidas.
A proposta é de mergulhar no campo das narrativas do
estranhamento e explorar suas dimensões no enfrentamento do
racismoou outrosestereótiposproduzidosno campodadominação.
Tanto quanto, discutirtambémalgumas expressões subliminaresdas
tensões consubstandadas em silêndos ou esquecimentos. A idéia
fundadora é situar os diferentes espaços sodais envolvidos nessas

16
tensões, procurando apreenda asdiferentesestratégiasutilizadaspara
suatransformação ou superação.
Porsuavez, éimportantesublinharquenãopõe emquestão
a classificação dos estranhamentos lembrados, objetivando tão-
somente discutiros sentidosdessasnanativasno campo de afirmação
de alteridades da classe, nos espaços da sobrevivência social e do
trabalho. Há, porém, que ressaltar o esforço para historicizar os
sentidos dessas narrativassobre os própriosfazeres dos sujeitos, os
quais enfatizaram seus papéis protagonistas tanto quanto foram
transformadospor eles.
Finalmente, noquaríoccpíãJo,‘Tr?baiho e inserção social
nafronteira”, procurara discutir a importânciaatribuída ao trabalho
pefosmigrantesemsuasmemórias. Dessemodo, propõe-seapreender
asnarrativasdos depoentesacercados aprendizadosdenovosofícios
ou profissões foijados pela migração, além de refietir sobre o
significadodessaslembrançasnosprocessos deconstituição de suas
alteridadesnaclasseou suasinserçõessodaisnosmundosdafronteira.
Ao ater-me às narrativas, proponho uma incursão nos
meandrosdos mundosdo trabalhodafronteira, buscando apreender
alguns de seus embates e transformações. Pretendo debater com
algumas idealizações projetadas nesse espaço, emparticular a sua
referência como lugar de predominância da pequena propriedade
agrícola. Nesse sentido, busca-semapear o universo das profissões
e/ouofkiosdesempenhados, assimcomoseusaprendizados, tentando
penetrar no campo das suas tensões. Além disso, buscarei discutir
algumas das relações construídas pelos depoentes emtomo de suas
memórias sobrevalorizadas do trabalho com outras lutas de
enraizamento e inserção social. Interessa sublinhar que não almejo
classificar ou comparar os diferentes ofícios ou profissões referidas
pelos depoentes, menos ainda especificamente sobre uma ou outra
categoriadetrabalhadores, masapreenderas alternativasconstruídas
nos mundos do trabalho pelos migrados para a região, tendo em
vista principalmenteas promessas de conquistada migração que os
envolveram, as itinerânciase os estranhamentosvividos.
17
N otas
'O ALENTO. Mansdial CândidoRondon,if30, de7a 13deíèvaarode 1980,
p. 7.Apud. STESN,MiacKlfeSbx.Aconsiniç3o(bDiscunodaGenncnidade
em Marechal Cândido Rondon (1946-1996). Florianópolis, UFSC,
Dissertação(MestradoemHistória),2000, p. 81.
2(XM*ANHIAINDU5IWALai*jCNIZADC®ARIOPARANÁ,MARIPÁ
S/A. Relatório do Plano de Colonização, 1960, passim.
3ProjetodeLei n°003/97-CM,apresentadoàCâmaraMuniàpaldeMarechal
CândidoRondon, em 14deabril de 1997,passim.
4Mem.
5Ldrf3.099,Art 4, daPrdèituradoMunicípiodeMarechal CândidoRondon,
de2dejunhode 1997.
6\fetoPardal aoProjetodeLei003/97-CM, pela PrefeituradoMunicípiode
Marechal CândidoRondem, de 2 dejunho de 1997.
7Ibidem.
C apítulo 1
O passado colonial e a construção do “outro”
À medida que nos alongamos nesta viagem do tempo, toma-se
claro que está emjogo algo mais que aritmética e, evidentemente,
algo mais que história. Sem dúvida, para nos defendermos de
relatos sentimentalizados c intelectualizados da 'VfelhaInglaterra’
precisamos do mais aguçado ceticismo. Ao menos algumas
dessas testemunhas, porém, escreviam sobre suas vivências
pessoais. O que é necessário investigar, nestes casos, não é a
veracidade histórica, e sim a perspectiva histórica.

Raymond
Williams, 1989
O “outro” como problema histórico

O ponto de partida da pesquisa consistiu em dissecar os


meandros do universo urbano de Marechal Cândido Rondon e
os modos de vida de seus trabalhadores no pós-1970.0objetivo
fundamental era compreender a dinâmica dos processos de
estruturação da memória oficial em tomo do projeto de
germanização e da construção de uma identidade única alemã.
De igual maneira, buscava entender o rescaldo dos projetos
dominantes para o viver dos trabalhadores, até então
reconhecidos como “outros” na composição do tecido social.
Com essa perspectiva a pesquisa caminhou por um amargo e
demorado tempo.
Embora a evitasse desde o início, havia no cerne dessa
perspectiva uma dicotomia entre o universo da dominação,
proveniente dos ventos da memória oficial, que coexistia no
projeto mais amplo de germanização, e o universo dos modos
de vida dos trabalhadores envolvidos nesses embates. Apesar
de estar atento às dinâmicas complexas da legitimação de poder
exercida pelas classes dominantes locais sobre os trabalhadores,
ao entrevistá-los precisei rever tanto a forma como enxergava
esses trabalhadores quanto minha noção absolutizante dessas
formas dominantes.
Durante o desenrolardo trabalho, foi angustiante constatar
não só a presença dessa perspectiva desde o início do projeto,
como também- e inacreditavelmente- astentativas empreendidas
para sua superação. Como havia umgrande interesse em explorar
a pluralidade de sujeitos emdetrimento de umainsistente afirmação
da identidade germânica, fui arrastado pela correnteza das
afirmações que consubstanciavam a memóriaoficial. Como parte
dessa opção, investigava de forma obstinada a possível
contraposição dessas duas forças emjogo. Tal caminho tomou-
me cativo de uma dualidade que, em seu âmago, alimentava-se
do gérmen da memória oficial que eu em parte ajudava a
reproduzir, cegando-me às experiências dos sujeitos e à riqueza
dos processos e transformações dessa paisagem social.
Como a preocupação estava muito centrada nos
processos sodais de construção do “outro” ou “de fora”, os
caminhos da investigação assumiram implicitamente algumas
direções apontadas pela historiografia regional produzida em
diferentes momentos e por alguns de seus matizes socialmente
legitimados.
Tendo em vista as questões suscitadas no diálogo com a
historiografia, tomou-se importante esmiuçar a trajetória da
pesquisa, porque isso revelaria as discussões acerca dos
problemas teórico-metodológicos centrais tratados na pesquisa
empírica e o diálogo com a farta produção acadêmica sobre a
região ao longo do século XX.
Na literatura mais ampla dessa produção acadêmica,
pude constatar uma dualidade estratificadora do tecido social
profundamente enraizada. Esta questão era sustentada pela
existência de uma relação desigual entre uma maioria de sujeitos
sociais vistos como tipos ideais e de uma pequena minoria de
“outros”, esporadicamente lembrados pelos seus papas pitorescos

20
e/ou exóticos exercidos no interior dessa composição.
Essa distinção, fundamental para a compreensão dessa
paisagemsocial, é particularmenteinquietantetendo emvista o fàto
de se tratar de uma região queviveu ondas migratórias sucessivas.
A primeira, e mais expansiva delas, ocorreu entre os anos 1950 e
1960, sob o influxo da ocupação empreendida pela Companhia
Industrial Madeireira Colonizadora Rio Paraná S/A-MARIPÁ
No contexto dessaprimeira onda migratória talvez tenha
circulado um dos primeiros registros dessa perspectiva dualista,
disseminado pelo antropólogo Kalervo Oberg e pelo estatístico
Thomas Jabine. O estudo, publicado em 1960 por iniciativa e
interesse do Estado, tomou-se uma importante baliza fundadora
da perspectiva. No texto, há uma menção atribuída aos “luso-
brasileiros” ou “caboclos”, grupo minoritário entre os não-
descendentes de alemães e/ou italianos que habitavam a região.
Na versão desses autores:
Os nomes luso-brasileiros aparecem, novamente, na parte mais
baixa, da escala social, representados pelos trabalhadores
caboclos que vieram em busca de trabalho. Esses estão fora da
sociedade dos colonos, embora participem da economia do
município (Toledo). Numa situação parecida, porém pior ainda,
estão os trabalhadores temporários paraguaios, que vivem
migrando de um lado para outro da fronteira.1
O estudo, de caráter etnográfico, partira do interesse
institucional de relatar o que se chamou à época “Projeto de
Desenvolvimento Regional da Zona Fronteiriça do Oeste
Paranaense”. Evidentemente, tratava-se de uma avaliação dos
primeiros desdobramentos da fronteira em expansão áàMarcha
para o Oeste. Importante notar, entretanto, que a menção a esses
trabalhadores foi emitida a partir de,
Uma observação rápida quanto aos nomes dos indivíduos com
preeminència na comunidade, [que] mostra luso-brasileiros nas

21
repartições federais e estaduais, tais como na côrte distrital, na
policia, nas coletorias, no correio e no banco. Os ocupantes
dêsses cargos representam as autoridades estaduais e federais
e, de certa forma, não faz parte da sociedade dos colonos.2
Embora o texto tenha abato algumas brechas para uma
discussão calorosa sobre a dualidade entre quem era ou não
considerado colono, no caso “luso-brasileiros” ou “caboclos”,
evidenciava, já em 1960, uma dimensão interessante da
diversidade da paisagemsocial constituídanaquele espaço. Assim,
o problema permanece e requereu especial atenção nessa
discussão historiográfica, em especial pelo modo como essa
perspectiva foi sendo modelada posteriormente.
Notas classificatórias sobre as minorias de “outros”
continuaram a ser lembradas ou mesmo foijadas em diferentes
momentos, sendo ainda recorrentes nos dias atuais. Essas
referências permaneceram como atributos poderosos de
classificação dos que não se enquadravam na paisagem social
aspirada pela Colonizadora e nos projetos dominantes que lhe
sucederam. As minorias foram sempre lembradas de maneira
tópica, limitadas à constatação do seu número reduzido e da classe
social baixa a que pertenciam.
A medida que a pesquisa avançava com as narrativas
orais, a apreensão desse “outro” envolvia-se cada vez mais na
memóriaofidal emtomo da identidadeúnicae era, de certo modo,
alimentada pela historiografia regional, ambas implicitamente
acumplidadas e articuladas com os referendais mais amplos de
tipos ideais europeizados e de valorosos trabalhadores
preconizados pela Colonizadora. Entre os caminhos e
descaminhos da investigação, a idéia de um “outro” deixava de
ser uma constatação e podia então ser historicizada. O “outro”
não se trataria portanto de mais de uma categoria analítica que
operaria a compreensão do conjunto das trajetórias dos depoentes
que investigava

22
Um exemplo de assimilação da perspectiva relacionada
à idéia de um “outro” era minha própria percepção redutora dessa
diversidade. Como ainda enxergava o “outro” sob a ótica da
historiografia e sua tradição carregada de estereótipos e
estratificações, ao iniciar o trabalho com as histórias orais de vida,
príorízd depoentes que fossem nordestinos e negros, justamente
por serem os maisvisados por essa lógica. Além de reproduzir a
memória historiográfica/social produtora de “outros”, operava
com os mesmos critérios seletivos, voltando-me, tão-somente,
para o reverso do conflito.
Diferentemente do que ocorreu no período da
Colonizadora, as transformações decorrentes do processo de
mudança econômica e cultural resultante da chegada de novos
trabalhadores reivindicavam, de muitas maneiras, uma notação
classificatória desse sujeito “outro”. Nas referências a esse
processo, que constavam das narrativas dos sujeitos ou das
observações, ainda que rasas, das transformações ocorridas no
período posterior, as perspectivas sobre um “outro” arrefeciam.
Além dos trabalhadores escolhidos de inicio para serem
ouvidos, dispus-me a ouvir os trabalhadores migrantesvindos do
Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e do próprio Paraná, cujas
trajetórias de lutas eram tão significativas quanto à dos primeiros
selecionados e igualmente tendo as trajetórias pouco
contempladas pelas versões oficiais. Independentemente de cor
ou origem, dois fortes fatores identitários, a questão da classe é
que as afasta da memória oficial. No convívio com a trama das
trajetórias de trabalhadores, aos poucos foi-se alargando uma
outra percepção de sujeitos que não me havia proposto a
investigar.
Valelembrar que a discussão em tomo dessa percepção
do “outro” teve, na abordagem das alteridades por Tzevetan
Todorov, a possibilidade de um mergulho crítico nesses
referenciais. Assim, apontou o autor para o fato de que,

23
Pode-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não
se é uma substância homogênea, e radicalmente diferente de
tudo o que não se é si mesmo; eu é um outro. Mas cada um dos
outros é um eu também, sujeito como eu. Somente meu ponto
de vista, segundo o qual todos estão lá e eu estou só aqui,
pode realmente separá-los e distingui-los de mim. Posso
conceber os outros como uma abstração, como uma instância
da configuração psíquica de todo indivíduo, como o Outro,
outro ou outrem em relação a mim. Ou então como um grupo
social concreto ao qual nós não pertencemos.1
Embora as narrativas tenham se reportado de maneiras
tão diferentes aos conflitos vividos no espaço ocupado, não
apontaram para uma paisagem social hierarquizada em termos
étnicos. Pelo contrário, ao relatarem suas trajetórias, e pelo modo
comoolàziam, as narrativasreiteravamos papéis de protagonistas
e não os de sujeitos que se autodeclaravam“outros”. Nesse caso,
como enfatizou Todorov, o “outro” era abstração, no caso dessa
pesquisa construída historicamente.
Na procura de inspirações teórico-metodológjcas para
o desvendamento desse “outro”, foi especialmente instigante o
contato com o estudo etnográfico “Os estabelecidos e os
outsiderf', de Norbert Elias, de 1964 mas publicado no Brasil
somente em 2000. Ao trabalhar com o conflito entre os dois
grupos da pequena cidade inglesa de Winston Parva, esse autor
observou que:
Os dois grupos (...) não diferiam quanto a sua classe social,
nacionalidade, ascendência étnica ou racial, credo religioso ou
nível de instrução. A principal diferença entre os dois grupos
era exatamente esta: um deles era um grupo de antigos
residentes, estabelecido naquela área havia duas ou três
gerações, e o outro era composto de recém-chegados. A
expressão sociológica desse fato era uma diferença acentuada
na coesão dos dois grupos. Um era estreitamente integrado, o
outro não.4

24
A dimensão da antiguidade de um grupo em relação ao
outro, destacado por Elias, foi certamente um dos pontos
importantes analisados. Entretanto, sua maior contribuição residiu
não somente na análise da forma como esses grupos interagiam,
mas do processo dinâmico existente no interior de cadaum desses
grupos. Ao se reportar ao grupo outsider, Elias argumentou que
“os recém-chegados eram desconhecidos não apenas dos antigos
residentes, mas também entre eles; não tinham coesão, e, por
isso, não conseguiam cerrar fileiras e revidar”.5
A falta de coesão era um atributo forte do viver dos
outsiders de Winston Parva, trazendo-lhes as implicações que
teciam o conflito. O principal deles constituía-se nos diferentes
tempos de chegada na cidade:
O grupo de ‘famílias antigas’de Winston Parva (alguns membros
do qual, evidentemente, eram muitojovens) tinha um passado
comum; os recém-chegados não. Essa era uma diferença de
grande peso, tanto para a constituição interna de cada grupo
quanto para a relação entre eles. O grupo estabelecido de antigos
residentes compunha-se de famílias que haviam morado naquela
região por duas ou três gerações. Elas haviam atravessado
juntas um passado grupai - do passado para o futuro através
do presente - que lhes dera um estoque de lembranças, apegos
e aversões comuns. Sem levar em conta essa dimensão grupai
diacrônica, é impossível compreender a lógica e o sentido do
pronome pessoal ‘nós’ que elas usavam para se referir umas ás
outras.4
A falta de coesão dos migrantes destinados ao Oeste
apresentava uma similitude em relação ao grupo estudado por
Elias e, por certo, constituía-se num problema que merecia ser
historidzado. No caso, a itinerância dos migrantes era um atributo
que, embora de difícil tratamento, dava contornos próprios ao
não agrupamento de migrantes vindos para a região. Tal
diferenciaçãofàzia distanciar-medessa abordagem naformacomo
ela se apresentava, ou seja, preocupada exclusivamente com as

25
tensões entre os grupos envolvidos.
Como vimos atentando, um “outro” sujeito foi um
problema alimentado ou evidenciado nos estudos da região. A
questão, de uma maneiraou de outra, foi tambémproblematizada
pela pesquisa de Marcos Nestor Stein, especificamente em
atenção à cidade de Marechal Cândido Rondon, cujo destaque
foi a existência de um sentido ideologjzado da afirmação de um
“outro”:
A leitura desses discursos, legitimados pela historiografia,
apresenta a imagem de uma cidade que, devido ao seu caráter
étnico e homogêneo, era um local sem conflitos, um local de
solidariedade entre os habitantes, quando há uma percepção
da não permanência dessas relações buscam-se as causas desta
mudança em pessoas vindas de ‘outros lugares’.7
É preciso sublinhar que a cidade de Marechal Cândido
Rondon, desde o final dos anos 1960, foi alvo de severas
acusações de se constituir num porto de paragem de possíveis
nazistas, dentre elesJoseph Mengele, que desde o fimda Segunda
Guerra teriam migrado para a cidade em face da concentração
de ascendentes alemães chegados desde os anos 19S0. Aludiu-
se também ao fato de a ddade abrigar organizações neonazistas
articuladas na contemporaneidade. Embora pouco prováveis,
essas alusõesimpregnaramos espaços sodais com imagensmuito
poderosas acerca de um possível VIReich no Oeste paranaense.
Independentemente da veracidade ou não dos argumentos,
sobrevivem como imagens míticas deümitadoras de um “outro”.
A pechatem raízes profundas. Como investigouo próprio
Stein, que dedicou um capítulo inteiro de seu estudo sobre essa
questão, a polêmicateria sido lançadanuma reportagem doJomal
da Tarde, de maio de 1968, que teria denunciado a existência de
nazistas em Marechal Cândido Rondon. Na ocasião, destacou
Stein, “esse episódio não ‘correu’ somente à ‘boca pequena’,
mas foi motivo de celeuma no Brasil e em boa parte do mundo,

26
por vários órgãos de imprensa (...)”.*
A veiculação de imagens de uma eminente instalação do
IV Reich em Marechal Cândido Rondon teve repercussão
nacional, batendo às portas da Câmara dos Deputados Federais,
em 12 de junho de 1968, por meio do pronunciamento de
contestação às acusações, pelo então deputado federal
paranaense Lírio Bertolli, da ARENA A mercê de especulações
de toda ordem, esses temas passaram a fazer parte dos
imaginários da ddade.
Independentemente dejuízos de valor, apregoados na
rememoração, essas imagens corroborarampara uma persistente
rejeição de possíveis “outros” imprevistos entre os tipos ideais
preconizados. Mesmo porque, como concluiu, Marcos Stein,
“todavia, nos anos finais da década de 1970 e a partir da segunda
metade da década de 1980 os mesmos ‘indícios’ de nazismo’
foram reapropriados, revisitados com o objetivo de construir a
identidade rondonense, baseada na germanidade”.9

Historiografia da colonização: usos e lugares da memória


Atemática da colonização, semdúvida, condensa a massa
das preocupações dos historiadores e dentistas sodais estudiosos
da região Oeste do Paraná, em todos os tempos. Embora exista
um lastro orgânico nessas pesquisas voltadas aos processos de
ocupação da região, esses trabalhos denotaram abordagens e
problemas muitovariados, como veremos a seguir. Antes, porém,
é preciso lembrar que a ocupação da região Oeste paranaense
como fronteira brasileira é datada do início do século XX,
realizada primeiramente por meio de empresas estrangeiras que
utilizavam vários portos de navegação construídos às margens
do rio Paraná. Até esse período, o território geográfico que
abarcava a região era do domínio espanhol, iniciado nos idos do
século XVII.

27
Por intermédio da Província do Guairá e da atuação dos
jesuítas, a Coroa espanhola ampliou seu domínio, chegando a
construir no espaço mais de uma dezena de reduçõesjesuíticas.
Como ressaltou JoãoAugusto Colodel, a ocupação foi constituída
sob muitos conflitos, principalmente quando entraram em cena
os bandeirantes paulistas na busca de nativos, quando então
passaram a atacar de modo sistemático as reduçõesjesuíticas do
Guairá.10
O Governo do Estado tinha a prerrogativa de conceder
terras, cuja produção era exportada para o Paraguai, Argentina
e Uruguai. As terras localizadas à maigem esquerda do rio Paraná
foram ocupadas por companhias estrangeiras que exploravam
erva-mate e madeira nativas da região.11
Asformasdeocupaçãoapresertadaspelahistoriografiasobre
o período predecessorao dacolonizaçãopriorizaramas abordagens
sistêmicasdo processoprodutivoextrativista, entãopredominante.A
obrage, como era chamado esse sistema, manteve-sefuncionando
social e economicamente com a utilização da mão-de-obra de
trabalhadoresparaguaios, osmensus. ComoobservouVfeldirGregoiy,
Os paraguaios presentes na região faziam parte do contingente
populacional que servia de mão-de-obra na Fazenda Britânia,
antiga proprietária e exploradora de terras. Posteriormente, as
terras pertencentes à Fazenda seriam vendidas à Industrial
Madeireira Rio Paraná S/A. (MARIPÁ), que exploraria a região
nos anos 50 e 60, sob a forma de colonização planejada e
executada por empresa privada.11
É importante observar que a primeira metade do século
passado (1902-1946) foi apresentada pela historiografia como
uma das fases de ocupação da região, entre outras que viriam
posteriormente, marcada sobretudo pelo extrativismo de domínio
estrangeiro das terras brasileiras do Oeste. Esse processo teria
se iniciado com a instalação da Companhia de Madeiras Del
Alto Paraná. Como notou Neiva Maccari, tratava-se de uma

28
empresa inglesa com sede em BuenosAires, que adquiriu a área
de terras denominada Fazenda Britânia, com aproximadamente
275 mil hectares, que hoje abrangem os municípios de Marechal
Cândido Rondon, Quatro Pontes, Entre Rios do Oeste, Toledo,
Nova Santa Rosa e parte do município de Palotina.13
Esses estudos enfatizaram, entre outras questões, o
processo de exploração, os proprietários das empresas
estrangeiras, os portos, a exportação de mercadorias e a violência
sofrida pelos mensus, trabalhadores apresentados, sobretudo,
na condição de vítimas da lógica predominante.
As desintegrações da estrutura produtiva da obrage e
de sua organização social foram também alvos da historiografia
regional. Conquanto, foramestrotamente relacionadasà passagem
da Coluna Prestes pela região, nos idos da década de 1920.
Lembrou Venilda Saatkamp, nesse sentido que:
A presença em 1925, por mais de seis meses, dos revoltosos da
coluna Marechal Isidoro Dias Lopes originária de São Paulo, a
passagem da coluna Prestes vinda do Rio Grande do Sul e
ainda a lei dos 2/3 criada no Governo Getúlio Vargas,
contribuíram para o enfraquecimento e destruição do império
socioeconômico instaurado no oeste paranaense.14
A passagem da Coluna Prestes na região Oeste foi
abordadatopicamente pela historiografia, considerada impactante
emrelação aos seus resultadospráticos. Ressaltou, primeiramente,
José Augusto Colodel, a importância da nomeação de Cândido
Rondon por Arthur Bemardes como o comandante das forças
legalistas que deveriamconter os revolucionários que operavamna
região.15Outro feto é a atribuição do nome de General Rondon ao
então distrito de Toledo antes de 1960. Mais tarde este seria o
nome dado à cidade, com a patente militardevidamente atualizada.
É possível inferirque tal homenagema Marechal CândidoRondon
e a passagem da ColunaPrestes na região, de uma maneira ou de
outra, têm uma relação muito próxima com esse momento.16

29
A questão da passagemda ColunaPrestes nessa fronteira
no período anterior ao da colonização também foi mencionada
por Neiva Maccari, que assim enfatizou:
é importante ressaltar que a passagem das tropas
revolucionárias contribuiu para a decadência das obragens,
pois tendo em vista as denúncias feitas após a passagem da
Coluna Prestes, com relação ao total descaso dos problemas da
região e a presença de capital e mão-de-obra estrangeira, o
govemo federal - através da chamada ‘Lei dos 2/3’ ou lei de
nacionalização de fronteiras exigiu que as companhias
instaladas em regiões fronteiriças empregassem no mínimo dois
terços do quadro de seus funcionários de nacionalidade
brasileira17
Na atualidade, o tema da passagem da Coluna ganhou
notoriedade na região, hajavista a construção, na ddade de Santa
Helena, do memorial em homenagem às tropas de Luís Carlos
Prestes. Evidentemente, interessa ao munidpio a difusão desse
acontecimento como incremento ao turismo.
Em relação à “Lei dos 2/3” citada na análise de
Maccari, foi freqüentemente referenciada também em outros
trabalhos desse conjunto historiográfíco. Notou Liliane da
Costa Freitag, que estudou pormenorizadamente a questão,
que:
A chamada Lei dos 2/3, aprovada pelo Decreto 19.482, em 1931,
é um exemplo de uma série de medidas tomadas, dentre as quais
o controle na entrada de estrangeiros. O referido decreto, entre
várias outras cláusulas proibitivas, obrigava as empresas a
comporem seu quadro de pessoal com uma maioria significativa
debrasileiros.1'
Talvezsejaoportuno atentar para os sentidosmaisamplos
tanto da discussão sobre a nacionalização da fronteira na região
quanto da crise do sistema extrativista das obragens, porque se
revelamelementos substandais para a compreensão das imagens
da colonização produzidas posteriormente.

30
O primeiro desses sentidospode sertraduzido no esforço
de sobrevalorizar à dramaticidade do cenário anterior ao da
colonização. Nesse caso, a passagem da Coluna Prestes foi
relatada como parte responsável pela civilização dessa ordenação
social e produtiva caóticas. Como defendeu Miriam Zaar, a
Coluna:
Ocupou o local e combateu as obragens, pois elas
representavam alguns dos vários aspectos pelos quais os
revolucionários lutavam: de umlado, a miséria dos trabalhadores
e de outro, as oligarquias enriquecidas às custas das riquezas
nacionais.19
Um outro sentido, mais aparente, diz respeito ao
nacionalismo defendido pelas ações governamentais nos âmbitos
federal e estadual, no pós 1930:
Característico da politica ideológica do Estado Novo, em que a
Marcha para Oeste propunha que as fronteiras econômicas
coincidissem com as fronteiras políticas. Para Vargas, o
verdadeiro sentimento da brasilidade implicava em contemplar
a ocupação do território através da colonização.20
Nessa mesma direção, a historiografia explorou o tema
da nacionalização da fronteira brasileira defendida no e pelo
Estado Novo, assim como sua articulação orquestrada pelos
govemos paranaenses de Moisés Lupion e Bento Munhoz da
Rocha, engajados a essa mesma diretriz política. As ações
governamentais desses dois políticos foram importantes na
definição do projeto de colonização e em seu encaminhamento
práticojunto à MARIPÁ.
Há que se destacar, nessas perspectivas, a valorização
do Estado e dos govemos como os sujeitos históricos
protagonistas da ocupação da região, além, é claro, da própria
Colonizadora. De outro modo também, sobrevalorizam a
importância da ocupação desse espaço, antes em mãos
estrangeiras e, como tal, incivilizadas. Além da questão da

31
nacionalização da fronteira e dos projetos estatais coordenados
organicamente aos da Colonizadora, e vice-versa, foram alvo de
estudo as políticas estatais de combate às chamadas “fronteiras
perigosas”, que representavam os espaços de fronteira
desabitados.
Nesse contexto é exemplar o estudo de caso feito por
Liliane Freitag, que abrange basicamente o período que vai de
1937 a 1954.0 seu estudo recortou o município de Palotina,
que embora pertença ao Oeste, teve sua colonização realizada
por outra Colonizadora, aCompanhiaPinho e Terras Ltda. Como
sintetizou a autora em sua atenção ao processo de ocupação
daquelas “fronteiras perigosas”, no período:
Se deu através da articulação de uma prática típica da nossa
tradição histórica, ou seja, na centralização pelo Estado dos
assuntos territoriais. O seu projeto nacional de expansão interna
restabeleceu a idéia de um território que, pela sua população,
fronteiras e recursos naturais se constituiu em suporte
fundamental para o desenvolvimento e o fortalecimento do
Estado Nacional.21
Tais abordagens estavam claramente preocupadas em
justificar a colonização, tanto quanto muitas outras práticas. Em
linhas gerais, nos estudos da colonização, do final dos anos 1940
até a década de 1960, os paraguaios que viviam na fronteira
pareceram ceder lugar aos novos colonizadores à medida que as
novas colônias foram soido instaladas. Observou Gregory, nesse
sentido, que, “na medida em que a colônia recebia os ‘de origem’
[italo-germânica], que se dedicavamàs lides agrícolas e de criação,
os ‘outros’ iam sendo dispensados”.22 De muitos modos, a
colonização passava a ser defendida como superação dos
problemas fronteiriços,justificando inclusive a dispensa coletiva
dos sujeitos que aquijá habitavam.
Essas dimensões da história da ocupação no período
anterior à década de 1970, acima de tudo, sublinham o campo

32
da tensão e da complexidade que envolveu esses processos, ainda
pouco estudados sob o ponto de vista da diversidade de sujeitos,
de suas práticas e dos significados que lhe são constituintes.
As versões dominantes então apresentadas relacionam-
se mais com as questões da formação da população desse espaço
e com as diversas camadas de memória que mais tarde se
somaram em tomo. Penso existirem grandes fendas nesse
processo, que persistiram nos embates do presente,
principalmente em relação às lutas pela constituição de uma
memória oficial em detrimento de outras memórias esparsas,
fragmentadas mas de ricas experiências, que parecem sussurrar
aos ouvidos do presente.
Em linhasgerais, observa-se que os trabalhos acadêmicos
sobre colonização a partir do final dos anos 1940 e das diversas
histórias publicitárias dos municípios se constituem num esforço
de afirmação da região Oeste no contexto nacional e
paranaense.23Nesse sentido, importa enfatizar que a colonização
mantém-se como um tema de extraordinário interesse entre os
pesquisadores.
Nesse campo de estudos, muitos estudiosos privilegiaram
/

a atuação da MARIPA no planejamento e execução da


colonização, acentuando sobremaneira a sua força hegemônica
na ocupação e nos traços atuais dessa sociedade. Há que se
mencionar também, a produção expressiva de monografias
motivadas por esses debates. Em outras palavras, a vasta
produção acadêmica daí resultante aponta para as fortes
preocupações do tempo presente com seu passado e suas
heranças.
Além do interesse pelo estudo da colonização,
movimentado pela produção historiográfica local e regional, é
preciso lembrartambém o forte apelo social na produção e difusão
de sua história. Nesse caso, são de difícil quantificação as
iniciativas institucionais de “guarda” da sua memória.

33
Embora se trate de uma iniciativa bastante recente, no
Oeste paranaense foramcriadasvárias instituições de preservação
da memória, caso do Centro de Estudos e Pesquisas daAmérica
Latina (CEPEDAL) e do Núcleo de Documentação e Pesquisa
(NDP), ambos constituídos como centros de documentação
universitários vinculados à UNIOESTE, do Museu Willy Barth
de Toledo, do Museu Histórico de Porto Mendes e do acervo
histórico da PrefeituraMunicipal de Marechal Cândido Rondon.
Acrescente-se ainda uma série de outras iniciativas e práticas de
apelo à história da região, dentre elas: desfiles cívicos e festas
dramatizando a colonização, publicação defolders e revistas em
datas comemorativas, alémda produção do filmeA Saga, lançado
em 1999, em relação ao qual houve de significativa expectativa
no circuito regional e grande ritualização em sua exibição.
Acerca das questões suscitadas pelas tensões entre a
história e os usos da memória, observou Pierre Nora, que “os
lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há
memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso
manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios
fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são
naturais”.24
A profusão dessas iniciativas e de outras práticasvariadas
de preservação da memória no circuito regional mostrou-se
particularmente instigantes. Conforme ressaltou Nora:
É por isso a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada
sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada
mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os
lugares de memória. Sem vigilância comemorativa, a história
depressa os varreria. São bastiões sobre os quais se escora.
Mas se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se
teria, tampouco, a necessidade de construí-los.15
Importa notar que as contribuições de Nora amparam-
se na noção de que “há locais de memória porque não há mais

34
meios de memória”. Com outras palavras também observou que
“fala-se tanto da memória porque ela não existe mais”.26Os
lugares de memória compreendidos pelo autor baseiam-se numa
noção de memória perdida, enclausurada e recuada por uma
possível “aceleração da história.”
No estudo do caso brasileiro, demarcou UlpianoBezerra
de Meneses que os movimentos de proliferação de lugares de
memória tratam-se também de uma questão atual, pois:
Multiplicam-se as casas de memória, centros, arquivos,
bibliotecas, museus, coleções, publicações especializadas (até
mesmo periódicos). Os movimentos de preservação do
patrimônio cultural e de outras memórias especificasjá contam
como força política e têm reconhecimento público. Se o
antiquariato, a moda retrô, os revivais mergulham na sociedade
de consumo, a memória também tem fornecido munição para
confrontos e reivindicações de toda espécie.27
No estudo em questão, vejo cintilar entre as fimbrias do
processo social da ocupação regional outras fàces dessa dinâmica
da preservação, quais sejam as dos conflitos entre memórias.
Taisprocessos demarcammuito mais do queum possível processo
de extinção da memória. Até mesmo, talvez, o seu contrário, no
caso a extensão, a profusão e a riqueza das memórias produzidas
nos horizontes da diversidade da paisagem social negados pela
memória única fundada emtomo da colonização.
Por umlado, nessatensão háum movimento de iniciativas
redutoras e modelares, quebuscam construir, adensar e preservar
os sentidos da dominação, asam como seus lugares privilegiados.
Por outro, uma rede de outras memórias cerzidas na luta pela
sobrevivência e relembradas pelo trabalho de intervenção da
história social.
Uma outra abordagem característica da produção
historiográfica sobre a colonização, nas décadas de 1950 e 1960,
baseia-se na idéia de “espaço colonial”. Este, por sua vez, seria

35
autoconstituído no interior do projeto nacional daquela fronteira
agrícola, ancorando-se, sobretudo, no possível predomínio do
minifúndio de unidade familiar. Tal perspectiva, recorrente em
alguns trabalhos, abordauma realidade dada, ou então sua defesa
como um modelo.
Geralmente, esses trabalhos pontuaram o “espaço
colonial” como um núcleo fundamental, “entendido por aquele
espaço projetado e estabelecido a partir da estruturação da
pequena propriedade da terra na qual os imigrantes, trazidos e
saídos da Europa, e sais descendentes se instalaram, viveram e
migraram”.21Ou da pequena propriedade agrícola colonial, vista
enquanto exemplo de heroísmo de seus desbravadores, em que:
WiUyBarth recebia os novos colonos, mostrava-lhes as terras,
acompanhava-os durante o dia eà noite, cantava com eles para
expulsar o cansaço, a tristeza e a saudade. Foi administrador
muito seguro e como colonizador deu um exemplo de
colonização e modelo de Reforma Agrária29
É consensual nos estudos sobre ocupação da região a
importância dada à MARIPA, empresa privada, proveniente do
Rio Grande do Sul, à qual foi atribuída a responsabilidade da
organização, planejamento e execução do projeto de colonização
do Oeste do Paraná. Tal atribuição muitas vezes é abordada sob
a forma do grande consenso firmado entre os atores envolvidos,
a começar pelo conjunto mais amplo de políticasde nacionalização
das fronteiras brasileiras, via o Estado Novo, na Marcha para
Oeste. Vale lembrar, também, a ênfase dada à intervenção do
governo estadual na definição dos princípios e do controle dessa
colonização no estado, bem como da relação mais ampla entre
os diversos atores do processo. De acordo com Gregory:
Trata-se da colonização empreendida pelas iniciativas
de govemos e de empresas colonizadores, organizada
na perspectiva de implantar a pequena propriedade,

36
buscando estabelecer colônias habitadas por colonos
euro-brasileiros, cuja organização produtiva se
baseava na produção familiar. Projetar o espaço
colonial, dedicar-se ao negócio da venda de terras
foi possível porque tais atividades se tornaram
lucrativas e se adequavam aos sonhos dos homens
coloniais.10
Em sua própria síntese, sugere haver uma conciliação
entre os mais diversos interesses e sujeitos na colonização. Ainda
em sua análise:
Diversos dados e diversas fontes mostram que a
delimitação étnico-cultural foi realizada de uma forma
competente e que marcou a região. Os próprios
migrantes manifestaram tais desejos, sendo que os
novos habitantes introjetaram este espírito da
segregação. A nova terra seria exclusiva para colonos
escolhidos. Esta conotação, apesar de mudanças
ocorridas na região, continuou a se manifestar
fortemente em décadas posteriores.11
Gregory estudou a colonização segundo a perspectiva
de uma dinâmica da formação de um “espaço colonial” dado.
De acordo com a estrutura de seu trabalho, importa notar algumas
de suas apreensões principais. A primeira delas é a sua
preocupação com o contexto nacional, em particular com o sul
brasileiro, onde havia as experiências de implantação de colônias
de imigrantes durante o século XIX no Rio Grande do Sul e
Santa Catarina. Esse se constituiria no modelo ideal dos projetos
de colonização para o Oeste paranaense almejado pelo estado,
já disponível enquanto experiência privada da MARIPÁpor meio
de seus acionistas do Rio Grande do Sul e almejada pelos colonos.
Uma segunda apreensão diz respeito à formação do Oeste
no contexto da ocupação paranaense durante o século XX,
segundo a qual os governos daquele estado manifestaram-se
afinado?: ?:0 ovcoósitodo N o v o n f c Ir-kí !<r’y y
nas políticas de ocupação do território, em particular na definição
do perfil da sua população. Desse modo:
Os problemas, de acordo com a versão oficial, eram
maiores nas áreas de colonização particular e de
presença de nordestinos. É a demonstração de que o
poder público deveria influir na seleção dos colonos
a serem atraídos, deveria se fazer mais presente nos
projetos de colonização e nas orientações à população
através de ações concretas.11
A terceira apreensão refere-se ao “espaço colonial”
planejado pela MARIPÁ, suas ações e a dinâmica mais ampla
das relações dos colonos com a empresa. Segundo Gregory,
“não se trata de ocupação espontânea. Mesmo existindo a pressão
demográfica, o deslocamento dos migrantes ocorre sob controle
institucional. Os próprios migrantes desejavam tal
acompanhamento orientador e buscavam um espaço planejado.
Estas afirmações estão respaldadas pela forma como o urbano e
o rural se apresentam hoje”.33
A quarta e última apreensão diz respeito à crise da
experiência do espaço colonial com a modernização da agricultura
que impôs novos padrões aos colonos. Em sua própria síntese:
O novo papel atribuído às atividades agrícolas forçou
modificações da região colonial do Oeste do Paraná e
das regiões coloniais do Sul do Brasil. Estas
modificações afetavam o modo-de-ser dos colonos
que se movimentavam entre a resistência ao novo e a
sua acomodação. A resistência poderia ser a migração
como também a rejeiçãode propostas modernas. Neste
contexto, a fronteira agrícola também foi afetada,
sofrendo mudanças.14
O trabalho de Gregory, exposto aqui muito sucintamente,
expressou sua preocupação com a constituição do “espaço
colonial”. O expressivo conjunto de fontes consultadas sobre
colonização fê-lo inserir-se nos meandros do planejamento

38
colonial da MARIPÁ e dos projetos mais amplos dos govemos
federal e estadual. Mesmo tendo-se colocado aberto às tensões
e às diversidades, estas ficam esparsas em meio ao caráter
ampliado e conciliatório do planejamento colonial.
Gregoiy privilegiou as fontes documentais produzidas
pela Colonizadora, o que parece tê-lo deixado cativo, em muitos
momentos, das intenções planejadores da empresa. Num tom
mais conclusivo, ele mesmo argumentou a respeito:
A colônia da MARIPÁ foi implantada com colonos
selecionados a partir de um discurso e de uma prática
calcados em conceitos e pré-conceitos de origem, de
colono do Sul do Brasil e de valores coloniais calcados
na etnicidade e no espírito colonial.55
Suá perspectiva situou a colonização da fronteira nos
anos 1950 e 1960, em particular as circunstâncias da crise do
seu modelo. Ou seja, de “articular o velho e o novo que se
manifestou no cotidiano e na memória da colônia numa situação
de fronteira, ou seja, no momento da instalação, do desbravamento
dos colonos, quando se dá a construção do espaço e a
constituição e significado dos sois componentes”.36
Ao mesmo tempo Gregory se colocou criticamente à
fronteira de avanço capitalista e atento “a construção do espaço
e a constituição e significado dos seus componentes”. Tais
preocupações com os significados da experiência, todavia, pouco
se articularam na análise e foram diluídas no conjunto das
preocupações mais amplas da dinâmica do “espaço colonial”.
Desse modo, sobrepõe-seuma perspectiva que ressalta o
envolvimentode outros atores, dentreos quais o Estado, nasesferas
nacional e estadual, e a ColonizadoraMARIPÁ, com seus agentes
representados. Nessecaso, os sujeitos- colonos- foramabsorvidos
na análisecomo um entre os elementos do quadro compósito mais
amploda“dinâmicacolonial” Destafeita, parece haverumadiluição
da participação dos sujeitos sociais em detrimento da força maior

39
representadapeloEstadoou pelaColonizadora Emsuaperspectiva,
mostrou-osmuitomaisintervendonistasnavidadacolonial.
Outro trabalho sobre o tema da colonização é o de Neiva
SaleteMaccari, que discutiu a questão no período entre as décadas
de 1940 e 19S0, espedalmente a colonização de Marechal
Cândido Rondon. Seu recurso metodológico foi o da fonte oral,
que segundo observou:
Permite o acesso a versões produzidas por pessoas
que participam efetivamente no processo de
colonização, vivenciando assim experiências
marcantes que, ao serem narradas, transformam-se cm
informações importantes sobrè a população deste
período, tanto no que tange ao seu cotidiano quanto
à sua cultura.’7
Embora o estudo estivesse voltado para compreender a
colonização de Marechal Cândido Rondon, por meio das
narrativas dos colonos, principalmente sobre as motivações da
migração, suas adversidades e os espaços de sodabilidade, a
Colonizadora MARIPÁ pareceu ter ocupado a centralidade de
suas preocupações. A colonizadora e o seu líder Willy Barth
assumiram papéis centrais para Maccari, prindpalmente no que
diz respeito à relação dos depoentes com estes atores instituídos.
Ou seja,
Não é possível falar da colonização de Marechal
Cândido Rondon sem mencionar a empresa
colonizadora, o mesmo pode ser dito quando
abordamos a empresa colonizadora, ou seja, não é
possível deixar de mencionar a pessoa de Willy
Barth. Logo, a história desta empresa colonizadora
está intimamente ligada à pessoa que
desempenhou, segundo o relato dos migrantes, o
papel de líder.M
A mesma referência foi trabalhada posteriormente em
relação ao problema da “seletividade do elemento humano”

40
alemão ou italiano, defendido e apregoado pela Colonizadora.
Segundo Maccari,
Percebemos nos discursos do poder público, que havia
uma valorização do elemento humano, e, deste modo,
o tipo ideal e sua utilidade social era dada neste
processo de colonização pela sua capacidade de
produção. Ora, fica evidente então a presença dos
interesses econômicos dos diretores da empresa que
aproveitaram-se das dificuldades de acesso à terra
dos agricultores gaúchos e catarinenses para
conseguir vantagens com os núcleos coloniais,
coadunados com o poder público que oferecia uma
série de proteções e facilidades para a sua
implementação.”
Os pontos acima lembrados, de fato, estiveram
articulados ao projeto mais amplo da politica de colonização da
região. Porém, parece permanecer silenciosa a forma como essas
práticas foram sentidas pelos colonos. Pois, paraMaccari, todavia,
“a compreensão destes mecanismos restringe-se apenas a uma
pequenaparceladestes migrantes, sendo que a maioriaos concebe
como solidariedade entre os migrantes ou reciprocidade entre
migrantes e os poderes público e privado”.40
A questão principal baseia-se, entre outras coisas, nas
relações entre a herançado planejamento e a experiência histórica
dos sujeitos na assimilação ou não desses elementos institucionais.
Como as questões apontadas por Maccari partiram de um
epicentro, nesse caso definido em tomo da Colonizadora, suas
reflexões parecem responder aos elementos inquiridos. Embora
sua pesquisaestivessepreocupada com as narrativas dos colonos,
suas mediações temáticas centradas na Colonizadora pareceram
interferir nos resultados de seu estudo.
Aindahá, porém, outras abordagens sobre a colonização.
Sobre a importância da Colonizadora na ocupação da região, é

41
preciso lembrar do estudo de Claércio Ivan Schneider, quando
atentou para o que chamou de produção de consensos na
fronteira. Sua preocupação foi a de “analisar os aspectos que
envolveram a configuração de uma determinada identidade às
pessoas e ao espaço regional pelos emissores mais reconhecidos
pela história social deste espaço: os dirigentes da MARIPÁ”.41
Segundo esse autor, tal perspectivajustificou-se:
No fato de a retórica construída pela MARIPÁ, em
tomo de seu empreendimento colonizador, permanecer
fortemente disseminada nas cidades onde exerceu sua
influência; essa influência é perceptível, também, em
grande parcela dos estudos sobre tal espaço territorial,
o que toma a empresa objeto de uma crença arraigada.
Alguns de seus dirigentes receberam, em seu
momento, uma expressiva veneração por parte da
população, conquistando prestigio político e poder
de representação. Além do mais, os textos divulgados
por esta empresa legaram ao espaço regional Oeste
paranaense determinadas caracterizações e imagens
que a tornaram a grande protagonista de um
‘programa racional de colonização, que deveria ser
cultuado, posto que singular, uma vez que servia de
exemplo ao pais como um todo.42
De modo interessante, Schneider esteve atento ao amplo
carpas documental produzido pelaMARIPÁ no pós-1950, sobre
a colonização do espaço regional. Como observou o autor:
O que surpreende na maioria desses trabalhos, apesar
da pluralidade de seus emissores, é o seu consenso
interpretativo para com a atuação da companhia. Uma
significativa parcela destes estudos esforçou-se
apenas em destacar as particularidades deste
programa, uma vez que estas conferiam identificações
especificas ao ‘Oeste do Paraná’. Em outras palavras,
grande parte destas publicações reforça as imagens
produzidas pela empresa colonizadora, a aceitando-a
de forma acrítica e, assim, contribuindo para a

42
preservação de determinadas caracterizações sobre a
constituição sócio-política deste espaço.43
Sua atenção ao problema da “produção de consensos”
é incontestavelmenteuma crítica de grande pertinência no interior
desse quadro irrterpretativo. Sua opção metodológica se firmou
na compreensão do que nomeou de “unidade interpretativa sobre
a constituição política, econômica e cultural deste espaço”.44
Contudo, suas considerações finais pareceram compartilhar com
outras análises aquijá arroladas, principalmente ao postularuma:
Simbiose de interesses entre colonos migrantes e
agentes colonizadores. Estes últimos, ao se
apropriarem de idéias-força do grupo para
caracterizarem seu programa de colonização (ou, de
outra forma, do habitus da comunidade envolvida
neste processo colonizatório), adquiriram prestigio e
reconhecimento político. Este é, portanto, um fator
crucial para entender a questão da validação das
narrativas edificadas em tomo de tal empreendimento.43
De modo geral, os estudos da colonização se afirmam
numa perspectiva de considerável nostalgia, chegando às vezes a
umufanismo regional. As análises, muitas vezes, se entrelaçaram
aos problemas do presentee se comprometemcom as perspectivas
de futuro. Nesse sentido, é preciso enfatizar que, quanto mais
ameaçado o futuro, a partir dos olhos de quem o projeta, mais
mítico e romântico toma-se esse passado.46
Amhüicaçãodo passado naprodução historiográficasobre
a região foiinstada de diversosmodos. Ora entrecortando interesses
políticos sobreo futuro, ora atribuindo sentidos fluidos aos conflitos
vividos no presente. Sobre essa questão, no seu estudo clássico,
distinguiu Raoul Girardet que:
Alguns desses “tempos de antes” (...) foram efetivamente
vividos antes de ter sido sonhados; sua imagem não fez mais
do que sofrer o habitual trabalho da inflexão, de seleção ou de

43
transmutação que é o da lembrança. Outros, certamente os mais
numerosos, escapam a memória individual porjá pertencerem
senão à da história, ou do que passa por ser a memória da
história”.47
No caso desse segundo problema apontado por Girardet,
“o passado ao qual se referem nunca foi diretamente conhecido;
seu poder evocador é o do modelo, de um arquétipo, modelo e
arquétipo a que a emergênciafora do tempo decorrido parece por
definição dar um valor suplementar de exemplaridade.. ”.48
Na trilha das discussões teóricas de Girardet, a imagem
mítica do passado é também lembrada sob a forma e a
representação da “idade do ouro”:
Posto à imagem de um presente sentido e descrito como um
momento de tristeza e de decadência, ergue-se o absoluto de
um passado de plenitude e de luz. Resultado quase que
inevitável: do sonho, a representação do ‘tempo de antes’
tomou-se mito. E mito no sentido mais completo do termo: ao
mesmo tempo ficção, sistema de explicação e mensagem
mobilizadora.49
De acordo com Girardet ainda, “a visão da Idade de
Ouro confunde-se irredutivelmente com a de um tempo não-
datado, não-mensurável, não-contabilizável, do qual se sabe
apenas que se situa no começo da aventura humana e que foi da
inocência e da felicidade”.50Sobre o passado mitificado sob essas
estruturas de sentidos, é preciso ainda atentar que:
É difícil, sem dúvida, para não dizer impossível, atribuir ao
fenômeno uma consonância política relativamente precisa. Que
tantos remanescentes nostálgicos possam exprimir-se, e com
tal insistência, em um contexto social e ideológico onde os
valores de mutação, de novidade e de modernidade tendem
simultaneamente a impor-se comuma força possivelmentejamais
alcançada, há nisso, todavia um paradoxo essencial sobre cuja
significação não seria vão interrogar-nos.51
Essa tensão no campo da memória socia!, articuladora

44
de lembranças selecionadas ou pouco palpáveis, expressa no
sentido da “idade do ouro”, atua para o deslocamento das
questões em aberto dessa sociedade e mobilizam verdadeiros
projetos de ressignificação do passado. Em tomo dessa questão,
situaria em importância, entre outras, as recordações ao tempo
de “antes” sendo utilizadas como matriz de grande fôlego nas
interpretações do passado colonizador.
Um exemplo importante dessa perspectiva diz respeito
ao uso da crise do modelo de minifúndio familiar da colonização
herdada do sul brasileiro do século XIX, então reproduzida e
adaptada à análise do caso do Oeste paranaense. Diante de tais
apelos à utilização do passado feliz, fez-se importante uma atenção
aGirardet:
Do mesmo modo que o mito religioso, o mito político aparece
como fundamentalmente polimorfo: é preciso entender com isso
que uma mesma série de imagens oníricas pode encontrar-se
veiculada por mitos aparentemente diversos; é preciso
igualmenteentenda*que um mesmo mito é suscetível de oferecer
múltiplas ressonâncias e não menos numerosas significações.
52

A idade do ouro também foi objeto análise de Raymond


Williams. O autor, ao apreender a análise de uma crise de
perspectivas na literatura inglesa, acerca da passagem do mundo
rural para o urbano - industrial capitalista - constatou que “a
cadavez encaminhados a uma Inglaterra rural mais antiga e mais
feliz, e não conseguirmosencontrarnenhumlugar, nenhumperíodo,
que nos satisfizesse”.53
A discussão promovida por Williams chamou atenção,
todavia, para uma outra questão de enorme contundênciapolítica:
Entre o simples olhar retrospectivo e a simples investida
progressista há lugar para muita discussão, mas não para o
esclarecimento. Precisamos começar de modo diferente: não
com idealizações de uma ou outra ordem, e sim com a história,

45
em relação à qual estas não passam de reações parciais e
enganadoras.54
Para Williams, as imagens do passado feliz, expressas
nas “idades de ouro”, precisam ser tratadas como “uma única
questão real”, num campo de significações em que o historiador
também se posiciona politicamente. Nesse caso, questionou
Williamsumavez mais:
Qual nossa posição, comquem nos identificamos, quando lemos
queixas a respeito de distúrbios, no momento em que essa
ordem, por sua vez se dissolveu? Com os servos, os bordars e
cotters, os vilões, ou com a ordem abstraída para a qual, durante
sucessivas gerações, muitas centenas de milhares de homens
nunca passaram de instrumentos? E, mesmo que
conseguíssemos fazer a escolha correta - embora seja muito
difícil para o historiador realmente se alinhar com a maioria dos
homens e conseguir ver o mundo tal como eles o vivenciaram -
, onde fica nossa identificação, à medida que a ordem vai se
modificando e dando origem a novas formulações? 55
Diante de tais análises, é de grande sensibilidade a
metáfora da escada rolante empregada por Raymond Williams.
O autor destinou integralmente o segundo capítulo de sua obra
para denotar a existência de um problema de perspectiva
recorrente na literatura inglesa, acerca de uma mudança crucial
da vida campestre em favor da vida urbana industrial e sua
indelével ascensão. Ao recuar no tempo, percebeu elementos
dessa perspectiva comuns em outros tempos retroativos:
O que é necessário investigar, nestes casos, não é a veracidade
histórica, e sim a perspectiva histórica. De fato, o fenômeno
que chamei de ‘escada rolante’ talvez venha a ser uma pista
importante para a verdadeira história dos fatos, mas somente
depois de começarmos a ver a regularidade que há nele.5*
Desta feita:
As testemunhas que citamos [exemplos da literatura inglesa]
levantam questões de perspectiva e fatos históricos, porém

46
também levantam questões de perspectiva e fatos literários. As
coisas que elas dizem não são ditas em uma mesma modalidade
de discurso. Enquanto fatos, variam dc falas dc peças teatrais c
trechos de romances a argumentações de ensaios e anotações
de diários. Quando os fetos em questão são poemas, são também
—o que talvez seja de importância crucial— poemas de tipos
diferentes. Só poderemos analisar essas diferentes estruturas
de sentimentos se fizermos tais discriminações criticas desde o
01100.”
Não obstante a recusa das formulações nebulosas e
filtradas advindas dos ventos do passado, uma historiádade dos
sentimentos que estruturam o viver social põe-se como
imprescindível. Não se trata, pois, se assim nos inspiramos em
Williams, de reproduzir indefinidamente as balizas do passado,
mas de investigá-lo em sua complexidadede formas e significados
vividos pelos sujeitos que efetivamente produzem a história.
Do local ao regional
Mesmo na literatura relativa aos índices populacionais e/
ou demográficos, ou mesmo dos números da migração mais
amplos, outros problemas de perspectiva e novas evidências
ganharam visibilidade no interior do conjunto historiográfico. A
começarpelas indicações provenientes de estudos demográficos e
populacionaisacercadosmovimentosmigratóriosinternosno estado
do Paraná desde os anos 1940. Tais informações colocaram
questões mais complexas às leituras da colonização circunscrita ao
horizonteregional.
Observou desse modo Marisa Valle Magalhães em seu
estudo demográfico “O Paraná e as migrações de 1940 a 1991
Essas iniciativas colonizadoras [que] atrairam grandes
contingentes de produtores gaúchos c catarinenses. No inicio
dos anos 50 a maior parte dos loteamentos públicos ou privados
do Oeste/Sudoeste do Estado havia sido comercializada. Em
diversas outras parcelas da região, fluxos populacionais do
Norte paranaense, liberados pela substituição do café por outras

47
lavouras ou pela pecuária, complementaram o intenso
povoamento dessa significativa faixa do território estadual.38
Em outras palavras, o texto de Marisa Magalhães
evidenciou, já no pós-1950, uma população diversa proveniente
da região Norte do estado, o que de certo modo aparece como
uma informação silenciada ou muito diluída nos estudos da
colonização do Oeste, em detrimento da valorização do projeto
preconizado pela Colonizadora acerca da chamada “seletividade
do elemento humano” alemão e/ou italiano.
A evidência mantém-se também em relação aos números
do IBGE, de 1970, utilizados por Venilda Saatkamp para
caracterizar a população de Marechal Cândido Rondon (ver
tabela 1). Os números são reveladores da confluênciadiversificada
dos migrados chegados à regiãojá muito antes desse período.S9
Uma dimensão importante sugerida pelos números e
qualificações da tabela apresentou-se na maneira como se referiu
ao período correspondente aos anos 1970, em que os índices
populacionais foram apresentados por sexo e estado de origem.
Ao acrescentar esse elemento classificatório da origem da
população, que até então não vinha sendo utilizado, de alguma
maneira apontou para uma transformação significativa na forma
de apresentação dos números daquele cenário demográfico,
comparados aos do período anterior, o da colonização, que eram
marcados, exclusivamente, pelo recenseamento das populações
urbanas e rurais e/ou de gêneros.
Há que se notar também pela tabela que os números
populacionais publicados pelo IBGE em 1970, e reproduzidos
por Saatkamp em 1985, não espelhavam os dados
demográficos da década de 1970, mas os da década anterior,
quando eram consideradas as marcas da migração de sulinos
catarinenses e gaúchos. Nesse caso, os números oficiais do
cenário da fronteirajá mostravam uma paisagem social diversa
antes mesmo do final do período de colonização.

48
A tabela indicou, também nos anos 1970, uma
novimentação intensa das populações no interior do estado
esultante de um processo complexo de êxodo rural provocado
da crise das novas fronteiras agrícolas. Como observou Marisa
Magalhães “Em termos líquidos, nada menos do que 2,7 milhões
lepessoas deixaram de residir no meio rural paranaense. Deste
aldo, cerca de metade foi absorvida pela área urbana do próprio
istado, o restante constituiu a perda populacional para além das
ronteiras estaduais”.60E a autora continua:

fabela 1- População total, por sexo e estado de origem do


Município de Marechal Cândido Rondon - P r - 1970.
Estados Homens Mulheres Total %

Pernambuco 28 25 53 0,12

Bahia 66 45 111 0,26

Minas Gerais 282 205 487 1,13

São Paulo 139 142 281 0,65

Paraná 6.576 6.220 12.796 29,60

Espírito Santo 44 46 90 0,21

Santa Catarina 4.787 4.429 9.216 21,32

Mato Grosso 22 14 36 0,08

46,51
Rio Grande do Sul 10.516 9.586 20.102

Outros 33 20 53 0,12

TOTAL 22.493 20.732 43.225 100%

'onte: IBGE - Cascavel/PR

49
O fluxo de paranaenses [também se voltou] para uma vasta
região amazônica, constituída pelos estados de Rondônia,
Roraima, Acre, Amapá, Amazonas, Pará e Mato Grosso,
configura um movimento espontâneo de deserdados das
áreas rurais do Sul em busca da ‘terra prometida’ no Norte
do Pais. Os programas de colonização intensiva
desencadeados pelo Governo Federal nessas áreas
prometiam, através de massivas campanhas publicitárias,
acesso à terra, assistência técnica e infra-estrutura social.
Milhares de famílias, a grande maioria das regiões Oeste e
Sudoeste do Paraná, puseram-se em marcha, inicialmente
orientando-se em direção a Rondônia e adjacências, e
somente nos últimos anos da década de 70 redirecionando-
se para Mato Grosso e Pará.61
Tendo emvista as modificações nas relações de trabalho
no campo, é alto o número dos que abandonaram o Oeste do
Paraná, inclusive de migrantes chegados na última década. Em
contrapartida, registra-se a chegada à região, no mesmo período,
de levas de trabalhadores oriundos de diversas outras áreas e
itinerários do pais.62
Saatkamp lembrou de um outro movimento dessa
dinâmica populacional pouco lembrado, qual seja, “a migração
de gaúchos e catarinenses se verifica não só dos que vieram
diretamente para Marechal Cândido Rondon [e para a região
Oeste como umtodo], mas também dos que entraram para outras
regiões do Estado e que depois vieram para cá”.63 Mesmo
timidamente, a autora revela um núcleo populacional migrante
para a região com características distintas daquele que compôs o
seu grupo fundador. Mais que isso, subliminarmente indiciou um
processo no qual muitos migrantestiveramtrajetórias de derrotas
e frustrações no interior do próprio estado do Paraná antes de
chegarem na sua porção Oeste. Cabe lembrar, nesse caso, que
essas referências foram publicadas em 1985, poucos anos antes
da criação do projeto de germanização em Marechal Cândido
Rondon. E possível inferir, desse modo, que essas formulações

50
acerca da população não estavam comprometidas com a memória
oficial da identidade alemãna forma que ganharia maior espaço a
partir de 1987, quando o projeto fora lançado.
É preciso tratar, no que tange à historiografia da
ocupação, dos silêncios e da diluição de muitas de suas
contradições. Em especial quando privilegiou uma análise
generalizante do fluxo migratório, principalmente quando esta
procura responder às demandas do planejamento oficial e político
sobreumespaço de fronteira. Como advertiu CéliaToledoLucena:
Grande parte dos estudiosos que abordam a questão migratória
tende a excluir, em suas análises, os significados que os próprios
migrantes atribuem às suas experiências migratórias e às suas
vivências em diferentes culturas.64
Naverdade, tendo emvista a constatação de importantes
transformações na composição da paisagem social, até então
apresentada tão-somente por meio de índices demográficos e
populacionais, estasindicavamum processo muito maiscomplexo,
do qual a região passava desde os anos 1970. Como constatou
Maria de Lourdes Kleinke, Marley Deschamps e Rosa Moura:
O movimento no interior pode ser considerado intenso. Estudo
do IPARDES (1997) que compara a migração intra-estadual entre
os nove estados com a região metropolitana oficialmente
instituída constata que no período 1986-91, no Paraná, 71% da
população com menos de 10 anos de residência no município
migrou entre regiões do interior do próprio Estado - a mais
elevada proporção entre os estados analisados.63
Diante de tais questões silenciadas pela análise
demográfica e tendo emvista o emaranhado das trajetórias sodais
evidenciadas no trabalho de campo com as entrevistas, optou-se
pelo alargamento do recorte espadai desta pesquisa, do universo
local de Marechal Cândido Rondon para o horizonte ampliado
da região Oeste, em particular de sua porção extrema com a
fronteira com o Paraguai. Essa redefinição se deu, muito mais,

51
em atenção às trajetórias plurais da paisagem social que
reivindicavamhorizontalizar-se como objeto de investigação que
propriamente como uma pura e simples escolha metodológica.
Embora os trabalhadores selecionados pela pesquisa
tivessemresidênciafixa emMarechal Cândido Rondon, constatei
que havia entre eles motivações, significações e trajetórias que
não se restringiam ao viver local. Observei que nesse espaço
construíram suas vidas e, embora vivessem situações peculiares
relacionadas a esse universo local, apontaram para a riqueza de
trajetórias e experiências que se mostrammuito alémque esperava
como respostas aos projetos dominantes, sintetizados
fundamentalmente emtomo da memória oficial da germanidade.
Apesar de os projetos expansionistas de ocupação das
novas fronteiras agrícolas terem sido marcados por crueldade,
arbitrariedade e insensibilidade, para os depoentes também
significaram sonhos e projetos, derrotas ou conquistas. E, nesse
caso, entende-se a migração como um conjunto de atitudes, que
se desenrolam como formas de resistência e geram lutas sociais
múltiplas. Sob esse ponto de vista, a fronteira revela-se como um
lugar construído. E pouco sentido fàzem as abordagens que não
levem em conta as trajetórias dos sujeitos que de feto ocuparam
esse espaço, ou que apostem estreitamente nas reatualizações
do passado, sobretudo baseadas em sua força mnemônica
legitimadoras das formas sociais dominantes.
A meio caminho da investigação foi se afirmando a
necessidade, em termos metodológicos, de restabelecer uma
conexão com o espaço maior da região Oeste, já que os
informantes não articularam seus projetos pessoais tão-somente
aos possíveis atrativos de Marechal Cândido Rondon, mas aos
projetos de vida no Oeste do Paraná. Essa sem dúvida era uma
questão nova que passou a exigir uma maior atenção.
Talvez tenha sido essa perspectiva, a do Oeste como
destino, o ponto nevrálgico da mudança de foco do local para o
regional. Como as trajetórias matizavam mais fortemente os
significados ampliados da mudança e a experiência vivida na
região, a partir da lógica dos sujeitos, passavam a não mais fazer
o mesmo sentido as questões envolvidas nos projetos dominantes
locais da forma como eram vistos. As narrativas tocavam de
maneira muito transversal nessas questões, e mesmo assim, é
preciso registrar, foi demorada a percepção da riqueza de sentidos
que a descoberta ensejava.
É de suma importância observar, contudo, que o novo
recorte espacial não teve a pretensão de abarcar a
representatividade de experiênciasda totalidade dostrabalhadores
do Oeste. Nesse sentido, é particularmente humorada a notação
de Alessandro Portelli aos historiadores quantitativos da
escravidão nos Estados Unidos, acerca do problema da
representatividade. Com suas palavras comentou:
Utilizando todas as fontes documentais disponíveis e
sofisticados métodos de análise, chegaram à conclusão de que
os escravos eram açoitados uma média de 0,7 vezes por ano.
Trata-se de uma modalidade de pesquisa indubitavelmente
legítima e necessária, ainda que possua uma grande dose de
abstração quanto à realidade, portanto em última instância, um
risco sério de falsificação: pois, apesar de tudo, é literalmente
impossível açoitar uma pessoa 0,7 vezes.6*
Colocou-se emquestão, todavia, a despeito de conotações
representativas das narrativas, discutir com algumas trajetórias de
trabalhadores que migraram para a região e que experimentaram
seu destino em Marechal Cândido Rondon. Tendo em vista, em
particular, a profundidade das relaçõeshistoricamente entretecidas
entre as evidências do universo do viver local com as experiências
migratórias cerzidas natrama da ambientação regional.

53
Migração rural-urbana e a urdidura de trajetórias
A migração do inundo rural para o urbano foi
experimentada, como para milhões de brasileiros, por um
expressivo conjunto de trabalhadores migrados para e no Oeste
do Paraná a partir dos anos 1970. Esse movimento pode ser
considerado, por cato, o propulsor de grandes transformações
nadistribuiçãoda população no estado do Paraná e naconstituição
dos pequenosmunicípios dessaregião, assimcomo noviverdesses
trabalhadores nas trilhas dessas mudanças.
A formatradicional da migração rural-urbanaconstitui-se
numproblemadefundo quearticulaquestõesbastantevariadase de
grandeimportânciaparaumacompreensãodaformaçãodapaisagem
sodal daregiãoOeste. Esse processo de amploespectro resultou na
mobilidadedemilharesdetrabalhadores, entretantonão semostrou
tão restritamentecatastróficocomo sevalemalgumasinterpretações
maisgeneralistas. Todavia, desdobrou-setambém na constituição
históricadeumlugar, nracadopehuniiduradeitinerárioscomplexos
e destinos comuns, cujapaisagemsocial conforma-senummapade
trajetóriassociaisitinerantese incondusas.
Asrrwbilidadesdaíresultantes, emsuamaioriaimpulsionadas
pelas mudanças nas relações de trabalho no campo e nas ddades,
são abordadas muitas vezes de maneiras muito sintéticas e
mecânicas. Estas especialmente influenciadas pelo poderio e os
usos das novastecnologias da produção agrícola inidadas a partir
dos anos 1960, tanto quanto pela reestruturação fundiária dai
decorrente. No entanto, para além desses elementos explicativos
estruturais, merece atenção a complexa tda de processos sodais
da migração, que marcou muito sensivelmente a composição da
paisagem sodal desses espaços da fronteira do Oeste.
Nessa direção, pois, busca-se traçar um mapa das
trajetórias itinerantes e das significações construídas por
trabalhadoresmigrados para e no Oeste paranaense. Em particular
as movidas pelas mudanças do mundo rural para o urbano a partir

54
dos anos 1970. Consoante, procura-se dialogar também com as
análisesmaisamplasdosfluxosmigratóriosquealimentamamemória
oficial sobre a sua ocupação, principalmente quando se amparam
na idéia restrita de prolongamento do espírito áz Marchapara
Oeste, iniciada nos anos 1930, com a nacionalização daquela
fronteirabrasileirapormovimentosmigratórios socialmentecoesos.
Ou ainda quando alimentam supostos conflitos étnicos entre
brasileiros e descendentes de alemães, datados principalmente a
partir do inído da década de 1980, ao se tratar da memória oficial
local de Marechal Cândido Rondon.
Antes de prosseguir, porém, toma-se relevante um
sobrevôo de rememoração das projeções ampliadas da memória
nacional, anterior à política de nacionalização das fronteiras
brasileiras aspiradas e empreendidas desde governo Getulio
Vaigas, na década de 1930, quando o Oeste do Paraná começava
a ser referenciado no cenário nacional como um lugar de
vislumbramento para intelectuais e políticos. Entre eles um de
expressão nacional- o político-historiadorconservador paranaense
José Francisco da Rocha Pombo - que no ano de 1900, em plena
comemoração do quarto centenário do Brasil, assimcontemplava:
Todo o oeste do Paraná se acha quase inteiramente despovoado.
Erram por ali ainda numerosas hordas selvagens, uma de todas
refratárias à civilização, outras procurando de tempos a tempos
as povoações mais próximas e parecendo mesmo dispostas a
relacionar-se com os conquistadores.67
Além de constatar uma suposta lacuna de civilização na
região e de seu domínio por homens errantes, lamentou ainda
Rocha Pombo:
Infelizmente parece que se retarda muito o encaminhamento
definitivo da nossa ação para aquele rumo. Seria muito patriótico
e do mais vasto alcance para os nossos destinos, renovar
esforços numa enérgica propaganda tendente a levar o trabalho
e a civilização àquelas riquíssimas paragens.6®

55
As imagens projetadas na memória nacional em tomo
da Marcha para Oeste - anos 1930 e 1940 - pareceram
atender, de certo modo, aos apelos de conquista e civilidade
propostos por Rocha Pombo no começo do século. Por
conseguinte, tais imagens pareceram sobreviver reelaboradas
numa memória oficial ufànista e romântica, que se mostra ainda a
servir na atualidade para um seleto conjunto de homens
interessados nessas “riquíssimas paragens”. Outros sujeitos,
movidospelos primeiros e, não tão menos sonhadores, moveram-
se como “errantes”, sentindo na própria pele o peso literal do
tomo.
Dos tempos da colonização planejada, iniciada nos anos
1950, até os desenhos urbanos adquiridos no período posterior
a 1970, há um chão de transformações. Para o diálogo aqui
proposto, levantei alguns dos vetores ou indicações mais amplas
que estruturam os estudos demográficos ou histórico-
populacionais sobre a região e o próprio estado. Nesse caminho
buscou-se especialmente a análise e a confrontação dessas
indicações a partir das narrativas produzidas pelas trajetórias
sociais que pulularam novas e mais ricas referências a esse
conjunto.
Antes porém, é preciso sublinhar que os movimentos
populacionais que explodiram no estado do Paraná constituem a
própria natureza, por assim dizer, da história do estado, uma vez
que sua ocupação é bastante recente na forma como a
conhecemos nos dias atuais como parte da federação. Como
muito bem destacou Marisa Valle Magalhães, “até o final do
primeiro terço do século XX a população paranaense era pouco
numerosa, embora viesse crescendo nas décadas precedentes a
um ritmo mais acelerado que a média do País”.69Desta feita,
somente a partir dos anos 1930 e 1940 o estado do Paraná
sofreria grandes transformações em termos de sua ocupação
populacional, momento esse que, como ainda frisou a

56
pesquisadora, “em apenas três décadas completa-se a ocupação
do território em um impressionante movimento de expansão e
consolidação da fronteira agrícola estadual”.70
O impressionantemovimento de ocupação do solo Oeste
paranaense, que até a década de 1950 se encontrava quase todo
recoberto por uma hermética mata virgem, estava articulado, de
muitos modos, ideológica e politicamente aos projetos nacionais
da Marchapara Oeste, empreendidos desde o Estado Novo
com Vargas. NotouAlcir Lenharo, nesse sentido, que a Marcha
tomou-se a pauta do debate intelectual e político autoritário a
partir dos anos 1930 e 1940, segundo a qual passou a mover
toda uma “nação em marcha”. Desse modo, investigou Lenharo
os sentidos ampliados desses projetos:
Trata-se de fato de um desejo fantasmagórico, intencionalmente
político, voltado para drenar a energia socialmente desejante,
absorvida pela posse sublimada da Pátria/Nação,
unilateralmente concebida como o espaço de resguardo da
influência alienígena. O inimigo da Nação-o outro-serve, na
verdade, como cortina de fumaça: lá c cá as estratégias
fascistizantes centram o seu poder de fogo no controle das
diferenças sociais e dos projetos políticos diversificados. A
fàscistização não pode ser tomada como mimética ou meramente
reflexão; o interno/externo atua comoum artificio imagético que
não alcança estatuto teórico de análise; é uma mera dimensão
descritiva do discurso nacionalista, direcionado para se obter a
cristalização da unidade nacional e conter a oposição de
classes.71
A cortinade fumaça, sintetizada na metáfora comparativa
de Lenharo, a que representava o projeto nacionalista àaMarvha
para o Oeste, espraiou-se longinquamente, tendo provocado,
por sua vez, um grandioso movimento de homens movidos por
sonhos e por uma realidade concreta de lutas por sobrevivência,
uma vez que país encontrava-se imerso em conflitos de toda
espécie, consorte à propaganda confeitada pela tutela patriarcal

57
de Vaigas. Entre outros significados, Lenharo chamou a atenção
para a força do poderio simbólico dessa empreitada, em que “a
marcha compreende um movimento orientado, cadenciado,
disciplinado. Ela exige fé, solidariedade, entusiasmo, tenacidade.
Mas acima de tudo disciplina”.72
Em 1974, Otávio Velho publicava sua tese “Capitalismo
autoritário e campesinato”, que logo se tomou um clássico da
literatura sobre a problemática do campo brasileiro. Nesse
trabalho, o autorjá prognosticava o avanço daMarchapara o
Oeste “no final dos anos 60 [em que] a ‘fronteira’já alcançava o
limite ocidental do Paraná e havia mesmo uma tendência a
atravessar a fronteira e prosseguir o avanço no vizinho
Paraguai”.73Otávio Velho via também que:
Assim, ideologicamente a Marcha para o Oeste do Estado Novo
foi da maior importância no estabelecimento de uma ponte com
o movimento bandeirante e uma reencenaçâo dele através do
cultivo de um ‘espírito bandeirante’. Agora o território tinha
que ser definitivamente ocupado. Não era mais apenas uma
questão de marcha para oeste, mas também marcha para o
oeste.74
Até a década de 1970, é preciso enfatizar, o Oeste
paranaense havia sido dividido, ocupado e transformado, graças
a uma complexarede colonizadoraoficial e por homense mulheres
vindos de diferentes rincões. Amaioria, abem daverdade, oriunda
dos estados de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul,
empedernida, de um modo ou de outro, pela esteira desses
sentimentos do espírito bandeirante. Todavia, na contramão desse
primeiro e contundente movimento de ocupação da região até os
anos 1960, um processo reverso de dispersão da população
recém-migrada começava a se mostrar. Tendo em vista,
principalmente, as políticas agrícolas autoritárias que começaram
a ser empreendidas desde o regime militar no pós-1964.
No caso do Oeste, as políticas de modernização da

58
agricultura, bem como as relações de trabalho e produção,
somavam-se às desapropriações de terras dos pequenos
agricultores para a construção da usina hidrelétrica de Itaipu no
limiar dos anos 1980, que agravou sobremaneira a situação
daqueles quetinhammigrado em passado tão recente. Afrontara
agrícola que havia sido planejada como um modelo de agricultura
miniiundiáría de produção familiar e por migrantes sulinos,
selecionados entre aqueles de origem européia, começara assim
a se esfacelar, antes mesmo de mostrar os seus primeiros
resultados. Como ainda destacou Otávio Velho, “a partir dos
anos 60, com o gradual fechamento da fronteira no Sul, esse
padrão usual tem se tomado cada vez mais difícil de ser mantido,
por vezes levando ao extravasamento de parte da população
para países vizinhos”.75
Durante os anos da ditadura, e depois desses, muitos
agricultores e outros trabalhadores não proprietários migraram
para o Paraguai e para alguns estados da região Norte do país.
“Estimulados", uma vez mais, pelas promessas ainda mais
perversas de ocupação da nova fronteira na Amazônia. Tal
mobilidade de trabalhadores articulava-se a outras políticas, não
tão menos autoritárias, que incorporavam as novas exigências
técnicase outras relações de trabalho no campo, como acentuaram
Bernardo Soij e John Wilkinson:
Através de transformações parciais de aspectos do ciclo
produtivo, o que determina que a quantidade de força de
trabalho seja desigual em diferentes periodos. Nestas
circunstâncias, o capital satisfaz suas necessidades através de
uma força de trabalho temporária e a longo prazo, através da
crescente mecanização de todas as fases de produção agrícola
e a conseqüente homogeneização de suas necessidades dc
força dc trabalho.7*
Analisando o quadro demográfico paranaense, o Instituto
Paranaense deDesenvolvimento Econômico e Social - IPARDES

59
observou que, “até 1970, a população paranaense cresceu 5,5
vezes, de 1.236 mil habitantes em 1940 passa para 6 929 mil em
1970, muito acima da média brasileira”.77Segundo o mesmo
estudo:
O Paraná até 1970 foi considerado uma área de foite atração;
situação que dura cerca de 40 anos. O auge é a década de 1950,
quando o Norte do Estado - cuja ocupação começa em 1930 -
ainda tem grandes espaços e o Oeste e Sudoeste começam a
ser ocupados por inúmeros migrantes gaúchos e catarinenses.78
Os dados confirmam, por um lado, a velocidade da
ocupação do estado e, por outro, reafirmam o ano de 1970como
o divisor de águas entre os dois períodos, no que se refere ao seu
crescimento populacional. Tratando-se dos números do circuito
regional, o IBGE divulgou, em 1979, um relatório que apresentava
o Oeste paranaense como uma das principais áreas brasileiras
de atração populacional no período de 1960a 1970.79De acordo
com os dados apresentados, houve no período uma variação
absoluta da população da região de 621.223 habitantes e um
saldo imigratório estimado de 374.082 habitantes.
No plano regional, a recente e veloz ocupação do estado
estimulou a produção de uma memória, em fàrta medidaarraigada
aos ideais de desbravamento e de pioneirismo, comojá tratamos.
Malgrado tais matizes, essa memóriatambém tem se alimentado
de uma perspectiva contempladora dos grandes movimentos
migratórios, dada sua importância numérica e suas novas marcas
demográficas, quase sempre marcadas por compreensões
genéricas e por esquecimentos. No entorno dessa dimensão
acerca da história do estado, da qual o Oeste encontra-se
articulado, deve-se atentar para a historicidade dos principais
movimentoshumanose seus significadosque marcamseüprocesso
recente. Aliás, como advertiu CéliaToledo Lucena, ficando atendo
para não deixar de lado os problemas que decorrem desse caminho
metodológico, quais sejam:

60
Todavia na produção historiográfica sobre migrantes
internacionais e nacionais, não se analisam grupos específicos,
numa abordagem que privilegie a subjetividade e as histórias
de vida dos sujeitos. O historiador, ao valorizar o estudo das
estruturas, das grandes durações, atribui às fontes quantitativas
uma grande importância. Nessa forma de fazer história, o foco
de análise não contempla a memória pessoal, as histórias de
vida e as múltiplas representações do ser migrante e a relação
entre memória individual e coletiva.*0
Ao considerar as narrativas dos migrados do universo
rural-urbano nas três últimas décadas em Marechal Cândido
Rondon, adquiriu visibilidade uma trama de motivações e
significações dos trabalhadores entrevistados que colocam
questões novas ao passado, principalmente na forma como ele
havia sido apresentado pela historiografia de alcance regional e
reconstruído pela memória oficial. Entre os anos 1970 e 1990,
as cidades do Extremo-Oeste do Paraná sofreram profundas
transformações que fazem parte da ocupação daquela fronteira
agrícola. Não como uma continuidade ou temporalidade única,
como reivindicam as balizas da memória oficial, mas como um
processo da qual faz parte a construção do espaço por sujeitos
determinados e em diferentes tempos. Diante dessas questões,
consideram-se as narrativas de trajetórias de vida dos
protagonistas da experiência concreta de migrar e viver num
espaço novo, em suas múltiplastemporalidades de chegada. Essa
tomada de foco articula-se tanto em relação aos sonhos
compartilhados, quanto aos pesadelos superados no viver real.
Em outras palavras, esses sujeitos serão compreendidos como
atores das transformações em curso, cujo tempo da chegada
não é tido como uma garantia de direitos de domínio sobre o
espaço.

61
Modernização agrícola e processos sociais
A modernização agrícola, assim como a crise do modelo
de colonização sulino dela decorrente, constituem-se num outro
problema bastante abordado pela historiografia regional. A
expansão agrícola, a partir dos anos 1970, foi devastadora para
o projeto colonial e para os sujeitos que o construíram, em especial
os pequenos agricultores. Algumas das interpretações destacaram
que os colonos foram arrancados do campo e tiveram suas vidas
profundamente modificadas e refeitas no espaço urbano.
As análises sobre a região no pós-1970 desenham-se
em uma matriz em que parece haver dois pólos: de um lado, um
conjunto de condições macroestruturais, fundadas numa
conceituada modernização do campo, e, de outro, o colono ou
novo trabalhador urbano vivendo sob as mais diferentes formas
de subordinação a essas realidades. É fundamental atuar alguns
desses trabalhos, que, de um modo ou de outro, tocaram em tais
questões.
Amo Alexandre Gerke discutiu as transformações
ocorridas no campo por meio da construção do cooperativismo
no Oeste do Paraná. Sua análise privilegiou as mudanças nas
relações de comercialização e produção no setor rural, que
desembocam na constituição de cooperativas, em especial da
Cooperativa Agrícola Mista de Rondon Ltda, COPAGRIL,
criada em 1970, em Marechal Cândido Rondon. Seu objeto de
análise é ressaltado, em contrapartida, ao passado colonial de
faces românticas, em que a modernização da agricultura se fez
sentir para os agricultores pela mudança das formas de
propriedade. Na comparação do próprio autor:
Mais feliz do que outras regiões foi a região do Extremo-Oeste
do Paraná, que teve sua colonização feita por pequenas
propriedades, as chácaras e colônias, que se mantiveram
estáveis ao longo do tempo. Pelo censo agropecuário do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizado

62
neste município, a média tem-se elevado com tendência de
pequena alta a paitir de 1970.*'
Todo o primeiro capítulo da pesquisa Gerke destinou-se
ao estudo da Marcha para o Oeste e da colonização, valorizando
sobremaneira as formas da agricultura tradicional e a ênfase nos
pioneiros em seu dia-a-dia colonizador. Quanto à crise, nela
encontram-se idéias e soluções, pois, “nas assembléias dos
grupos, os colonos fizeram abaixo-assinados com exposição das
principais reclamações para as autoridades públicas e cartas
abertas ao Ministério da Agricultura. Os representantes políticos
da região também se movimentaram para atenuar a situação”.82
Interessa destacar que a criação da cooperativa não se
constituiu somente numa solução para a crise que admoestava os
agricultores, mas também como uma perspectiva metodológica
Como questionou Williams, “será apenas o velho hábito de usar
o passado, os ‘bons tempos de antigamente’, como desculpa
para criticar o presente? Sem dúvida, algo do gênero está em
jogo, mais isto não resolve todas as dificuldades”.83
Mirian Hermi Zaar, por suavez, estudou^produção do
Espaço Agrário, da colonização à modernização agrícola e
formação do Lago de Itcàpu, em que destaca a importância da
construção do espaço agrário de Marechal Cândido Rondon,
mostrando a forma como o homem e o meio foram subjugados
pelo sistema econômico de reprodução em que viviam. Sistema
econômico este que, de forma contraditória, trouxe benefícios
para uns e prejuízos para outros. Nesse mesmo caminho, propôs-
se a “entender esta relação que rege a sociedade capitalista como
um ‘todo’, que constrói e reconstrói espaços, pois estes são
resultados deumtrabalho materializado, construído por meio dessa
relação”.*4Sai trabalho foi organizado em tomo do papel do
Estado na produção do espaço da colonização à modernização;
com o espaço agrário nos tempos da colonização diante da

63
mecanização agrícola e da formação do Lago de Itaipu; as formas
de circulação viária no espaço colonial e da modernização; e por
último a vida cotidiana.
O último item de sua análise - a vida cotidiana - é de
particular interesse aqui. Nota-se a preocupação com os
fenômenos macroestruturais da sociedade brasileira, emqueZaar
acrescenta ao fenômeno da modernização da agricultura, o
problema da formação do lago de Itaipu e suas alterações no
espaço e nas vidas dos sujeitos. Preocupada com tal processo,
recorreu a entrevistas com colonos e agricultores indenizados.
Emboratenha havido um esforço de aproximação comos sujeitos,
o diálogo com os depoimentos foi guiado por perguntas e análises
ratificadoras das condições estruturais mais amplas dadas pela
pauta da colonização. Neste sentido, muitos dos conflitos e
experiências vivenciadas pelos sujeitos foram abordados num
campo de exterioridade e distanciamento, próprios das análises
sistêmicas, tomando-se, muitas vezes, pouco qualificadores dos
sujeitos e das suas práticas.
Por fim, no interior desse conjunto destacaria o estudo
de Davi Félix Schreiner, cuja preocupação incidiu no que
denominou de “AFormação da Cultura do Trabalho no Extremo
Oeste do Paraná”. Sua pesquisaprivilegiou o munidpio de Toledo
“o qual, nos anos 50, compreendia o espaço colonizado pela
Companhia Madeireira e Colonizadora Rio Paraná
(MARIPA)”,®5deslocando sua compreensão para as categorias:
cotidiano, trabalho e poder. Na perspectiva de Schreiner:
Nos anos setenta, o Extremo-Oeste do Paraná, mesmo não tendo
contado coma riqueza do café e apoiada na pequena propriedade
familiar, situava-se como uma das áreas mais importantes do
Estado. No final dos anos 70 e especialmente durante a década
de 1980, a euforia nacional chegou a esta região iniciando um
processo de rápidas transformações. Esse processo
denominado ‘a modernização da agricultura’, é caracterizado
pela mecanização e tecnificação da lavoura, integTando as

64
regiões agrícolas ao mercado internacional. A terra é mecanizada
e ocupada, basicamente, pelas culturas de soja e trigo. As
máquinas tomam o lugar dos homens que sequer como bóias-
frias conseguem emprego. Junto com a modernização da
agricultura surge o êxodo rural.*6
No centro de suas preocupações estavam “as práticas e
representações do trabalho construídas e reconstruídas face a
dialética dessa cultura do trabalho”.*7E que:
Na colonização se efetivou uma cultura que tem, de um lado, o
trabalho como meio gerador de riqueza e, de outro, como meio
pelo qual se reconhece o valor e a moral de um homem. Em
outras palavras, cria-se uma noção de trabalho onde a
negatividade e a positividade cohabitam, ou seja não se
excluem”.®
Posicionando-se desse modo, colocou-se numa posição
crítica diferenciada, principalmente se comparada à de outros
trabalhos incluídos nesse conjunto. Por buscar perceber a
construção de sujeitos, o trabalho comunitário e outras formas
de experiências de trabalho daqueles migrados para a cidade,
via o êxodo rural; porém preservou a noção de modernização
em seu quadro interpretativo, em que “o capitalismo integrou e
fragmentou, num primeiro momento, a cultura campesina, para
depois reordená-la de forma a integrá-la com uma produção e
consumo capitalista mais desenvolvida”.89
As interpretações sobre a colonização utilizaram-se de
preocupações, muitas vezes paradigmáticas, tencionando alguns
períodos em detrimento de outros, ou idealizando sujeitos e
desfocando outros. Além disso, apontou-se que o conjunto da
historiografia sobre o Oeste do Paraná constitui-se em uma
tradição com desenhos próprios, de considerável apelo a uma
memória privilegiada de sua colonização que deslocou para o
presente um forte sentimento ufànista, por vezes utilitário de uma
suposta identidade única.

65
O presente germânico
Umterceiro e importante conjunto de análisesdizrespeito
ao problema da afirmação da identidade germânica,
particularmente em Marechal Cândido Rondon, a partir da
segunda metade dos anos 1980. Entre os estudos realizados sobre
a questão, optei por mencionar dois produzidos recentemente,
embora pudesse elencar outros quantos trabalhos de caráter
monográfico, preocupados, dentre outras coisas, com os
discursos, a arquitetura germânica e Oktoberfest promovida pela
cidade.
A maioria desses trabalhos tem se orientado pelo
problema da tradição inventada, tratada por meio de objetos,
perspectivase procedimentos metodológicos diferentes. Ressalta-
se, contudo, que o passado da colonização em relação à seleção
do elemento humano de etnia germânica sobrevive nas análises
de maneira peculiarmente crítica
O primeiro desses trabalhos, o de Marcos Stein, já
mencionado, estudou “A construção do discurso da germanidade
emMarechal CândidoRondon”, definindosua periodização“entre
os anos de 1946 a 1996. Tal recorte temporal tem como objetivo
analisar os discursos sob os quais se construiu a germanidade
como referênciaidentificatóriado munidpio de Marechal Cândido
Rondon, localizado no Extremo Oeste do Paraná”.90
Sua perspectiva buscou compreender o discurso da
germanidade, datado a partir dos anos 1940 com a colonização,
tendo como base os elementos de interferência do Estado e da
Colonizadora na concepção e desenvolvimento do projeto de
seleção do elemento humano. Desse modo, o autor parece
implicitamente estar falando de uma mesma temporalidade, na
qual se construiu o discurso da germanidade. Ou seja, o projeto
de germanização evidenciado no final dos anos 1980 aparece
muito reladonado com outras dimensõesvividas nessa sodedade

66
noutros tempos anteriores. Como ele próprio observou:
Ao se analisar fontes como o Projeto de Caracterização
Germânica do município, verificou-se que, além dos discursos
quejustificam a realização do projeto, há um discurso que busca
desclassificar um outro discurso, o qual apresenta o fato da
população do munidpio ser composta em grande parte por
descendentes de imigrantes alemães como algo negativo, um
indicio de nazismo.91
Ao incorporar essa nova dimensão ao projeto de
germanização, salientou, entretanto, que seu estudo não visou
uma análise da Oktoberfest ou sobre o período da colonização,
“mas analisar osjogos discursivos que se encontram presentes
nestes acontecimentos e períodos, e que constituem os efeitos de
sentido dos discursos que constroem a germanidade no
município”.92Seu aparato teórico-metodológico situou-se nas
“construções discursivas, que também são elaboradas com
relação ao ‘outro’, o indesejável”.93Em linhas gerais, o estudo
de Stein buscou entender a produção discursiva sobre a
germanidade, produzida na esfera das decisões e nas afirmações
do “outro”, como um processo social de invenção de tradições.
De alguma maneira, seu recorte cronológico, da extensão dos
anos 1940 aos anos 1990, talvez tenha homogeneizado esse
tempo e o transformado em um plano único, o da germanidade,
vitalizando o escopo da memória oficial local. A adoção de tal
perspectiva, em muitos momentos, dificultou a historicidade das
falas e dos momentos diferenciados da produção discursiva
enfocada.
De outro modo e em outra área do conhecimento, Ilse
Queirós recortou a questão da Oktoberfest como objeto de sua
análise da tradição inventada em Marechal Cândido Rondon.
Contudo também se pôs atenta às dimensões mais amplas dessas
práticas. Nesses termos, sobre o estilo arquitetônico germânico,
em Marechal Cândido Rondon, disse a autora que:

67
Não se apresenta relacionado a uma arquitetura colonial dos
migrantes colonizadores desta cidade, mas, sim, às
características culturais da arquitetura colonial da Alemanha,
de onde vieram seus ancestrais. E, é esse passado que recria e
reconstrói uma arquitetura germânica moderna desta cidade,
ieladonadaaumaAlemanha idealizada, emtomodeumaimagem
identitária para o Município.’4
Embora inapropriada a referência a um dado período
colonial alemão, pois não se pode dizer que a Alemanha tenha
sido objeto de colonização nos termos conceituais que
conhecemos, a contribuição de UseQueirós ajudou-nos a compor
uma contradição. Se por um lado há o ideário de seletividade
dos sujeitos baseada na composição dos “de origem”, por outro
não é essa cultura colonial quevai dar o tom da festividade. Como
ela mesma questionou:
De forma sucinta, podemos demonstrar esta asserção, através
de práticas gerais dos membros desta comunidade, como o
chimarrão que é tomado por quase toda população local, como
o é, o gosto acentuado pelo churrasco e a apreciação de músicas
e danças gaúchas. Tais práticas convivem, com o gosto pelo
futebol, carnaval, boates, e ritmos populares brasileiros,
simultaneamente, a heranças germânicas, como: o prazer cm
dançar marchas alemãs, a audição de diversos gêneros de
músicas alemãs, o consumo de doces típicos de Natal e Páscoa
e, também, o consumo cotidiano da Schmicr (gelcia), da
Kãsschmier (requeijão), do pão caseiro e da cuca (pão doce)
assados no forno de pedra, entre outras coisas.’5
Deve-se observar que o objeto de investigação de
Queirós é a cultura, entre as dimensões do lazer, os projetos
culturais e as articulações políticas de interesse do poder público
nas intermediações/oposições da cultura do lugar e dos sujeitos.
Neste sentido ainda destacou a autora:
Que só, recentemente, no Sul do Brasil, é que eventos culturais
ctnicos c assemelhados ganharam notoriedade nunca vista na

68
história social e cultural brasileira. Tal fato aumenta em
significado, quando se pensa que, há mais de um século, houve
a imigração européia para o Brasil. Ademais, observa-se que,
em nenhum outro momento, a etnicidade germânica tinha se
projetado no imaginário social com tanta carga simbólica
afirmativa.96
UseQueiróstalveztenha sobrevalorizadotais movimentos
mais amplos de apelo cultural da etnicidade germânica no contexto
sul brasileiro em comparação com outros períodos. Tendo em
vista o seu objeto empírico - o estudo de caso de Marechal
Cândido Rondon sua consideração faz por diluir, em parte, a
força e os significados do pangermanismo nos anos 1920e 1930
do século passado.97No caso paranaense, importa lembrar da
rede de iniciativas dos projetos de germanização, de fato, datados
a partir dos anos 1980. Entre os mais conhecidos, destacam-se:
as cidades de Marechal Cândido Rondon e de Pato Bragado,
ambas na região Oeste, e de Rolândia, na porção ao Norte do
estado. Sua pesquisa mostrou, sobretudo, um conjunto de
particularidades que envolvem silêncios, esquecimentos e práticas
efetivas que estão na esfera da singularidade histórica do lugar. E
que a Oktoberfest amalgamou tradições, resgatando umas,
valorizando outras, recriando antigas e criando outras novas,
relacionadas à etnia alemã, mas que ritualizam uma nova
construção da idéia de germanidade.98Como sintetizou:
A criação e reinvenção da Oktoberfest, por iniciativa da
administração municipal que investiu e investe, direta ou
indiretamente, grande soma dc rccursos financeiros ncslc plano
cultural de lazer, reafirmou c, ainda, reafirma, a identidade
germânica na e da população e se apresenta como meta de uma
política de lazer em relação ao tempo disponível de sua
população. Entretanto esta festa serviu e serve, principalmente
para projetar e identificar o Município, no intuito de atrair novos
investimentos c capitais, para que a cidade cresça c se destaque.'"

69
A idéia de seletividade dos sujeitos, como se observou,
é uma preocupação corrente dos trabalhos aqui discutidos e com
contornos peculiares na investigação das pesquisas. É um tema
que sobreviveu ao presente, explodindo aqui e ali num constante
movimento de produção dos “outros”.
Procurou-se apontar que as questões ligadas à população
e a sua mobilidade estão fortemente relacionadas com a reflexão
das origens de sua população e o problema da seletividade dos
sujeitosquemarcoutodo o processo de colonização, constituindo-
se, também, numa matriz interpretativa do passado, mediada por
uma memória que se pretende coletiva.

Memórias individuais, sujeito coletivo


Tendo em vista a discussão que vimos propondo, que
observou a historiografia em cumplicidade com as balizas sociais
e com os projetos políticos locais e regionais, tomou-se oportuno
uma digressão para discutir algumas inspirações teórico-
metodológicas articuladas ao tema da pesquisa. Algumas delas
estão vinculadas à memória social, assim como à importância
das trajetórias individuais na compreensão dos processos
migratórios. Inicialmente, como observou Alessandro Portelli:
A memória pode existir em elaborações socialmente
estruturadas, mas apenas os seres humanos são capazcs de
guardar lembranças. Se consideramos a memória um processo,
c não apenas um depósito dc dados, poderemos constatar que,
à semelhança da linguagem, a memória é social, tomando-se
concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas
pessoas. A memória é um processo individual, que ocorre cm
um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos
socialmente criados e compartilhados. Em vista disso, as
recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou
sobrepostas.1”
Desta feita, pensar a produção da memória como
processo, além de permitir uma compreensão ampliada do fazer

70
histórico dos sujeitos no tecido da paisagem social, reveste o
olhar de novas perspectivas críticas em relação aos tons
memorialistas alimentados pela historiografia. Assim, é preciso
dizer que a opção pelas narrativas orais de trabalhadores não se
constituiu, evidentemente, numapretensão neutra e simplificadora
do processo social. Ao contrário, tal como observou Portelli:
A história oral não tem um sujeito unificado; é contada de uma
multiplicidade de pontos de vista, e a imparcialidade
tradicionalmente reclamada pelos historiadores é substituída
pela parcialidade do narrador. "Parcialidade’ aqui permanece
simultaneamente como ‘inconclusa’ e como ‘tomar partido’: a
história oral nunca pode ser contada sem tomar partido, já que
os ‘lados’ existem dentro do contador. E não importa o que
suas histórias e crenças pessoais possam ser, historiadores e
‘fontes’estão dificilmente do mesmo ‘lado’. A confrontação de
suas diferentes parcialidades - confrontação como ‘conflito’ e
confrontação como ‘busca da unidade’ - é uma das coisas que
faz a história oral interessante.101
Nessa direção, inclui-se também a inspiradora análise
da“estrutura de sentimentos”, defendidapelo crítico literário inglês
Raymond Williams. A proposta desse autor é investigar os
processos sociais históricos para além das conformações
aparentes, ou seja, quando “o movimento geral que nos vem à
mente - o movimento característico - é um fluxo apressado,
aparentemente aleatório, de homens e mulheres, cada um dizendo
uma determinada frase fixa, sendo visto numa expressão fixa:
uma maneira da rua de ver homens e mulheres”.102Acrescentou
Williams, ao estudar a obra de Dickens, entretanto, tratar-se:
Como não apenas um sistema alheio e indiferente mas também
o somatório desconhecido, talvez incognoscível, de tantas vidas
diversas, acotovelando-se, perturbando, ajustando-se,
reconhecendo, estabelecendo-se, mudando-se para novos
espaços, Dickens atingiu o âmago dinâmico dessa experiência
social de transformação.103

71
Embora os trabalhadores tenham se fixado em algum
momento na cidade de Marechal Cândido Rondon, suas vidas
nunca estiveram descoladas das experiências da migração e das
bagagens culturais trazidas de outros lugares, tanto quanto das
vivências de maior tempo nessa região de fronteira. De qualquer
modo, essa é uma preocupação que se deve contrabalançar na
análise, pois como advertiuAlistair Thomson:
Há o risco de se enxergar essas comunidades somente em termos
de suas origens migrantes, especialmente onde elas podem ter
raizes históricas profundas provindas de uma comunidade de
resistência e podem sustentar elementos de diferença cultural
muitas gerações depois do período inicial da migração.104
No âmbito da pesquisa, embora os depoentes
habitassem uma mesma cidade da região, está foi tomada como
um lugar de convergência de experiências e de outras dimensões
da transformação produzidas desde o primeiro instante da decisão
de migrar. Mesmo porque, como ainda chamou atenção Portelli:
A história oral e as memórias, pois, não oferecem um esquema
de experiências comuns, mas sim um campo de possibilidades
compartilhadas, reais ou imaginárias. Adificuldade para organizar
estas possibilidades em esquemas compreensíveis e rigorosos
indica que, a todo momento, na mente das pessoas se
apresentam diferentes destinos possíveis.105
Tendo em vista o pulsar dessas questões, interessa
destacar a importância fundamental atribuída às narrativas orais,
principalmente em se tratando do horizonte do sujeito coletivo, o
objeto primeiro da pesquisa, que se destaca na associação aos
estudos de grupos migrantes. Merece atenção, nesse sentido, a
discussão realizada por YaraAun Khourya partir do seu trabalho
com as narrativas orais. Assim, observou a autora:
Se lidamos com uma noção fechada dc sujeito coletivo, podemos
tender a explicações genéricas que se tomam aplainadoras da
realidade social sobre a qual refletimos. Entrando em contato

72
com experiências únicas, pelo trabalho que realizamos com
narrativas orais, temos buscado não generalizar para o conjunto
do movimento, ou do grupo, tendências mais evidentes forjadas
e alimentadas por forças hegemônicas dentro deles. Quando a
preocupação de explicar um coletivo se sobrepõe a uma
perspectiva de pensá-lo como uma experiência múltipla,
construída por sujeitos com bagagens culturais diferentes,
visões diferentes e propostas e projetos de futuro diferentes,
disputando lugares e formas de organizar e de encaminhar o
futuro, acabamos por perder de vista as dimensões complexas,
ambíguas e contraditórias dessa experiência106
Além disso, é preciso atentar para o fato de que a
produção da memória é dinâmicano tempo histórico. Do mesmo
modo, todo cuidado é pouco na utilização do referencial memória
coletiva, uma vez que, tal como observado na historiografia
regional, é preciso investigar os silêncios, os significados da
lembrança e as raízes sociais e políticas das vozes correntes, assim
como os dos lugares onde são emitidas. Mesmo porque, como
advertiu Porteüi:
Se toda memória fosse coletiva, bastaria uma testemunha para
uma cultura inteira; sabemos que não é assim. Cada indivíduo,
particularmente nos tempos e sociedades modernas, extrai
memórias de uma variedade de grupos e as organiza dc fonna
idiossincrática. Como todas as atividades humanas, a memória
é social e pode ser compartilhada (...). Ela só se toma memória
coletiva quando é abstraída c separada da individual; no mito c
no folclore (luua história para muitas pessoas: o bom 'alemão'),
na delegação (uma pessoa para muitas histórias: Ida Baló), nas
instituições (sujeitos abstratos - escola, Igreja, Estado, partido
- que organizam memórias e rituais num todo diferente da soma
de suas partes).107
As questões importantes mapeadas na historiografia
regional em tomo do mítico passado colonizador ou da
constituição de um “outro” serão tratadas como importantes
problemas de fundo, tanto quanto como evidências para o diálogo

73
com as narrativas orais pesquisadas. A tarefa confrontou-se com
o difícil, mas imprescindível, diálogo com os modelos de análises
históricasou memorialistas, muitasvezes sodalmenteestruturados
em bases da dominação, quase sempre investidas de
preocupações legitimadas por um suposto ideal coletivo. Acerca
dos problemas evidentes nessas conformações, advertiu E.
P.Thompson, todavia, que “um perigo ainda maior é que um
modelo, por mais flexível que seja o seu emprego, predispõe
para que se olhe apenas para certos fenômenos e para examinar
a história pelas conformidades. ao passo que é possível que a
evidência descartada esconda novos significados”.los
Nessa direção, ainda, é sublime a interpelação de E.
P.Thompson:
Devemos esperar por um delicado equilíbrio entre os
procedimentos sintetizadores e os empíricos, uma disputa entre
o modelo e a realidade. Esta é a tensão criadora do processo
cognitivo. Sem essa dialética, o crescimento intelectual não
acontece. Tal dialética está sempre se traduzindo em
desequilíbrio. Não podemos levar nada adiante sem aceitarmos
um modelo aproximado como suporte de nosso trabalho. E o
hábito do modelo em tomar-se tão forte, quase sempre forçado
por determinações ideológicas, toma-se impermeável à crítica
empírica. Ou, sob o impacto de um ‘grande fato’ após outro, ele
se desintegra completamente, e erramos, então, em mares de
fenômenos nunca antes navegados.109
Importa considerar, todavia, que uma perspectiva da
diversidade da paisagem social, assim como de suas
transformações no tempo histórico, apresentado como problema
motriz da análise, não era seduzida pelos estudos antropológicos
preocupados estreitamente com o indivíduo e sua correta
sobrevivência cultural. Embora a problemática tivesse como
horizonte a diversidade, muito inspirada por algumas sendas da
investigação antropológica, é preciso atentar que a intenção
sempre esteve voltada para a historicidade dos sujeitos e suas

74
práticas no fazer-se como classe.
A despeito desse diálogo com alguns trabalhos
antropológicos, a inspiração teórica afirmou-se no campo das
discussões e contribuições de E. P. Thompson, cuja dívida para
essetrabalhotalvez sejaimpossível quantificar Malgrado avastidão
das discussões erigidas pelo autor, algumas de suas notações
importantes para a história sodal, espedalmente sobre a classe,
merecem aqui um espaço de discussão, tendo emvista que opera
de muitos modos a problemática da pesquisa sobre a diversidade
das trajetórias e o seu lastro orgânico na paisagem sodal dessa
fronteira.
Quando publicou A Miséria da Teoria, em 1978, em
que apresenta crítica aAlthusser e aos marxismos deterministas e
economidstas, Thompson polemizou também alguns caminhos
da antropologia e seus aportes sobre a cultura. No decorrer do
debate, perscrutou com grande ironia a teia de determinismos
envolvida nas compreensões da classe, da cultura e experiênda
sodal. Embora tivesse escrito A Formação da Classe Operária
Inglesa, entre os anos 1963 e 1968, quandojá havia desenvolvido
suas apreensões mais significativas sobre a classe na prática
historiográfica, foi mesmo cm A Miséria da Teoria em que se
deteve nas questões de fundo sobre o debate teórico acalorado
que havia então colocado. Em relação à classe, Thompson concluiu
que:
Nenhuma categoria histórica foi mais incompreendida,
atormentada, transfixada e des-historicizada do que a categoria
classc social; uma formação histórica autodcfinidora, que
homens e mulheres elaboram a partir de sua própria experiência
de luta, foi reduzida a uma categoria estática, ou a um efeito dc
uma estrutura ulterior, das quais os homens não são os autores
mas os vetores.110
A operação crítica de Thompson sempre esteve
umbilicalmente comprometida, evidentemente, com a

75
compreensão histórica do fazer-se classe. EmA Formação da
Classe Operária Inglesa, o autor discute com os analistas da
Revolução Industrial e observa que:
O fazer-se da classe operária é um fàto tanto da história política
e cultural, quanto da econômica. Ela não foi gerada
espontaneamente pelo sistema fabril. Nem devemos imaginar
alguma força exterior - a ‘revolução industrial’- atuando sobre
algum material bruto, indiferenciado e indefinível de
humanidade, transformado-o em seu outro extremo, uma
‘vigorosa raça de seres’. As mutáveis relações de produção e
as condições de trabalho mutável da Revolução Industrial não
foram impostos sobre um material bruto, mas sobre ingleses
livres - livres como Paine os legou ou como os metodistas os
moldaram1"
Deve-se atentar, ainda, à apreensão de Thompson,
segundo a qual a classe se coloca como “uma categoria histórica,
ou seja, deriva de processos sociais através do tempo”, sendo
então, “inseparável da noção de ‘luta de classes”’.112Na mesma
linha de raciocínio, explorou o autor
As pessoas se vêem numa sociedade estruturada de um certo
modo (por meio de relações de produção fundamentalmente),
suportam a exploração (ou buscam manter poder sobre os
explorados), identificam os nós dos interesses antagônicos,
debatem-se em tomo desses mesmos nós e, no curso de tal
processo de luta, descobrem a si mesmas como uma classe,
vindo, pois a fazer a descoberta da sua consciência dc elasse.1"
As trajetórias individuais dos migrantes investigados na
pesquisa, assim como seus trabalhos da memória, serão
analisados, por sua vez e sobretudo, como relações sociais e
fazerestecidos na classe, mediados especialmente por experiências
migratórias e bagagens culturais plurais. Partindo-se desse esboço
metodológico, buscar-se-á repensar alguns dos embates
estruturantes da memória historiográiica e social sobre a região,
contornadas com tantas mitificações, generalizações e
esquecimentos.

76
Os próximos capítulos propõem-se a investigar as
memórias dos trabalhadores migrantes em seus modos de viver
e trabalhar nessa região de fronteira, além de desvendar outras
dimensões de suas memórias e a própria diversidade da paisagem
sodal a das rdadonada. Mesmo porque, umavez mais, instigado
por Thompson, “na história, nenhuma formação de dasse
específica é mais autêntica ou mais real que outra. As classes se
definem de acordo com o modo como tal formação acontece
efetivamente”.114Vistapor esse ângulo, a tarefe estava posta para
se fàzer.
Na trilha dessas assertivas tentar-se-á desvendlhar, ainda
que subliminarmente, o invólucro protetor e generalizador da
perspectivado fluxo migratório, da memóriaúnica, das tipologias
e estratificações das alteridades, dos sentidos modemizadores
deterministas, da idéia restritiva de fronteira como expansão de
mercados e das perspectivas idealizadas do passado colonial.
Aventurar-se-á, assim, nas sendas das trajetórias sociais,
investigando a diversidade de itinerários e itinerândas da migração,
as lutas de afirmação de alteridades na dasse, as transformações
do trabalho e do mundo vivido, enfim as experiências e sentidos
heterogêneos protagonistas de suas próprias histórias.
N otas
'OBERQ Kalcrvo; JABINE, Thomas. Toledo: um município da
fronteira oeste do Paraná. Rio de Janeiro, Edições SSR, 1960, p. 51.
2Ibidem.
1 TODOROV, Tzevetan. A conquista da América: a questão do outro.
São Paulo, Martins Fontes, 1996, p.3.
4 ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 2000, p. 24.
5 Idem, p. 25.
6Idem, p. 38.
7 STEIN, Marcos Nestor. A construção do discurso da germanidade
em Marechal Cândido Rondon (1946-1996). Florianópolis, UFSC,
Dissertação (Mestrado em História), 2000, p. 81.
* Idem, p. 33-34.
9 Idem, p. 74.
10 COLODEL, José Augusto. Obrages e companhias colonizadoras:
Santa Helena no oeste paranaense até 1960. Santa Helena/PR, Pre­
feitura Municipal de Santa Helena,1988, p.39. Sobre o colonialismo
interno e as Missões Jesuíticas no Guairá ver: SCHALLEMBERGER,
Emeldo. A integração do Prata no sistema colonial. Toledo/PR, Edi­
tora Toledo, 1997.
11 SAATKAMP, Vcnilda. Desafios, lutas e conquistas: história dc
Marechal Cândido Rondon. Cascavel/PR, ASSOESTE, 1985, p. 13.
Sobre a questão da ocupação no período anterior à colonização sulis­
ta na região ver também: WACHOWICZ, Ruy Chistovan. Obrageros,
mensus e colonos. Curitiba, Editora Vicentina, 1982 e COLODEL, op.
cit.
12 GREGORY, Valdir. Os euro-brasileiros e o espaço colonial: a dinâmi­
ca da colonização do oeste do Paraná nas décadas de 1940 a 1970.
Niterói, UFF, Tese (Doutorado em História), 1997, p. 209.
13 MACCARI, Neiva Salete. Migração e memórias: a colonização do
oeste paranaense. Curitiba, UFPR, Dissertação (Mestrado em Histó­
ria), 1999, p. 30.
14 SAATKAMP, Venilda. op. cit. p. 13.
15 COLODEL, op. cit. p. 161.
16 SAATKAMP, Venilda. Op. cit., p. 225. Em seu livro a autora destina
as páginas finais para uma rápida biografia do “Patrono do Municí-

78
pio de Marechal Cândido Rondon, [que] é o indianista - pacifica­
dor, desbravador, sertanisía, Cândido Mariano da Silva Rondon,
que devido aos seus feitos heróicos e humanitários é registrado na
história nacional e municipal como exemplo de pacificador e prote­
tor dos índios. ”
17 MACCARI, op. cit.,p. 31.
18FREITAG, Liliane da Costa. Asfronteirasperigosas, migrações in­
ternas e a ocupação de um espaço vital: o extremo-oeste paranaense.
São Leopoldo/RS, UNISINOS, Dissertação (Mestrado em História),
1997, p. 18.
19ZAAR, Miriam Hermi. A produção do espaço agrário: da coloniza­
ção à modernização agrícola e formação do Lago de Itaipu. Cascavel,
EDUNIOESTE, 1999, p. 17.
20GREGORY, op. cit., p. 88.
21FREITAQ op. cit, p. 142.
22 GREGORY, op. cit, p. 209.
23 REGINATO, Pedro. História de Palotina. Palotina/Pr, Prefeitura
Municipal, 1979; SILVA, Oscar; MACIEL, Clori Fernandes. Toledo e
sua história. Toledo/PR, Prefeitura Municipal, 1988; SAATKAMP,
op. cit. e COLODEL, op. cit.. Importante ressaltar que a maior parte
desses livros é iniciativa das prefeituras municipais.
24 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares.
Projeto História. São Paulo, PUC/SP, n° 10,1993, p. 13.
25 Ibidem.
26 Idem, p. 7.
27 MENESES, Ulpiano T. Bezerra dc. A história, cativa da memória?
Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. Re­
vista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, IEB, n° 34, 1992,
p. 9.
28 GREGORY, op. cit., p. 12 .
29 SAATKAMP, op. cit., p. 52. Sobre a atuação de Willy Barth na
colonização do Oeste paranaense ver também: SCHMIDT, Róbi Jair.
Cenas da constituição de um mito político: memórias de Willy Barth.
Cascavcl/PR, EDUNIOESTE, 2001.
30GREGORY, op. cit., p. 325.
31 Idem, p. 205.
32 Idem, p. 10 1 .
33 Idem, p. 155.

79
* Idem, p. 309.
15 Ibidem.
36 Ibidem.
17 MACCARI, op. cit., p. 4.
“ Idem, p. 66.
59 Idem, p. 169.
40 Idem, p. 185.
41 SCHNEIDER, Claércio Ivan. Os senhores da terra: produção de
consensos na fronteira (oeste do Paraná, 1946-1960). Curitiba, UFPR,
Dissertação (Mestrado em História), 2001, p. 2 .
42Ibidem
45 Idem, p. 4.
44 Idem, p. 127.
45Ibidem.
46 TOMAZI, Nelson Dacio. “Norte do Paraná": histórias e
fantasmagorias. Curitiba, Aos Quatro Ventos, 2000, p. 8. Esse se cons­
titui num interessante trabalho critico sobre a região norte do Paraná.
De maneira análoga ao estudo em questão sobre o caráter ufanista do
oeste, esse autor pautou-se na diferenciação da “a região situada ao
norte do estado do Paraná, que pode ser cartografável e delimitada
através de vários critérios sejam eles geográficos, políticos, econômi­
cos, sociais, históricos, administrativos, pedológicos ou climáticos e
o discurso ‘Norte do Paraná construção ideológica e fantasmagórica,
feita por ideólogos vinculados aos dominantes, na região çm estudo,
c que traz embutida uma visão histórica vinculada à manutenção da­
quele poder e o status quo ".
47 GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo, Cia.
das Letras, 1987, p. 98.
48 Ibidem.
4*Ibidem.
50 Idem, p. 101.
51 Idem, p. 99.
52 Idem, p. 15.
53 WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade na história e na litera­
tura. São Paulo, Cia. das Letras, 1989, p. 56.
54Idem, p. 59.
55 Idem, p. 60-61.

80
56Idem, p. 23.
57 Idem, p. 25-26.
5gMAGALHÃES, Marisa Valle. O Paraná e as migrações 1940-1991.
Belo Horizonte, CODEPLAR/UFMG, Dissertação (Mestrado em
Demografia), 1996, p. 22.
59 SAATKAMP, op. cit. p. 88.
60MAGALHAES, op. cit., p. 45.
61 Idem, p. 47.
62 Em tomo da questão da (rei)migração de grupos de trabalhadores
que deixaram o sul brasileiro para outras regiões ver: NASCIMENTO,
Elofsa Winter. Rumo da terra rumo da liberdade: um estudo dos
migrantes rurais do Sul no Estado do Acre. Florianópolis, UFSC, Dis­
sertação (Mestrado em Ciências Sociais), 1985. Essa autora estudou
os migrantes rurais do oeste paranaense assentados no estado do
Acre, por ocasião do alagamento das terras pela hidrelétrica de Itaipu,
vinculados ao projeto de Assentamento Dirigido Pedro Peixoto; e
SANTOS, José Vicente Tavares dos. Matuchos: exclusão e luta do
Sul para a Amazônia. Petrópolis, Vozes, 1993. Esse é um estudo de
grande fôlego dos projetos de colonização e dos migrados do Sul para
a Amazônia, bem com os seus retornos. Nesse trabalho encontram-se
referências também da mobilidade de agricultores da região extremo-
oeste paranaense.
63 SAATKAMP, op. cit. p. 88.
64 LUCENA, Célia Toledo. Artes de lembrar e de inventar:
(re)lembranças de migrantes. São Paulo, Arte e Ciência, 1999, p. 18.
65URBAN KLEINKE, Maria de Lourdes; DESCHAMPS, Marley Vanice;
MOURA, Rosa. Movimento migratório no Paraná (1986-91 e 1991-96):
origens distintas e destinos convergentes. Revista Paranaense de
Desenvolvimento. Curitiba, IPARDES, n°95, jan/abr. 1999. p. 30.
66PORTELLI, Alessandro. AFilosofia e os Fatos: narração, interpreta­
ção e significado nas memórias e nas fontes orais. Tempo. Rio de
Janeiro, UFF/Relume-Dumará, vol. 1 , n° 2,1996, p. 63.
67 POMBO, Francisco da Rocha. O Paraná no Centenário. Rio de
Janeiro, J. Olympio; Curitiba, Secretaria da Cultura e do Esporte do
Estado do Paraná, 1980, p. 46.
68Ibidem.
69MAGALHÃES, op. cit., p. 1.
70Ibidem.

81
71 LENHARO, Alcir. Sacralização da Política. Campinas, Editora da
Unicamp/Papirus, 1986, p. 71.
72 Idem, p. 74.
73 VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato.
São Paulo/Rio de Janeiro, Difel, 1976, p. 154.
74Idem, p. 146.
75 Idem, p. 215.
76SORJ, Bernardo; WILKINSON, John. Processos sociais eformas de
produção na agricultura brasileira. Sociedade e Política no Brasil
pós-64. São Paulo, Brasiliense, 1984, p. 179.
77 INSTITUTO PARANAENESE DE DESENVOLVIMENTO
ECONOMICO E SOCIAL As migrações e a transformação da estrutu­
ra produtiva efundiária no Parará.Curitiba, IPARDES, 1983, p. 7.
78Idem, p. 6.
79 INSTITUTO BRASIELEIRO DE GEOGRAFIAESTATÍSTICA. Áre-
as de atração e evasão populacional no Brasil no período de 1960-
1970. Rio de Janeiro, SUEGE/IBGE, Série de Estudos e Pesquisas, n°
4, p. 19.
80LUCENA, op. cit. p. 18-19.
81GERK, Amo. COPAGRIL: uma análise do cooperativismo do Oeste
do Paraná. Curitiba, UFPR, Dissertação (Mestrado em História), 1992,
p. 50.
82 Idem, p. 64.
83 WILLIAMS, op. cit., p. 25.
84ZAAR, op. cit., p. 15.
85 SCHREINER, Davi Félix. Cotidiano, trabalho e poder, a formação
da cultura do trabalho no extremo-oeste do Paraná. Toledo/PR, Edito­
ra Toledo, 1997, p. 17.
86Idem, p. 20-21.
87 Idem, p. 21.
88Ibidem.
89 Idem, p. 162.
90STEIN, op. cit., p. 2.
91 Idem, p. 7.
92 Idem, p. 9.
93 Idem, p. 27.
94 QUEIRÓS, Ilse Lorena Von Borstel Galvão de. A Oktoberfest de

82
Marechal Cândido Rondon, Paraná. Campinas: Unicamp, Disserta­
ção (Mestrado em Educação Física), 1999, p. 68.
95 Idem, p. 55.
96Idem, p. 59.
97 Sobre o assunto ver: GERTZ, René. Operigo alemão. Porto Alegre,
Editora da UFRGS, 1998.
98 Idem, p. 66.
99Idem, p. 72.
100 PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: algu­
mas reflexões sobre a ética na história oral. Projeto História. São
Paulo, PUC, n° 15,1997, p. 16.
101 Idem, p. 39.
102 WILLIAMS, op. cit. p. 216.
103 Idem, p. 227.
104THOMSON, Alistair. Histórias (co) movedoras: História Oral e es­
tudos de migração. Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/
Humanitas, vol. 22, n°44, dezembro de 2002, p. 342.
105 PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos: narração, interpre­
tação e significado nas memórias e nas fontes orais. Revista Tempo.
Rio de Janeiro, UFF/Relume-Dumará, vol. 1, n° 2,1996, p. 72.
106 KHOURY, Yara Aun. Narrativas orais na investigação da História
Social. Projeto História. São Paulo, PUC/SP, 2001, n° 22, p. 86-87.
107 PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Vai di Chiana
(Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum.
Ujos e abusos da História Oral. FERREIRA, Marieta Moraes; AMA­
DO, Janaína (orgs.). Rio de Janeiro, FGV, 1998, p. 127.
108 THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros arti­
gos. NEGRO, Antonio Luigi; SELVA, Sérgio (Orgs.). Campinas, Editora
daUnicamp,2001,p. 156.
109Idem, p. 156-157.
no THOPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros.
Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 57.
m THOMPSON, E. P. Aformação da classe operária inglesa. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, vol. 2.1987, p. 17-18.
112 THOMPSON, 2001, op. cit. p. 273-274.
1,3 Idem, p. 274.
114 Idem, p. 277.

83
C a p í tu lo 2

Por um mapa de itínerâncias


O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro

Meu tataravô, baiano


Meu maestro soberano
Foi Antonio Brasileiro

Foi Antonio Brasileiro


Quem soprou essa toada
Que cobri de redondilhas
Pra seguir minhajornada
E com a vista enevoada
Ver o inferno e maravilhas.

Chico Buarque, Paratodos, 1993

Os números da migração e as itínerâncias


Uma questão de relevância silenciada nas versões
histórico-populacionais oficiais é a de que o Extremo-Oeste
paranaense foi o destino comum para brasileiros de múltiplos
itinerários, entre os quais aqueles migrados das pequenas cidades
do estado para e na região no período posterior aos anos 1970.
A sobrevalorização do papel da colonização
empneendidapelaMARIPÁe de algunscolonos sulinos pioneiros
envolvidos nesse processo contribuiu enormemente para nublar
muitas trajetórias que compõem a paisagem social da região, até
mesmo no período anterior à colonização. Nublou igualmente a
participação dos que haviam participado desse processo sob
outras formas, para além da tradicional forma do colonato, caso
de trabalhadores parceiros e agregados.
Importante sublinhar que, embora a colonização tivesse
planejado a divisão do solo rural e o espaço urbano, somente a
partir dos anos 1970os núcleos urbanos localizados na porção
extrema da região ganhariam o estatuto e os contornos de cidade,
caso de Marechal Cândido Rondon, apesar de já ter sido
emancipada há uma década.
Os números populacionais do município de Marechal
Cândido Rondon registrados pelo IBGE são expressivos e
indicam que seu núcleo urbano passou a tomar os contornos
atuais somente no período posterior a 1970, coincidindo com a
chegada de migrantes de diferentes frentes, como podemos ver
na tabela abaixo.

Tabela 2 - População de Marechal Cândido Rondon


1960/2000

1960 1970 1980 1991 2000

12 848 43 776 56210 35 105 41 014


Fonte'. EBGE/2000.

Os dados são importantes porque se articulam,


sintomaticamente, ao tom das reivindicações simbólicas acerca
dos papéis protagonistas dos “novos” migrantes na constituição
do espaço. Outras informações relevantes, todavia, devem ser
acrescidas aos números. Como constatou Lia Dorotéa Güths,
“em 1982,12% do município foi alagado, ocorrendo emigração;
em 1991, quatro distritos foram desmembrados, ocorrendo a
perda de 14.196 habitantes da população total (4.332 pop.
urbana e 9.864 pop. rural)”.1
Além do caráter instável dos índices populacionais, que
sinalizaoutras mudançasestruturais da sociedade brasileira, como
o êxodo rural e a concentração fundiária, tomando no caso
particular de Marechal Cândido Rondon, observam-se também
variações no deslocamento do tipo mral-urbano (tabela 3).
86
Tabela 3 - Distribuição população rural e urbana de
Marechal Cândido Rondon -1970/2000.
1970 1980 1991 2000

População
83,6% 55,4% 37,3% 23,8%
rural
População
urbana 16,4% 44,6% 62,7% 76,2%

Fonte: IBGE, 2000.

No que diz respeito ao Extremo-Oeste, uma das


mesorregiõespolítica e geográficas oficiais subdivididas do estado
do Paraná, observou o IPARDES, em 1985, que:
Chama a atenção o avanço significativo do trabalho assalariado
e a intensificação da sazonalidade agrícola. A mão-de-obra
familiar reduziu o número global em 55 mil pessoas; enquanto o
número de assalariados permanentes cresceu em 7,7 mil
pessoas, o número de temporários cresceu em 24,5 mil pessoas
e de parceiros em 1,5 mil. Houve também uma diminuição
absoluta do total de estabelecimentos, com exceção daqueles
vinculados aos proprietários.2
Por um lado, os dados denunáam as mudanças estruturais
de grande repercussão econômica e social no Brasil. Por outro,
instigam-nos a compreender o universo do vivido por esses
trabalhadores. E, nesse caso, não explica muito apenas dizer que
esse contingente de pessoas passou a compor a população das
metrópoles brasileiras, caso de Curitiba ou de São Paulo.
Como tem sido freqüentemente referendado nos estudos
migratórios brasileiros, o caso paranaense foi analisado com
distinta especificidade pelo Relatório da Dinâmica Demográfica
da Região Sul nos anos 70 e 80, que indicou: “no Paraná, 71%
da população com menos de dez anos de residência no município
migrou entre regiões do próprio interiordo Estado - a mais elevada
proporção dentre os nove estados analisados”.3
87
Dentro desse contexto de apresentação dos números,
importaconsiderar também os dados expressivos de emigração
de habitantes da mesorregião Oeste paranaense publicados em
1999 pelo IPARDES. Segundo esses dados, 36.685 pessoas
migraram no período 1986-1991, sendo 15.858 (43,23%) no
interior da própria mesorregião e 20.827 (56,77%) para outras
mesorregiões do próprio Estado.4
Observa-se, também, nos números demográficos
comparativos da migraçãoe daemigração, entre as mesorregiões
paranaenses, no período de 1986 e 1991, que a região Oeste
destacou-se entre as demais por apresentar o mais baixo índice
negativo de trocas líquidas, em outras palavras, foi a que menos
perdeu população no período (tabela 4).
De acordo ainda com os dados sistematizados pelo
IPARDES,
Na [região] Oeste Paranaense, a atratividade dos centros já é
bem menor, porém ainda pode ser considerada expressiva. Os
três centros mais importantes, Cascavel, Foz do Iguaçu eToledo,
correspondem por 43% da absorção dos imigrantes da própria
mesorregião e 58% das demais. Entre esses centros. Foz do
Iguaçu destaca-se por receber o maior contingente de imigrantes
vindos de outras mesorregiões, enquanto os outros dois
centros recebem, em maior proporção, os imigrantes da própria
mesorregião”.5

88
Tabela 4 - Número de migrantes, emigrantes intra-
estaduais d trocas líquidas messoregionais - Paraná
1986/19916
Trocas
M esorregides Imigrantes Emigrantes
líquidas
Noroeste
22 305 46 445 -24 140
paranaense
Ce ntro-Ocidc ntal 19 613 35 809 -16 195
Norte-Central 72 739 53 741 18 998
Norte pioneiro il 672 33 018 -21 346
Centro-Oriental 20 584 29 042 -8 458
Oeste paranaense 44 012 45 189 -1 178
Sudoeste
12 862 32 860 -19 997
paranaense
Centro-Sul 23 714 36 361 -12 647
Sudoeste 10 652 14 686 -4 033
M elropolitana 118 482 29 485 88 997
TOTAL 356 636 356 636

Fontes: Censo Demográfico e Contagem da População (microdados) -


IBGE, IPARDES.
Nota dos autores: Dados referentes à migração de data fixa, tendo como
referência pessoas maiores de cinco anos que, em 1986, não
residiam no município de residência atual.

Os números da migração intramesorregional, do período


86-91 (tabela 5) confirmam um quadro de “espetacular reversão
da tendência de crescimento populacional” iniciado a partir dos
anos 1970, e conformando os anos 1980como um período de
expressivaevasão populacional e “quase esvaziamento do campo
paranaense”.7

89
Tabela 5 - Imigrantes intra e intermesorregionais e
participação percentual dos munidpios-pólos nesses
movimentos, segundo mesorregiões do Paraná - 1986/1991*
Mesomgtfes hrignntes btnmesorregtto Inrigrantes de outras Total de fafcrutei
mesontfftes fatn-estadoftb
Percentual no
Totas Totais Percentual no pób
pób

Noncite
43 143 29,29 22 305 36,52 65448
paranaense
Centro-Ocidenüd 21 2S9 25,73 19 614 26,76 40 873
Neite-Centnl 96 818 47,60 72 739 67,00 169 557
Norte pioneiro 27623 20,74 11672 22,54 39 295
Oeutra-Oifcatal 13 371 25,97 20 585 47,46 33 956
Oeste paranaense 61 OOS 43,05 44 012 57,88 105017
Sudoeste
31 813 26,92 12 863 33,90 44 676
paranaense
Centro-Sui 14 219 39,63 23 715 24,56 37 934
Sudoeste 7 323 10*36 tO 652 S.94 17 975
Metropolitana 93 096 82,26 118 482 91,52 211 578
PARANÁ 409 670 45,80 356 639 62,29 766 309

Fontes: Censo Demográfico e Contagem da População (microdados) -


IBGE, IPARDES.
Nota dos autores: Dados referentes à migração de data fixa, tendo como
referência pessoas maiores de cinco anos que, em 1986, não
residiam no município de residência atual.

O relevo da problemática da migração no Extremo-Oeste


paranaense estimulou, em 1979, a realização de um Simpósio
sobre Migrações, intitulado “Sem terra e sem rumo”, ocorrido
em Cascavel e promovido pela Comissão Pastoral da Terra -
CPT, do Paraná. É importante sublinhar a importância da CPT
nesse processo a partir de 1978, bem como associar a realização
do simpósio à dramaticidade dos problemas vividos pelos
movimentos migratórios e a insurgente organização dos
trabalhadores sem-terra no Oeste do Paraná. Tais movimentações
ganharamposteriormente uma dimensão ampliadana organização
desses trabalhadores. Como registrou Davi Félix Schreiner:

90
Com o apoio da CPT e de Sindicatos de Trabalhadores Rurais,
os expropriados da Itaipu, em 1978, organizaram-se no
Movimento Justiça e Terra. Três anos mais tarde, suigiu o
MASTRO, Movimento dos agricultores sem-terra do Oeste do
Paraná. A partilha dessas experiências com as de 15 outros
Estados resultou, em 1984, na formação do MST.9
O conjunto das lutas dos sem-terras no solo Oeste
paranaense desembocou no nascimento do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra- MST, em 1984, que concluiu
João E. Fabrini resultar da necessidade de maior de articulação
destas lutas. Segundo observou o geógrafo:
As lutas dos sem-terras que se iniciaram com ações isoladas
nos cinco Estados mais ao Sul do Brasil não se constituíram
como uma rede geográfica, embora houvesse comunicação entre
os trabalhadores, mediada pela importante ação da Comissão
Pastoral da Terra.10
Entre os problemas principais discutidos na ocasião do
Simpósio de 1979, estava o deslocamento de trabalhadores
brasileiros paranaenses para o Paraguai e para os centros urbanos,
especialmente Curitiba, e as iniciativas de colonização
empreendidaspelo INCRAnaAmazônia, além das colonizadoras
privadas credenciadas para o reassentamento de agricultores
indenizados por ITAIPU no Mato Grosso.
Na síntese dessas questões denunciadas no relatório do
Seminário, foram destacados os problemas concretos da:
Expulsão do homem do campo, que atinge indistintamente
grandes e pequenos proprietários, mas estes últimos em maior
número, é a construção de hidrelétricas no Rio Paraná e Rio
Iguaçu. Ainda na fase de projeto, a hidrelétrica de Ilha Grande
Baixa, por exemplo, a norte de Guaíra, no Rio Paraná deverá
inundar área igual ao reservatório da Itaipu (1370 Km2). No Rio
Iguaçu, a Usina de Foz do Areia deverá formar um reservatório
de 206 Km2, ao passo que estão em fase de construção ou
planejamento ainda as de Salto Santiago, que desalojará cerca
de 600 famílias de agricultores, Salto Segredo, Salto Caxias,

91
Salto Capanema e Salto Grande do Iguaçu, além de hidrelétricas
menores nos afluentes."
Como vemos, esse documento ajuda a desvendar um
passado carregado de problemas de distribuição e de
assentamentopopulacional na região, que não vem àtona quando
se lêem os números populacionais. Porém, esses problemas são
impressionantes pela dramaticidade e complexidade quando
observados enquanto viveresdaqueles que migraramparae nesse
espaço.
Tempos diversos, vidas entrelaçadas
Mesmo com o fim do modelocolonizadorempreendido
pela MARIPÁ, o Oeste paranaense continuou sendo um destino
comum para muitos trabalhadores vindos do interior do próprio
estado, de Santa Catarina e do Rio Grandes do Sul e de outras
regiões brasileiras.
Sem dúvida alguma, os anos 1970 são um divisor de
águas na composição da paisagem social da fronteira. No caso
de Marechal Cândido Rondon, que ocupa uma larga porção
fronteiriçacom o Paraguai, isso resultou, dentre outras coisas, no
crescimento e consolidação do núcleo urbano fundado desde a
colonização. Todavia, essas transformações não devem ser
responsabilizadas apenas pelo êxodo dos trabalhadores agrícolas
coloniais, mas, paradoxalmente, pelo movimento de atração
populacional, que trouxe para a região trabalhadores paranaenses,
gaúchos, catarinenses e de outros estados da federação.
No trabalho de campo com os depoimentos, foi grande
minha surpresa ao interceptar trajetórias de migrados anteriores
a 1970, obscurecidas pelas afirmações da identidade alemã.
Nesse caso, merecem atenção as trajetórias de trabalhadores
não sulinos que chegaram à região no período imediatamente
anterior a 1970. Embora formem um conjunto reduzido, eles
marcaram a diversidade das trajetórias que compuseram a

92
colonização, motivo pelo qual talvez não sirvam à memória
oficial e se mostrem tão esquecidos.
Uma das características importantes dessas trajetórias
são os múltiplos itinerários percorridos por esses trabalhadores.
Antes de migrarem para a região, teceram uma verdadeira trama
de passagens por muitos lugares, quase sempre imbuídos pelas
promessas de futuro naquilo que verbalizaram simbolicamente
como “o Oeste”. Em suas rotas de sobrevivência, sonhavam
com um lugar chamado “Oeste”, ou ainda, às vezes, de maneira
mais generalizada com o “Paraná”. Esse sentimento talvez possa
estar sintetizado no livro Ficando Rico no Oeste do Paraná,
escrito pelo pastor Joaquim Crístian Siegfríed Pawelck, que
atuou de 1959a 1970emMarechal Cândido Rondon.12Embora
tenha redigido em tom descritivo as atividades econômicas,
religiosas e sociais da comunidade protestante local, o pequeno
livro congrega uma visão daquele mundo do desbravamento
da fronteira e da centelha de suas promessas. De alguma
maneira, também expressou o Oeste como uma espécie de
lugar síntese dos sentimentos que embriagaram tantos homens
em suas mobilidades.
Dona Amara Lins talvez seja uma das últimas
remanescentes do grupo de trabalhadores que não vieram do
sul brasileiro, tendo chegado ao Extremo-Oeste em 1961.
Nascida na cidade pernambucana de Lagoa dos Gatos, deu
inicio à sua trajetória de migração aos nove anos, quando foi
para Palmares de Unas, Alagoas, onde começou a trabalhar
como cortadora de cana numa usina açucareira, a que chamou
de Catende. Em seu trabalho nos canaviais, dona Amara
conheceu o seu Benedito, com quem se casou e migrou para o
Paraná.
A terra constituía-se, sem dúvida, no sonho maior que
alcançava homens e mulheres de lugares tão distantes. Em sua
narrativa, lembrou com apreensão do momento em que:

93
Os caras que vinha praqui voltava pro Pernambuco, praAlagoas,
contaram pra ele [Benedito], que aqui a pessoa com 50 real
[moeda atualizada pela depoente] comprava terra, propriedade
de terra grande que podia conviver com família. E nisso o véio
caiu na bobeira e acreditou. Chegou em casa combinou comigo.13
O ponto de partida para São Paulo foi de Garanhuns,
Pernambuco, iguais a tantos outros que deixaram o Nordeste em
pau-de-arara: “dormimos na migração, no outro dia ganhamos
vacina pra entrar no Paraná e vinhemo pro Paraná”.Aparagem
em São Paulo, na migração, ficou marcada em sua memória,
bem como as condições em que viajavam com:
Só a roupa do corpo e um saco de farinha de mandioca. Farinha
de mandioca dentro e a carne de charque e as colher pra comer
farinha nos local que parava pra descansar. Porque para o resto...
nós não tinha dinheiro mesmo. Nós vinha comendo farinha de
mandioca e carne seca assada, no saco de farinha (risos).14
Há uma questão muito interessante na narrativa de
Dona Amara sobre a trajetória da família Lins. Segundo ela,
o destino não era a cidade de São Paulo, era o Paraná, mas
não o Oeste paranaense. Primeiro, Dona Amara e o marido
aportaram, já com cinco filhos, na frente nortista, na zona
rural de Jandaia do Sul, onde trabalharam numa plantação
de hortelã, realizando as mais diversas tarefas de plantio e
extração do óleo desse vegetal, além de também terem
cultivado café, como meeiros. Na recordação da itinerância
dona Amara os detalhes sobre a decisão de migrar de
Borrazópolis, uma outra cidade próxima para ondejá haviam
se mudado:
Dirigido por um amigo. Um amigo que trabalhava de capataz,
o patrão, cê sabe? O tal de gato que anda derrubando mato,
sabe? Eles vinha praqui derrubar mato, trazia turma de homem
pra derrubar mato, pra ganhar dinheiro. Então ele falou pro meu
véio:—Seu Benedito, vamos entrar pro Oeste do Paraná, vamos
tentar a vida lá? Lá está abrindo mato agora, fazendo estrada.

94
As coisas estão começando agora, lugar novo, vamos pra lá,
eu te ajudo vocês.1’
Na região Oeste, a mão-de-obra dos Lins foi utilizada
no desmatamento da floresta, ainda não totalmente derrubada
nos anos 1960. Para os migrantes nordestinos, a promessa de
tora movia-os de uma maneira muito entusiasmada
Interessante notar, no desenho da mobilidade de Dona
Amara, os significados de sua travessia pelo solo brasileiro.
Inclusive pela capacidade de foijar decisões no interior de um
processo migratório nunca definitivamente concretizado, até
porque ainda na infânciajá havia migrado pela primeira vez de
Pernambuco paraAlagoas. Nesse caso houve um sobressalto, e
a composição de uma memória romântica que reconstitui o
passado, ressaltando as perdas no meio do caminho. Para Dona
Amara, migrar para o Oeste significou, todavia, contrastar os
sonhos de conquista e fartura, que fazem parte do emblemático
universo da migração, com uma realidade concreta de perdas do
mundo talvezjá conquistado e deixado para trás, em Alagoas,
para ondejá havia migrado uma vez:
Nós tirava por mês dois milheiros de banana, ia para Garanhuns
a nossa banana, nós tinha mesmo pra exportar sabe? O caminhão
não pegava na porta, mas nós levava nas costas do cavalo e
botava na cidade e a cidade embarcava, encaixotava e levava
para Garanhuns. Porque lá tinha fábrica de doce. Nós tirava
duas carga de banana por mês, nós tinha porca criadeira, uma
porca pra criar porco pro gasto, nós tinha pato, nós tinha ganso,
todo tipo de galinha, nós tinha um terreno pra plantar abroba.
Safa dois caminhão de abroba, vendida a quatro centavo o
quilo. Nós tinha terra dc mandioca completa, mandioca, inhame,
gengibre, feijão, alfafa que dá na rama da mandioca, nós tava
com.tudo completo pra colher na roça. Uma planta de abacaxi,
uma planta de gengibre, e uma planta de inhame e um planta de
mandioca na hora de colher pra fazer farinha. E esse bananal.
Nós pagava uma importância de cem real por ano. Trabalhava o

95
ano inteiro, nós pagava a importância pro patrão de cem real
pra colher. Ou todo ano a colheita e se vir se manter com o que
tinha Nós acabemos com tudo, meu filho. E liquidemo tudo, e
viemos para o Paraná.16
De alguma maneira o conteúdo da narrativa de fartura
lembrado por Dona Amara forjou um trabalho da memória de
contraposição entre o mundo deixado para trás e aquele
encontradoem seu destino. Destacaamisériavivenciadano novo
lugar, assim como afirma subliminarmente os significados da
conquista, mesmo não tendo sido essa alcançada.
Seu Cosme Ferreira Gonçalves, o seu Pracinha como
prefere em ser chamado,17compartilha com DonaAmara outras
experiências de mobilidade antes de chegar ao Paraná, em 1966,
com apenas 18 anos, quando desembarcou em Assis
Chateaubriand. Mineiro de Itueta, Pracinha recordou, com
detalhes e uma ênfase narrativa peculiar, a infância e a mudança,
ainda criança, para os cafezais de Santa Luzia do Pâncrea, no
Espírito Santo:
Minas Gerais é impossível lembrar porque o seguinte: - e eu
nasci em Minas Gerais, sou natural de Itueta e de Minas então
a gente foi pra Espírito Santo. E a gente foi no balaiode cargueiro,
que naquela época seria o transporte mais adequado. Então... A
gente era muito novo."
Um dos traços marcantes da narrativa de Pracinha é o
modo detalhado e linear de relembrar sua experiência migrante.
Seu corpo é envolvido numa aura de rememoração, construindo
uma performance de profundoenvolvimentocom o queestásendo
dito. E, muito mais também, do não dito, quando a emoção de
falar o faz reviver um mundo que até então somente ele havia
experimentado e guardado.
Tirando“MinasGerais [que]é impossível lembrar”,ponque
fora apenas seu lugar de nascimento, rememorou sua trajetóriade
vida com imagens bastante elaboradas. O trabalho como meeiro,

96
en^xraididopcxsuafarníHanoscafezaisdeSantaUiziadoPânaea,
noEspírito Santo, ganhouimportânciaelhepossibilitourefletirsobre
a condição de trabalhadorerrante. Num interessante momento da
narrativa, Pracinha se auto-advertiu para a temporalidade passada
de sua experiência em que “então o que acontece, acontece não,
acontecia melhor dizendo”.
No Espírito Santo sua famíliatrabalhou nos cafezais que
outrora eram de Minas,já que:
Nas época então o café era a principal fonte de renda nossa,
mas como nós era meeiro, nós tinha que dar partes pro patrão.
Então tinha anos que as vez a safra era boa, você faturava mais
ou menos de acordo. Então, sempre se sabe, quando você
fatura bem, você anima pro próximo ano. Tinha ano que as vez
você não tinha essa felicidade, de repente...19
Do súbito silêncio, seu trabalho da memória evoca com
emotividade, as palavras cruciais de seu pai:
Eu não, nunca mais vou mexer com lavoura de café, eu não
quero mais mexer com lavoura dc café. Nós vamos embora pro
Paraná. E na época... Paraná, sempre foi e continua sendo,
referência no país inteiro porque produz bem. Nós vamos vender
tudo que temos e vamos pagar o que nos restou dever e aí nós
vamos embora pro Paraná!20
Há algo de emblemático na versão de Pracinha sobre a
decisão de vir para o Paraná. Como mesmo argumentou:
Só que aí vem àquela história: você conhece o Paraná? [Ele
próprio responde] Não conhece!Nós não conhecíamos o Paraná.
Só que é como eu te falei antes, a gente sempre obediente aos
pais, ele falou: nós vamos! Então vamos!21
É preciso destacar o caráter incerto dos itinerários dessas
trajetórias, quando esses trabalhadores se lançavam à migração.
Como expressou Pracinha, Santa Luzia do Pâncrea:
Não serve mais! Eu preciso de sair! Eu preciso de procurar
melhora! Não se sabe se vai achar melhora, mas... Sc sai sem

97
rumo. Nós tinha um rumo que era Assis Chateaubriand, mas
saber o que ia fazer nós não sabia. Nós viemos na escura! O pai
falou, nós viemos!22
Oscondicionamentosde tersido“dirigidoporum amigo”,
como aparece na narrativa de Dona Amara, ou simplesmente
por ter vindo “na escura”, no caso de Pracinha, indicam o campo
da precariedade e imprevisibilidade enfrentadas por esses
trabalhadores vindos de tão longe. As versões organizadas acerca
do planejamento da colonização, em que os colonos sabiam o
quequeriam, quando submetidas ao confrontocomtaisnarrativas,
adquirem novos sentidos e denunciam outros esquecimentos.
A precariedade encontrada por esses trabalhadores
mostrou-se pouco incomum para tantos outros trabalhadores.
Tanto é que parece ter exigido à época a criação de toda uma
estrutura de acolhida dos migrantes pela Igreja Católica deAssis
Chateaubriand. Restou a Pracinha, no conflito entre o vivido e a
lembrança, maisuma vez interrogar
Então, o que aconteceu com nós? Nós chegamos e como nós
era uma família grande, então era preferência a família maior na
época, por causa mesmo que a lavoura da hortelã exige bastante
gente. Então como nós tinha um contingente de família bem
grande, então, pra nós não foi assim tão difícil. A única coisa
que pra nós foi mais difícil, porque você sabe, chega aqui sem
conhecer ninguém... Nós fomos, nós apeamos do caminhão,
entramos dentro do pavilhão da Igreja Católica de Assis na
época, a Igreja era de madeira, hoje ela é igreja de material.
Então nós se acomodemos no pavilhão.23
A narrativa pareceu detalhar não somente um dado
acontecimento, no caso a recepção advertida do padre, mas o
verdadeiro trabalho da memória de reconstrução desse passado
para sua vida atual. Desse modo, “então, o que aconteceu com
nós?” [e olhou fixamente como se aguardasse uma resposta]
parece ser uma pergunta à maneira de uma porta entreaberta,já

98
que outros perigos concretos pareceram rondar o viver desses
homens dispostos:
Pra trabalhar, pra desbravar esse mundão, aquele mundão,
vamos dizer assim: Assis Chateaubriand. Só que existia aquele
perigo também e tinha muitas pessoa que de repente, se você
não tinha... Que como você não dnha uma certa experiência...
Tinha muitas pessoas que, às vezes, o primeiro que chegava
fazia a proposta. Fazia a proposta e ele já levava pra ir pra
lugares distantes, no meio do mato. E ele propunha uma coisa
como patrão, e chegar lá, era outra. Só que as vez chegar lá não
tinha com você sair. Depois que você tava lá na mão deles, não
tinha como você sair.24
Em sua narrativa, a família teve a sorte e a proteção
divina, enquanto outros tantos talvez não tivessem tido. Como
Pracinha mesmo observou, esse era um tempo em que “o padre,
ele celebrava a missa e ele avisava pra todas essas pessoas que
vinha, tinha bastante. Agente saindo pra trabalhar com alguém,
outroschegandoe ele avisava Avisava: cuidadocom quem vocês
vai!”25
O trabalho escravo apareceu na narrativa de Pracinha
como uma das perversidades daqueles mundos do trabalho da
época Embora muito implícito, pelo que se apreende foi uma
ameaça que rondou o viver desses trabalhadores. Aesse respeito,
encontram-sealgumas referências na literaturamemorialistasobre
o período anterior à colonização, quando o espaço ainda estava
sob o domínio dos argentinos, no começo do século XX,
ganhando algumas notas nojornalismo regional:
Ondy Niederauer, contador da Companhia Maripá na época da
colonização de Marechal Cândido Rondon, ocorrida por volta
de 1950, em seu livro Toledo no Paraná, publicado em 1992,
também aborda a questão dizendo que ‘atribui-se a um tal de
Santa Cruz, cunhado deAllica [representante de umadas famílias
exploradoras de erva-mate que, à época, era exportada para
Buenos Aires], as atrocidades cometidas contra os

99
trabalhadores, pretensos empregados, aos quais não se permitia
abandonar o emprego. O acerto de contas era com Santa Cruz,
em seu escritório, onde existia o célebre sótono.26
O quechama a atenção na matériaveiculadapela Revista
Região, não se limita propriamente à veracidade dos fatos,
lembrados por Niederauer, consideradoum dos mais importantes
memorialistas e colonizadores. A questão importante está na
maneira como esse passado volta a cena pública, na imprensa,
como parte de um passado morto e enterrado, onde:
Todas as evidências realmente indicam que o local onde se
construiu o município de Marechal Cândido Rondon, e neste
caso o distrito de Porto Mendes, retrata um espaço que, além
de inspirar poetas, cantores e pintores, falando dos imigrantes,
dos rios, e dos animais, também tem histórias de trabalhos em
sistema de semi-escravidão, onde os servidores passavam por
um lúgubre ritual para fazer o seu acerto de contas.27
Entre o passado das ameaças de trabalho escravo da
década de 1960, lembrado por Pracinha, ao das denúncias de
escravidão do começo do século XX, que retoma à cena com
ares de passado morto e enterrado, constitui-se um campo
disputas por significados diversos da colonização. De um lado
pode se acrescentar a presença e a participação de Pracinha
que, “graças a Deus, nós tivemos uma sorte” de não cair nas
redes dessa exploração. E, do outro, uma exploração antigajá
então abolida, que persistiu até o presente como uma estratégia
legitimadorada memóriatriunfantedacolonização, que otganizou
seu espaço atual sem tais conflitos.
É válido sublinharque os itinerários da migração de dona
Amara e Pracinhaparaa regiãopodem seresboçados com relativa
tranqüilidade, o que já não ocorre com seu Orlando Bauduíno
dos Santos. Nascido em Bonfim de Feira, na Bahia, esse
informante levou-nos a uma trama impressionante de seus

100
itinerários pelo solo brasileiro, antes de chegar ao Oeste, no
município de Matelândia no começo de 1970.
Seu Orlando deixou a Bahia ainda pequeno, quando a
família migrou para o interior do estado de São Paulo, próximo à
cidade de Birigui, para trabalharnos cafezais daquelaregião. Com
a morte dos pais, ao menino Orlando, então com apenas 13
anos, não restou outra alternativa senão morar com um dos tios.
A vida de órfão e o descompasso pessoal com os modos de
viver da família que o adotara colocou-o em atenção para uma
mudança, até que então:
Aí foi um dia um boiadeiro falou para mim, ele veio trazer uma
boiada em Araçatuba e eu não sei porquê que eu estava em
Araçatuba aquele dia. Que de Birigui aAraçatuba é perto. Aí ele
disse olha: tu quer, quer trabalhar com nós? Eu tava montado
num cavalo, que vem de lá da fazenda em Araçatuba. Aí ele
disse olha quer ir trabalhar com nós, nos puxa boi, boiada,
assim. Você tem prática? Digo na fazenda sempre ajudo lá o
campeira. Aí fui, cheguei lá, só pequei a mala. Como diz o outro,
pequei a roupinha e me mandei.2'
Segundo detalhou seu Orlando em sua narrativa,
trabalhou “puxando boi de Mato Grosso até Barretos” até a idade
de 18 anos, quando, cansado da vida de peão boiadeiro, foi
para a cidade de São Paulo. Conforme lembrou com detalhes,
precisou regularizar a sua situação com o serviço militar e tirar
sua carteira de trabalho. Somente depois disso, foi “trabalhar lá
em São Miguel [bairro de São Paulo], numa fábrica de pólvora”.29
Na fábrica, seu Orlando trabalhou apenas três meses. A
curta permanência no trabalho se deveu a uma grande explosão
que provocou a morte de muitos trabalhadores. Atragédia o fez
pensar “a gente fica sempre com aquela impressão, será que vai
acontecer, será que não vai? Aquela coisa, mas e depois a gente
vai acostuma. Mas, cara novo, não tinha prática de ver algumas
coisa”.30

101
Seu Orlando encerrou seu trabalho fabril em São Paulo
“porque ouvi uma notícia pelo rádio que um amigo tinha. E ele
falou: olha, ta tendo, vai terum serviçomuitobom, falou naRadia
Nacional, que vão abrir a praia de Bertioga”.31Nessaempreitada
também ficou por pouco tempo e “quando terminou o serviço de
explanagem, que era pra mode continuar com os prédio, então
numdiasó, foi despachado600homem, ondeeu entrei no meio.”32
Demitido, seu Orlandotomouo tremda Sorocabanapara
Rancharia, aindano interiordoestadode SãoPaulo, ondetrabalhou
como operáriode uma serraria de madeiras. Depois, migrou para
Oswaldo Cruz, onde continuou trabalhando como um peão do
setormadeireiro, e logo depois retomou aAraçatuba e Birigui:
Onde estava os conhecido lá. Não achei meus irmão, meus
irmão tinha ido pra São Paulo também. Aí eu fui para São Paulo.
Aí quando cheguei lá, eu digo: sabe de uma coisa, eu não vou
ficar aqui, eu vou voltar e tocar uma roça. Aí vim pra beira do
Rio do Peixe lá, e toquei sozinho treze alqueires de arroz
sozinho.33
Depois de realizadaatarefa, seu Orlandodeixou o interior
paulista e migrou para o Norte paranaense, acompanhando o
movimento de ocupação de Londrina e região:
Não lembro em que mês de 49 que era, sei que era bem no
começo do ano. Aí foi o tempo que eu falei que veio esse avião
denubando as propaganda, que eu tava lá na tal de serraria e
peguei uma. Aí, pedi a conta e vim pro Paraná,49.*
Importante notar o fato de seu Orlando, antes de se
incoiporar à chamada frente de ocupação do Norte do estado,
em 1949,já haver cerzido uma enorme trama de itinerários entre
o estado da Bahia, onde nasceu, e o interior e a capital do estado
de São Paulo, aportando primeiro na chamada frente pioneira do
Norte do estado do Paraná.
Como observou France Luz, em seu estudo sobre as
migrações na microrregião Norte-Novo de Maringá 1950-1980,

102
que “o Estado do Paraná, e com mais intensidade a sua região
Norte, começou a adquirir importância como pólo de atração
dascorrentes migratóriasno iníciodeste século, assumindoposição
de destaque nas décadas de 40 e 60”.35De algum modo, seu
Orlando deixou rastros de participação, primeiro como
trabalhador da região Norte e depois na Oeste, aonde chegou
somente no início dos anos 1970.
De um modo muito diferenciado das perspectivas
demográficas, a interceptação das trajetórias de donaAmara, de
Pracinha e de seu Orlando, tomadas possíveis por meio de suas
narrativas, deu uma nova qualidade ao processo social envolvido
em tomo dessas mobilidades, especialmente de sua face insossa
quandovistatão-somentepelos númerosou vetores demográficos.
O caso de seu Orlando reivindica uma reorientação
dos sentidos e uma nova percepção desses movimentos
populacionais, vistos muito de sobrevôo pelos números
populacionais. Ou muitas vezes explicados suscintamente por
meio de ordenações morais estratificadoras que viam os
trabalhadores vindos para o Oeste pelo filtro do “predomínio”
da migração sulinae de origemeuropéia Nesse sentido, observou
ValdirGregoty que:
Predominaram os descendentes de italianos e de alemães,
concentrados em determinadas áreas e eram preteridos os
descendentes de poloneses e ucranianos, que avançavam em
direção ao Oeste pelo Sul Paranaense, em número nada
desprezível. E, com maior determinação, se barrava o acesso ao
‘pelo duro* nortista, que representava a frente cafeeira que
estava ocupando o Norte do Paraná.36
Essas abordagens, muitas vezes generalistas, fazem notar
vácuos indeléveis de significados acerca dessas mobilidades dos
trabalhadores, que somente são tomados vividos na audição de
seus trabalhos da memória. Quem, de fato, são esses
trabalhadores “pêlo duro” que migraram para o Oeste a partir de

103
permaneceram por mais de quatro anos. Até que então, “daí
fomos paraJundiaí [no interiorde São Paulo], tem maisessa!”.No
caminho passaram por Guaíra, no Paraná, onde se casaram no
civil. EmJundiaí: “nóspagavaaluguel. E nos moremos lá 10meses,
não chegou 10 meses. Ele trabalhou só quatro meses, que ele
não tinha estudo nenhum”.44
Até a primeira metade da década de 1970, a mineira
dona Margaridajá havia desenhado um itinerário de grandes
distâncias no solobrasileiroe no Paraguai. DeJundiaívoltoucom
o marido e o filho para o Paraguai, porque havia recebido do pai
um pequeno pedaço de terra. Lembrou com precisão desse
momento quando seu marido “derrubou o mato e queimou a
terra e plantou o café. Junto com o menino quejá tinha mais de
cinco anos. Ele [filho mais velho] também pequeno ainda, atrás
já começou a trabalhar também, ajudar a plantar o café”.45
A vida no Paraguai durou pouquíssimo tempo. Seu pai
vendera as terras para comprar outras, no Mato Grosso do Sul,
para onde rumaram em seguida com sua família. Esse, talvez,
tenha sido um dos enfrentamentos mais difíceis para dona
Margarida Seis meses depois da nova mudança, seu marido
morreu e “aí eu queria voltarpra trás, mas é muito difícil sair de lá
(pausa). E meu pai tava em Paloma,junto com os outros filhos,
aqui no Paraguaia E é um lugar... É difícil até pra comunicar. O
que que eu fiz, eu não tinha endereço pra mim escrever uma
carta Eu escrevi pra minha irmã aqui em Rondon, que o endereço
dela eu tinha.”46Na volta do Mato Grosso “nós chegamos no
Paraguaia, lá nós ficamos na casa do meu pai a base de um mês.
Daí ele construiu pra nós uma casinha lá, cercado de parmito e
pra nós trabalhar lá. Nós fizemos uma lavorinha lá ainda”47
A irmãde donaMargarida moravaemMarechal Cândido
Rondon desde 1987,quandoentãosecasaraedeixaraoParaguai.
Seguindo a rotajá desenhada pela irmã, dona Margarida decidiu-
se uma vez mais: “daí eu achava que não dava pra ficar lá, a

106
mulher sem marido com os filhos, o filho novo ainda, meu filho
mais velho só tinha 13 anos. E precisava de estudar, o estudo no
Paraguaia é muito fraco, e eu já estava aposentada [recebia
pensão do marido] aqui.”48 Finalmente, ela e os três filhos
mudaram-se para Marechal Cândido Rondon, em 1992. Mal
sabia, todavia, que o desafio de viver na cidade ainda lhe pregaria
algumas novas peças, já que “na roça também já era difícil, a
gente era acostumado a sofrer, hoje eu penso que a gente gasta
mais”.49
Tal como Margarida, donaMaria Senhorado Nascimento
vieradeMinasGerais. Embora nascidaem LagoaSeca, no interior
do estado de São Paulo, migrou ainda muitojovem para Minas
Gerais, mudança motivada pela doença do pai:
Então meu pai operou da cabeça, a sinusite... que ele tem a
sinusite. Então ele trabalhou... O povo proibiu muito ele de
trabalhar naquele tempo, que ele trabalhava de terra arrendada.
Ele arrendava terra pra trabalhar. Então umtempoele ficou ruim...
que não podia trabalhar. Então resolveu pra nós ir pra Minas.
Então foi lá que nos foi e se acabou de criar, lá em Minas.50
A doença do pai tomou-se a principal justificativa para
aquelaprimeiramigração. Já emMinas, emRiachodosMachados,
em 1965, com apenas 16 anos, dona Maria Senhora casou-se.
Como ela mesma criticou “naquele tempo, a gente casava de
bobeira (risos). Cê sabe, porque a gente casava de bobeira,
porque na nossa criação, assim... Nós era os irmão e meu pai era
muito exigente. Então ninguém namorava, era bom dia, ora boa
tarde conforme chegava”51
E interessante notar como a recordação do casamento
está muita relacionada à sua decisão de migrar de Minas para o
Paraná e aos outros contornos de sua luta migrante:
Se eu contar essa história pra você, vai ser uma história muito
engraçada pra você (risos) (pausa)! Foi assim: o meu pai vinha
embora e o meu marido [que era de Minas], ele não queria largar

107
os pais dele, os parente dele. O meu marido quando ele era
novo, ele era assim muito vaidoso, ele gostava de pegar o cavalo
montar e sair. Unha vez que ele saía... Ficava... Eu sempre falo
com ele que eu tinha que ter, passar a minha vida um dia no
Sílvio Santos, pra os meu fio ver a vida eu sofri.52
DonaMaria Senhora estavadiante de um duplo desafio.
Por um lado, ver seus pais partirem para uma nova empreitada e
com a possibilidade de nunca mais tomar a vê-los. Por outro,
continuar vivendo em Minas e manter-se como animo da casa e
dos filhos. Conforme verbalizou: “sofri demais naquele tempo,
porque ele [marido] não tinha cabeça Ele era assim: conforme
tivesse as coisa pra comer ou num tivesse pra ele era a mesma
coisa Aí eu achei, pra mudar só se eu for embora pro Paraná
junto com o meu pai”.53
O desafioda decisãoexigiu-lheumpulso aindamais forte
e foi narradocom detalhes dramáticos. Anarrativa aflorou ritmada
numa alteração do seu processo respiratório. Então rememorou:
Nós já tava tudo pronto pra vir. As mala tava arrumada e
inclusive que nós podia comprar a passagem hoje de noite, nos
viajava hoje, amanhã de manhã. E ele dizia que não vinha, e eu
falava: você vai! Então vamos decidir assim: eu vou e se um
tempo você resolver, você vai embora pra lá. Ele dizia que não
ia. Então tinha um... aí ele tinha o cavalo pra vender. Ele vendeu
um cavalo dele, vendeu as coisa do cavalo, e não aceitava de
vim. Aí quando foi na noite que nós... Já com tudo arrumado pra
viajar no outro dia cedo, eu falei: oh, agora você decide se você
que ir ou não! Eu tô indo com meus pai pro Paraná! Aí naquela
noite ele resolveu pra vim embora pra cá.54
A decisão de mudar e os diferentes significados de suas
opções emergem nas narrativas, envolvidas em aura bastante
laudatória A memória busca dar vazão a um sôfrego desejo de
protagonizar acena reconstituída. Pierre Bouidieu problematizou
essa dimensão na constituição nos relatos, aque chamou de ilusão
biográfica, a qual:

108
Sem dúvida, cabe supor que o relato autobiográfico se baseia
sempre, ou pelo menos em paite, na preocupação de dar sentido,
de tomar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo
retrospectiva e prospectiva, uma consistência e uma constância,
estabelecendo relações inteligíveis, como a do efeito à causa
eficiente ou final entre os estados sucessivos, assim
constituídos em etapas de um desenvolvimento necessário.55
Os trabalhos da memória presentes na produção dos
depoimentos não se constituem apenas numaversão a mais sobre
as mobilidades vividas por esses trabalhadores. Muito mais do
que isso, surgem, subliminarmente, como lutas pelo
reconhecimento e publicização de suas trajetórias. As narrativas
conformam, dessa maneira, à luta pelo direito ao papel principal.
Nem que para isso seja preciso “passar a minha vida um dia no
Sílvio Santos”, como sintetizou dona Maria Senhora.
Cabe sublinhar, assim como evidenciou Bourdieu, que
os relatos muitas vezes tomam-se mais coerentes que a própria
trajetória de vida do narrador. Não se deve ver nisso uma perda
de importância ou de legitimidade do relato. Aliás, chama a
atenção para a riqueza subjacente aos trabalhos da memória,
como uma luta de incorporação de significados protagonistas às
suas próprias trajetórias, produzidos nos conflitos a que reportam.
Dando atençãoainda ao itineráriode dona Maria Senhora
e sua família, deixaram Minas Gerais e chegaram no Paraná no
rastro de alguns parentes quejá haviam migrado anteriormente:
Nós veio pra São Francisco. Naquele tempo, nós tinha... Foi
muito sofrido. Que nós chegou, só tinha meus parente, era
muito ruim... Daí ele estava muito ruim de situação. Meu pai
trouxe um pouquinho de dinheiro e foi agüentando... Nós
ajudando. Aí nós foi toca roça e ajudar. Quando nós chegô no
Paraná, lá em São Francisco, tinha a colheita de amendoim. Aí
nós trabalhava na roça, colher o amendoim. Logo chegou a
lavora de algodão. Nós trabalhava na lavora de algodão. Aí
quando foi um tempo apareceu, surgiu um serviço, que tinha
um serviço nas Três Barra, pra nós ir pra toca roça. Lá é mais

109
alemão, essas nação de gente. Aí eu tinha,três menino pequeno
e eu tava grávida da menina, a Idalina, que a minha fia que mora
lá em Quatro Pontes. Aí eu falei assim: meu Deus, mas e agora?
E nessa história dc Francisco Alves, meu marido pegou, nós
tava trabalhando lá em São Francisco, ele foi falo assim: ah,
aqui num ta muito bem, eu vou embora pra Paracatu [Porecatu/
PR]. Se ouviu falar nesse lugar?56
Uma vez mais as tensões com o mando pareceu dividi-
los em seus itinerários pelo solo paranaense:
Aí ele foi embora, ele foi pra lá trabalhar. Lá ele trabalhou, acho
que uns dois, três mês. Ele não dava notícia, se ele vinha ou
num vinha. E eu fiquei pensando: será que ele vem ou não vem?
Aí meu pai falou: eu resolvi ir pra Três Barra. E eu vou ir pra Três
Barra pra plantar uma roça, pra vê se nossa vida muda. Aí eu
falei que então o senhor vai eu voujunto, porque eu fiquei com
as criança, com as três criança em casa, e trabalhando de bóia-
fria. Trabalhava um dia pra um, pegava capuchera [restos] do
algodão, um dia pra um, um outro dia pra outro.57
Essa foi aprimeira vez que DonaMariaSenhorarevelou
o seu trabalho como bóia-fria. E narrou a mudança como uma
novaalternativa:
Ah, logo que meu pai foi embora pras Trcs Barras eu voujunto.
Então quando faltava, acho que dois dias que nós tava ajeitando
pra ir embora, ele [marido] chegou de Paracutu. Aí quando ele
chegou de Paracatu, naquele dia que ele chegou, no outro nós
viajou pras Três Barras5'
EmTrês Barras “tinha uns alemão, mas era mais gaúcho.
Então, tudo que ele prometeu aqui pra nós fazer, chegou lá a
maior força era mentira Aí as terra muito lavada, assim, muito
alta”,59o que os obrigaram a arrumar outro trabalho. Foram
admitidos em uma serraria onde trabalharam pouco tempo e
concluíram que “já num dava mais”. De Três Barras dona Maria
Senhora e a família migraram para Laranjeiras do Sul, já no
Oeste paranaense, para onde o marido haviaconseguido trabalho

110
numa barragem hidrelétrica em construção pela Construtora
Camargo Correia.
Depois de um curto período de tempo e já finalizada a
obra em que seu marido trabalhava, a promessa de trabalho da
empreiteira era em Belém do Pará. Diante disso, dona Maria
Senhora, assumindo posição mais firme perante o marido, disse
a ele que:
Num ia porque Belém do Pará é muito longe. Aí ele falou: então
nós não vai!Então, o direito que eu ganhei na firma eu vou sair
e vou pra Francisco Alves e vou comprar uma casa. Porque
nós,já num tempo [passado] morava lá perto de Umuarama. Já
sabia onde era Francisco Alves, aí nós veio...60
No ano de 1975, aproximadamente, dona Maria
Senhora e sua família chegaram à pequena cidade de Francisco
Alves, localizada a meio caminho entre Guaíra, Umuarama e
Palotina, situada na porção Noroeste do estado. Aí onde moraram
e trabalharam por quase 10 anos. Sobre esse período, lembrou
no depoimento que na cidade:
Era muito ruim de serviço, aí eu comecei trabalhar assim, carpi
nas roça, colher algodão, café. Porque, quando eu cheguei em
Francisco Alves, tinha muita lavora de café. Então a menina
Cida [uma das filhas] era mais grande, nós ia caipir, colher café,
roçar pasto. Quando não tinha outra coisa, nós ia roçar pasto.
Ele pegô, chegô lá ele tava muito ruim de serviço. Ele veio
trabalhar por dia em Guaíra. Ele veio trabalhar, eu nem sei quanto
tempo ele trabalhou em Guaíra, aí num dava lucro, pra lá e pra
cá, aí ele pego e veio.61
Embora tenham migrado para FranciscoAlves em 1975,
lugar que conheciam desde aépoca em que moravam próximos
a Umuarama, quando chegaram ao Paraná, muitas dificuldades
continuaram a pressioná-los:
Quando foi um dia, nós conversando. Aí o prefeito chamou ele
[marido] lá. Aí ele conseguiu arrumar um serviço, trabalhar na

111
prefeitura. Aí nos trabalhou na prefeitura. Foi o tempo que nós
trabalhou na prefeitura e num viu que num tava dando. Os fio
tudo grande, crescendo e nós num tinha condições do salário
dele, era muito pouco. E eu só trabalhando de diarista, de bóia-
fria. Aí nós pegô e veio pra cá. Foi quando, aquela vez que o
cara achou que nós tinha que vim pra cá, que aqui seria melhor
pra nós, foi o tempo que nós veio pra cá [Marechal Cândido
Rondon].62
Em meio às tentativas frustradas de melhoria de suas
condições de vida, dona Maria Senhora cedeu à proposta de um
reconhecidoamigoda família, itinerantede outras paragens. Desse
instante em diante sua narrativa passa a incorporar também as
tentativas desse “amigo”, desde o tempo em que se conheceram
em Três Barras: “e]e era pinhão desse patrão nosso. Então ele,
de lá ele veio pra cá... Não, naquele tempo nós saiu de lá e ele
era noivo. Ele casou e depois as roça num tava mais dando futuro
nenhum, com patrão dele. Ele pegou e veio embora pra cá
também, pra Rondon.”63
Interessante observar que, até então, dona Maria
Senhora e a família vinham protagonizando as decisões pela
migração. A partir desse momento parecem tocados por uma
esperança de um outro que se avizinhou. Até que “aí quando
chegou um tempo que num dava tava dando mais, esse rapaz,
trabalhava aqui [Marechal Cândido Rondon], foi lá tirar a lenha
Aí pediu pra nós vim pra cá, quando nós veio...”.64
Importa considerar a interceptação dessa trajetória no
interior do movimento migratório rural-urbano do Norte para o
Oeste observado por France Luz durante os anos 1980. Pois:
Enquanto as regiões Leste e Oeste tiveram, respectivamente,
aumentos de 801.963 e 440.122 habitantes, o Norte do Paraná
perdeu 542.104 dos seus moradores. A perda de mais de um
milhão de habitantes na zona rural foi, em parte, compensada
pelo acréscimo havido na população das cidades. Uma grande
parcela, no entanto, migrou para outros Estados da Federação.65

112
Entretanto, a trajetória de dona Maria Senhora,
reconstituída pelo seu trabalho da memória, reivindica outros
elementos não presentes nesses vetores demográficos ampliados.
Como se observa, há uma outra lógica com a qual se narra o
processo. Nesse caso, o urbano aparece não como um destino
objetivado, mas tomadopossível entre as lutas que se colocavam
à frente e as tentativas de sua superação. Em outras palavras, a
migração foi narrada como uma expressão de resistência e um
sonho adiado para o futuro. O que impressiona é a dimensão do
sonho e da esperança se manterem presentes, por mais duro que
tenha sido o passado vivido pelos sujeitos.
Em alguns casos, a itinerância não se encerrou no
momentode chegadano Oeste. Algunstrabalhadorescontinuaram
suas trilhas pelo solo brasileiro, mesmo depois que aqui haviam
aportado. Nesse sentido, entre os depoentes é de particular
interesse destacar as trajetórias do casal Francisco de Oliveira
Souza e de Ana Josefina de Souza, a Donana como é conhecida
por todos.
O casal migrou para Marechal Cândido Rondon em
1973, de onde saíram em 1985, rumo ao estado de Rondônia,
na nova fronteira aberta na região Norte do país. Somente foi
possível interceptar suas memórias da migração e emigração
porque esses trabalhadores retomaram depois de algum tempo,
pois a empreitada ao Norte foi malsucedida.
Interessa antes entrelaçar as trajetórias de seu Francisco
e Donana,já que ambos foram entrevistados individualmente. O
contato inicial fora feito com Donana. Ao realizar a entrevista,
seu Franciscopropôscom muitojeito a audiçãode suas memórias.
Essareivindicaçãofoi acolhidae trouxeuma riquezade elementos
que merecem ser apontados.
Embora tenham migrado para o Paraná em tempos
diferentes, a trajetóriade casados começou em 1965, no município

113
de Iporã, entre as regiões Oeste e Noroeste do estado. No
cruzamento de suas experiências, submergem mundos que
pareciam lutar para serem esquecidos e outros, para se tomarem
públicos. Uma coisa a destacar e que impressiona nas narrativas
deste casal é o processo de reconciliação e publicização que faz
com seus passados empoeirados de tantos itinerários. O que, a
bem da verdade, não ocorreu exclusivamente com esses dois
trabalhadores. De fato, as narrativas da grande maioria dos
entrevistados surgem mergulhadas em dolorosos processos de
reconstrução do passado no presente. Para eles, a procedência
nordestina foi narrada como uma condição de desalinho às
memóriasconsideradaslegítimas.Emmuitosmomentosmostraram-
se tímidos, constrangidos mesmo, com as experiências vividas
nessas paragens.
Seu Francisco nasceu em Palmeiras dos índios, Alagoas,
em 1932. Porém, quando migrou do Nordeste, em 1953, já
moravaemSergipe,paraondefoi “versemelhoravaumpouquinho
de vida. Que as terra de Sergipe é mais forte e era melhor de se
viver.”66Já Donana nascera em 1941, em Condeúba, Bahia, um
lugaronde:
A gente levava uma vida muito difícil, até quando eu estava,
mais ou menos, com seis anos de idade. A vida estava tão difícil
que meu pai pegou e deixou minha mãe lácomeu, mais uma irmã
que tinha e veio aqui pro Paraná trabalhar. E daqui ele mandava
dinheiro pra nós lá na Bahia. E isso ele ficou aqui três anos. E,
depois desses três anos, foi que ele então resolveu ir lá e nos
trazer aqui para o Paraná.67
Como a maioriados entrevistados, o pai de Donana ‘‘saiu
assim sem destino”, para onde “veio parar ali numafazenda que
tinha ali no município [paranaense] de Centenário do Sul pra
trabalhar pra fazendeiro ali”. Naquela época, Donana, aguardou
naBahia o retomo do pai para buscá-lae à família, o que somente
acabou acontecendo no começo dos anos 1950.

114
Já Seu Francisco deixou Sergipe e a sua família de
pequenos agricultores movido por uma decisão solitária:
Tinha a casinha da gente, trabalhava na roça, mas a vida meio
apurada. A vida apurada! Quando foi aí eu falei pro pai assim:
eu vou pro estado de São Paulo. Eu vou ver se eu airumo
alguma coisinha, eu pra lá. Aí vim pro estado de São Paulo. Aí,
fiquei um tempo lá pro estado de São Paulo, colher algodão...6*
Seu Francisco lembrou da viagem no pau-de-arara em
que “tudo mundo vinhavendido pros fazendeiro aqui”, na ocasião
do município de Pirapozinho, no interior paulista Sua narrativa
foi verbalizada no tempo presente, quando então “chega aqui, a
única coisa que eles pega, pega a mala da gente e prende pra não
fugir. Inté o senhorpagar. No dia que o senhor paga eles entrega
a mala”.69
Passado algum tempo, o pai de Donana buscou-a e à
família na Bahia, quandoentão vieram:
Pra Centenário do Sul [Paraná], na fazenda... Até o nome da
fazenda era Fazenda São Domingos, chamava essa fazenda,
que nós fomos trabalhar. Meu pai plantou então cinco mil pés
de café e nós fomos trabalhar. Durante cinco anos nós ficamos
nessa fazenda. Aí depois dessa, de cinco anos, foi que nós
viemos pra cidade, de Centenário do Sul.70
No caso de seu Francisco, esse morou por pouco tempo
no interior paulista até que:
Com 90 dias paguei a conta. Aíjá fiquei libero, podia ir pra onde
eu quisesse. Aí quando terminou a colheita de algodãojá fiquei
com um pouquinho de dinheiro. Ah, não! Me falaram que na
fazenda do Hugo Borges, lá no Santo Inácio, era bom de morar
e ele dava até pra plantar arroz. Eu fiquei como filho da casa,
ajudava um pouco na fazenda...71
Quando deixou os cafezais, Donana foi trabalhar em uma
pequena mercearia empreendida pelo pai, onde ficou por um
período de aproximadamente três anos. Depois mudou-se com

115
os pais para Narandiba, distrito de Pirapozinho, São Paulo, onde
o pai, agora pastor, foi “abrir trabalho evangélico”. Dois anos
mais tarde, voltaram ao Norte do Paraná, para Mandaguaçu,
onde ela começou a trabalhar como costureira e o pai, como
pastor de uma igreja evangélica
Antes de conhecer seu Francisco, em 1965, em Iporã,
Donana ainda se mudou para Umuarama onde viveu por quatro
anos. Embora tenham circulado no mesmo período pela região
queabrangeo município de Pirapozinho, somentecruzariamseus
itinerários em Iporã algum tempo depois.
Em 1985, seu Francisco e Donana estavam morando há
mais de 10 anos em Marechal Cândido, quando decidiram “ir
pra Rondônia, pra melhorar mais de vida”. Seguindo as trilhas da
memória de Donana a decisão de migrar para Vilhena teve a
seguintemotivação:
A gente escutava falar, que ia muita gente pra lá. E que lá era
muito bom, noticia, comentário... comentário que a gente
escutava. Que lá em Rondônia era muito bom, que lá a gente
arrastava dinheiro com rastelo, não sei o quê? Isso que levou
nós pra essa ilusão, que levou nós pra ir pra lá em Rondônia.72
Na ocasião, lembrou ainda Donana que:
Vendemos a nossa casa, nós tinha dois carrojá, trabalhando de
empregado no banco, a gente conseguiu, sabe? Dois carro, eu
tinha o meu carro e ele tinha o carro dele e resolvemos vender
casa, vender os dois carro pra ir pra Rondônia, pra melhorar
mais de vida. E aí foi aonde que nós tomemo na cabeça. Lá em
Rondônia... nós ficamo três anos lá em Rondônia!73
A decisão de retomar para Marechal Cândido Rondon
foi entremeadaporvárias motivações, lançandoluzes não apenas no
processodo retomo mas também no de saída Lembrou Donana
A gente já tinha acostumado com os alemão... Eles já tinha
pegado confiança com a gcntc. A gente se davajá bem com os

116
alemão, porque os alemão... os alemães é assim: eles são meio
desconfiado com a gente, depois que eles pega confiança com
a gente, aí tem tudo. Então nós pensamos, não, lugar melhor
que... Pra Iporã não adianta nós voltar, que nós não vamos se
dar bem. Então vamos voltar pra Rondon, porque lá... Porque
aqui cone muito dinheiro,já correu, e aindacorre muito dinheiro.
Que os colono aqui é cheio do dinheiro (risos). Então a gente
pensou em voltar pra Rondon. Porque nós pensamos, lá pelo
menos corre dinheiro, lá a gente vai conseguir um empreguinho
ainda pra trabalhar. E como, justamente, chegamos aqui e já
começamos trabalhar de novo.74
O trabalho da memória de Donana não logrou as
motivações do retomo, mas explicitou o aprendizado acumulado
nessas itinerâncias, que os ajudou a se moverem com outras
estratégias de sobrevivência social, dentre as quais a de se
permitirem, no conflito, a que ‘‘ele pega confiança com a gente”.
Como se pode observar, Donana processou sua memória como
uma identificação dos agentes envolvidos nesse processo do
retomo.
Além dos trabalhadores migrados de longas paragens,
outros paranaenses de itinerários geográficos próximos são
igualmente importantes nessapaisagemsocial da fronteira. Dentre
eles ganha destaque a trajetória de dona Maria Felipa Encinas,
que chegou ao distrito de Belmonte, no município de Marechal
Cândido Rondon, em 1954, ainda nos tempos da colonização
planejada.
Nascidaem Guaíra, num municípiodo Oeste de fronteira
paraguaia, dona Maria Encinas adquiriu o sotaque castelhano,
que mantém até os dias atuais. Filha abandonada de pais
argentinos morou, até os 15 anos, naquela cidade quando então:
Chegou um rapaz que queria namorar comigo, veio de Mato
Grosso, que foi meu marido. Ejá queria me agarrar, me abraçar,
eu não queria. Tinha medo dele, nossa, até eu morder o rapaz.
Tirei um couro, me levaram pra polícia por causa disso. Mas eu

117
não queria, tinha medo, medo mesmo. Daí ta! Daí ele falou
assim então pra mim, se você não quer fugir, então nós vamos
casar? Que que eu vou falar, vamos casar, falei. Aí a mãe dcla[c]
falou: não, eu aceito essa menina, uma menina de direito, eu
sei onde ta trabalhando. Ele veio de Pontaporã, finado meu
marido, esse né? Então nós se aceitemos e casei na Igreja
Católica.75
Interessa destacar como a narrativa de dona Maria
Encinas e a de outras mulheres aqui lembradas até o momento
relacionam seus itinerários migratórios na esteira da vidade seus
maridos ou pais. Tanto quanto, os dramas pessoais incorporados
à narrativapossibilitam umacompreensão ampliada dos limites
de violência que rondavam o mundo dos que viveram aquele
espaço no tempo da colonização. No caso de dona Maria,
revelam as motivações que forjaram sua mudançapara Marechal
Cândido Rondon ainda nessa época. Como ela própria lembrou:
Daí me mudei pra cá e vivemos muitojudiado em Rondon, em
Guaíra. Eu não era pra vim. Mas é que os parente dele fizeram
uma sujeira em nós. Roubou uma arma, foram pra ilha, mataram
gente pra lá. Daí então meu marido ficou preso. Eu falei não. Daí
também já me levaram presa porque, por causa de um cara,
passei uma foice, ele queria me pegar, falei não, que meu marido
tava na cadeia, isso não. Olha, não ficou nem três dia. Logo
saiu, já falei pra eles tirar porque não tinha culpa. Eles acharam
que meu marido não tinha culpa. Daí nós viemos pra cá. Viemos
pra cá, ficamos na colônia aqui em Belmonte. Ali nós fiquemos.
Aí fiquei doente, doente, doente, ia morrer, ia morrer, não tinha
mais cura.76
Na forma de uma avalanche narrativa, várias questões
se imbricam na reconstrução desse passado da colonização.
Desencadeando uma seqüência de lembranças desse tempo
marcado por nenhum lirismo, o motivo da mudança recaiu sobre
a ameaça da violência, quando então o marido foi preso e acusado
de um crime. Foram tempos marcados por assassinatos,

118
perseguições, violência, precariedade das condições vida e de
trabalho, ou seja, de um mundo limite que foijou a migração.
Mas a narrativa de dona Maria Encinas deixa claro, sua
narrativatambémfez lembrar, entretanto, queaviolênciacontinuou
a persegui-la no viver rural de Marechal Cândido Rondon, para
onde havia se movido:
Meu marido foi fazer um pecado com outra guria, assim, outra
mulher, daí então saí. Aí fiquemos aí em Belmonte. Aí teve essa
minha filha Elma, aí teve esse Tilo, Eliane, tudo. Quando tava
pequeninho esse piazinho, eu já tava grávida de novo. Aí
mataram meu marido aqui em Belmonte.77
Viúva e com nove filhos, dona Maria Encinas não
permaneceu no distrito de Belmonte por muito tempo. Sozinha
com os filhos pequenos naquele lugar hostil, precisou de forças
extras para se defender da discriminação, chegando a afirmar
que suafamíliatambémera “gente fina, minhafamília nãoé bugre,
nos somos gente fina”.78
A narrativa de dona Maria Encinas foi matizada pelo
portunhol apressado, principalmente nos momentos mais
dramáticos de sua trajetória. Um dos pontos marcantes da
mudança de tom aconteceu ao relembrar o momento em que se
viu sozinha com a responsabilidade de arrimo dos filhos, todos
aindamuitojovens:
Daí então veio pra cá, fiquei, trabalhei, trabalhei, pra tratar meus
filho, que nem vou falar. Curvado, Iguiporã, Ouro Verde, lá perto
de Pato Bragado, que se chama Rancho Queimado. E, mais eu
andei. Pegava, terminava aquele pedacinho, já tô indo com minha
mochila. Termina aquele já tô indo, pra não passar fome meus
filho. Aí, não passou fome e até agora, não fez passar vergonha
à mãe ainda, nem um filho, nem uma filha.7''
Um eixo caracterizador da narrativa de dona Maria
Encinas, como se observa é a afirmação de sua dignidade pessoal
e da família diante dos difíceis momentos passados. Tanto em

119
relação à vida rural, onde percorreram um complexo itinerário
entre os distritos do município, ou depois de 1985, quando se
mudaram para a cidade.
Entretanto, donaMariaEncinas nãofoi únicatrabalhadora
paranaense, entre os depoentes, que migrou para a região Oeste.
Dona Maria José de Souza, por exemplo, viera em 1974, da
cidade norte-paranaense de Siqueira Campos.
Filha de pequenos cafeicultores daquela região, deixou
o campo com a família aos 15 anos e, junto com as irmãs,
“começamos a trabalhar de doméstica. Uma trabalhava numa
casa, a outra na outra” e a mãe “conseguiu fazer uma inscrição lá
num colégio e passou a ser funcionária estadual. A gente fala:
funcionária pública.” Já o pai, desde que casara com sua mãe,
tinhase tomadoumdoentecrônico, “ele tinhaproblemade pulmão,
tinha tuberculose e a minha mãe sofreu muito, sabe?”80Desse
tempo, lembrou que “minha mãe casou, ela não tinha 16 anos.
Assim ela conta pra nós e ela plantou no tempo que ele tava
internado, ela plantou dois mil pés de café”.81
Desde muitojovem, donaMariaJosé precisou lidarcom
as difíceis condições de vida da família. A mudança do campo
para a cidade aconteceu em 1968, fato que lhe impôs uma
migraçãoe novos ofícios:
E um tempo daí eu fui morar em Londrina. Fiquei mais ou
menos um ano em Londrina, morando com minha tia. (...)
Voltei para casa aí comecei a trabalhar de doméstica. Daí...
Trabalhei mais um tempo, daí consegui uma vaga no hospi­
tal. Aí comecei a trabalhar de cozinheira no hospital, trabalhei
dois anos.12
Depois de vividas essas experiências, de volta a Siqueira
Campos, dona Maria José começou a trabalhar num pronto-
socorro da cidade, onde “lá comecei a praticar serviço de
enfermagem. (...) E depois, quando completei meus 21 anos, aí
eu saí de casa. Aí eu vim pra Rondon. Vim pra Rondon. No
começo era pra vim morar em Toledo também. E depois desisti,

120
não gostei da cidade de Toledo”.83
Em 1974,quandochegouaToledo “fomos atéohospital
Bom Jesus. Aí eu tinha uma colegajunto comigo, que também
veiojunto.” Na ocasião, “nós falamos: eu não gostei desse lugar
aqui. Se for pra ficar aqui eu vou voltar pra casa do papai.”
Interessante notar, nesse caso, como as impressões pessoais logo
do primeiro itinerário pela região permitira a dona Maria José tão
rápida tomada de decisão. Embora tivesse, de algum modo
também encontrado emprego em Toledo, lembrou dona Maria
José que “não gostei desse lugar'’, o que a impulsionou e à sua
colegana continuidade do itinerário. Até que “aí, umaoutrapessoa
que trabalhavano hospital lá, Bom Jesus, daífalou pra mim, falou
pra nos assim: tem maisumacidade pra frente, Marechal Cândido
Rondon. Na época, nossa! Aqui não tinha nada, bem pequeno
ainda”.84

Itinerantes do Sul
Na audição dos depoimentos de trabalhadores migrados
do campo para a cidade, no pós-1970, surpreendeu o relevo
heterogêneo das experiências daqueles que haviam migrado do
Rio Grande do Sul e Santa Catarina para o Oeste paranaense.
Ao atribuirum papel quase exclusivo aos gaúchos e catarinenses,
descendentes europeus durante a colonização, a memória oficial
fez também por homogeneizar suas trajetórias, tempos e
motivações, bem como ocultar os embates vivenciados.
Ao investigar a mobilidade campo-cidade desse núcleo
de trabalhadores, são tocantes suas narrativas, uma vez que
também desenharam uma rede de trajetórias itinerantes,
igualmente submersas e/ou esquecidas. O objetivo dessa
exposição é demonstrar que, ao contrário da forma como são
usualmente apresentadas, essas trajetórias estão no mesmo plano

121
da dos migrantes anteriores vindos durante a colonização, embora
os lugares de partida e os sentidos da migração sejam bastante
distintos.
O critério de seleção dos entrevistados, que privilegiou
os trabalhadores do êxodo rural, colocou a audição de um
universo de trajetórias também diferenciadas no que diz respeito
à questão da ocupação por gaúchos e catarinenses. Entre os
entrevistados encontram-se desde os migrantes tradicionais da
colonização planejada, até os que deixaram o campo em seus
estados de origempara se ocuparemcomo trabalhadores urbanos
no Oeste paranaense, principalmente no pós-1970. Importa
sublinhar, no entanto, que as trajetórias itinerantes de gaúchos e
catarinenses, assim como suas motivações e significados, não
objetivam compor uma história da colonização. Tão-somente
buscam matizara discussãoem tomodadiversidade de trajetórias
sociais alinhavadas pela pesquisa, em contrapartida aos padrões
homogêneos acerca de tipologias sociais que prevaleceram na
compreensão dessa paisagem social.
Pode-se dizer que um dos principais pilares de
sustentação da memória oficial é a afirmação sobrevalorizada
de alguns colonos escolhidos, insistentemente nomeados como
pioneiros. E sobre suas vidas, não há, de fato, nada que os
desabone em suas trajetórias e árduas empreitadas nos
primórdios da ocupação. Contudo, as motivações e os
significados de suas trajetórias buscam ser investigados sem o
filtro do projeto colonizador, que a tudo tende romantizar e
homogeneizar.
Sobre os trabalhadores sulinos são interessantíssimas
as trajetórias de seu Curt e dona Hedwig Ringenberg. Esse
casal de catarinenses de Ibirama chegou a Porto Mendes, um
distrito de Marechal Cândido Rondon localizado às margens
do rio Paraná, em 1961, depois de adquirirem uma colônia
de terras da MARIPÁ. Vinte anos mais tarde, mudaram-se

122
para a cidade “motivados” pela indenização de suas terras
para o represamento do Lago de Itaipu.
Em suas narrativas do tempo anterior à migração para o
Oeste paranaense há um chão de lutas, muitas vezes ignorado
pela necessidade de encaixar suas memórias à colonização. Nos
depoimentos desse casal, suas trajetórias foram marcadas pela
condição de pequenos trabalhadores pobres e de suas itínerâncias,
que os levaram a migrar ainda antes mesmo de 1960, quando
residiam em Santa Catarina. Lembrou seu Curt que:
O meu pai, ele veio da Alemanha! E minha mãe nasceu em Rio
Grande. E daí, meu pai faleceu eu estava com 12 anos. Daí,
meu irmão mais velho, ele tava como 20 anos mais velho que
eu. Então eu fui na casa dele e comecei a estudar na escola. E
daí depois, quando terminei a aula eu fui trabalhar de bóia-
fria. E depois disso, quando eu fui servir o Exército, eu fui
servir no Rio de Janeiro e quando eu ganhei baixa do Exérci­
to, eu voltei e comecei a trabalhar bóia-fria. E daí comecei a
conhecer ela [olhou para dona Hedwig].*9
A narrativa de seu Curt evidencia elementos ricos para a
discussão. Sob uma forte marca do sotaque de algum dialeto
alemão, relembrou de seu trabalho como bóia-friae sua primeira
itinerância para a cidade do Rio de Janeiro, quando para lá se
destinou em 1945 para servir o Exército, pois, “naquela época a
gente era obrigado ir onde eles mandavam. E todo mundo tinha
que servir, quem estava normal tinha que servir”.86
Assim como seu Curt, dona Hedwig, numperíodo pouco
anterior, em 1938, já também havia migrado de Ibirama para
Blumenau, quando então:
Para dizer a verdade! Eu vou dizer a verdade, que meu pai
sempre tava muito doente e nós sofrendo sobre isso muito. E
daí nós saímos de casa, fomos para Blumenau. A minha irmã,
as outras foram também se arrumando. E daí em tempo tem­
po, a gente fica lá uns cinco anos. Fiquei em Blumenau traba­
lhando de empregada lá e daí fui voltando. Em tempo tempo

123
[expressão] nós fomos conhecer e aí casem os.87
Interessante notar em sua narrativa a decisão de “dizer a
verdade”, como forma de se referir ao fato de não ter feito
isso antes. Falando de sua migração, da sua itinerância, da
vida como empregada doméstica ou ainda de outra dimen­
são subliminar, sua narrativa emergiu mediada por um
referencial simbólico de buscar protagonizar sua trajetória
a partir de um outro enfoque, talvez antes ainda não con­
sentido pelas versões correntes, às quais sua memória pa­
rece acrescentar outras. Há em sua narrativa um outro ele­
mento significativo, que a faz lembrar do tempo anterior à
vinda para o Oeste, quando uma outra migração já estivera
em curso.
Uma vez retomados a Ibirama, seu Curt vindo do Rio
de Janeiro, em 1946, e dona Hedwig retomando de Blumenau,
em 1943, os dois se conheceram e casaram em 1949. Ali
permaneceram por mais 12anos. Dona Hedwig aprendeu a fazer
“um pouco de permanente [uma forma de penteado]” e ajudou
no orçamento trabalhando de cabeleireira aos sábados à tarde.
E seu Curt trabalhou na roça, porque à época, “não tinha terra,
nós quando plantava tinha que pagar renda para os outros. E por
isso nós resolvemos vim para Paraná porque aqui era tudo mato
e terra boa pra nós poder continuar”.88
O Paraná foi um lugar a mais de migração desse casal de
catarinenses. Nesse caso, a opção de migrar para o Oeste foi
escolhida depois de descartadas outras possibilidades, no caso
no Norte do Estado, que até mesmo chegaram a visitar, mas que
segundo informaram não seria viável. Conforme narrou seu Curt
Ringenberg:
Chegamos lá, Nova Esperança, Norte do Paraná e viemos
aqui em Porto Mendes olha esta terra. Eu assim... Tudo boni­
to. Aí então voltando... Voltemos depois, voltemos pra Santa
Catarina. E daí falei pra meu cunhado: vocc sabe o que, o que
vamos fazer? Nós vamos render uma terra agora pra plantar

124
fumo e daí deu dinheiro para comprar mais terra em Porto
Mendes.19
Trilhando o mesmocaminho dessas motivações variadas
dos primeiros agricultores colonos, há outras versões de faces
muito pessoais que envolviam a decisão de migrar. Uma outra
história importante é a narrada por dona Matilde Schaefer.
DonaMaíilde Schaefermigrou com sua numerosafamília
de Santo Cristo, Rio Grande do Sul, em 1964, para Entre Rios,
então distrito de Marechal Cândido Rondon, tomado município
em 1992. Filhade uma imigrante alemãe de pai brasileiro, lembrou
duvidosa de que, “afinal eu não sei, mas acho que não era tão
alemão”. Dona Matilde mantém na narrativa os traços fortes de
um dialeto alemão, misturado a um sotaque todo característico
de algumas regiões rurais sul brasileiras, marcado pela diluição
da sonoridade da consoante “r”.
Aos 19 anos, dona Matilde casou-se com José Bruno
Schaefer, hojejá morto. Juntos migraram primeiramente para o
município de Alecrim, no interior do estado do Rio Grande do
Sul, para onde foram e de:
Lá onde eu disse, dei minha vaca e 14 porco e mais uns troco
de dinheiro pra nós poder comprar a primeira terrinha.
Compremo. E depois dali, nos voltemo. Daí vendemo, porque
todo mundo falava que as criança tava muito doente, que
falaram que era por causa da água que não tava boa. Daí
vendemos lá, viemos pro Paraná.90
Ao tecer suas memórias, ganha relevo o significado da
terra, que à época, como se pôde observar, ainda não alçava os
valores especulativos capitalistas que atualmente conhecemos.
Para adquirir a terra sonhada complementou o pagamento com
alguns animais e “uns troco” em dinheiro. De alguma maneira, a
subsistência e o bem-estar familiar contaram, paralelamente, ao
significado da terra na decisão de migrar para o Paraná.

125
Nota-se assim, mais uma vez, que o Paraná aparece nas
narrativasdos trabalhadorescomo“um” lugarentreoutros destinos
possíveis em suas trajetórias. Em face do ufanismo regional, que
expõe o Oeste como ideal, uma espécie de terra prometida, para
onde vieramhomense mulheresque simplesmentecorroboravam
ao projeto nacional de colonização, do eldorado, as memórias
dos agentes, conquanto, sugerem a existência de um lugar real
alcançado por sujeitos em opções conscientes, ante a pequena
margemdeescolhasque asdificuldades lhesapresentavam. Outros
elementos, todavia, tambémcontribuempara a decisão de migrar,
tal como observou Alistair Thompson, em seu balanço da
contribuição da história oral para o estudo das migrações:
Embora as pressões econômicas freqüentemente influenci­
em as decisões da migração, o testemunho pessoal revela o
complexo entrelaçamento de fatores e influências que contri­
buem par a migração e para os processos de troca de infor­
mações e negociação no interior das famílias e das redes
sociais. Por exemplo, as narrativas dos migrantes evocam os
‘imaginários culturais’ sobre os futuros locais de destino e
explicam como estes imaginários são produzidos, dissemina­
dos, recebidos e usados.91
O feixe dos sentidos da decisão de migrar não aparece
totalmentebalizadopelaintermediaçãoinstitucionalestatal dirigente
ou então pela exclusiva mão administrativa, no caso daMARIPÁ,
em seu planejamento colonizador, mesmo que observada o lastro
da força mítica. As falas historicizam, noutro plano, as disputas
de interesses os mais diversos que marcam o domínio desse
espaço.
Dona Matilde e o maridoJosé Bruno chegaram ao Oeste
com 11 dos 13filhos que conceberam. Em 1964, “quandocheguei
na minha terra: meu Deus!Pensei: tamo perdido no meio desses
mato. Era só um trio [uma trilha]. Fizeram uma picada pra poder
fazer uma primeira roça, não era fácil não!”92

126
Interrogada sobre as condições de vida no meio rural,
foi incisiva em afirmar que “não precisei ir nos médicos. Não
ganhei um filho no médico. Todos em casa, todos os 13. Não
sabia o que era tratamento. Hoje em dia as mulher ih!: choram,
dói aqui, dói ali. Eu nuncanão tem nada, eu trabalhei até naúltima
hora na roça E ganhei todos os meus filho em casa, foi tudo
feliz.”93
Sobre as condições de sobrevivência, dona Matilde
prosseguiu falando dos filhos: “uns estudaram. Um estudou até
ficarprofessora. Outros estudaram anos e parou daí. Foi começar
a trabalhar nas construção pra fazer a vida”.94
As dificuldades narradas por dona Matilde sobre a
chegada e o viver no Oeste de muitos modos ofereceram um
material simbólico para a construção das referências heróicas
dos pioneiros desbravadores que aqui chegaram. De fato, essas
dificuldades foram imensas e atravessaram a vida desses
trabalhadores, caso de dona Matilde, de seu Curt e de dona
Hedwig. Uma questão importante talvez esteja na forma como
essas experiências narradas são interpretadas e usadas como
hierarquizadoras dos migrantes chegados nos diferentes tempos.
No caso desses trabalhadores, suas trajetórias de
desbravamento não tiveramum encerramento harmonioso, nem
constam dos anais da conquista, diferentemente dos escolhidos
como pioneiros, cujo final feliz é muito cultuado. Trata-se de
homensemulheresqueviveramecontinuamaviver muitosdramas
que não cessaram à época Pelo contrario, tiveram que prosseguir
em suas tentativas. Desse modo, as memórias daqueles agentes
considerados mais bem-sucedidos mereceram aposterização das
versões oficiais, conquanto a vida e os dramas dos trabalhadores
pobres e itinerantes foram silenciados. Um exemplo importante
ocorreu com a indenização das terras para a construção de Itaipu,
em 1978, quando dona Matilde e a família precisaram deixar
Oeste e rumaram para o município de Gaúcha do Norte, Mato

127
Grosso. Conforme lembrou ela, para seu próprio espanto, essa
mudança obrigatória alcançou outros tantos migrantes, que
“chegou a entrar 27 num mês, todos vinha, todos vinha. Mas,
todos conhecido aqui foi!”95
Depois da morte do marido, em 1992, a saúde de dona
Matilde foi-se debilitando mas ela “não queria morrer lá. Aí o
médico disse: olha, pra tu sarar tem que procurar recursos lá pra
onde tem os médico melhor”.96O diagnóstico médico sentenciou
dona Matilde a deixar Gaúcha do Norte e voltar para o Oeste.
Já estando no lugarde retomo fez também lembrardas condições
de vida a que foram submetidos esses trabalhadores, quando
então comparou “quem não tava lá não sabe nem como que é”.
No começo dos anos 1990, Dona Matilde retomou para
Marechal Cândido Rondon, onde cuidou da saúde e sejuntou
aos filhos quejá haviam regressado. Sobrevive com a pensão do
marido e mora sozinha em uma casa modesta na periferia da
cidade, no antigo bairro Industrial, hoje, segundo ela, chamado
Mia São Francisco, nas margens de uma plantação mecanizada
de soja
A entrevista que concedeu foi feita em sua pequena
moradia, decorada com fotos dos pais e um fogão à lenha em
brasas, donde retirava metodicamente a água quente para
abastecer a cuia de chimarrão em punho. Dali se ouvia o canto
das galinhas e gamisés, o latido dos cachorros, as frases curtas
do papagaio e o barulho de outros bichos cuidados no fundo do
quintal. Este cenário reproduzia no espaço urbano os seus modos
de vida rural. Na ocasião, finalizou a entrevista enfatizando que
“se eu tinha minha força me alcançava, eu fazia tudo de novo”.
Como observado, a itinerância de muitos desses
trabalhadores não se encerrou com a migração para a região
Oeste. Mesmo quando alijáhabitavam precisaram buscar outras
alternativasde sobrevivênciaemoutros lugares. Foi o que também
aconteceu com Nair Freitas, que chegou ainda em 1960.

128
Natural de Santo Cristo, tal como dona Matilde, Nair
migrou para a região ainda criança, na companhia dos pais e dos
cinco irmãos. À época compraram uma pequena área de terras,
atualmentelocalizadaem áreaurbana Suacasasitua-seexatamente
numalinhadivisória, queseparaumaavenidanrovimentadade uma
longínquae horizontal plantação de sojamecanizada
As difíceis condições de vida enfrentadas de início pela
famíliade Nair foram tantas que, durante algum tempo, acalentou
o desejo de retomo:
Ah! Pra nós era difícil. Ah! Assim, vou dizer porque tinha
muito problema com doença. Ah! O meu irmão se queimou. A
minha irmã deixou cair um machado, que machucou bastante
a perna. A mãe grávida daí sofria de ataque, daí a menina
nasceu em junho. E se não fosse o doutor Confúcio [um dos
primeiros médicos da cidade] na época, nós ia voltar pro Rio
Grande. O pai disse: eu vou embora daqui que não dá!97
Em 1976, quando alcançou ajuventude, Nair casou-se
e teve dois filhos. Logoem seguidaao casamento, o marido vendeu
a casa que possuíam e empreendeu um bar no centro da cidade,
com o qual “nós se demos mal mesmo!”. Colado à frustração do
negócio malsucedido, em 1982, “vendemos o lote com a casa.
Ah!Essa história não gosto nem lembrar que sofremos bastante.
Ainda as crianças os dois eram pequenos. Minha menina e o piá
e... Aí depois aí fomos embora, ele tinha arrumado serviço daí
em Guarapuava”.98
Ficaram apenas quatro anos na cidade de Guarapuava.
Em 1986 mudaram-se para Paranaguá, para administrar uma
cantina de lanches num posto de gasolina. Nesse comércio Nair
também trabalhou como empregada. Com a venda do posto,
em 1990, perderam a ocupação e decidiram retomar para
Marechal Cândido Rondon.
Quando retomou, oito anos depois, Nair assustou-se
com a ausência de muitas das pessoas que conhecera, pois

129
‘‘estavam todo, quase todaessa faixa de idade, assim que a gente
tinha amizade. Era difícil voltar e encontrar essas pessoas aqui,
que tinham ido embora. Saírampro Mato Grosso”.99Aemigração
dos familiares e dos demais conhecidos foi angustiante para Nair,
que retomara saudosa para reviver os tempos de suajuventude,
só que “daí o pessoal, inclusive eu tenho uma irmã minha que
mora lá em Nova Mutum, ela também saiu daqui. Sem rumo, se
mandou ir lá, sofreu uns anos agoraela está bem. Outra mora ali
em Mato Grosso também, fica perto de Dourados”.100
Interessante notarque nas fímbrias dessas recordações,
e nas de outros tantos itinerantes, vemos descortinar trajetórias
diversas, como relampejos de existênciaque entrecruzam outras
presenças não mais palpáveis. Neste sentido, notou com enorme
sensibilidade o pesquisador das migrações, e argelino radicado
francês, Abdelmalek Sayad, que “não existe imigração em um
lugar sem que tenha havido emigração a partir de outro lugar;
não existe presença em qualquer lugar que não tenha em
contrapartida de uma ausência alhures”.101
TVajetórias transfronteiríças
Alémdas migrações no interiordopaís conforme narrado
por Nair Freitas, há que se ressaltar também a migração de
trabalhadores que rumaram para o Paraguai, pessoas que
ganharam a alcunha de brasiguaios, cujo sentido pejorativo e
discriminatório nocircuito da migração interna ajuda a reproduzir
estereótipos de grande repercussão para suas vidas itinerantes.
Nessadireção,juntaram-se a donaMargarida, que deixou
Minas Gerais rumo ao Paraguai ainda na década de 1960, outros
trabalhadores sulinos em busca de uma vida melhor. Vanderlei
Scariott, a dona Vanda como prefere ser chamada, é um dos
casos entre os entrevistados que tentou a vida no Paraguai, mas
que retomou em 1990, fixando-se em definitivo em Marechal
Cândido Rondon. Sua trajetória desenhou múltiplas andanças

130
no territórioparaguaio, compondo uma complexa trama de difícil
entretecimento.
O depoimento de dona Vandacontabiliza quase quatro
horas de gravação feitas em duas sessões. Em sua narrativa não
há pausas e muito menos parece conter dúvidas expressas. Cada
detalhe, o nome de pessoas e os lugares são lembrados com
extremarapideze convicção. O depoimento traduz-se num texto
hermético, cujo trabalho da memória parece amarrar as pontas
para qualquer possível intromissão de outros sentidos externos,
senão os próprios.
Nascida em São Miguel do Oeste, em Santa Catarina,
chegou ao então distrito de Mia Nova, em Toledo, ainda 1963,
com tenros seis anos. Filha de um sapateiro que se lançou à sorte
no Oestedo Paraná, compôs a narrativacom os holofotes voltados
para a memória fixadapelo pai:
E meu pai foi gostando do lugar, que ele nunca tinha visto um
lugar tão bonito, plano, um lugar assim que ele se sentiu bem.
Ele sempre fala que quando ele ia chegando de Cascavel pra
cá, ele sempre ia falando pro companheiro dele: esse lugar ta
cada vez mais lindo, parece que a gente esta entrando num
paraíso! Meu vizinho me falava muito num paraíso. Deve ser
esse aqui, ele falava.102
Dona Vanda construiu uma narrativa emocional e
romântica da trajetória do pai, que viera trabalhar no ofício de
sapateiro. Conforme informou, ele prosperara bastante, chegando
a tomar-se dono de algumas colônias de terra em Vila Nova,
distrito de Toledo:
Quándo eu completei oito anos de idade, o meu pai conse­
guiu vender aquele terreno que ele havia comprado,
construído a casa, sapataria. Vendeu ali e comprou uma chá­
cara. Aí ele parou de trabalhar de sapateiro. E foi trabalhando
na lavoura. Meio direto trabalhei sempre do lado dele. Tipo,
ele chegava da roça eu ia pra cozinha ajudar a mãe, mas ele
virando de volta pra roça estava eu junto com ele.103

131
Ao longo da narrativa, a trajetória pessoal é abandonada
em favor da de seu pai, buscando-se partícipe e tributária
compartilhada dela A vida pessoal somente começou a ganhar
uma ênfase quando passou a recordar a sua vida de casada e,
por conseguinte, de sua migração para o Paraguai, em 1975. A
partir daí a narrativa românticado passado vai aos poucos sendo
substituída por um complexo relato de suas itínerâncias
transfronteiriças.
Ao recompor o passado romântico do pai, na verdade
talvez dona Vanda estivesse preparando um chão de
sustentabilidade para a seqüência de infortúnios em que se
transformou a sua vida Ou talvez fosse uma forma de dissociar
os acertos do pai dos seus possíveis erros pessoais. De outro
modo também evidenciou os sentimentos mais amplos que
alimentavam o viver desses trabalhadores, cujo cultivo da terra
articulava a promessa de uma vida melhor, não importando o
lugar onde esta estivesse.
Em 1975, o pai de Vanda, que se encontrava em boas
condições econômicas, comprou-lhe um pedaço de terra em
Lauras, no Paraguai, para onde fora entusiasmadamente com o
seu marido. Além da terratão sonhada que havia sido viabilizada
dona Vanda lembrou também que:
Ganhei a madeira pra construir a casa, que foi feito uma a
casa de seis por seis. E ganhei uma vaca de leite, foi levado
três cabeça de porco, levado galinha e levamos mantimento
pra seis meses. A gente não precisou comprar farinha, arroz,
açúcar, tudo levei de casa. E a gente trabalhou bastante por­
que eu tinha muita prática na lavoura. E isso na verdade é o
que eu sei fazer, é trabalhar com a terra e mexer com plantas,
plantar, colher.104
AJém do trabalho que precisou empreender sozinha nas
novas e estranhas terras paraguaias, dona Vanda precisou
enfrentaro problemacomum aos brasileiros que adquiriramtenras

132
no Pãraguai: a escrituração. Muitos dos trabalhadores enfrentaram
sérios problemas com inescrupulosos corretores de terras ilegais.
Além de ter de cuidar sozinha das responsabilidades de mãe de
famíliae trabalhadoranaquelas terras distantes, dona Vanda viveu
momentos tensos e de violência empreendidos pela polícia
paraguaia Com detalhes lembrou:
Quando foi na sexta feira, chegou os militar lá, veio três cami­
nhão cheio de soldado, os soldados paraguaios chegando
assim na casa de cada um. E aonde tinham pessoas traba­
lhando eles espancavam, mandavam parar de trabalhar ou
espancavam. Eles chegaram um, até o nome do homem é o
sobrenome é Schmit, ele era empregado do seu Osvaldo Stain
lá, dono de uma serraria. E ali foi o pior pra ele porque ele
estava com a serra trabalhando, contando umas torras no
meio do mato. E ele não escutou, deu tempo do cara chegar e
cutucar com o fuzil nele pra ele parar de trabalhar. E aí ele quis
guardar a moto-serra, ele não quis ir preso, e deixar as ferra­
mentas ali. Diz ele: não, vou primeiro guardar no caminhão,
quando ele falou vou guardar, vou primeiro guardar no cami­
nhão, eles bateram com o fuzil nele. Deram com a coronha
assim. E aí ele ficou sofrendo, ele sofreu bastante, por causa
daquilo. E assim teve muitas pessoas lá, que foram espancadas
porque não, pelo movimento do trabalho, elas não notaram
eles chegando. Quem notou, tinha gente que escondeu en­
xada por embaixo das madeiras das caieiras e saíram, corren­
do para casa. Eu mesmo, abandonei a casa várias vezes, quan­
do eu sabia... que eles vieram muitas vezes depois. Nós não
podia abandonar aquilo lá, nós não tinha para onde ir, por­
que tudo que a gente tinha a gente aplicou ali na terra.105
A vida de dona Vanda, conforme narrou, fica à mercê de
um total descontrole. Ora precisava fugir da polícia por causa da
acusação de grilagem da documentação, ora para esconder o
marido da polícia quando este se metia em intrigas e confusões
com a população local,já “que o meu ex-marido entrou no vício
da bebida Então o que fazia durante a semana no fim da semana
gasta tudo”.106

133
O primeiroretomoao Brasil foi motivadopelanecessária
e urgente fuga da políciaparaguaia, empenhada em prender seu
marido, acusado das corriqueiras confusões que se envolvia:
“viemos a esmo, só com seis volume, foi o que cabeu dentro do
carro, seis volume. Lá tinha uma coberta, umas colher, uns
pratos”.107
De volta a Toledo, dona Vanda, o marido e os filhos
trabalharam como agregados em uma das colônias de terra de
seupai.Depois de oitomeses, a família regressouparao Paraguai:
Foi do mesmo jeito que a gente chegou, com os mesmos
volumes que a gente veio a gente voltou. Por que trabalha­
mos aquela safra de soja, que a gente trabalhou encima da­
quela terra ali. Não deu. Como agregado. Não já se era para
ser nossa, mas a safra falhou, a seca deixou dar soja. Daí nem
tinha como pagar a primeira parcela pro meu pai. Aí, com
aquela falha da soja, a notícia lá do Paraguai que o cara ia
vender a terra e, e essa história do meu marido de andar
demais nos botecos por aí e já não se acertar muito bem com
o meu pai, eu resolvi tudo dentro de uma semana, se voltava
pralá.10*
Novamente em terra estrangeira, os problemas com o
alcoolismo do marido continuaram, o que obrigou dona Vanda a
tocar a vidapraticamente sozinha. Depois de muitas dificuldades,
resolveram vender as terras paraguaias e mudaram-se para o
municípiode Guaraniaçu, localizado naporçãoocidental da região
Oeste, nas proximidades de Cascavel, numa chácara de
propriedade de sua irmã.
O dinheiro obtido com a venda das terras foi todo gasto
pelo marido em suas andanças e confusões, sentindo-se dona
Vanda vilipendiada por ele. Ainda em Guaraniaçu ela adoeceu
seriamente, mas sócontavacomos quatro filhos,já que seu marido
a abandonara uma vez mais.
Dona Vanda ainda migrou de Guaraniaçu paraToledo e,
daí voltou ao Paraguai, desta vez para a cidade de Santa Lúcia,

134
entre Formosa e Laranjal, de onde precisaram fugir novamente
por causa das confusões do marido, que havia retomado. De
volta aToledo, dona Vandatrabalhou como domésticae o marido
como caminhoneiro. Mas isso durou pouco: as confusões e
abandonos continuaram, para sua tristeza e decepção.
A família de Dona Vanda mudou-se ainda para o
município de Pato Bragado, onde moraram numa cerâmica que
contratara o marido como motorista. Novamente abandonada,
dona Vanda precisou trabalhar como bóia-fria na colheita do
algodão. De Pato Bragado foi para Corbélia, cidade próxima a
Cascavel, mais uma vez na senda do marido, onde tinham
arrendado uma chácara, onde moraram apenas oito meses.
A novaempreitadanão deracerto. RetomaramparaPato
Bragado e dona Vanda foi trabalhar numa fábrica de calçados,
sob o regime de facção, em que o trabalho manufatureiro é
realizado na casa do trabalhador e pago por produtividade.
Depois disso, ela alugou uma chácara em Iguiporã, outro distrito
de Marechal Cândido Rondon, onde trabalhou sozinha com os
filhos por algum tempo, até finalmente mudarem para a periferia
da cidade em 1990, onde recomeçaria a vida como divorciada e
desempregada
Trabalhadores urbanos gaúchos e catarinenses
Os trabalhadores gaúchos e catarinenses continuaram a
migrar para e no Oeste depois da colonização empreendida pela
MARIPÁ até mesmo no período posterior a 1970. Muitos
desses, diferentemente dos primeiros que se tornaram
proprietários de pequenas colônias ou trabalhando nelas como
agricultores agregados ou parceiros, acabaram como
trabalhadores urbanos. Ou, em alguns casos, já migraram
diretamente para a cidade.
Alguns desses trabalhadores, como seu Paulo Selhorst,
chegou em 1970 de Braço do Norte, Santa Catarina, para

135
trabalhar como arrendatário numa colônia de terras próxima ao
distrito de Mercedes. Quando deixou sua terra natal, seus pais
moravam no campo numa região em que predominavam os
pequenos proprietários rurais. E na época, conforme lembrou,
“pra nós sobreviver lá, nós precisava trabalhar a nossa terra e
também um pouco ter arrendado com outras terras”.109
Além das lembranças das dificuldades de sobrevivência
napequenapropriedade, Paulotambémrelembrou do movimento
de trabalhadores de sua região em Santa Catarina para o Oeste
paranaense:
Ojeito foi migrar onde estava... Os companheiros estava mi­
grando. Então viemos de lá para... aqui para o Oeste do Paraná,
Marechal Cândido Rondon. Naquela época distrito Mercedes.
Eu morava em Belmonte. Trabalhei lá como meu irmão uns
dois anos. Depois, como a época começou a mecanização
aqui... no Paraná. Também dificultou para ficar na roça e a
gente veio aqui pra a cidade e estamos aqui.110
Paulo Selhorst trabalhou no campo por apenas mais dois
anos. Em 1972, mudou-se para a cidade, quando “naquela época
a cidade era só centro. Não tinha bairro ainda. Aí me lembro
ainda que o asfalto aqui da cidade era do Centro Cultural Eloi
Umau até no Posto Esso de gasolina. O resto era tudo estrada
de chão. E os bairros aquela vez não existia. Existiasó o centro”.'1'
O mergulho nas memórias de Paulo Selhorst mostrou
que ele não apenas viu a cidade crescer mas trabalhou em sua
construção, como carpinteiro, chegando inclusive a participar,
em 1989, da fundação e da direção do sindicato de sua categoria.
Continuemos então o diálogo com a trajetória de Paulo
Selhorst. Em 1977, deixou o Oeste e foi para Ponta Grossa,
Paraná, onde ingressou numacongregação religiosado Seminário
Verbo Divino, lugar em que ficaria pelos próximos seis anos.
Depois de Ponta Grossa, foi para bairro paulistano de Santo
Amaro, onde fez um curso de teologia. Dois anos mais tarde,

136
desempenhou trabalhos de pastoral em Cerrolândia, na Bahia,
onde “a gente tomou mais consciência dessa situação precária
dos trabalhadores”.112
A trajetória itinerante de Paulo Selhorst certamente
interferiu naconstruçãode suamilitânciasindical, que iniciariano
final dos anos 1980. Nesse mapa de itinerâncias e seus
significados, suatrajetóriamilitante ganhou enorme relevoquando
comparada à dos demais trabalhadores da região Oeste, em sua
grande maioria bastante distanciados da organização sindical.
DiferentementedePauloSelhorst, queprimeirotrabalhou
no campo até 1974, quando se mudou para a cidade, seu Zelmo
de Gonzattojá chegou na condição de um trabalhador urbano.
Importa salientar, entretanto, que viveu a sua infância no meio
rural de Ijuí, no interior do Rio Grande do Sul, onde nascera.
Seu Zelmo compartilha com Paulo Selhorst do mesmo
processode aprendizadodo oficiode carpinteiro, que aprenderam
tão logo chegaram à cidade; além disso, é claro, lembram das
lutas pela constituição do sindicato dos trabalhadores da
construção civil. No meio rural do município de Ijuí, seu Zelmo
trabalhou desde muito cedo com os pais e os irmãos na fábrica
de farinha de mandioca familiar, conhecida no Sul como tafona:
Então ali eu trabalhei muitos anos nessa tafona. É com os
peão, assim... o pessoal. E a minha profissão mesmo é puxar
mandioca da roça pra tafona. Comecei com... puxava carroça
de boi, até com duas juntas de boi, ali foi uns três, quatro ano
fazendo aquilo ali com carroça de boi. Depois passemos, pas­
sei puxar com trator tratorzinho assim, rebocava a carroça
atrás.113
Em 1958, seu Zelmo retomou depois de prestar o serviço
militar na cidade gaúcha de São Borja, experiência que
rememorou como sendo “muito boa, gostei muito do exército,
me arrependi de ter dado baixa... é, devia estar até hoje lá. E
tinha vaga pra ficare não quis, me arrependi!”’14Trabalhou ainda

137
por um tempo na tafona até a época próxima de casar-se, em
1961:
Aí paremos! Passemos com granja, plantar trigo... Três safra
de trigo falhou. Aseca... né?! Perdemos também ali, compre­
mos trator novo e tudo, entreguemos pro banco... E não con­
seguimos pagar né! Por causa da seca, estiagem (pausa). Aí
eu passei a, então casei, passei trabalhar na roça, na colônia
trabalhei uns dois, três anos. O negócio começou a ficar ruim,
também o preço do soja não valia quase. Plantar pouquinho
não adiantava. Tinha que plantar (pausa) 30 saco de semente
ou nada, porque não tinha condições, né?115
Embora trabalhasse na pequena fábrica de farinha de
mandioca familiar, que se localizava no meio rural de Ijuí, seu
Zelmo não demonstrou ter a mesma relação afetiva com a terra,
tal como observamos na trajetóriade Paulo Selhorst, porexemplo.
O curtoperíodo de tempo em que trabalhou nacolônia, conforme
ele próprio expressou:
Sei que foi um drama aquilo ali. Aí eu desisti de tudo, peguei
e vim pro Paraná... Larguei, larguei mão da, da colônia. Não
dá, não dá e pronto vou aventurar trabalhar de empregado
que... Então eu achei que era melhor. Sofrendo na colônia lá e
plantava quando colhia o preço caia lá em baixo, como que ta
até hoje isso aí não mudou nada... pouca coisa... É... Sei que
daí falando que de... do Rio Grande do Sul vim pra Itacorá,
trabalhar numa empresa, lá numa serraria, numa fita de madei­
ra, madeireira.116
Quando deixou o Rio Grande do Sul, sua famíliajá sofrerá
com a migração de outros dois irmãos, um que fora para São
Paulo e outro, para Goiás. A lembrança parece dar outras
significações à migração, entre elas a diáspora de seu núcleo
familiar. “Esse [irmão] que estáem São Paulo até veio no primeiro
ano que eu estava em Marechal Cândido Rondon, ele teve aí,
em Rondon, em casa. Mas esse de Goiás nunca mais se
enxerguemos (pausa).”117

138
A pequenacidade de Itacorá tomou-se o lugar de destino
de seu Zelmo de Gonzatto. Localizada na porção extrema da
região Oesteparanaense, muito próxima ao município de Foz do
Iguaçu, foi completamente submersapara a construção do Lago
de Itaipu ainda nos anos 1970.
Seu Zelmo migrou de Ijuí com destino e emprego
previamente definidos. Veioa convite de um colega de farda para
trabalhar numa marcenaria em Foz do Iguaçu, o que, para sua
revolta, acabou não acontecendo na forma que havia sido
combinado:
Em vez de me levar na Foz e me trouxeram pra Itacorá. Que
eles tem uma marcenaria na Foz. E a firma, empresa de madei­
ra em Itacorá. Foi ali que deu a... Como se diz? Os próprios
irmãos que me pegafam pra motorista daí no... acharam me­
lhor. Eles que nem me levar pra Itacorá do que Foz... Eu fui
renegado, bah! Mas o meu trato era de ir pra Foz do Iguaçu
na tua marcenaria?!1111
Como se observa, o mundo do trabalho enfrentado pelos
migrantes era temperado por promessas não cumpridas ou por
grandes frustrações. As relações de trabalho enganosas que
permeavam as contratações eram como ressaltou seu Zelmo,
muitas vezes mediadas sem quaisquer garantias de seguridade
para os trabalhadores, sendo em seguida lançados ao léu de novas
mobilidades. Outras vezes, circunstâncias externas somavam-se
a essas, principalmente impostas por agentes mais distantes e
poderosos.
Por um lado, a construção da hidrelétrica de Itaipu,
iniciada durante o período do regime militar, provocou o
deslocamento de muitos trabalhadores, não só dos pequenos
proprietários rurais cujas terras foram indenizadas. Mudaram-se
também os trabalhadores em serviços - seu Zelmo é um caso
entre muitos -, que sofreram com a demissão ou com outras
formas de prejuízo.

139
No caso de seu Zelmo, fora demitido de seu trabalho de
toureiro, um motorista de madeireira, em Itacorá. Sobre esse
momento recordou com detalhes:
Como veio aquele negócio da indenização daquela área lá,
eles falaram: oh, gente! Vamos trabalhar um ano aqui, quan­
do muito vamos ter que parar com a firma, levar pra algum
lugar, levar pro Paraguai, levar pra algum lugar... mas... sabe?
Inclusive mesmo nós vamos parar é logo com isso aí! Já
vimos que o Incra já não estava mais deixando pegar madei­
ra. Já estava trancando o mato lá. Aí eles falaram: oh, cada um
vai ter que soltar o pulo aí pra um lado pra outro. Aí eu pe­
guei, tinha um cunhado que morava em Marechal, aqui em
Marechal Cândido Rondon... Conversei, vim aí conversei com
eles arrumei um barraco (risos) aí em Rondon, aí vim de muda
pra cá.'19
Seu Zelmo chegou a Marechal Cândido Rondon em
1973 e precisou recomeçar a vida da estaca zero. Arrumou um
barraco para morar e uma outra profissão, tomando-se, tal como
Paulo Selhorst, um carpinteiro. Quandoconfrontamos a trajetória
de seu Zelmo com a de outros trabalhadores, especialmente
naquele tempo em precisou “soltar o pulo aí pra um lado pra
outro”, extraímos um mote das experiências aqui tratadas, em
outras palavras, numa espécie de síntese das vidas lançadas ao
léu dessas itínerâncias.
Importa sublinhar, contudo, que a sua trajetória foi
construída, assim como narrada, como um processo pessoal de
escolhas, em muito desconexas da memória oficial, que tanto
afirmou movimentos migratórios por gruposcoesose organizados
pela colonização. Além de não compor o rol dos considerados
pioneiros, a sua presença migrante, a de se notar pelo sobrenome
de ascendência italiana, foi consubstanciada na memória oficial,
especialmente em sua forma genérica europeizante. Em relação
às trajetórias dos gaúchos e catarinenses de ascendênciaeuropéia,

140
tais questões identitárias, orientadas pela dominação, passaram
muitoao laigodos significadosmúltiplos narradospelos migrantes.

As itinerâncias e o olhar político


Depois da pequena apresentação da trajetória de alguns
depoentes da pesquisa, talvez sejaoportunauma discussão acerca
dossentidosmultidimensionaisdesse mapacomplexode itinerários
e itinerâncias, aqui colocado como parte substancial do quadro
mais amplo das disputas no campo da memória nesse espaço
dessa fronteira.
A opção metodológica pela conformação do mapa das
trajetórias sociais da paisagem social também buscava valorizar
as lutas remanescentes das itinerâncias da migração, como um
campo social dinâmico na produção de significados, até então
muito abordadocomo polaridadesestratificadoras de tipos sociais
ideais, particularmente europeizados. De outro modo, também
buscava investigar novos trajetórias e sentidos para além da
dicotomia plantada pela memória oficial em tomo de possíveis
disputas étnicas. Nesse caso, a investigação das trajetórias dos
trabalhadores, antes da vinda para a região Oeste, mostrou-se
de grande riqueza, especialmente pelos significados das
mobilidades para os próprios migrantes.
Os trabalhos da memória produzidos pelos atores
confrontados ao cultivo e a reprodutibilidade das versões prontas
sobre o suposto elemento étnico germânico ou italiano acentuam
aplêiade de esquecimentos oficiais, muitos dos quais alimentados
pelas lutas de domínio movidas pelas classes dominantes. Para
alémdos vetores damigraçãoplanejada, as memórias reivindicam
uma noção de urdidura de destinos na classe. Dessa maneira, as
trajetórias lembradas pelos próprios sujeitos, pela riqueza dos
itinerários e significações, somente se revelam quando lidas na

141
exterioridade dessa lógica que busca prevalecer. Não obstante o
caminhotrilhadopelas forças sociaisdominantes, importamoutras
dimensões do mundo vivido. Pois, com observou Heloisade Faria
Cruz:
Na medida em que fazem emergir marcos e periodizações,
práticas e territórios e valores e tradições diferentes daque­
les instituídos na memória hegemônica sobre os processos
de transformação da vida social, no decorrer deste século,
tais temas e estratégicas de pesquisa sobre trabalhadores e
as cidades, sobre os modos de trabalhar e viver no espaço
urbano mostram-se estratégicos no encaminhamento de pers­
pectivas e pretensões que buscam escrever outras histórias
sobre o progresso e a modernidade, propondo a visibilidade
e a efetividade pública de histórias e memórias alternativas
àquelas costuradas pelo elogio e quase deslumbramento da
trajetória dos vencedores.120
Além dessa dimensão dos trabalhos da memória que
reivindicam apublicização das experiências silenciadas pela
memória hegemônica, vale atentar para as temporalidades
multidimensionais desenhadas pelo traçado das trajetórias dos
sujeitos investigados. Tal abordagem confronta-se com as idéias
de acontecimento ou fatos sociais cristalizados pela memória
hegemônica, em detrimento da historicidade das práticas e
relações sociais. Ainda movido por esse debate colocou-se como
particularmente instigante a reflexão de Irene Cardoso, em que
argumentou que:
A partir do recorte da memória em sua relação com o esqueci­
mento, que, ao fazer surgir constelações de sentido que não
coincidem imediatamente com nenhum ‘fato histórico espe­
cifico’, pode reunir significados entrecruzados por
temporalidades históricas diversas e distanciadas do ponto
de vista cronológico. A memória tensionada pelo esqueci­
mento pode se constituir num movimento que anacroniza
significados de um passado, ao torna-los presentes pela
rememoração.121

142
A interceptação de outras memórias do processo e da
transformação sociais, particularmente engendradas pelas
itínerâncias, não se restringe a uma abordagem de disjunções
possíveisentreaexperiênciaindividuale o tecidosocial maisamplo
dessapaisagem. Todavia, instauraodesafiodehistoricizarofazer-
se conflituoso e pulverizado das experiências formadoras dessa
paisagem, muito consagrada ainda aos feitos desbravadores de
uns poucos. Nessa direção, segundo ainda Irene Cardoso “a
perspectiva da reconstrução histórica parte de uma atualidade
que comporta simultaneamente questões contemporâneas e
questões ‘anacrônicas’, que formam uma constelação de sentidos
constituindo o campo das problematizações possíveis”.122
A essa constelação de sentidos, proposta por Cardoso,
incorporaram-se os universos vividos que vibram das memórias
de homens e mulheres que, no momento e lugares em que se
encontram, são ainda vistos como pouco legítimos para falar do
processo de ocupação dessa fronteira. E, nesse caso, tal
inquietação é emitida pelo presente, que olha para os lados e vê
os modos de vida, as trajetórias e a diversidade desses atores.
Uma percepção sutil que está na senda do lembrar, como
um trabalho da memória com vigorosos sentidos políticos. E,
nesse caso, o que se coloca é o fazer historiográfico como um
ato de congregar, via o olhar político, tantas e tão diferentes
memórias. Assim como inspirou Beatriz Sarlo, põe-se “atenta na
alternativa e esboça percursos e as formas dispersas e, inaudíveis
do novo. Descobre e relaciona”.123
Em linhas gerais, o capítulo dialogou com trajetórias e
memórias dos trabalhadores investigados, dispensando especial
atençãoaos diferentes tratamentosdados pelaanálise demográfica
sobre a formação populacional da região e do estado. Desse
debate, algumas questões ganharam relevo e merecem
considerações.

143
A primeira delas contempla a riqueza das trajetórias dos
sujeitos sociais, que escapam à polarização classificatória entre
os atores de ascendência alemães e os demais, muito alimentada
pela memóriaoficial local, pela historiografiaregional, ou mesmo
nos espaços de sobrevivência social. A bem da verdade,
evidenciou que tais apreensões atuam na formulação de
estereótipos e estratificações aos migrantes vindos de diferentes
áreas brasileiras, marcadas, sobremaneira, como estratégias
dominantes de diferenciação de classes.
Naaudiçãodosdepoimentos, ganhou visibilidadea trama
de experiências entrelaçadas pelo fazer-se de sujeitos reais na
classe. Assim, as narrativas subliminarmente reivindicaram um
outroentendimentodesseprocesso social, emespecial em relação
aos mundos do trabalho, aos sonhos, às motivações, às frustrações,
aos conflitos e às transformações mais amplas, com as quais se
posicionaram como agentes protagonistas. Evidenciou, assim,
uma paisagem social diversificada, permeada pela riqueza de
bagagenscultuais distintas.
Um outro eixo de considerações diz respeito aos
itinerários complexos das trajetórias dos migrantes. Os
entrevistados apresentaram-se como responsáveis pelas escolhas
da migração, contrariando, sobremaneira, versões oficiais que
retiram dos sujeitos o peso das decisões em favor dos projetos
ampliados da dominação, especialmente atinentes à questão do
movimento migratório ou à ocupação de uma nova fronteira
De outro modo, também as narrativas informaram sobre
traçado multivariado dos itinerários dos atores migrados para a
região Oeste. Esses, por sua vez, foram apresentados como um
campo de possibilidades em aberto, às vezes um porto de
passagem e não “o” lugar como destino final planejado. Desta
feita, uma historicidade do traçado das trajetórias iluminou
itinerârios múltiplos e fluídos, ricospelossignificados deesperança
e sonhos de conquista de terra e de trabalho, imerso, sobretudo,

144
por movimentos migratórios inconelusos.
As narrativas versaram, também e sobretudo, acerca das
experiências migratórias itinerantes mais amplas, tanto quanto da
complexidade e riqueza das lutas de enraizamento, quando este
assim foi colocado. De qualquer modo, deram outros sentidos à
migração, acentuando o caráter da opção consciente daqueles
que permaneceram ou tenham retomado depois de frustradas
tentativas. Esse processo conformou um mapa de intinerâncias,
cujo contorno foi delineado por narrativas de elevados sentidos
protagonistas e opções conscientes, ante a pequena margem de
escolhas que as dificuldades da vida lhes apresentavam.
De outro modo, viabilizou penetrar no universo das
experiências migratórias dos trabalhadores sulinos de ascendência
européia. Esse mergulho viabilizou conhecer um pouco mais de
itinerários igualmente previstos pelos estereótipos da memória
oficial, revelando uma trama de histórias de vida nas lutas pela
sobrevivência e trabalho, permeadas, inclusive pela
experimentação das contradições, que a esses processos são
inerentes.
Assim, então, descobrir e relacionar histórias de vida de
migrados para e no Oeste paranaense em diferentes tempos
permitiu restabelecer uma conexão entre os sentidos do viver de
homens e mulheres, que entrelaçaram suas trajetórias e itinerários
num espaço em construção. Enquanto tais, teceram uma trama
entre os viveres e o campo das possibilidades, reais ou imaginárias,
da migração. Desvendar os processos sociais de afirmação de
alteridades desses atores constitui-se, por sua vez, as cenas do
próximo capítulo.

145
Notas
1GÜTHS, Lia Dorotéa. Do mapeamento geo-ambiental ao planejamento
urbano de Marechal Cândido Rondon (Pr): Estudo de Caso (1950/97).
Florianópolis, UFSC, Dissertação (Mestrado em Geografia), 1999, p. 53.
2INSTTITJroPARANAENESEDEI^SEWC^IMENTOEOONCMICO
E SOCIAL Conseqüências Sociais das Transformações Tecnológicas
na Agricultura do Paraná (Texto Síntese). Curitiba, IPARDES, 1985, p.
25.
3INSTTIUroPARANAENESEDEE®SENVOLVIMENTOECC^íCMIOO
E SOCIAL. Dinâmica Demográfica da Região Sul nos anos 70 e 80.
Curitiba: IPARDES, 1997, p. 9.
4URBAN KLEINKE, Maria de Lourdes; DESCHAMPS, Marley Vanice;
MOURA, Rosa. Movimento migratório no Paraná (1986-91 e 1991-96):
origens distintas e destinos convergentes. Revista Paranaense de
Desenvolvimento. Curitiba, IPARDES, n°95, jan/abr. 1999. p. 34.
5Idem, p. 34.
6Idem, p. 31.
7MAGALHÃES, MarisaValle. O Paraná e as migrações- 1940a 1991.
Belo Horizonte, UFMG/CEDEPLAR, (Dissertação de Mestrado), 1996,
passim.
*URBAN KLEINKE; DESCHAMPS; MOURA, op. cit., p. 34. Os autores
constaram como pólos da mesorregião Oeste paranaense os municípios
de Cascavel, Toledo e Foz do Iguaçu, que representam 47% da população
total.
9SCHREINER, Davi Félix. Na esteira das fronteiras: Valores e conflitos
nos processos de organização interna dos assentamentos rurais. Anais
do XX Simpósio da Associação Nacional de História (20; 1999;
Florianópolis) História: Fronteiras. São Paulo, Humanitas/FFLCH/USP:
ANPUH, 1999, p. 626.
10FABRINI, João Edmilson. Assentamentos de TrabalhadoresSem-Terra:
Experiências e Lutas no Paraná. Cascavel, EDUNIOESTE, 2001, p. 134.
n COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Relatório do Simpósio Sem
terra e sem rumo, Marechal Cândido Rondon/PR, 1979, p. 16.
12Nota à Imprensa (n° 592-80) da Prefeitura Municipal de Marechal
Cândido Rondon, em 24 de dezembro de 1980. De acordo com a nota, “o
pastor Pawelck exerceu as funções de pastor da Igreja Evangélica
Martin Luther de nossa cidade de 1959 até 1970, sendo que recebeu
na época o título de cidadão benemérito pelos relevantes serviços

146
prestadospara a comunidade. Entre os trabalhos que realizou podemos
citar o livro, Ficando rico no Oeste do Paraná, de sua autoria,
retratando muito bem a sua participação no desenvolvimento do
município. A obra de grande valor histórico para o Município escreveu
em homenagem aos seus filhos nascidos em Marechal Cândido
Rondon. ”
13Depoimento de AmaraAntonia Lins, 72 anos, gravado em 9 de fevereiro
de 2001, p. 6.
14Idem, p. 7.
15Idem, p. 11.
16Idem, p. 9.
17 O pseudônimo de Pracinha foi lembrado com um orgulho e uma
conquista, o que pareceu lhe garantir uma certa publicidade ao seu
pequeno comércio. Segundo esclareceu, ganhou o apelido depois que
chegou à cidade, 1972, em virtude do trabalho ambulante de vendedor
de frutas nas vias públicas da cidade, que passou a desempenhar nessa
época.
11Depoimento de Cosme Ferreira Gonçalves, 54 anos, gravado em 24 de
abril de 2001, p. 1.
19Idem, p. 3.
20Idem, p. 4.
21Ibidem.
22Idem, p. 5.
23Idem, p. 6.
24Ibidem.
25Ibidem.
26ACERTO dc contas no buraco da morte. Revista Região. Marechal
Cândido Rondon, ano II, n° 15, fev. dc 2001, p. 35.
27 Ibidem.
2KDepoimento dc Orlando Bauduíno dos Santos, 75 anos, gravado cm 15
de fevereiro dc 2001, p. 1.
29FONTES, Paulo Roberto Ribeiro. Comunidade operária, migração
nordestina e lutas sociais: São Miguel Paulista (1945-1966). Campinas,
Unicamp, Tese (Doutorado em História), 2002. O autor estudou o
movimento migratório de nordestinos para São Miguel Paulista, para
trabalharem setor industrial químico da cidade. Interessante interceptar
a trajetória de seu Orlando Bauduíno dos Santos como parte dessa
migração, especialmente pela sua dissidência em relação aos outros
trabalhadores que se fixaram.

147
30Depoimento de Orlando Bauduíno dos Santos, 75 anos, gravado em 15
de fevereiro de 2001, p. 13.
31Ibidem.
32Idem, p. 4.
33Idem, p. 6.
34Ibidem.
35LUZ, France. As migrações internas no contexto do capitalismo no
Brasil: a microrregiõo uNorte Novo de Marina - 1950-1980”. São
Paulo, USP.Tese (Doutorado em História), 1988, p. 35.
36GREGORY, Valdir. Os Eum-brasileims e o espaço colonial: a dinâmica
da colonização do Oeste do Paraná nas décadas de 1940 a 1970.
Niterói, UFF, Tese (Doutorado em História),1997, p. 227.
37Dona Margarida foi a única entre os entrevistados que não autorizou
a menção do seu verdadeiro nome.
38Depoimento de Margarida, 49 anos, gravado em 21 de fevereiro de
2001, p. 1.
39Idem, p. 4.
40ZAAR, Miriam Hermi. A migração rural no oeste paranaense/Brasil: a
trajetória dos “brasiguaios”. [online] Revista Electrónica de Geografia
y Ciências Sociales. Universidad de Barcelona [ISSN 1138-9788], N° 94
(88), 1de agosto de 2001. Disponível na Internet: URL: www.ub.es/geocrit/
sn-94-88.htm. Arquivo capturado em 10de setembro de 2002, p. 7.
41 Depoimento de Margarida, 49 anos, gravado em 21 de fevereiro de
2001, p. 6.
42Idem, p. 7.
43Ibidem.
44Idem, p. 10.
45Ibidem.
46Idem, p. 11.
47Idem, p. 13.
48Ibidem.
49Idem, p. 15.
50Idem, p. 2.
51Depoimento de Maria Senhora do Nascimento, 53 anos, gravado em 26
de abril de 2001, p. 4.
52Ibidem.
53Idem, p. 5.
54Ibidem.
55BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. Usos e Abusos da História

148
Oral. FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (oi^gs.). Rio de
Janeiro,FGV, 1998,p. 184.
56Depoimento de Maria Senhora do Nascimento, 53 anos, gravado em 26
de abril de 2001, p. 5-6.
57Idem, p. 6.
58Ibidem.
39Ibidem.
60Idem, p. 7.
61Depoimento de Maria Senhora do Nascimento, 53 anos, gravado em 26
de abril de 2001, p. 7.
62Ibidem.
63Idem, p. 8.
64Ibidem.
65LUZ, op. cit, p. 108.
66Depoimento de Francisco Oliveira Souza, 70 anos, gravado em 13 de
março de 2001, p. 1.
67 Depoimento de Ana Josefina de Souza, 61 anos, gravado em 8 de
março dc 2001, p. 1.
68Depoimento de Francisco Oliveira Souza,70 anos, gravado em 13 de
março de 2001, p. 2.
69Ibidem.
70 Depoimento de Ana Josefina de Souza, 61 anos, gravado em 8 de
março de 2001, p. 2.
71Depoimento de Francisco Oliveira Souza, 70 anos, gravado em 13 de
março de 2001, p. 3.
72 Depoimento de Ana Josefina de Souza, 61 anos, gravado em 8 de
março dc 2001, p. 9.
73Ibidem.
74Ibidem.
75 Depoimento de Maria Felipa Encinas, 64 anos, gravado em 14 dc
fevereiro de 2001, p. 2.
76Ibidem.
77Ibidem.
78Ibidem.
79Idem, p. 3.
80Depoimento de Maria José de Souza, 49 anos, gravado em 8 de março
de 2001,p. 33.
81Ibidem.
82Idem, p. 34.

149
83Ibidem.
84Depoimento de Maria José de Souza, 49 anos, gravado em 8 de março
de 2001, p. 34.
85Depoimento de Curt Ringenberg, 75 anos, gravado em 7 de fevereiro
de 2001,p. 1.
“ Ibidem.
87Depoimento de Hedwig Ringenberg, 75 anos, gravado em 7 de fevereiro
de 2001, p.2.
88Idem, p. 4.
89Depoimento de Curt Ringenberg, 75 anos, gravado em 7 de fevereiro
de 2001,p. 4.
90Depoimento de Matilde Schaefer, 74 anos, gravado em 3 de maio de
2001, p. 2.
91THOMSON, Alistair. Histórias (co) movedoras: História Oral e estudos
de migração. Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH/
Humanitas, vol. 22, n°44, dezembro de 2002, p. 345.
92Depoimento de Matilde Schaefer, 74 anos, gravado em 3 de maio de
2001,p.4.
93Idem, p. 4.
94Ibidem.
95Idem, p. 7.
96Idem, p. 8.
97Depoimento de Nair Freitas, 52 anos, zeladora, gravado em 25 de abril
de 2001,p. 10.
98Idem, p. 5.
99Depoimento de Matilde Schaefer, 74 anos, gravado em 3 de maio de
2001,p.6
100Ibidem.
101SAYAD, Abdelmalek. O retorno: elemento constitutivo da condição
do imigrante. Revista Travessia. São Paulo, CEM, 2000, p. 11.
102Depoimento de Vanderlei Scariott, 45 anos, gravado em 6 de fevereiro
de 2001, p. 2.
103Idem, p. 4.
104Idem, p. 6.
105Idem, p. 7.
106Ibidem.
107Idem, p. 9.
108Idem, p. 10.
109Depoimento de Paulo Selhorst, 51 anos, gravado em 3 de fevereiro de

150
2001,p. 1.
1.0Ibidem.
1.1Idem, p. 2.
1.2Idem, p. 6.
113Depoimento de Zelmo de Gonzatto, 63 anos, gravado em 27 de abril de
2001, p. 1.
1.4Idem, p. 4.
1.5Idem, p. 2.
116Ibidem.
117Idem, p. 5.
m Idem, p. 6.
ll9Idem, p. 2.
120CRUZ, Heloisade Faria Cultura, Trabalhadores e Viver Urbano. Projeto
História. São Paulo, PUC/SP, n° 18,1999, p. 304.
121CARDOSO, Irene. Para uma critica do Presente. São Paulo, Editora
34,2001, p. 22.
122Idem, p. 23.
123SARLO, Beatriz. Paisagens Imaginárias. São Paulo, Edusp, 1997, p.
61.
152
C apítulo 3

Memórias dos estranhamentos


Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro.

Musica de Adriana Calcanhotto sobre poema


deMariodeSá-Cameiro.de 1914,2002

Dimensões plurais do estranhamento


Filho de agricultores pequenos proprietários enraizados
no campo, o pedreiro Paulo Selhorst migrou do município
catarinense de Braço do Norte para o Oeste paranaense em
1970, no então distrito de Mercedes, hojejá emancipado. Desde
que chegou, Paulo trabalhou na zona rural como arrendatário,
onde permaneceu por apenas mais dois anos. Em 1972, “a gente
veio aqui pra cidade e estamos aqui”.1Em seu trabalho da
memória lembrou, uma vez mais, da rede de motivações que o
levara a migrar
Pra nós sobreviver lá nós precisava trabalhar a nossa terra e
também um pouco ter arrendado com outras terras. A gente
era de grande família, como aquela época, todos tinham bas­
tante filhos e não tinha mais terra pra sobreviver. O jeito foi
migrar onde estava... Os companheiros estavam migrando.2
Sua narrativachamou atenção para o fato de a sua família
não ter, na época, condições de adquirir um pedaço de terra
maior, ou mesmo de proporcionar uma melhor ocupação para
os filhos, porque já era numerosa. Foi nessa época que “então a
gente veio pra cá e também veio em busca de conseguir alguma
coisa”.3
Importante salientarcomoos argumentos sobre os modos
de vivere de trabalhar na agricultura tradicional de subsistência
familiar ajudaram na composição da bagagem cultural de Paulo
Selhorst, o que contribuiu primordialmente em sua decisão de
migrar. É preciso destacar, nessa trama de significações
construídas em tomo do seu deslocamento, aquelas atribuídas à
terra como um lugar da sobrevivência social e material, tanto
quanto responsável pela manutenção das relações de trabalho
no campo.
A narrativa de Paulo Selhorst expressou o seu
estranhamento na forma de uma ruptura entre o viver no campo
e na cidade. Ao mesmo tempo, pontuado como um sentido de
perda diante da real experiência do enraizamento no solo Oeste
paranaense. Há que se inferir, assim, que tais significações
produzidas, entre outras reportadas, foram mediadas pelos usos
costumeiros herdados, aos quais mantinham-se fincados os laços
familiares à terra.
Em sua narração, a migração emergiu como uma
estratégia e extrapolou o sentido da satisfação da sobrevivência
material. Sua narrativa destacou a permanência de modos de
vida que se contrapunham às mudanças impostas a suas vidas,
por uma rede de circunstâncias variadas, para além daquelas
convencionais remetidas à própria migração; comojá destacado,
da modernização das relações produtivas e laborais, tanto quando
em suas dinâmicas sociais.
As transformações da dinâmica dessas relações de
trabalho na agricultura foram ressaltadas como oposições aos
modos de trabalhar tradicionalmente empreendidos pela família,
quando na época a “colheita era feita na foicinhae pra plantarera
na base da máquina [matraca]. E não tinha veneno naquelaépoca
ainda”.4Com nostalgia, completou:
Que a gente sabia que naquela época, Rondon tinha duas ou
três colônias de terras, tinham às vez até dez famílias moran-

154
do. Hoje não mora mais ninguém. Então estão aqui na cidade
ou estão em outros centros urbano.5
Para esse depoente, a mudança do campo para a cidade
aconteceu na época em que “a cidade era só centro”, emitindo,
assim, um sentidopositivoàs transformações urbanas, com certeza
mediado pelo marco temporal de sua presença pessoal nesse
processo. A migração de Santa Catarina para o Paraná, e em
seguida do campo para a cidade, colocou-lhe como desafio
adaptar-se aos novos modos de vida urbanos, que até os anos
1970, como fez lembrar, constituía-se num pequeno núcleo
comercial e político administrativo. Lembrou, seu Paulo, ainda,
que nesse tempo:
Nós, no interior era acostumado com as músicas sertaneja. E
daf chegou na cidade era música popular e aí a gente não se
adaptava. Também o jeito de conversar. O pessoal da roça
tem um português mais... mais da roça e daí na cidade tinha
outro português e isso complicava um pouco. E com isso
tinha um pouco dificuldades de se adaptar.6
Em sua narrativa, as dificuldades para lidar com as
novidades ganharam um espesso relevo. Nesse caso, uma
dimensão do seu estranhamento foi evidenciada e merece ser
ressaltada. Observa-se, no entanto, que a sua dificuldade maior
não se deu em relação à compreensão de um dialeto ou outro da
língua alemã, que a memória oficial insiste em afirmar como a
única falada naqueles tempos de domínio dos colonizadores.
Todavia, há de se considerar, pelo menos no caso de seu Paulo,
como os matizes da língua portuguesa falada na cidade de
Marechal Cândido Rondon, a que atribuiu como próprios do
urbano, colocavam-se como uma barreira à expressão coloquial
advinda da sua experiência como trabalhador rural.
Considerar a trajetória de Paulo Selhorst como parte da
polifonia dos depoimentos, especialmente quando este recuou
no passado para se remeter a sua migração de Santa Catarina

155
para o Oeste paranaense, como fizeram muitos outros
trabalhadores sulinos, reivindica incluir como perspectiva do
estranhamento a sua mudança do campo para a cidade. Os
significados da migração referidos precisam, desta feita, ser
considerados como muito importantes na interpretação da
naturezae das diferentes expressões do estranhamento lembrado
pelos migrados. De outro modo, também apresentaram-se muito
interessantes, especialmente quando confrontados aos novos
universos da vivência social e cultural, assim como em relação às
frustrações e às lutas políticas subliminares que engendraram.
Não se trata, pois, de traçar prioridades ou hierarquias
entre as diversas formas do estranhamento experimentadas pelos
sujeitos, além de dialogar com as suas expressões lembradas,
valorizadas ou silenciadas. Menos ainda de articular padrões
comparativos entre os envolvidos no projeto colonizador e os
que vieram no pós-1970. Agama de possibilidades interpretativas
articula-se justamente na possibilidade de discutir as tensões
vividas, tanto quanto as suas experiências e trajetóriasentrelaçadas
entre os tempos e as bagagens culturais distintos. Como advertiu
Pierre Ansart em sua abordagem teórica e metodológica da
História e Memória dos Ressentimentos, “é preciso,
primeiramente, atentar àdiversidade das formas de ressentimento
e falar de ressentimentos no plural e não de um ressentimento
que tomaria as dimensões de uma essência universal”.7De igual
maneira é preciso estender a preocupação aos estranhamentos,
uma vez que em tomo deles as experiências dos sujeitos
mostraram-se historicamente transformadas e/ou reelaboradas
por uma rede de diversas estratégias de enraizamento.
Dialogar com os sentidos da lembrança ou do silêncio
dos depoimentos tem, evidentemente, umapreocupação de fundo
político, qual seja a de buscar driblar as mazelas poderosas do
esquecimento acerca da diversidade da paisagem social dessa
fronteira, além de desvendar a riquéza dos processos sociais

156
engendrados pelo enfrentamento aos estereótipos e tantos quantos
outros sentidos pejorativos inclassifícáveis das imagens
oficializadas, recorrentesem apelos da afirmaçãoétnica germânica
ou, em menor grau, italiana
Inspirado ainda pelo diálogo da História e da Psicologia
Social, movido por PiemeAnsart, é preciso ainda notar que:
A questão essencial colocada, às vezes de difícil resposta, é
a necessidade de compreender e explicar como o ressenti­
mento [e por sua vez o estranhamento] se manifesta, a quais
comportamentos serve de fonte e que atitudes e condutas
inspira, consciente ou inconscientemente.*
Para além do fértil debate interdisciplinar que propõe
acurar um novo olhar, o fazer historiográfico posto à frente
mostrava-se ainda em aberto, muito ao modo de uma viagem de
longa distância a ser feita em rodovia escorregadia e cheia de
curvas fechadas. Definir o melhor tratamento metodológico a ser
dado às lembranças do estranhamento foi um trabalho que passou
por longos e demorados desvios. O maior e mais contundente
deles foi o do problema da vitimização dos sujeitos investigados.
É preciso sublinhar, nesse sentido, que os depoentes
rememoraram os estranhamentos provocados por uma proposta
de pesquisa acadêmica que, por sua vez, somente foi viabilizada
pelo estabelecimento de laços de confiança construídos ao longo
do tempo, mesmo que mínimo, de convivência pessoal. Ou seja,
foi fundamental a identificação da procedência migrante do
entrevistador que, subliminarmente, propunha uma suposta
“igualdade” com o entrevistado, embora na prática ela tivesse se
mostrado pouco provável, haja vista os lugares diferenciados
ocupados nessa relação. Assim, tantojá nos advertiu Alessandro
Portelli que:
Isto leva-nos de volta ao problema original: o papel da igual­
dade e da diferença no campo da pesquisa. Os dois concei­
tos se relacionam. Somente a igualdade nos prepara para

157
aceitar a diferença em outros termos que hierarquia e subor­
dinação; de outro lado sem diferença não há igualdade -
apenas semelhança, que é um ideal muito menos proveitoso.
Somente a igualdade faz a entrevista aceitável, mas somente
a diferença a faz relevante.*
Destafeita, no campo dos procedimentos concernentes
ao método da História Oral, a pesquisa orientou-se sobre os
diferentes modos como os estranhamentos foram lembrados e,
especialmente, resignificados pelos depoentes. O caminho
revelou-se, assim, um riquíssimo campo de construção de
sentidos, mesmo quando estes foram marcados pelas mais
assustadoras menções ao racismo ou outras formas de
discriminação de classe.
Uma atenção dedicada, entretanto, deve voltar-se para
as dimensões da conciliação que essas memórias apontam. Mais
do que avaliar suas direções é preciso cuidado para não
menosprezá-las em troca de classificações conservadoras
aparentes. Antes, é preciso atentar para os sentidos políticos
implícitos, por sua vez contidos na riqueza dos processos de
transformações dos próprios sujeitos, afirmados muitas vezes na
projeção de seus papéis protagonistas na constituição de seus
espaços sociais. Tomar o estranhamento em si mesmo, todavia,
não é a melhor alternativa Serve, de início, para abrir caminhos e
contribui para pensar nos seus significados para e nas trajetórias
investigadas, em razão, especialmente, das lutas de enraizamento
e dos sentidos de conquista individual projetados pela migração.
Um outro problema colocado pelo conjunto das
memórias, sobre o qual não houve muito o que fazer, foi o de
reencontrar ou reviver por parte dos depoimentos as
reminiscências dos ressentimentos, no mais das vezes
estrategicamente silenciados ou adormecidos. Embora seja uma
questão sensível e semplacas de sinalização, o caminhoescolhido
aqui foi estabelecerum diálogocom as memórias individuais sobre

158
os processos sociais de construção de alteridades enquanto um
fazer-se da classe, entre estranhamentos e processos sociais de
afirmação de novas identidades.
Antes de tudo, talvez seja necessário limpar o terreno de
um outro problema suscitado na intromissão ao passado dos
depoentes. Algumas das versões mais contundentes dos
estranhamentos têm sobrevivido no cotidiano dos sujeitos
migrados para a fronteira. Por sua vez, deve-se atentar para a
natureza dessas tensões, haja vista a diversidade e fluidez dos
itinerários e dos interesses que constituem a formação dessa
paisagem social.
Nos mais diferentes espaços sociais sobrevivem imagens
muito fortes de tensões, discriminações e racismos vividos pelos
novos chegados à região, no período imediatamente posterior ao
fim do período de colonização empreendido pela MARIPÁ.
Algumas delas ajudaram a compor uma aura de mistério,
generalizadora, em tomo das experiências vividas por esses
trabalhadores. Em essência, tais imagens inferiram acerca de um
campo de tensões mais amplo, expressão de um manancial de
estereótipos que instituem a diferenciação de classes em que se
incluem esses trabalhadores.
As diferenciações de classe emergem bastante implícitas
nas imagensoficiais, todavia, afirmadasde maneirasdistintas desde
os tempos finais da ocupação planejada. Sob sentidos muito
amplos, nos anos 1970, as diferenciações foram marcadas por
uma nítida divisão entre os que podiam e deveriam ser
considerados colonos e os não colonos. A partir da segunda
metade dos anos 1980, com a maior visibilidade do projeto de
germanização, especialmente em Marechal Cândido Rondon, e
da pressão pela afirmação de identidades étnicas na região, um
outro tipo de distinçãopassou aevidenciarhierarquias entre aqueles
que possuíam ou não uma maior identificação com a ascendência
alemã

159
Ainda a partir dos anos 1980, as imagens construídas
em tomo do agricultorcolonocomeçarama ganharo qualificativo
de atraso, resultante, sem dúvida, da tensão de valores em vista
dos novos referenciais supostamente modernos auferidos com a
recenteurbanização. Osdiferentesqualificativosdamemóriaoficial
emprestados aos trabalhadores parecem ter espraiado nuvens
de fumaça da comparação entre os diferentes sujeitos, por sua
vez travestidos na forma discriminatória entre classes. Embora
tais questões possam ser facilmente constatadas, um vácuo de
sentidos pareceu permanecer, decorrência do modo como esses
conflitos foramvividose reelaborados por quemos protagonizou.
Uma aura desses estranhamentos, pouco palpável,
sobreviveu, também e paradoxalmente, à imagem oficial num
esforço legitimador para a suposta identidade étnica. Noutras
palavras, todos os elementos contraditórios ao suposto processo
identitário foram utilizados na sua afirmação. Em atenção a esse
processo social, os desdobramentos diversos da luta política da
constituição identitáriaúnicadenunciamexatamenteoseu inverso,
qual seja a diversidade.
Embora tendo adotado umaperspectiva de conflito entre
grupos sociais e não de classes, Norbert Elias em seu estudo
etnográfico Os estabelecidos e os outsiders, escrito nos anos
1960, observou com muita propriedade a existênciade uma trama
política subsistente nas qualificações do outro. O autor notou que:
“Parece que adjetivos como ‘racial’ ou ‘étnico’, largamente
utilizados nesse contexto [Winston Parva, Inglaterra, final da
década de 19S0 e início da de 1960], tanto na sociologia quan­
to na sociedade em geral, são sintomáticos de um ato ideoló­
gico de evitação. Ao empregá-los, chama-se a atenção para
um aspecto periférico dessas relações (por exemplo, as dife­
renças na cor da pele), enquanto se desviam os olhos daqui­
lo que é central (por exemplo, os diferenciais de poder e a
exclusão do grupo menos poderoso dos cargos com maior

160
potencial de influência). Quer os grupos a que se faz referên­
cia ao falar de ‘relações raciais’ ou ‘preconceito racial’ difiram
ou não quanto a sua ascendência ‘racial’ e sua aparência, o
aspccto saliente dc sua relação é eles estarem ligados dc um
modo que confere a um recursos de poder muito maiores que
os do outro e permite que esse grupo barre o acesso dos
membros do outro grupo ao centro dos recursos de poder e
ao contato mais estreito com seus próprios membros, com
isso relegando-os a uma posição de outsiders”.10
A partir desse ponto, é preciso driblar a armadilha
existente nessa trama de símbolos construídos no campo da
dominação e dialogar com os estranhamentos lembrados e
esquecidos pelos depoentes, como aportes para a apreensão
dos processos e relações sociais constituídos na formação dessa
fronteira. Não obstante, ao seguir a trilha das trajetórias sociais, é
preciso cuidar para não reatualizar os estranhamentos ou
extravasá-los para além dos muros dos sentimentos tratados pelos
próprios sujeitos. Tmpõe-se, também, tentar desvendar os
significados de suas recordações como parte do processo dc
construção dc suas alteridades no fazer-se da classe, entre
ressentimentos e lutas resignificadas.

Estranhamentos e trajetórias sociais


Em 1961, no auge do período de ocupação, como assim
sepodeconsiderar, donaAmaraAntoniaLins migrou do município
norte-paranaense de Jandaia do Sul para a zona airal do distrito
de Novo Horizonte. Nessa localidade trabalhou, durante essa
década, como agregada nas plantações de café e milho então
cultivadas na região, para uma família de agricultores colonos
descendentes de italianas, mudando-secom a família para a cidade
somente em 1971.
Atrajetória de donaAmara Lins evidenciou pelo menos
duas questões importantes. Aprimeira,já destacadaanteriormente,

161
refere-se aos migrantes vindos de muito regiões distantes, como
do Nordeste, deslocados primeiro para o Norte paranaense e
daí para o Oeste, bem antes ainda dos anos 1970. A segunda
revelaexistir, entre os camponeses, trabalhadores agregados ou
parceiros ainda durante o período da colonização, evidenciando
que esta não se fez exclusivamente por trabalhadores pequenos
proprietários e por migrantes gaúchos e catarinenses, como tanto
se comemora.
A presença de diversos sujeitos e, conseqüentemente,
de diferentes memórias, para além dos enquadramentos
consagrados pelas imagens oficiais, abriu um campo de
reconsiderações importantes acerca das alusões românticas ao
modo exclusivo de trabalho dos primeiros colonizadores,
principalmenteem relação à memória de uma agriculturafamiliar
minifundiária. O mesmo problema reaparece em relação à
trajetória de Paulo Selhorst, que, embora sendo migrante
catarinense, não trabalhou no campo em sua própria terra
De uma maneira muito direta e franca, dona Amara
lembrou que os maiores problemas enfrentados por quem migrou
para o Oeste foram travados no campo das sociabilidades, em
especial os estabelecidos nas relações de trabalho, ainda nos
tempos em que morou pela primeira vez na zona rural.
Curiosamente, foi com os colonos descendentes de italianos, e
não com os agricultores descendentes de alemães, que dona
Amara lembrou de ter vivido as maiores dificuldades de
adaptação. Sua memória do estranhamento, nesse caso, expõe
como lugar de conflitos o vínculo de parceria com o proprietário
da terra para quem trabalhou.
Observa-se, a seguir, que as narrativas do estranhamento
são articuladoras substanciais das relações conflituosas entre os
trabalhadores e os proprietários da terra e outros proprietários
da vizinhança. O estranhamento e o processo de construção de
sua alteridade não foram lembrados como desvinculados das

162
experimentações da classe tecidas nos mundos do trabalho.
Interessante observar em seu trabalho da memória como dona
AmaraLins articulou-os:
Olha, a convivência minha [em Novo Horizonte], quem não
conviveu comigo não convive com ninguém. Só que eu sou
separada, que nem eu já te falei. Eu não freqüento casa de
gente bocudo, fofoqueiro, eu sou da minha casa. Mas todo
mundo era amigo! Só que era amigo, por detrás tocava fogo,
que nós não sabia se vestir, nós era pobre, nós não podia se
vestir que nem aqueles italiano. Tudo bem de vida, já fixo no
lugar. Nós era empregado, eles era proprietário. Então eles
começava ignorar nosso jeito dc andar, nosso jeito dc calçar,
nosso jeito de vestir, nosso jeito de ir pra missa."
Dona Amara compôs sua narrativa no campo da luta de
classes. Seus patrões eram “tudo bem de vida, já fixo no lugar”.
Por sua vez, selecionou os momentos mais tensos como um
reencontro comesse tempo, como umaexperiência vivida, porém
já ultrapassada. Importa notar, na riqueza dc sua composição,
que o diagnóstico dos problemas de socialização no distrito de
Novo Horizonte não foram marcados pelo conflito com os que
se intitulavam italianos, mas pelo conflito entre ela c sua família
trabalhadora e aqueles que já eram portadores da condição
privilegiada de ser “já fixo no lugar”.
Tocada pelo exercício de uma reflexão ressentida, dona
Amarapareceu perseguir umacompreensão acercada intolerância
sobre a qual nunca entendera. As lembranças foites da intolerância
informam a permanência de algumas fissuras nesse processo,
revistas de um outro lugar e tempo. Algumas delas não parecem
ainda bem resolvidas e foram expressas na forma de um
reconhecimento das ambigüidades daquelas tensões no interior
de sua perspectiva de classe.
A leitura de dona Amara sobre as relações sociais com
os antigos patrões foi mediada por seu modelo pessoal de

163
relacionamento afetivo. E, nesse caso, o nedescobrimento desse
passado pelas vias da memória pareceu lhe denunciar uma
ambigüidade existente entre os atos dos envolvidos no conflito,
que às vezes “todo mundo era amigo” e em outras “por detrás
tocavafogo.”
Na trajetória de dona Amara, algumas frustrações ocupam
considerável atenção de sua lembrança. Foi especialmente
na convivência com os moradores da cidade, para onde se
mudou em 1971, que outras comparações puderam ser for­
muladas sobre aquele universo de relações de sociabilidade
com os “italianos” deixados para trás, numa época em que
ainda era uma trabalhadora rural. Essa comparação foi ex­
pressa com ressentimento, como uma ferida ainda não total­
mente cicatrizada, atribuindo diferentes significados às ex­
periências vividas no passado. Entre esses, um que envol­
veu uma de suas filhas mais novas:
Ah, meu filho! Minhas filhas até hoje elas são muito revortada,
não gosta de passear lá [Novo Horizonte], não gosta de con­
versar com as pessoas de lá. Vem uma [filha] de São Paulo,
quando ela vem aí, de quatro em quatro anos ela vem. Às
vezes ela se encontra com aquelas italianas ela recebe bem,
fica feliz. Mas nós não, nós fala: Preta, você tinha que se
lembrar o que eles fazia pra você. Eles ignorava o que tu
vestia, eles ignorava o que que tu carçava., eles ignorava
como tu falava, porque tu te se faz ser tão amiga. Essa gen­
te... não conhece esta gente, a gente só conhece... a gente
conheceu quando morava lá, mas a gente desconhece ago­
ra.12
Os modos de vida e os padrões econômicos de
sobrevivência na pobreza são lembrados como os motivos
fundamentais que os diferenciavam dos antigos moradores de
Novo Horizonte. Alembrançaressentidade donaAmarachamou
a atenção para as diferentes significações tecidas acerca daquele
confronto com os “italianos” de Novo Horizonte. Embora
participassemdaquele universocomo crianças, a filha mais nova
de dona Amara, em sua percepção e contragosto, pareceu não

164
cultivar os mesmos sentimentos de rejeição ao mundo do trabalho
vivido na época por seus pais. Assim, dona Amara conduziu a
sua memória para alimentar uma cobrança das filhas sobre a
“ignorância” em que viveramaquele tempo. Anarradora falou do
estranhamento, vivido por meio de vias desconexas.
Particularmente, emrelaçãoao inaceitável esquecimentodas filhas,
quando, então, envolveu-se num trabalhode fazer a filharecordar
“Preta, você tinha que se lembrar o que eles fazia pra você.”
O mesmo aconteceu em relação ao modo como lembrou
de seu viver urbano. Nesse caso, donaAmara, embora ressentida
com os “italianos” de Novo Horizonte, procurou expressar uma
outra memória, de tom conciliatório, com os moradores que
encontrou na cidade. A bem da verdade, pareceu falar de um
outro lugar, em que as condições de vida melhoraram e um
respeito maior lhe foi atribuído por suas conquistas. Na cidade
dona Amara lembrou não ter encontrado condições tão hostis.
No depoimento, não somente pôde reavaliar o seu passado, como
também reivindicou infomiar uma outra sua identidade, visto que:
Agora nós semos oulras pessoas! Nós não semos mais aquela
gonle que morava cm Novo Horizonte, nós semos oulras
pessoas. Nós convivemos com gente que entende quem c
nós e graças a Deus, aqui em Rondon, você sabe... Eu gostei
de Rondon... eu gosto dc Rondon, eu não quero sair daqui.11
A imagem da “ignorância” deixada para trás, expressada
por dona Amara, é de fato uma questão sensível que deixou
marcas profundas em sua experiência, algumas das quais
apresentadas ainda como feridas expostas. Sua narrativa, entre
todos os elementos importantes selecionados por sua memória,
apresentou o espaço daquela fronteira como um lugar permeado
por muitos conflitos e significações heterogêneas, contudo
entrecortados por contínuas mudanças.
O estranhamento lembrado por dona Amara, em sua
trajetória por vários lugares e experiências no solo brasileiro,

165
diferentemente do de Paulo Selhorst, foi vivido no cámpo e com
outros sentidos. A cidade foi narrada como um lugar onde se
sentiu liberta da opressão e da ignorância dos patrões e das
relações de sociabilidade com os outros vizinhos na comunidade
com quem viveu em Novo Horizonte. Esses significados devem
ser analisadosjuntamente com outros elementos de sua bagagem
cultural e de suas experiências, que se mostraram pessoais e
intransferíveis. No casode donaAmara, foi nacidadequetambém
se libertou do marido autoritário e violento, motivo pelo qual
impregnou de novos (e positivos) sentidos àquela mudança.
AnaJosefinade Souza, a Donana, compartilhacomdona
Amara outras dimensões do estranhamento. Ao ser perguntada
sobre as diferenças entre o lugar em que morava e a cidade aque
era recém-chegada, lembrou com muita ênfase de quejá:
Tava acostumada lá em Iporã no meio do povo, assim, brasi­
leiro, povo moreno, baiano assim como eu, mineiro. E quan­
do chegamos aqui então... É... A gente saía na rua e o povo
tinha medo de mim. Às vez eu saía com meus filho e eles
olhava assim... Parecia com medo, pensando, olhando pra
mim como se eu fosse um bicho!14
Na construção das novas redes de relações sociais com
os moradores mais antigos, Donana logo precisou lidar com as
diferenças. Entre as novas experiências, sua memória selecionou
um episódio de estranhamento, que foi relatado como uma de
suas maiores incompreensões, haja vistao grande fôlegodramático
que empregou:
Eu me lembro que um dia eu saí na rua com meu filho, com
meus dois filho, o Edivaldo e o Erivaldo. E o Edivaldo, nós ia
passando na beira da rua, tinha uma mulher colhendo caqui,
um pé de caqui; e ela tava colhendo caqui. Aí ele mostrou pra
mim que ele queria, gostaria de comer um caqui daquele. Era
novidade, não conhecia que era aquilo. Eu já sabia o que era
caqui, daí ele pediu que ele queria. E como a gente tava acos­
tumada a não deixar faltar nada pros nossos filhos, que a

166
gcntc sempre trabalhou pra isso, não deixar faltar nada pra
eles. Aí eu tirei um dinheiro da bolsa e mostrei, eu vi que
aquela senhora era uma alemã. Falei: ela não vai entender o
que que eu vou falar. Aí eu mostrei o dinheiro pra ela e falei
que ela desse um caqui pro menino, que ele queria comer, ele
queria. Mostrei assim que ele queria comer. Af ela só fez as­
sim [gesto] que não, mostrou assim com o dedo que não, que
ela não ia vender o caqui pra nós. Aí até fui na minha casa, o
menino chorando, aí depois deixei eles em casa e voltei no
mercado e comprei um caqui pra ele. Porque nós sempre cui­
damos não deixar faltar nada pros nossos filhos.15
Com o susto que levara, Donana buscou em suas
experiências de classe os valores morais mais caros para a
expressão de sua alteridade diante de uma situação de conflito
criada pelos moradores mais antigos. Diante de uma situação
embaraçosa, Donana foi veloz na identificação do outro: “eu vi
que aquela senhora era uma alemã. Falei: ela não vai entender o
que eu vou falar.” Ao mesmo tempo em que assim procedia,
como contraposição, mostrou-se como trabalhadora, ressaltando
os seus valores mais preciosos:
Porque nós sempre cuidamos não deixar faltar nada pros nos­
sos filhos. Que nós tinha medo dc deixar faltar alguma coisa
pra eles c eles começar a mexer, pegar as coisas dos outro, li
nós sempre cuidando dessa parte pra não deixar nossos fi­
lhos é... torcer pra esse lado. A gente pensava assim, não a
gente é de cor, mas a gente quer ser limpo, a gente sempre
pensou assim, como graças a Deus até hoje, a gente é de cor
mas tem o nome limpo aqui em Marechal Cândido Rondon.16
No pequeno trecho de sua narrativa buscou vai idar seus
valores e princípios mais valiosos, na forma de uma ação política
de afirmação de sua alteridade naquele espaço de conflitos. As
maiores dificuldades, como destacou, não se deram
exclusivamente nos relacionamentos sociais mais amplos do
espaçopublico. Enfatizou, todavia, que tais diferenças interferiram

167
diretamente na não manutenção de seu ofício doméstico de
costureira, que precisou abandonar logo depois de sua chegada.
De acordo com sua lembrança tal situação:
Chegou ao ponto que não tinha mais costura, porque os
alemão não levava costura pra mim, que eu era preta (risos).
E tinha muito isso aqui no começo em Marechal Rondon,
racismo. Como até hoje tem racismo... A gente nota que tem.
Eles não pode falar, eles não pode expressar, mas a gente
nota que tem racismo aqui. Porque meus filho enfrenta muito
problema aqui em pegar serviço aqui. Então, aí quando eu vi
fracassar o serviço de costura, daí eu procurei serviço de
zeladora, fui trabalhar no banco Itaú como zeladora.17
Foi por meioda práticareligiosaevangélicae do trabalho
como zeladoranumbanco da cidade que lembrou do seu processo
de superaçãodessas intolerâncias, aindaresidual em suamemória.
Donana narrou o seu estranhamento pelo fio do fazer-se como
moradora do lugar e como trabalhadora. Todavia, deu maior
ênfase à sua atuação na Igreja Evangélica, da qual fez questão de
lembrar ter participado a vida toda:
Então eu, graças a Deus, fui bem recebida na Igreja. E nessa
época que nós chegamos aqui, em 73, eujá comecei trabalhar
com criança na Igreja, ser professora da escola dominical das
crianças na Igreja. E durante três anos trabalhei com criança
na Igreja. Depois de três anos e já passei trabalhar com as
senhoras da Igreja, e tô até hoje trabalhando com senhoras.
Isso já faz 27 anos, agora mês de novembro passado nós
comemoramos o nosso aniversário, do círculo de oração, que
diz que uma sociedade dc senhoras, 27 anos.18
A teia dos conflitos não foi recordada como uma questão
superada. A depoente citou um processo inacabado, permeado
por outros enfrentamentos que parecem alcançar os seus filhos,
quando estes no presente encontram dificuldades para conseguir
trabalho. Todavia, na medida em que se reportou aos
estranhamentos vividos, ao mesmo tempo foi permitindo

168
restabelecer uma conexão com o lugar e sua participação, para a
qual imprimiu novos sentidos de viverum papel de protagonista.
Num súbito de rememoração, Donana mesma avaliou:
“pra você ter uma idéia eu sou de raça negra, posso dizer, e sou
presidente dessas senhoras. Alguém até admira, como pode a
irmã Ana, é dessa cor, ser presidente de um grupo de senhora,
aqueles ignorantes que ainda existe!”.19Noutro momento de
destaque da narrativa, produziu sob a forma de uma memória
afetiva, os significados de sua sobrevivênciasocial garantidapelo
trabalho de zeladora que desempenhou num banco da cidade:
“fui muitobem recebida lá no banco Itaú, naquele serviço. E dali,
daquele serviço, foi que melhorou a nossa vida Que quanto nós
tava ali naquele banco, trabalhando ali no banco, eu com meu
esposo no banco, é, a gente tinha uma vida boa”.20
Tanto as atividades religiosas na Igreja Assembléia de
Deus, onde alçou uma certa liderança, como no banco Itaú, onde
trabalhoucomozeladoraaté 1986, foramlembranças privilegiadas
em sua memória Ambas as instituições significaram-lhe um lugar
para lidar, com relativa impessoalidade, o seu papel de
trabalhadora, mulher e negra, num momento em que tantos
estranhamentos se mostravam.
Interessa ressaltar, no diálogo com a memória de Donana,
como sua força narrativa atuou no sentido de dar visibilidade ao
modo como não sucumbiu às forças da discriminação de cor e
classe. Ao contrário, afirmou sua alteridade nesse campo, a qual
imprimiu grande força e tenacidade. Embora tenha se referido à
convivência e ao estranhamento com aqueles com os quais
chamou de “os alemão”, tal menção pareceu referir-se àqueles
que chegaram primeiro ou que ocupavam uma dada posição
privilegiadaem seu convívio social.
Tal como Donana, o marido Francisco de Oliveira Souza,
o seu Chico, reportou-se aos estranhamentos com grande fôlego
nairativo:

169
Naquele (empo... eu cheguei aqui cm 73. A turma me chamava
de... Disse: óia, ó o negão! Quando não era negão, era o
pretão. Inclusive, principalmente quando eu entrei no Itad. A
turma, todo mundo, esses catarinense, esses gaúcho falava:
qualquer coisinha falar, óia, fala com o negão do Itaú, o pretão,
o guarda, que ele informa qualquer coisa pra vocês. O pesso­
al era meio esquisito, mas toda vida foi bom de se morar.21
No instante seguinte da entrevista, sua narrativa voltou a
tocar noestranhamentonoespaçodo trabalho: ‘Tem muita gente:
oh, nego, vem aqui. Fala assim, depois chega lá: o que que vai?
Você pode informar isso assim, assim, assim. Eu pedia: rapaz!
Podiachamar ao menos meu nome. Dizia: falalácomonegão!”22
Nos fragmentos selecionados pela memória, seu Chico atuou
como um airanjador, mostrando-se nãoteraceitadopassivamente
a discriminação, tantoque teinvidicoualguma formade retratação,
mesmo que fosse na forma de um “podiachamar ao menos meu
nome.”
As temporalidades diferenciadas que a memória
reportou, do ontem em que “o pessoal era meio esquisito”, mas
que “toda vida foi bom de se morar”, não expressaram um tempo
único e homogêneo do conflito. Os novos sentidos construídos
em torno dc sua trajetória apontam para uma memória do
estranhamento na fronteira de sua superação, que com o passar
do tempo reverteu-lhe numa dignidade e aceitação merecida.
Sentindo-se tomado pelo mais elevado sentimento de orgulho,
seuChicofinalizou:
O próprio delegado, (...) naquele tempo, delegado falou. Um
dia eu cheguei lá ele falou. Ta vendo esse preto véio aí, o
único preto que foi apoiado aqui dentro de Rondon foi este
hein! Nunca deu trabalho nenhum, onde ele fala ele é recebi­
do, é bem recebido!.23
Seu Orlando dos Santos, porém, instigado por uma
pergunta sobre a vida nos primeiros tempos, lembrou bem-

170
humorado de não ter tido maiores problemas com os antigos
moradores, embora tenha estranhado, implicitamente, alguns
padrões comportamentais:
Os alemão aqui foram muito bom comigo. É, nós... Eu brinca­
va muito sabe? Que a gente andado no mundo sempre tem o
jeito de brincar. Eles eram meio fechado, que eles começa...
Aquele tempo os mais velhos chegava, tinha um brasileiro
eles falavam só em alemão. Af a gente começava brincar com
eles: fala que nem gente, fica com esse leco, leco, leco... Apren­
de falar também, eles falavam (risos). Aí sempre era na brinca­
deira.24
Na seqüência lembrou do estranhamento de sua esposa:
Então eu não tive dificuldade, mas a minha patroa lá, lá no
colégio mesmo ela teve. As colegas dela de origem alemão,
que descriminava muito. Por uns tempo descriminava ela,
mas depois foi indo, acostumaram. Que se vê, ela tem a pele
mas escura do que eu e eles naquele tempo cies eram muito
racistas, tinha esses pessoal mais velho, esses alemão mais
velho. Depois foi misturando, a rapaziada lá onde mesmo se
ve que é tudo origem alemão aqui, de polaco, gringo. Eles é...
Era pra mim é uma maravilha aqueles rapaz. Eu me dava muito
bem com eles. Tinha aqueles engraçadinhos de vez em quan­
do precisava puxar as orelhas deles um pouquinho.25
De maneira instigante, seu Orlando rememorou o
passado dos primeiros tempos, fazendo uma distinção das
diferentes experimentações do estranhamento vivido por si próprio
com a de sua esposa. Segundo ele, o fato de ser “gente andado
no mundo” lhe ajudara a lidar com as diferenças que foram se
apresentando, imprimindo-lhe, inclusive, “ojeito de brincar”.
Seu Orlando expressou com ênfase o bom
relacionamento que cultivou com osjovens estudantes do colégio
público onde morou e trabalhou como zelador por vários anos.
Ordenou, assim, uma memória afetiva importante acerca daquela
experiência de trabalho, quando essa lhe conferiu uma posição

171
de autoridade, como porteiro e inspetor de alunos, funções em
que se sentiu à vontade, em razão de sua responsabilidade, para
aplicar as correções disciplinares necessárias aos estudantes.
Interessante notar, entretanto, as diferentes percepções
e experiências com o racismo. Neste plano, deve-se considerar
o modo como seu Chico reelaborou a seu favor as expressões
oficiais discriminatórias, diferentemente do que fizeramos demais
trabalhadores negros que conhecera. Seu Orlando, por sua vez,
preferiu apontar diretamente para a sua autoridade e o prazer
nos relacionamentos mediados pelo seu trabalho. É possível dizer
que as apreensões do estranhamento desenhamsentidos políticos
próprios no tratamento do passado. Em ambos casos, a
discriminação não se mostrou numa feridatotalmente cicatrizada,
quanto menos imune às ambigüidades do fazer-se desses sujeitos,
haja vista as estratégias conciliadoras de seus enraizamentos.
Ambas as experiências ajudaram na compreensão do
campo dessas tensões, silenciadas ou ressignificadas, em tomo
da discriminação e da adaptação ao novo espaço. No caso dc
seu Chico, isso se observa na maneira aguerrida como demonstrou
as dores do estranhamento e sua aceitação privilegiada entre os
demais. Já a memória de seu Orlando trabalhou numa construção
positiva que pretendeu ressignificar o estranhamento, embora tivesse
noutramargeme com outras códigos, dando vida às tensões omitidas.
Seu Zelmo de Gonzatto ofereceu também um tratamento
bem-humorado à lembrança dos primeiros tempos. Sendo
descendente de italianos, apontou que a sua relação com os antigos
moradores foi “até é uma... até é uma farra... Eles me chamavam
de gringo, eu chamava eles de alemão (risos)”.26
O espaço do trabalho foi lembrado por ter sido o lugar
onde essas diferenças forammais intensamente afirmadas:
E esse gringo, não sei o quê... gringo só presta pra trabalhar
de carpinteiro mesmo. (...) Diz: mas não! Na brincadeira. Diz:

172
gringo se não for carpinteiro, então pode matar (risos). O
gringo tudo é, parece quejá nasce mesmo pra sabendo traba­
lhar de carpinteiro (risos). De certo tem uma...27
Na perspectiva de seu Zelmo, a vinculação de sua
ascendência italiana ao ofício de caipinteiro soou mais
como uma desqualificação profissional que propriamente
uma discriminação, encarada como uma brincadeira:
Até judiei de um alemão. Digo: São José que é um santo é
gringo. Diz: Ah! Não sei! De onde veio?: da Itália, era... era
carpinteiro (risos). Eu falava pra ele: não que São José era
carpinteiro? Diz ele, eu falei: você não tem uma machadinha
aqui? Tenho! (risos). Daí era uma farra com as turma. Mas
não, não estranhei esse negócio sobre origem de alemão não.2*
Como se observa, o primeiro plano do reencontro de
seu Zelmo com seu passado não atentou para uma estranheza
em relação aos colegas de trabalho de “origem alemão”, mas
para os estigmas atribuídos à sua profissão. Em sua memória
fez emergir os recursos simbólicos legítimos de sua bagagem
cultural religiosa no combate àquelas estigmatizações. Para
além delas, ainda desqualificou: “tem alemão aí que se não for
do Rio Grande do Sul é de Santa Catarina”.29
Várias outras questões foram suscitadas pelas me­
mórias do estranhamento então narradas. Uma delas, muito
importante, relaciona-se aos agentes da discriminação cita­
dos pelos depoentes como catarinenses e gaúchos. Ao narrar
desse modo, implicitamente apresentaram uma leitura do con­
flito noutra margem de entendimento. As memórias apresen­
tam os agentes não como alemães, mas como brasileiros tais
como eles próprios.
Voltando à trajetória de itinerância de seu Chico, um
outro elemento importante foi suscitado, embora não tivesse
sido abordado explicitamente. Em 1986, remigrou com a fa-

173
mília para Rondônia, lembrando com muita ênfase o quanto
essa experiência “foi ruim, aquela foi braba, aquela foi braba
que eu perdi minha casa, perdi meu carro, mulher perdeu o
carro dela, perdi emprego, cheguemos sem nada”.10
O fato de ter experimentado outros lugares e de ter
retomado de Rondônia em 1988, por certo com algum acúmulo
de experiênciase outras frustrações, contribuiude algumamaneira
na resignificação dos conflitos, tanto quanto na proposição de
novas formas de interação social e de enraizamento. Até porque,
embora envolvido com as narrações do estranhamento,
reconheceu, no processo de idas e vindas, foi graças à “sorte
que nós tinha conhecimento” que o frustrante e fadado retomo
posterior fora viabilizado.

Afirmando identidades em meio ao estranhamento


Os sentidos conflituosos constituintes das memórias do
estranhamento atribuíram significados diferentes ao viver a
ocupação da fronteira. As memórias não afirmam um passado
congelado do estranhamento, mas muito dinâmico ao fazer-se
dos sujeitos na reconstrução de suas vidas. Noutras palavras, é
impossível falar dos estranhamentos da mesma maneira tal como
um dia supostamente foram vividos. Muito mais importante que
isso, é preciso atentar ao modo como articularam novos vi veres
e estratégias na construção de suas alteridades no interior da
classe. De outra maneira, também, é preciso atentar que as
memórias do estranhamento compõem novos sentidos políticos,
com os quais buscam expressar os significados e a importância
de suas trajetórias para esse meio social.
A apreensão do estranhamentoé um aporte metodológico
que perpassaobrigatoriamente os processos sociais de afirmação
de identidades. Por sua vez, a identidade não é compreendida
como uma noção fechada de padrões culturais de grupos,
herméticos em si mesmos, prontos e estáticos. Nesse sentido,

174
compartilho das reflexões de Antonio Carlos Ciampa, em seu
importante estudo de psicologia social, em que a “identidade é
metamorfose. E metamorfose é vida”.31
Desse modo, as lembranças de estranhamentos são
trabalhos da memória afirmados no campo das estratégias da
classe. Trazidas ao presente, não apenas informam sobre as
disputas e as tensões contra as forças morais pejorativas contidas
nas imagens oficiais dominantes, mas recuperamo processo em
que se tomaram outros sujeitos, o movimento de construção de
novos valores, o tratamento dos ressentimentos e a própria
constituição do enraizamento. Assim então, e pensando com
sentidos ampliados, as memórias compõem e interagem ao
processo social histórico enquanto lutas de enraizamento. Pois,
como observou Simone Weil,
O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais
desconhecida da alma humana. É uma das mais diffccis de dcfínir.
O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e
natural na existência de uma coletividade que conserva vivos
certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro.
Participação natural, isto é, que vem automaticamente do lugar,
do nascimento, da profissão, do ambiente. Cada ser humano
precisa ter múltiplas raízes.-'2
Entre as imagens mais contundentes do estranhamento
alimentadas na oralidade, a mais impactante delas se refere ao
Planeta dos Macacos, o bairro onde habitaram os primeiros
trabalhadores da Cooperativa Coopagril a partir dos anos 1970.33
A recorrência ao Planeta dos Macacos foi uma evidência e um
problema que estiveram articulados à pesquisa desde os seus
momentos iniciais,já que se buscava historicizar o seu surgimento
e as experiências dos trabalhadores a ele relacionados. Todavia,
entre os depoentes, seu Chico foi o único a se reportar
espontaneamente a essa questão. Outras vezes, quando o tema
era abordado entre os depoentes foi quase uma regra ouvir

175
algumas expressões de silêncio. Ou, então, ouvirde PauloSelhorst
um desconfiado e furtivo: “ficou sabendo de quem esse nome
Planeta dos Macacos?”34
Uma outra questão importante emergiu no esforço de
seu Chico para mostrar a sua exceção em relação aos outros
migrantes, principalmente aos trabalhadores negros. Ao narrar
uma sua distinção entre os demais, tendo em vista o bom
tratamento obtido pelas autoridades locais, atribuiu grande
dignidade e significado de realização pessoal. De algum modo,
seu Chico fez notar que as discriminações enfrentadas pelos
trabalhadores negros foram um problema de maior espectro no
processo social de constituição dessapaisagem.
Seu Orlando Bauduíno dos Santos, que chegou em
Marechal Cândido Rondon em 1975, começou a vida
trabalhando como maquinista numa cooperativa. Sua lembrança
atentou também, de modo si milar ao dc seu Chico, para os critérios
de seleção dos trabalhadores, numa perspectiva dc valorização
dos trabalhadores negros, em contrapartida à depreciação de
outros trabalhadores. Lembrou seu Orlando que os critérios
utilizados na seleção dos trabalhadores davam preferência aos
filhos dc seus associados:
O filho dc associado por acauso assim... por acauso sc li vesse...
sc tivesse um sítio c tivesse um filho que tivesse na cidade c
viessem pra a cidade, eles dava muita preferência. No serviço
braçal... é hraçal... pesado, era tudo gente dc fora. (...) Porque,
ensacador no... no... gente branco não, não trabalha de
ensacador não agüenta, e difícil. Aqui só prelo que naquela
época tinha, era só ensacador (risos) e a gente tinha até medo
dos negrão que vinha (risos).M
A memória de seu Orlando parece reportar-se aos
trabalhadores “de fora” como se tratasse de uma relação de
exterioridade, e não propriamente de sua experiência. Nesse
sentido, ele mesmo advertiu que “trabalhei de maquinista!

176
Ensacador eu não agüentava carregar saco na cabeça não!
(risos)”.36Parece haver um trabalho da memória ao posicionar-
se como um expectador dessas tensões, inclusive com sentidos
compartilhados de diferenciação em relação aos trabalhadores, a
ponto de dizer que “a gente tinha até medo dos negrão que vinha.”
A composição de seu Orlando deu, contudo, um
tratamento crítico àquelas distinções de classe implícitas no
favoritismoaos filhos dos associados, que não executavamserviço
braçal. Ao mesmo tempo, trabalhou com a memória para atribuir
um qualificativo pejorativo de fraqueza braçal àqueles que se
apresentavam do outro lado do conflito.
Paulo Selhorst, então um migrante catarinense,
posicionou-se do seguinte modo sobre as indagações acercado
Planeta dos Macacos:
Que eu tenho conhecimento do Planeta dos Macacos é que
aqui a nossa região é uma região donde o racismo está presente.
Então, morava a maioria, pessoas de preta nesse local. Então
daí os branco começaram a chamar de Planeta do Macaco,
achando que o preto é macaco, mas não é! São gente como nós
também. Mas esse racismo continua e não desaparece tão fácil.37
Um ar de desconforto tomou conta do semblante de
Paulo Selhorst quando se tocou nessa questão. Amaneira como
atualizou a questão do racismo mostrou-se bastante interessante.
Antes, porém, é preciso destacar que esse trabalhador esteve
fora da cidade entre 1977 e 1987, período em que eclodiram as
discriminações. Mesmo assim, de algum modo expressou uma
preocupação e, por certo, um relativoconhecimento acercadesses
estranhamentos ocorridos durante sua ausência, evidenciandouma
extensão dos fios dessa memória persistente.
É fundamental ressaltar o modo como Paulo Selhorst
estendeu sua preocupação acerca do racismo na atualidade para
toda a região Oeste, não se atendo exclusivamente ao modo
como a cidade discriminou o Planeta dos Macacos. Além disso,

177
foi bastante sutil no modo como se reportou à discriminação de
brancos contra negros. Abemda verdade, sua ascendência alemã
não foi utilizada na composição de sua perspectiva sobre os
enfrentamentos vividos. Ao ser questionado sobre sua posição
diante da afirmação da identidade germânica, situou de outro
modo esse campo de conflitos:
Ah! A gente vê que... aqui em Rondon eles olha muito o
sobrenome da pessoa. Se a pessoa tem um sobrenome que é
parecido com europeu daí é mais valorizado. Agora sc tem
um sobrenome... que não é parecido com sobrenome euro­
peu, já é um pouco... pouco malvisto assim.. Umjá começa a
perguntar da onde ele é, porque ele ta aqui, ele não é que nem
nós. Então a gente ta pouco vendo isso, esse negócio...3'
As imagens de fundo racista que circulam nos meios
públicos acabaram contribuindo para a composição de uma
imagem pejorativa de trabalhadores, principalmente dos
ensacadores que prestavam serviço para a cooperativa agrícola
Coopagril, fundada em 1970. Atualmente, é raro ouvir uma
menção espontâneaao Planeta dos Macacos, ficando tal imagem
envolta em mistério e sob o domínio das memórias dos
trabalhadores migrantescircunscritos a essaexperiência Ou, talvez
ainda, em outras esferas dominantes não publicizadas.
Quando nos atemos à memória individual de seu Chico
sobre o processo social da formação do Planeta dos Macacos,
ele pareceu convidar a lembrar dos estranhamentos de um outro
modo. Na sua percepção, para além de uma imagem
preconceituosa, sua narrativa inverteu o tom em favor dos
trabalhadores, especialmente dos negros. Ou seja, procurou
reforçar as qualidades da força e da energia braçal desses
trabalhadores em detrimento da fraqueza física dos brancos a
que considerou inaptos ou incapazes das atividades braçais.
Em tomodessas qualificações diferenciais pontuadas por
seu Chico, há que se ressaltar um plano de intemalização de

178
determinadas expressões do racismo maisclássicoherdadodesde a
fábuladas três raças, disseminada por Gobineau no século XIX. A
infeiênciainspiradanaanálisedeRobertoDaMattasobreaconstituição
histórk^do‘Yacismoàbrasikira>’.Pois,confonieatentouoantro0
Aqui [no Brasil] a doutrina racista deixa transparecer dois
pontos muito importantes que a análise sociológica não deve
deixar passar: um deles é que as ‘raças humanas’, embora
situadas em escalas de atraso e progresso, tinham qualida­
des. Seriam até mesmo dignas de admiração, caso não fos­
sem jamais colocadas lado a lado.39
Para DaMatta, a fábula das três raças e o racismo à
brasileira seriam a composição de “uma ideologia que permite
conciliaruma série de impulsos contraditórios de nossa sociedade,
sem que se crie um plano para sua transformação profunda”.40
Embora denotando a existência da tensão entre duas e não três
raças, seu Chico situou, todavia, os estranhamentos na condição
de membro da classe trabalhadora, principalmente quando focou
as trajetórias de seus companheiros ensacadores:
Quando eu cheguei tava bem na cooperativa. A cooperativa
quando abriu... (pausa) A primeira safra que teve só foi só
esses catarinense, esses gaúcho. Em vez de carregar saco na
cabeça, carregava nas costa. Não ia! Aí veio uma turma de
Maringá, uns morenão. Aí na cabeça e pegaram e judiaram
com eles, foi, foi, foi. Dentro de uns seis mês não tinha nin­
guém, só... Daí a cooperativa pegou uns 10 a 20, tudo de
Maringá, Umuarama, todo lado, daí melhorou. Aqui, você
sabe como é essa baixada da cooperativa? A cooperativa de
primeiro tinha um apelido, é... A baixada dos macaco, que
tudo moreno. Aí ponharam... até quem pois isso foi o (não
audível), um locutor da rádio, locutor muito bom. Planeta dos
Macaco, hcin!41
Tais indagações sobre o bairro Planeta dos Macacos
compuseram o escopo da pesquisa, mas nao se restringiam ao
grupo dos trabalhadores da cooperativa ou do bairro próximo

179
onde nele habitavam. O tratamento da questão, nestes termos,
não avançou para alémda apreensãodos modos como o vigilante
aposentado seu Chico e o pedreiro Paulo Selhorst lembraram.
Embora tivessem eles informado não habitar ou trabalhar no
Planeta dos Macacos, partilharam no meio social tais
estranhamentos.
O silêncio subsistente nas memórias sobre o Planeta dos
Macacos, como observado nos depoimentos, colocou emquestão
um outro tom da resposta desses trabalhadores. Os usos do
silêncio na composição da memória, nesse caso, pareceram não
se restringiraodomíniopolíticoexclusivodos poderesdominantes,
mas foi usado e compartilhado, estrategicamente ou não, entre
os trabalhadores. Como frisou Michael Pollak, “o longo silêncio
sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a
resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso
de discursos oficiais”.42
Uma atenção direcionada deve ser dada ao tema do
silêncio coletivo. Mas há que se notar, entretanto, a existência de
dois ou mais lados envolvidos em tomo dessa posição no meio
social, em especial o dos trabalhadores e o da memória oficial.
No que diz respeito aos primeiros, como vimos observando, os
depoimentos apontarampara a complexidade dos processos que
envolvem o estranhamento e o enraizamento. Por sua vez, no
que se refere à segunda, o silêncio parece atuar, dentre outras
formas, no apagamento do conflito pelo viés da homogeneidade.
De modo particular, esse processo em tomo do silencio buscou
no projeto de germanização a valorização cultural dessa etnia,
numa tentativade superar as pechasdo nazismo aindasubsistentes
desde os anos 1960, tanto as associadas ao grupo étnico alemão
em si, particularmente depois da SegundaGuerraMundial, quanto
às denúncias, aindaque infundadas, dasobrevivênciado nazismo
por meio dc imagens míticas disseminadas, comojá citamos.

180
Nas lembranças dos chegados depois dos anos 1970,
especialmente entre aqueles quejá haviam vividoem cidades em
seus lugares de origem, os contrastes de modos de vida
evidenciaramdiferenças de difícil assimilação. Interessante notar
como as diferenças de costumes regionais ganharam destaque
em algumas narrativas. Na lembrançade Neuza, uma delas tocou
especialmente no ritual deconsumode chimarrão, bastante comum
entre os migrantes gaúchos e catarinenses que trouxeramo hábito
consigo.
O consumo coletivo do chimarrão foi narrado como
estranheza por Neuza Oliveira, que chegou na região em 1976.
Natural da cidade paulista de Barretos, Neuza havia migrado
com o marido, quando este fora trabalhar numa imobiliária que
iniciava o loteamento da cidade. Como lembrou Neuza:
Então, ia lá [salão de beleza], achava tão esquisito esse ne­
gócio do chimarrão passar de boca em boca. Então, achava
assim que aquilo... Não linha que ter isso, tinha que ter uni
cafezinho no salão, um suco. (risos) Eu acostumada com isso,
então achava aquilo uma falta de higiene. Porque que cada
um não tinha sua bomba, então? (risos) Todo mundo põe a
boca naquilo ali, sem lavar, sem limpar, sem nada. Eu só sei
que eu morei três anos que eu estava aqui, pra tomar o meu
primeiro chimarrão. E não era com qualquer um que eu toma­
va também não, claro que eu escolhia as pessoas (risos).
Chegava mais ou menos assim e eu já parava, eu não tomava
mais.43
O ritual coletivo do consumo de chimarrão realizado na
própria casa entre os familiares ou nos espaços da vida pública
entre vizinhos, colegas de trabalho ou amigos é um costume entre
os moradores da região Oeste em geral. Para Neuza, entretanto,
esse costume pareceu tão estranho que levaria três anos para ser
assimilado. Afirmou em seu depoimento que, atualmente, “eu
tomo, normal, normal, eu tomo”, muito embora “ate hoje eu não
tenho cuia e bomba em casa.”44

181
Neuza enfatizou também, de maneira bem-humorada, a
estranheza com determinadas expressões ou termos regionais da
língua portuguesa falados na cidade, especialmente durante os
primeiros tempos em que havia migrado:
Então foi assim... Peixada, teve uma peixada. Eu por peixada
era pegar peixe e fazer aquela coisa e convidava os amigos
pra comer. Ah, então fiz uma peixada pra comer. E aqui, na­
quela época, peixada aqui era batida de carro, de trem, de
caminhão, sei lá o quê. Sabe quando tem um acidente de dois
carros, uma lambreta com carro, moto com carro, é uma
peixada! Então era essas coisas assim... Aquilo, no início, me
deixando... Fungar, fungar é não ta funcionando. Não ta fun­
cionando, não, não ta fungando. O que que é fungar, gente?!
Não ta fungando, mas o que que é isso?! Não ta funcionan­
do. E eram assim, era normai, todo mundo dizia isso. Uma
diarréia era um churril (risos). Pelo amor de Deus! Sabe, um
churril, ta com churril, mas que que é churril?! Até que eu fui
descobrir que churril era a tal da diarréia, ou dor de barriga,
custou! Custou! Ta rindo Robson, mas é verdade!!! (risos)
Vai dizer que ninguém falou isso pra você, numa entrevista
pra você, então... (risos). Eu fui a premiada! (risos) (pausa)
Deixa eu continuar aqui nos termos aqui deles. O fusca eles
falavam fuca, sabe? Então era tudo diferente. Enceradeira,
ah! minha enceradeira estragou, eu tinha. Trouxe, ganhei de
casamento de presente. Não era enceradeira, era escovão
elétrico (risos). Então, escovão elétrico. Então, ah, vim bus­
car minha enceradeira que eu trouxe pra consertar. Não era,
eles não achava. Eles não tinha aquilo ali. Era escovão elétri­
co. Então tudo assim, sabe?45
Além da estranheza ao ritual de consumo do chimarrão
e a outros códigos culturais locais e regionais da língua falada,
entre suas lembranças das tensões relembradas pela sua memória
visual destacou-se a precariedade daquele espaço:
E eu achava tão esquisito, ainda falava pro meu marido. Mas
isso aqui é Prefeitura? Sim, é a Prefeitura. Ta parecendo aque­
la cidade de bang-bang. Porque tinha aquelas madeira as­

182
sim, feito um corrimão, sabe onde que amarrava nesses filme
de bangue-bangue, amarrava os cavalos por ali. Era estilo.
Então, nunca me esqueço, assim, da imagem que eu tive,
primeira vez que me falaram, aqui é a Prefeitura. Aquelas cida­
des de faroeste, com aquelas casas de madeira e com aquela
madeirinha, não sei se era umjardim, que tinha aquele corri­
mão de madeira. Parecia que amarrava os cavalos ali. Essa é a
minha imagem da Prefeitura, eu não esqueço, a imagem que
eu tive da Prefeitura foi da cidade de faroeste.46
As imagensentrecruzammomentos distintose constituem
mais um dos trabalhos da memória de Neuza. Em suas
lembranças compôs, de maneira muito interessante, uma
associação entre as imagens congeladas da Prefeitura antiga de
Marechal Cândido Rondon com as das cidades do oeste norte-
americano apresentadas nos filmes de cowboys. Com essa
associação firmou novos sentidos de sua experiência, fazendo
submergir a estranheza na forma de uma denúncia das
precariedades do espaço para o qual havia migrado, tanto quanto
atribuiu um sentido de sua superação no presente.
Sua narrativados estranhamentos pôs em evidência dois
lugares distintos; um do passado e outro do presente. Neuza foi,
dentre os depoentes, quem narrou a migração como uma
experiência de conquista materialmente bem-sucedida. Ao
relembrar da precariedade do lugar e dos diferentes modos de
vida com os quais precisou estabelecer formas alternativas de
vivência, pareceu recolocar sua participação na construção desse
espaço e, por conseguinte, em sua defesa. Em suas próprias
palavras:
Nós fizemos a vida, nós não tínhamos nada. O que eu tenho
hoje são dos meus filhos, foi nosso, foi feito aqui. Não foi
herança não, foi feito aqui. Nós fizemos aqui em Marechal
Rondon. Então, por isso aqui eu criei raiz nessa cidade aqui.
Eu contei aquelas coisas que me aconteceram no início da
minha vida aqui, da minha chegada aqui, mas hoje eu não

183
troco isso aqui. Iiu não troco, cu sou viúva fazem quatro
anos agora, dia dois de junho. Mas, eu não troco Marechal
Rondon por nada, nem por Barretos, nem por Araçatuba,
nem por São Paulo. Não troco Marechal Rondon.47
A lembrança de Neuza constitui-se, como ela mesma
sintetizou, numtrabalhoda memóriade reconstrução do processo
de seu enraizamento. Ao dizer no presente que não trocaria a
cidade por nenhumoutro lugar, implicitamente deu margempara
a compreensão de um desejo que a alimentou por algum tempo
de sua vivência. No presente, contudo, as marcas do desejo de
retomoforamsuperadas por meio de suas realizações nacondição
de mãe e trabalhadora, e pelas melhores condições materiais
conquistadas. Interessante notar que o ato de relembrar a colocou
como uma agente mediadora entre os diferentes significados
pessoais modificados, que parece teremsido construídos naquele
lugar entre tantas outras comparações feitas no instante da
produção do depoimento. O estranhamento passou a não ser
mais narrado numprimeiro plano, e o eixo da narrativaadquiriu a
conotação da valorização de sua trajetória e de suas conquistas.
A abordagem do estranhamento é um campo de
significações bastante dinâmico e deve receber o cuidado de
particularizar a relação de cada depoente com suas próprias
transformações pessoais na conquista do enraizamento. O seu
Pracinha, por exemplo, foi o narrador que teceu mais
pormenorizadamente os significados do estranhamento que
experimentou, assim como os relacionou com a afirmação de
sua nova identidade no presente.
É instigante observarcomo aextensão e a riqueza de seu
relato trabalharam para afirmá-lo como sujeito de suas próprias
decisões face aos dilemas da vida Pracinhapareceuternãosomente
narrado as agrurasdasuavida de trabalhadore de suas itinerâncias,
como também, de uma maneira muitoespecial, fez notar o modo
como processouosestranhamentosem sua experiência

184
Só para relembrar, Pracinha migrou cm 1966 dc Itueta,
Espírito Santo, para o município de Assis Chateaubriand. Entre
as primeiras experimentações lembradas em detalhes, a narrativa
da adaptação ao inverno paranaense ocupou-se de um grande
fôlegoromântico:
Até tem uma passagem que é importante, que a gente as vez
vivendo e aprendendo. Mas as vez, tem coisa que a gente
tem que apanhar pra aprender bater, na primeira noite era um
frio, rapaz! Ele [primeiro patrão] me deu paletó, me deu os
pijama, me deu meia pra mim calçar, me deu cobertor, só que é
o seguinte: ele me deu acolchoado, então o acolchoado ele
colocou... Arrumou a minha cama num quarto e falou: ta tudo
aqui! Só que ele num explicou pra mim!Colocou um cobertor,
em cima do acolchoado tinha um lençol, só que aquele acol­
choado era pra mim cobrir por causa do frio, só que eu num
sabia, eu peguei, ergui o lençol e a coberta e deitei em cima do
acolchoado. Mas eu passei um frio! Quando foi dc manhã
tomar café, daí ele pegou: como foi que passou a noite? Bele­
za! Á gente meio tímido, não sabia como é que era as coisa,
falei: não, ta beleza, ta bom! (risos). Daí quando foi a
noitezinha, a mulher dele foi lá, a dona Vitória. Ela foi lá e foi
arrumar a cama c daí cia viu que o acolchoado tinha, como
tinha deitado em cima dele e à noite ela me pediu... tomamos
um café quente, tinha um fogãozinho à lenha pra gente es­
quentar e daí ela pediu pra mim: — Como é? Parece que você
num usou o acolchoado? Aí, eu com um pouco de vergonha
falei assim: não! Mais não era pra mim deitar em cima? Não,
não Cosme! Era pra você entrar debaixo, você deita em cima
do colchão e esse lençol que tem, a coberta por cima do
lençol, tudo em cima do acolchoado, você entra debaixo. Daí
foi que eu aprendi, então era muito frio, aí eu passei a noite
muito bem.48
Disse Pracinha ter apenas 18 anos quando ocorreu esse
episódio. O trecho do depoimento sobre as primeiras
experimentações no novo lugar não deve ser lido em separado
de seu mosaico de lembranças. Ao relembrar a primeira noite no

185
inverno paranaense, atuou na construção de uma imagem acerca
da recepção que fora proporcionado pelos primeiros patrões,
assim que chegou. Além disso, sua narrativa valorizou o
acolhimento quase maternal que eles lhe dispensaram.
Do mesmo modo, Pracinha lembrou com grande ênfase
da fartura das primeiras colheitas feitas em solo paranaense. Sua
recordação desenhou um movimento de construção de sentidos
que validavam a migração, que na prática muito se contradizia
aos ideais que o moveram, ou seja, a promessa de conquista do
futuro melhor que aquela experiênciaensejava:
Nós plantava tanto feijão lá no Espírito Santo, as vez planta­
va uma bolsa de semente, e nós colhia assim oito, nove bolsa
de feijão. Nós no primeiro ano... Nós cheguemos em Assis, o
patrão falou assim pra nós: eu vou dar pra vocês dez litro de
semente de feijão pra vocês plantar. Então nós achamos as­
sim, vamos plantar dez litro de feijão é o mesmo que não
plantar nada. Aí deu um pedaço na beira rio, rio Verde. As
terra dele fazia fundo com o rio Verde. Aí nós plantamos aquele
pezinho de feijão, nós colheu catorze bolsa de feijão, feijão
lustroso, feijão graúdo, feijão ele era de cipó, então ele subia
nas madeira assim dava...49
Ao romantizar a acolhida dos primeiros patrões ou a
farturadas primeiras colheitas, Pracinhapareceu estarpreparando
o chão para revisitar as tensões e a discriminação que
experimentou nos primeiros anosque viveuzonarural de Marechal
Cândido Rondon, para onde migrou em 1972. Ao comparar tais
lugares, notou com ênfase que em Assis Chateaubriand “já era
mais tranqüilo. Porque em Assis parece que tinha mais gente do
norte, então a gente sempre foi mais adaptado com o pessoal do
norte. A gente faz parte dessa gente”.50
A respeito da comparação feita por Pracinha, observa-
se que ela se funde num aporte interpretativo do passado muito
recorrente pelos depoimentos. Outros depoentes, como Donana,

186
tambémdemarcaramessas diferenças de um modosimilar. Como
ela mesma lembrou, “foi bastante diferente, porque eu tava
acostumada lá em Iporã, no meio do povo, assim, brasileiro,
povo moreno, baiano assim como eu, mineiro. ..”.51
Nesse sentido também seu Liduíno Adelino de Souza,
um catarinense de Concórdia, comparou diferentes modos de
vida e padrões culturais desde que chegou na cidade em 1975.
Sua experiência anterior como trabalhador do frigorífico Sadia,
em Toledo, foi bastante utilizada para mediar sua comparação e
para matizar a especificidade que encontrava no novo lugar.
Segundo lembrou:
Quando cheguei em Toledo, ali era uma cidade mista. Muita,
muito... que a Sadia trouxe muita gente que veio do Nordeste
pra Toledo por causa do emprego. Ele chegava, talvez numa
semanajá tava empregado naquela época. A Sadia tinha 1.200
empregados. Safa um, safa outro, sempre tinha emprego, na
época. E veio muito povo do Nordeste, tinha muito nordesti­
no, é... pessoas do Sul, nordestino... tudo era muito mescla­
do em Toledo.52
Sendo um migrante sulino, seu Liduíno pareceu
compartilharcom a memóriacorrente entreos antigos moradores
acerca da existência de uma minoria dos migrantes de outras
áreas brasileiras, pois “isso nunca se via falar, quando cheguei
aqui não se via: ó mineiro, ó baiano”.53
Independentemente, seu Liduíno lembroucomestranheza
a frieza da recepção aos novos habitantes da cidade. Estruturou
a sua narrativa com exemplos comparativos diversos de outras
cidades da região, geograficamente muito próximas. Desse modo,
prosseguiu:
Se você for numa cidade que nem Assis Chateaubriand, que
eu morei lá. Nossa! Eu quando saí de lá. O pessoal: não! Não
sai! De repente no outro dia já tinha outro lá na minha casa,
no meu chato: não vai embora! Não vai embora! Deixa, fica

187
aqui, que nós vamos arrumar um lugar pra você! Né? Então e
depois eu saia daqui pra Assis Chateaubriand, lá na casa dos
meus amigos. Nossa! Volta pra cá! Volta pra cá! Eu chegava lá
parecia que estava na casa de um parente que eu tinha 10
anos atrás, um parente, que nem parente não era, era só ami­
go assim. Então, lá em Assis eu fiz amizade assim, amizades
muito boas e rápida. Povo misto, então era bem mais fácil do
que... aqui é... um povo que você...54
Retomando a análise do depoimento de Pracinha, importa
considerar como ele imprimiu pausadas reticências acerca dos
momentos iniciais de suavida na região rural de Marechal Cândido
Rondon, para onde migrou em 1972:
E ali também nós foi mexer com lavoura de hortelã. Então, na
época era bem... Aqui era bem mais diferente, hoje já ta bas­
tante... Já mudou bastante... Até em termos de pessoas as­
sim... Como vamos dizer, de raças, de origem. Na época eu
vim... Era bem mais difícil até pra gente... Eu já vou dizer mais
assim... mais objetiva... Pros negros aqui cra mais difícil, não
era coisa tão fácil na época.55
Ao relembrar do estranhamento, que “não era coisa tão
fácil na época”, Pracinha foi, uma vez mais, imprimindo suas
significações na forma de uma numa temporalidade datada, por
certo enterrada no passado:
E quando veio pra aqui era mais difícil, só que com o decorrer
do tempo aí foi melhorando. Aqui hoje já a educação hoje já
é bem diferente, então já se estuda, na educação eles já fala
sobre o racismo, então não existe. Então um ou outro que a
vez tem alguns preconceito, mas isso já é bem mais pouco.
Mas na época, nós chegamos em 72 aqui, era até bem proble­
mático. Nós não cheguemos a passar por alguns problemas
sérios, porque nós sempre fomos uma turma, uma família
humilde. Então a gente também procura compreender cada
pessoa, o jeito dele, entender o jeito dele. Procura respeitar
ele dentro da maneira que ele é. Então a gente não levava
muito as brincadeira sobre isso, a gente não levava pra aque­
le lado da ignorância né cara!56

188
Na narrativa de Pracinha, a intolerância foi respondida
com uma tolerânciaestratégica Tal comoemeigiu nas memórias
de seu Chico e de dona Amara, as diferentes tensões não foram
respondidas residualmentecomuma ou outraformade ignorância
Nesse caso, as memórias apontarammuito mais paraas múltiplas
estratégias de enraizamento encontradas por esses trabalhadores.
As estranhezas vividas pelos depoentes, entretanto, não
devem ser observadas restritamente ao campo das tensões raciais
ou discriminatórias. Acomerciante dona Mariade Souza, esposa
de seu Liduíno, uma paranaense de Siqueira Campos, reclamou
ressentida da insensibilidade dos antigos moradores, tanto que
frisou em sua memória:
Eu senti isso desde o início quando nós casamos. Eu tive
meu pequeno, meu piá mais velho e eu tive uma febre e esse
aqui foi trabalhar e eu fiquei em casa. Eu morava assim, e
olha, era no mesmo lote. Morava nos fundos e a mulher na
frente. Eu não me levantei de manhã, fiquei na cama, passan­
do mal e ninguém veio lá pra pedir: ah! Cê está bem? Aconte­
ceu alguma coisa? Até que esse [apontou para o marido]
chegou de meio-dia, até que o marido chegou de meio-dia pra
ir buscar remédio pra mim... Sabe? Eu queimando de febre na
cama e ninguém veio lá pedir: Oh! Maria José, você precisa
de alguma coisa? Você... Ninguém! E eu não levantei e eles
viram que eu não levantei, porque eu escutava a conversa ali
pertinho dajanela, porque elas que limpavam as calçadas delas
e não veio. Eu senti isso, que eles era um povo assim mais...97
Já em relação à construção narrativa de Pracinha, ele
aproveitou para explicitar sua alteridade no lugar da classe, já
que “nós sempre formos uma turma umafamíliahumilde”.Porque
então, por outro modo, “então, se você fosse ponhar na cabeça
o que era pra ser o que estavam dizendo, você acabava dc
repente...”58
Afamília de Pracinha migrou de Assis Chateaubriand
para trabalhar como arrendatários nas plantações de hortelã,

189
também cultivadas na zona rural da região e que predominou
como grande força econômica, nos anos 1960e 1970. No plantio
de hortelã, Pracinha “dedicou muitos anos e além dos anos todo
e apesar de nós mexer com hortelã, como eu digo, nós tinha...
nós trabalhava por dia também pros... Nós falava alemães, então
em volta...”59
Importa destacar o modo como Pracinha narrou uma
distinção existente entre os antigos proprietários de terras e os
novos trabalhadores migrantes ingressados nesse mundo do
trabalho da época. Como ele mesmo formulou, as relações de
trabalho baseavam-se numa divisão segundo aqual “vamos dizer
assim, porque alemão, a origem alemão, eles não mexia com a
lavoura de hortelã. Só que eles também dependia do serviço
braçal nosso. Na colheita do milho, que era tudo mesmo braçal
na época.”60
Além de localizar as tensões no campo da classe, o
informante partiu desse lugar para matizar uma imagem de
subaltemidade dos proprietários “que dependia do serviço
braçal”, em relação ao trabalho realizado por aqueles
trabalhadores.
Uma outra reação ao estranhamento e de grande
dedicação narrativa de Pracinha submergiu como um desejo,
incontido, de retomo, principalmente nos primeiros anos depois
de chegado. Nesse sentido, narrou com grande fôlego
interpretativo os momentos iniciais de sua vida na zona rural:
Olha, é o seguinte: quando a gente veio de Assis pra Rondon,
então nós começamos a trabalhar aqui questão de um ano,
um ano e pouquinho, a gente conseguiu uma pequena eco­
nomia que a gente podia sc comprar um terreno. Então, como
eu tinha na minha idéia, na minha cabeça, eu achava que eu
não ia me adaptar aqui, até sendo português claro, por causo
da origem daqui. A origem do pessoal daqui... eu achei que
eu não ia adaptar, então, eu achei por bem comprar em As­
sis.'11

190
A aplicação das suas economias guardadas no novo lugar
foi considerada um problema para Pracinha. O fato de não se
sentir integrado ou enraizado naquele lugar fê-lo buscar novas
alternativas. Aidéiade retomoparaAssis Chateaubriand significou
por algum tempo uma estratégia não explícita para lidar com
aquelas tensões:
E me aconteceu o seguinte: em Assis, o lote vazio era 10
conto na época. E aqui eu tinha encontrado... hoje é no Jar­
dim Alvorada, que é um bairro lá da Coopagril, então tinha
um lote com uma casinha por sete conto e eu optei a comprar
em Assis, sem casa, por 10 pra não comprar aqui porque eu
achei que não ia ficar aqui. Eu ia voltar.62
Ao desenrolar os fios da memória tensionada pelo
estranhamento, merece muita atenção a maneira como Pracinha
tomou as rédeas da narrativa para explicitar, e mesmojustificar, a
constituição de novos valores afetivos atribuídos ao novo lugar.
Desse modo, Pracinha passou ajustificar então a afetividade e
adaptação às situações dolorosas e inaceitáveis de que se
lembrou. Observa-se nessa trama um modo particular de
protagonizar aquelas experiências, já que para isso reconstruiu
seu constrangimento como um exercício de reapreciação daquele
mundo:
Só que no decorrer do contrato que nós tinha da lavoura, a
gente adaptou com o pessoal daqui. E depois a gente ate
teve um arrependimento. Mas, como tem aquele ditado que o
arrependimento não se salva ninguém, né? Então eu acabei,
no fim, mais tarde, eu arrependido. Eu comprei lá até mais
caro e não queria mais voltar pra lá [Assis Chateaubriand]. Aí
então eu até ia pra Assis, pra pagar o imposto do lote. Eu
fazia questão de pagar no mesmo dia e voltar. Só que eu não
conseguia vim de Assis até Marechal Cândido Rondon no
mesmo dia. Então, eu vinha até Toledo, que nessas época
meus pais estava em Toledo. Eu ia lá, pagava o imposto,
vinha pra Toledo, posava, no outro dia dc manhã cu vinha

191
pra Marechal Cândido Rondon. Só que nesse período eu
arrependi. Aí depois eu acabei até vendendo.61
De um extremo a outro, sua dificuldade de adaptação
apresentava-se contornada. O lugar estranho passou a ser aquele
que havia escolhido para o seu refugio. A inversão chegou às
últimas conseqüências, quando então “fazia questão de pagar no
mesmo diae voltaf’.As sensações de estranhamento retomam e
foram projetadas para Assis Chateaubriand, o antigo lugar de
origem. Em sua narração, Pracinha buscou apresentar sua nova
identidade, referente a um lugar sobre o qual chegou a pensar
que não se adaptaria:
Então, ali ficou praticamente desvalorizado [o terreno], não
valorizava, então eu acabei perdendo dinheiro por ignorân­
cia, burrice, por até de repente não acreditar no que a gente é!
Hoje eu penso isso, porque você pra viver... Pra você viver
em qualquer lugar, pra você viver bem, depende de você
mesmo. E quando eu cheguei, eu achava que não seria desse
jeito. Hoje é que eu imagino que eu fiz uma burrada muito
grande e por não acreditar, de repente em mim mesmo, que eu
podia superar tudo esses problema sem comprar aquilo lá.
Mas eu pensava em voltar, depois que eu já tinha leito o
negócio lá é que eu não quis mais voltar pra lá. Aconteceu
isso! Nessa minha trajetória de Paraná.M
A maneira particular com que Pracinha reelaborou os
seus estranhamentos articula-se diretamente ao modo como
construiu sua trajetória de trabalhador autônomo e,
posteriormente, de comerciante de uma pequena mercearia na
periferia da cidade. Sua memória entrecruzou vários tempos e
sentidos. Assim, pareceu estabelecer a oportunidade de reavaliar
o mau negócio que havia realizado na época. Sua trajetória,
narrada sob a forma de uma memória vitoriosa e conquistadora
permitiu-lhe, no presente, publicizar os modos como processou
tolerantemente as tensões vividas no passado.

192
Os estranhamentos e a luta pela moradia
As narrativas dos estranhamentos não compõcm com
exclusividade as memórias dos trabalhadores migrados noperíodo
anterior aos anos 1970. Amineira Maria Senhora do Nascimento,
que chegou em 1986, destacou-se entre os depoentes pela
qualidade narrativa mais performática e eloqüente, além de uma
simpatiae sorrisocativantes. Embora tenha migradopara a cidade
vinda de uma outra experiência urbana, Dona Maria Senhora
recomeçou sua vida no meio rural como trabalhadora bóia-fria.
As impressões registradas da sua última mudança, entre
as muitas itínerâncias, foram lembradas na forma de um ensaio
de decepção, ao qual foi inscrito num súbito silêncio: “falavaque
Rondon era muito bom pra serviço. Tmha muito emprego e cê
sabe que, quando eu cheguei aqui...”65Afrase inconclusadeu
início a uma análise do presente, que segundo ela “hoje é difícil
pra trabalhar de doméstica porque que as coisa vai sempre assim,
caindo mais do que era.”66Desta feita, dona Maria Senhora
amarrou os seus sentidos da vida itinerante ejulgou a sua última
experiênciamigratória, numamáximaanalítica todapessoal, segundo
a qual “as coisas vai sempre assim, caindo mais do que era”.
O aporte aparentemente pessimista de dona Maria
Senhora, se observado isolado de sua trajetória mais ampla,
poderiasugerirumaexperiênciade vidapassivaàs transformações
negativas por onde sua vidase constituíra Todavia, não devemos
nos deixar embriagar unicamente por esse caminho interpretativo
tópico de Senhora. Sua perspectiva não deve ser tomada como
uma expressão sintetizadora de sua trajetória, mas como o
processo de formação de sua consciência e de outros
desdobramentos, que somente podem ser observados diante da
maneira como narrou o viver cotidiano.
Os estranhamentos deixaram muitas marcas também
para a memória de dona Maria Senhora e emergiram articulados

193
às dificuldades na conquista da primeira moradia na cidade. Em
particular, expressos nas dificuldades para a negociação do
contrato de aluguel:
O dono da casa era de São Roque. Então ele chegava lá em
casa, eu tinha o quintal lá, era uma casa de madeira. Quando
nós chegou, mas era tão suja! Eu comecei limpar, carpir ao
redor da casa. Aí eu fiz horta, então quando ele... ele falou: eu
vou passa vocês... Porque naquele tempo, agora não, num é
tão racismo, mas as pessoa mais preta, igual eu assim, chega­
va parecer que eles num confiava que a pessoa pagava o
aluguel certo, nem nada. Aí ele chegou meio assim, quando
ele viu nós, ele fez um...67
Ao lembrar da primeira casa alugada, dona Maria
Senhoramoniou umacomposiçãoentrecruzandoalguns elementos
do passado e do presente. A sua lembrança foi entremeada por
infindáveis reticências, informandoas dificuldades dos migrantes,
especialmente dos negros, paraalugar a primeiracasa. Anarração
submergiu como uma intricada forma de reconhecimento do
racismo, mas nofundo foi sentidomuito mais dolorosamentecomo
uma suspeita aos seus mais caros valores pois “chegava parecer
que eles num confiava que a pessoa pagava o aluguel”.
Importante sublinhar a maneira como dona Maria
Senhora interrompeu a lembrança da primeira moradia na cidade
e das dificuldades na contratação do aluguel. Evidenciou, no
entanto, que as desconfianças não se mostraram de todo
superadas depois do difícil acordo firmado no contrato formal de
locação. Assim lembrou:
Fez um contrato pra três meses. Nos pagava o aluguel bem
certinho, trabalhava, nem que fosse dc diarista, eu juntava o
dinheiro pra paga o aluguel. Meu marido trabalhava, um dia
sim, pra um pra outro, mas o aluguel nós nunca deixô dc
pagar certo. Aí nós pagava o aluguel, quando venceu três
mês que nós morava nessa casa, aí ele veio pra receber o
aluguel c pediu, aí meu marido falou: que o nosso contrato

194
era pra três mês, venceu os três meses sem fazer outro. Aí ele
olhou em Dércio e falou: não, eu era enganado, eu pensei que
fosse outra pessoa, mas se vocês ta pagando certo, então
vamos assim, nós não vamos ter contrato, o que vai valer é
as palavra dos dois. Era o meu marido com a palavra dele.6*
O primeiro contrato de aluguel de apenas três meses,
proposto pelo proprietário da casa, significou para dona Maria
Senhora e sua família uma desconfiança profunda em relação à
sua honestidade. Em contrapartida, sua memória trabalhou para
explicitar o modo como foi ganhando aconfiança do proprietário
da casa tão reticente.
Além de limpar a casa, capinar o quintal e fazer uma
horta nos fundos, cujas práticas expressavam um modo de vida
todo particular dessa trabalhadora em cuidar da sua moradia,
buscou lembrar dessas práticas como forma de legitimar a sua
versão diante daquela desconfiança. Tal recurso buscou denotar
uma negação da sua subaltemidade em relação àquele que se
colocara do outro lado do conflito.
Noutros momentos da narração de Maria Senhora, a
relação contratual com o proprietário da casa pareceu explicitar
todo o processo de compreensão dos meandros daquela relação
desigual, dando a entender, inclusive, que não se tratava de
diferenças puramente étnicas. Na seqüência do depoimento,
completou sua percepção dessas tensões, expressando o modo
como processou suaconsciência acerca daquelas tensões e como
utilizou algumas estratégias:
Quando ele queria aumentar o aluguel, que meu marido tra­
balhava, sempre tava eu em casa, ele falava: hoje eu vim dá
um susto na senhora. Eu falava: por quê? Eu vou aumentar o
aluguel. Aí ele chegava, sempre tinha a mania de chegar e
olhar na casa. Aí ele olhava e sempre falava pra mim, não mas
sua casa tá tão limpinha, a minha casa ta tão bem cuidada. E
o quintal, a senhora tem horta, tem tudo bem limpinho, então
eu nunca vou aumentar o aluguel que vocês num pode pa­

195
gar. Então tinha vez que ele vinha lá pra aumentar o aluguel,
eu num sei se ele tinha dó, o que que achava que nós tava
cuidando bem das coisa dele assim, da casa. Então nós sem­
pre pagô um aluguel, não tão alto, sempre foi um aluguel...6’'
Há de se notar que a afirmação dos valores da
honestidade, que se apresentamfortemente articulados aos mt>los
de vida desses trabalhadores e se afirmam no todo de suas
trajetórias, foi muitoutilizadacomo estratégiananegociação com
o proprietário da casa nos momentos mais difíceis, caso da
renovação do contrato de aluguel.
Na versão de dona Maria Senhora, ela passou a tomar
as rédeas daquela situação a tal ponto de garantir do locador,
num determinado momento, a promessa de que “nunca vou
aumentar o aluguel que vocês num pode pagar.” Fazendo,
inclusive, com que “nós sempre pagô um aluguel não tão alto.”
Marizete Dantas dos Santos, proveniente de Cícero
Dantas, Bahia, chegou no mesmo período que dona Maria
Senhora, em 1986. Como a de outros depoentes, sua trajetória
foi marcada por intinerâncias antes da chegada à região, para
onde veio acompanhando seu marido, empregado de uma
empreiteira que atuava em diversas regiões brasileiras. Na
memória de Marizete, aqueles primeiros tempos:
Aqui, quando cheguemos aqui foi difícil pra viver! Que era
um racismo brabo, não vou dizer que não tinha, porque ti­
nha! Você não pode dizer que não tem porque tem. Pra alugar
casa era muito difícil, ninguém queria alugar casa.70
Assim que chegaram à cidade, lembrou Marizete:
“moremos lá no frigorífico a primeira vez. Numa casinha! Olha
caiando os pedaço, que o banheiro era uma patente...”.71Além
de mostrar-se inconformada com as condições precárias da
primeira mmdia. estranhou os novos códigos de sobrevivência
social vigentes no lugar

196
Nós tinha o dinheiro pra pagar e ele tinha! Nesse tempo ele
ganhava bem já, nós tinha dinheiro pra pagar. (...) Não conse­
guia! Aí foi conhecendo, conhecendo a firma. Conhecendo
as lirma como que era. Acho que ele não sabia, nunca tinha
vindo em firma pra cá, eu acho. Ele foi conhecendo as pesso­
as e foi aqueles grandão. E depois dali nós aluguemos uma
casa aqui no [bairro] Higienópolis ali. A casa era uma casinha
nova, nunca ninguém tinha morado o primeiro fomo nós que
moremos nessa casa ali.72
De algum modo, Marizete destacou a natureza do seu
estranhamento, que para seus olhos, residia no desconhecimento
do seu marido acerca do lugar para o qual havia migrado, já que
‘‘nunca tinha vindo em firma pra cá”. Na sua memória, o recurso
utilizado pelo marido para desemaranhar aquela situação de
conflito foi baseado no aprofundamento das relações pessoais
no interior da firma onde trabalhava, especialmente com “aqueles
grandão”, que certamente ocupavam cargos hierarquicamente
mais elevados.
Ao dialogar com outros depoentes, observei que as
dificuldades para alugar a moradia nãoeramum obstáculosomente
para os trabalhadores negros. Surpreendeu, nesse sentido, a
queixa da mineiraLeopoldinaAngélica Lopes:
Olha, pra começar, pra locar uma casa. Quando chegava gen­
te pra morar lá no bairro Ana Paula, uma casa bem humilde,
onde outro funcionário daqui morava. Aí quando quis morar
numa casa um pouquinho melhor, aí as pessoas: quantos
filhos? Trcs. Como o Jorge é mais claro, eles achavam que o
Jorge era alemão. Mas, quando eles me viam, ficavam meio...
Então ali já entrou dificuldade. Então, uma coisa que eles
achavam, que criança era uma coisa, um empecilho, que ia
atrapalhar, que ia incomodar vizinho, que ia fazer isso, que ia
fazer aquilo. Então as pessoas não queriam nem conhecer
primeiro a pessoa. Então, era bastante complicado. E a ques­
tão também assim que, de que família que você é? Aqui, tudo
ora marcado pela família. Então... minha família não tinha nada
de conhecimento, totalmente... mas isso foi o que complicou
197
bastante. Mas, aí depois, aos poucos foi... o Jorge foi adqui­
rindo confiança no trabalho dele, tanto é que os demais... o
que ficou mais tempo aqui ficou um ano e a gente está há 18.7:'
Um fio de ressentimento teceu a memória de sua difícil
adaptação com os moradores mais antigos da cidade. O campo
das sociabilidpi !es pareceu tê-la incomodado mais frontalmente,
pois Leopoldina estranhou sua articulação em tomo de relações
de parentesco entre os detentores dos sobrenomes mais
importantes da cidade, quando “aqui, tudo era marcado pela
família”
A lembrança de Leopoldina extrapolou as dificuldades
de moradia, tocando na questão sensível da discriminação racial
enfrentada por muitos migrantes chegados no período posterior
à colonização planejada. Em sua narrativa evidenciou a questão
da cor da pele como um problema muito sério que precisou
enfrentar. Como ela mesma observou, a diferenciação entre
antigos e novos moradores desenhou-se como uma fronteira
muito tênue, mesmo porque “como o Jorge é mais claro, eles
achavam que o Jorge era alemão. Mas, quando eles me viam,
ficavam meio...” Os estranhamentos, conforme lembrou, foram
sendo aos poucos superados por sua família, pois “tanto é que
os demais... o que ficou mais tempo aqui ficou um ano e a gente
está há 18”.
Na memória de Leopoldina, outros trabalhadores
migrados naquela época não resistiram aos estranhamentos e
tiveramuma breve passagem. Por seu tumo, a depoente mostrou-
se surpreendida com o fato de ter permanecido na cidade por
tanto tempo, aliás por muito mais do que os outros, por 18 anos.
Ao lembrar daqueles que se foram eaoa. iputar os anos de sua
permanência, Leopoldina procurou valorizar os méritos de sua
resistência no lugar por tanto tempo.
Retomando a composição narrativa dv dona Maria
Senhora sobre a dificuldade de conseguir moradia, uma outra

198
questão importante foi ovidenciada. Em sua memória dos
primeiros tempos na cidade buscou alargar uma compreensão
do problema da moradia, segundo o qual ruío o ,teve limitado
exclusivamente aos impedimentos discriminatórios, ou seja:
Desconfiar ou a casa também era difícil naquele tempo. Por­
que, cê sabe, quando Rondon assim, todo mundo queria vim
trabalhar, que Rondon cra bom de serviço, era bastante ser­
viço, você pode ver que no conversar, caso que tem bastante
gente. Ó! Tem muita gente do Paraguai, tem muito, tem gente
de muitos lado, daquele tempo, Rondon era muito famoso.
Ah! Vamos pra Rondon, por que Rondon é bom de serviço
né, tanta coisa que tinha... É... só que bastante firma fechou...74
Sobre o problema da moradia, dona Maria Senhora
lembrou que aquestão se relacionavaaocrescimentopopulacional
ocorrido nacidade, principalmente nos anos 1980. De fato, como
já foi observado no capítulo anterior, o contingente populacional
cra dc 56.210 habi tantes, o maior contábil izado pelo IBGE desde
a criação do município.
Nesse período, convergirampara a cidade trabalhadores
da zona rural movidos pelas mudanças nas relações de trabalho
instituídas pela produção mecanizada da agricultura e pela
indenização das terras para o represamento das águas do rio
Paraná, durante a construção da hidrelétrica de Itaipu, no final
dos anos 1970. Como notou Miriam Hermi Zaar:
Como conseqüência desse processo, muitos dos pequenos
agricultores dos Municípios de Marechal Cândido Rondon,
Entre Rios do Oeste, Quatro Pontes, Pato Bragado e Mercedes,
não conseguindo mais se reproduzir enquanto trabalhado­
res agrícolas procuraram áreas urbanas. (...) a população ur­
bana que representava 17% da população total em 1970, pas­
sou a representar em 1980, 45% da população total destes
municípios. Um aumento de 265% em uma década.75
Interessante observar, no cruzamento das informações
aludidas pela memória de dona Maria Senhora com os índices

199
de deslocamento populacionais, notações diferenciadas acerca
do crescimenlo populacional alcançado na época. Cumpre
observar, todavia, que as memórias de dona Maria Senhora não
conflituam com os números oficias relativos à acentuada
mobilidade populacional. Outrossim, acrescentam o aspecto da
convergência de migrantes de outras áreas, inclusive do Paraguai,
que pareciam também movidos por promessas de trabalho e
moradia, para além daquelasjustificativas usuais elaboradas, em
relação ao êxodo rural ou da indenização das terras ocupadas
para a construção do lago de Itaipu.
Se o início dos anos 1970foi associado ao fimdo período
da colonização planejada pela MARIPÁ e ao incremento do
núcleo urbano de Marechal Cândido Rondon e de outras
pequenas cidades do Oeste paranaense, já os anos 1980,
especialmente a segunda metade da década, passariam a ser
conhecidos pelo início dos projetos de germanização da cidade.
Nesses termos, há de se ressaltar, para alémdo caráter objetivado
de incrementar as economias municipais por meio do turismo
temático da cidade germânica, um processo fluído de saída e
chegada de migrantes na cidade e na região, vindos de diferentes
lugares. Acontemporaneidade que se pode entretecer entre as
afirmações da identidade alemã, na segunda metade dos anos
1980, e o movimento flutuante de sua população diante dos
diversos motivos apontados, ajuda a desvendar outras margens
de sentidos dos projetos oficiais que nasciamconcomitantemente
ao aumento de sua população, em grande parte remando na
contramão das transformações da paisagemsocial dessafronteira
Há de se ressaltar, nos anos 1980, o surgimento dos
primeiros mutirões habitacionais acentuou os problemas sociais,
pelo fato de atrair muitos trabalhadores do campo ou dos
municípios vizinhos, o que incrementou os índices populacionais
da cidade. Além, é claro, de crescerem as tensões surgidas com
a chegada de trabalhadores de outros lugares. Num nlomento da

200
entrevista, Paulo Selhorst analisou comgrande ênfase o surgimento
dos mutirões financiados pela Companhia de Habitação do
Paraná-COHAPAR:
Os mutirões surgiu daqui uma proposta do partido do PMDB.
Porque aqui sempre quem governava era o PDS. Então eles
começaram a oferecer, a fazer esses mutirões pra virar o jogo
político e... Mas o problema do mutirão não é um projeto que
não é bom. O problema é que eles oferecia casa, mas não
oferecia emprego. Então inchou a cidade e a infraestrutura
não cresceu. E o projeto assim também tem a ver a vida social
da pessoa, não só uma parte.76
A leitura politizadadc Paulo Selhorst sobre o surgimento
dos mutirões e os seus desdobramentos para o crescimento da
cidade ajuda a compor um quadro mais amplo acerca da fluidez
e da fragmentação daquela população em movimento. Esse
fenômeno era acarretado pela desapropriação das terras pela
Itaipu, a mecanização agrícola e propagandas disseminadas pelo
poder público sobre supostos índices elevados de qualidade de
vida
Nas memórias dos moradores dos conjuntos
habitacionais, construídos sob a gestão da COHAPAR,
especial nente entre os que se tomaram informantes da pesquisa,
a conquista da moradia foi permeada por diferentes experiências.
DonaMariaFelipaEncinas lembrou com dramaticidade
o medo que sentiu quando sorteada para receber uma das casas
populares financiadas:
Aí me falaram: você vai perder a tua casa, porque você é do
Paraguai. Falaram que, porque eu ganhei: ela é uma paraguaia,
ela não merece! Eu peguei o documento, cheguei ali, tudo ali.
Ele falou que a senhora vai perder a tua casa. Não vou perder,
ta aqui meu documento! Ali eles gritaram, falou: é, dona Ma­
ria ganhou a casa porque ela não é paraguaia. É brasileira, ta
aqui o documento, ela casou aqui, ta tudo aqui. Daí, fiquei
contente!77

201
Esta brasileira nascida em Guaíra passou a sua infância
na fronteira com a cidade de Salto Del Guairá, no Paraguai e foi
criada por avós argentinos desde o nascimento. Por isso seu
linguajar lembra o castelhano, bem diferente da maneira de falar
dos moradores do lugar. Dona Maria Encinas expressou sentir a
contestação de sua brasilidade, enfatizando o esforço aguerrido
para garantir os direitos sobre a sua moradia, frente às dúvidas
levantadas sobre sua cidadania. Nesse conjunto de
estranhamentos, é de especial significado a memória de dona
Maria Encinas para a apreensão das experiências dos brasiguaios
itinerantes da fronteira De maneira irônica, sua narrativa ajuda a
historicizar um espaço de tensões.
Tal comofezdonaMariaFelipaEncinas, donaMargarida
pautou sua memória por um silêncio em relação à aquisição de
suacasa no Conjunto Habitacional SãoMateus, onde aindareside.
Esta migrante mineira teve sua trajetória constituída por uma
bagagemde experiências vividas em Mato Grosso e no Paraguai.
Dona Margarida foi uma depoente que somente começou a falar
quandoogravadorhaviasido desligado. Suanarrativafoi marcada,
sobretudo, por respostas pontuais e fugidias. Interessante discutir,
nesse caso, muito mais o modo como se realizou a entrevista do
que propriamente os fatos por ela lembrados.
Conheci dona Margarida em uma das reuniões da
Pastoral Operária. Ao identificar-me como mineiro, muitos
trabalhadores vieramconversar informalmente comigo depois da
reunião, um deles era dona Margarida. Numa dessas conversas,
ela disse que também era mineira e pediu ajuda para lhe arrumar
um emprego de doméstica Sua presença tímida e disfarçada no
grupo e suafisionomia sofrida inquietaram-me profundamente.
O fato de eu ser um “de fora” viabilizou a realização da
entrevistacom dona Margarida, assimcomo ajudou na apreensão
da naturezadiferenciada de seu testemunho em relação aos outros
depoentes, que falaram mais abertamente sobre as suas

202
experiências. Mesmo assim, quando cheguei para a entrevista
agendada, dona Margarida estava bastante desconfiada.
Entrevistou-me, sobretudo. Perguntou-me se eu era um fiscal da
aposentadoria, da prefeitura ou um político local. E quanto mais
a informava sobre a pesquisa, mais desconfiada ficava. No
primeiro encontro, pediu-me para adiar a gravação, porque
precisava fazer o dever de casa de seu curso supletivo do ensino
fundamental. No segundo, alegou estar atrasada com as costuras
que precisava entregar. Noutra vez, disse estar ocupada com os
afazeres da Renovação Carismática, da Igreja Católica, a que
mostrou profundamente devotae atuante. Em todos os encontros,
pedia-me para retomar. Como ela nuncadisse um não diretamente,
persisti. Só concedeu seu depoimento depois de estabelecer uma
relação de confiança entre nós. Levei-lhe o texto transcrito para
que assinasse a autorização de uso público. Ela fez-me voltar
cinco vezes até conseguir seu consentimento escrito. Ainda assim,
com a promessa de não divulgar seu verdadeiro nome.
Os rodeios e os silêncios constituintes da narrativa de
dona Margarida informaram uma outra maneira de os depoentes
lidar com os estranhamentos. Diferentemente dos demais, que
acentuaram seus papéis na narrativa, dona Margarida pareceu
lutar pelo silêncio e a recusa do passado, sugerindo estar se
tratandode uma estratégiapolíticade sobrevivênciasocial. Talvez
mais do que isso, sua narrativa moldou um enterro do seu passado
brasiguaio, como forma de preservar a moradia popular que havia
conseguido no conjunto habitacional. Ou, quiçá, evitar a
confirmação da existência do ‘'puxado” que construiu nos fundos
da casa para um filho recém-casado, que à época morava com
ela. Ou ainda de perder a sua pensão previdenciária seja lá por
que motivo.
A construção narrativa de dona Margarida não util izou o
passado na forma protagonista, como fizeram muitos outros
depoentes. Ao contrário, expressou que “eu tenho luuitas coisas

203
pra falar, mas por enquanto eu vou deixar quietinho”.78Se, por
um lado, o passado passou por um crivo impeditivo para sua
visibilidade pública, por outro o presente emergiu permeado de
fortes sentidos emancipadores.
Têm importância para esse diálogo outras experiências
do seu fazer-se no último espaço de fixação e suas tantas
itínerâncias. Aestrutura do seu depoimento informa, entretanto,
algumas tentativas importantes comas quais temtratado as tensões
narradas sob a forma do silêncio. Os motivos da migração então
revelados surgiramcomo uma permissão para restaurar os sonhos
e desejos do passado no presente. Um deles relacionóu-se a sua
qualificação profissional como costureira, descoberta que lhe
possibilitou avançar entre outras:
É porque eu sempre toda vida gostei de costura. Desde os 13
anos eu já, eu costurei muito pros meus irmão. E eu gostaria
de fazer um curso e nunca deu certo. Depois que estou aqui
em Rondon eu consegui. Esse curso de costura industrial...
Depois fiz mais um básico, que eu já tava trabalhando lá de
varrer rua e depois eu fiz mais um básico (pausa). E foram
cinco mês pra fazer esse curso. Mas é difícil pra a gente
trabalhar em casa assim, que agora as pessoas, eles vão mais
atrás de comprar feito. A gente não consegue mais ganhar
dentro de casa assim. Eu pego assim muito conserto (pausa).
Mas, não dá pra gente viver só de consertinho de roupa.7’
Dona Margarida foi preenchendo os vazios silenciados
das experiências do estranhamento. Sua narrativa foi marcada
pelo trabalho da memória de ressignifcação dessas lacunas, como
um reencontro dos sentidos subterrâneos do fazer-se como
trabalhadora. Os desejos inconfessos do passado deixados
“quietinhos” parecem ter-se renovado em sentidos do seu fazer-
se como trabalhadora qualificada.
Outras lembranças de considerável significado para sua
trajetória foram narradas em tomo do seu reencontro com a
experiência religiosa, interrompida autoritariamente no passado

204
por seu pai. Por sua vez, lembrou que, aos 16 anos, quando
ainda morava no Paraguai, mudou-se para a cidade de Presidente
Stroesner, atual Ciudad dei Este, para estudar num convento de
irmãs de caridade. Em tomo dessa experiência articulou os mais
românticos sentimentos de felicidade, conforme já tratado no
capítulo anterior.
Os sentimentos de felicidade passaram a marcar uma
posição de contramão no ritmo da narrativa sofrida e pesada de
dona Margarida. Tal sentimento somente retomou no momento
em pareceu reencontrar-se consigo mesma, quando então pôde
realimentare praticar suas convicções religiosas mais profundas.
A felicidade perdida foi recuperada com seu reencontro com a
religião católica, quando então se viu aceita e incorporada à
sobrevivência socialjunto a um grupo daRenovação Carismática,
onde “eu não sei... eu me sinto muito feliz, assim... Agente sente
mais amor nas pessoas. Depois que eu comecei a participar na
Renovação assim, tive mais amor pelas pessoas, uma pessoa
mais calma, uma pessoa... mais paz na vida”.80

Estranhamento e linguagem
Leopoldina relacionou suas dificuldades para alugar a
primeiramoradia quando chegou à cidade com outros problemas
de socialização. O mais evidente foi relacionudoao:>diferentes usos
dc dialetos de língua alemã falados pelos moradores mais antigos
da cidade.81Não especificamente da língua falada em si, mas da
maneira como essa expressava uma diferença entre os diferentes
grupos. Em relação a essa problemática notou Norbert Elias que:
O fato de os membros dos dois grupos diferirem em sua apa­
rência física ou de os membros dc u;.M.grupo fnlarem com um
sotaque e uma fluência diferentes a língua cm que ambos se
expressam serve apenas como um sinal de reforço, que torna
os membros do grupo estigmatizado mais fáceis de reconhe­
cer sua condição.82

205
Nesse sentido, sintetizou Leopoldina:
Aí também uma coisa que chateava também... a linguagem
das pessoas, que às vezes, as pessoas queriam falar alguma
coisa diferente da gente, usava aquele dialeto, não entendia
nada. Mas, pela fisionomia da pessoa, ficava sabendo que
ele estava falando da gente. Isso cra bastante assim chato
porque você estava conversando com o dono da casa, daí
chcgava a mulher, falava aquelas linguagens, tudo lá. A gen­
te sabia que tava falando referente o... porquê de vez em
quando deixa escapar uma palavra em português, não é tudo...
Dc vez cm quando então escapa o português. Então, a gente
pela aparência, você faz uma leitura psicológica da aparência
da pessoa, do que que ele ta falando.83
Na percepção de Leopoldina, a língua alemã era somente
faladanaquelas ocasiões quando “as pessoas queriamfalaralguma
coisadiferente da gente’ especialmenteemrelaçãoàs dificuldades
para alugar a primeira moradia. No trecho final, adepoentenotou
que a tensão que viveu com os moradores mais antigos lhe
desafiou a aprender e usar uma ‘‘leitura psicológica da aparência
da pessoa’ com a qual sentiu-se habilitada a ler nas entrelinhas as
relaçõesconflituosasque viveuquandoerarecém-chegada Emtomo
dessaproblemáticaligadaà linguagem, abordou Peter Buriceque:
Uma das manifestações mais importantes de identidade cole­
tiva é a língua. Falar a mesma língua, ou variedade de língua,
que uma outra pessoa é uma maneira simples e eficiente de
indicar solidariedade; falar uma língua diferente ou varieda­
de de língua é uma forma igualmente eficiente de distinguir-
se entre outros indivíduos ou grupos”.84
Dona ldalina Guzzoni,85que migrou de Ponta Grossa
em 1960e trabalhou como professora dõ ensino fundamental até
aposentar-se, rememorouoestranhamentoque viveuno seutrabalho:
O aluno vinha pra aula, a gente levava com muita dificuldade
de tirar certos vícios dc linguagem, certas pronúncias erra­
das. Daí então ele aprendia. Quando era na segunda-feira,

206
voltavam do mesmo jeito. Durante a semana inteira a gente
batia, batia, batia, e daí sábado e domingo em casa só falando
alemão. Na segunda-feira eles vinham cheio de ‘eros\ sabe?
(risos) Então, eles achavam que nós é que tínhamos que
aprender alemão, eles não admitiam.86
Donaldalinalembrou que nesse tempo “os paranaenses
eram pouquíssimos. Aqui era um útero de catarinenses e
riograndenses, todos de origemalemã. Eu era chamada de negra.
Meu marido [um dos primeiros dentistas da cidade] era chamado
de negro”.87 Uma vez mais perguntada da extensão dos
estranhamentos que vivera retrucou:
Não! Eu só mostrei pra eles que negro também era gente. E
que podia ser tão ou mais eficienle^ do que eles. Eu aceitei o
desafio (risos). Ah! Daí, eu caí nas boas graças. Todo mundo
me tratando bem até hoje. Ah! A professora Idalina! Asenho-
ra ainda está aqui? Valeu a pena, sabe. Eu acho que eu anga­
riei assim, uma estima muito grande de toda aquela gente. E
mostrei que negro também era gente (risos). A gente nunca
se abcspinhou por aquilo.88
Embora o biótipo de dona Idalina não se aproxime do
de um negro, narrou sua posição no enfrentamento como se
mantivesse alguma aproximação com um deles. E apesar de ter
se conciliado com as pessoas e estabelecido seu enraizamento
no lugar, manteve aceso um sentimento de redenção da causa
daqueles não enquadrados;
Até há pouco tempo, a minha cunhada que mora ali na frente
veio brava. Que faz parte de um clube de damas aqui no
bairro e as velhas: não fala “alemon” morando tanto tempo
aqui? Ela disse: mas eu não sou alemão, eu sou italiana, não
vim aqui pra aprender língua. Eu vim aqui acompanhando
meu marido. Então, você vê que existe essa mentalidade.89
Ainda sobre o uso dc diletos da língua alemã, para Maria
Aparecida de Oliveira, filha de dona Maria Senhora, a questão
lhe pareceu muito mais sensível no “mcrcado de trabalho”:

207
Agora... Eu sempre achava assim que no mercado de traba­
lho... Porque aqui cies... Anos atrás... Vocc chegava pra pedir
emprego:
— Ah, fala alemão?
— Não!
Então nada feito!90
Nessa recordação e em outros depoimentos, destaca-
se o modo todo próprio como MariaAparecida reencontrou-se
com os estranhamentos vividos no passado. Durante o
depoimento, aproveitou para revê-los à luz de uma nova
consciência desse processo social, supostamentejá superado.
Notou Maria Aparecida que a língua alemã não se
apresentava unicamente como uma exigência de qualificação
profissional. Em tomo dessa questão organizava-se o campo das
diferenças existentes nas relações de trabalho locais, mediadas,
entre outras maneiras, pela indicação e favoritismo de familiares
e/ou outras influências sociais.
Segundo enfatizou MariaAparecida, essa era uma reação
comum, uma maneira de “despistar” os possíveis interessados
preteridos. Noutras palavras, apresentava-se como “meio fora
de lugar aqui fazer uma pergunta dessejeito”.910 reencontro de
MariaAparecida com o estranhamento pareceu libertá-la das
amarras do ressentimentoe emancipá-la ao ver-secomo um sujeito
mais conscientemente centrado nessas relações. Ao finalizar, assim
expressou: “eu não era boba, a gente sente. Sabe que pessoa
quer despistar.”
Seu Liduíno Adelino de Souza, trabalhador que chegou
em 1975, lembrou, ao longo do depoimento, de sua estranheza
em relação ao uso de dialetos da língua alemã falados na cidade,
em particular no seu espaço de trabalho:
Quanto à língua, a gente tem problema. A gente sempre tem
problema. E depois quando a maioria falando alemão, falan­
do... essa língua. São todos... Que aqui em Rondon, são um

208
pessoal que veio de Santa Catarina,... do Rio Grande, a maio­
ria. Então... (...) Só de origem! Então, quanto à língua eu senti
muita dificuldade. No comércio também, assim... Eu senti muita
dificuldade. Na época, a língua predominava e quem falava o
alemão, tinha mais preferência... Tinha mais preferência no
comércio e tinha muito mais preferência. Eu trabalhei depois...
Eu entrei no comércio, comecei de trabalhar na Hermes
Macedo.92
Seu Liduíno lembrou da exigência da línguaalemã como
um problemaque alcançou os dias atuais, mesmo porque “a gente
sempre tem problema”. Envolvido pela lembrança, ele atribuiu
uma enorme importância ao fato de ter trabalhado numa sessão
de vendas de uma grande loja de departamentos. Segundo
destacou, a impessoalidade praticada nas relações de trabalho,
viabilizadaemumafilial deumagrandeempresanacional espalhada
por diversas regiões brasileiras, ajudou-o a driblar algumas das
exigências locais apresentadas em tomo da fluência em língua
alemã. Num de seus aportes narrativos, trabalhou no sentido de
demonstrar sua qualificação profissional no interior das regras
dessa empresa:
Eu vendia pneus, vendia... Que até depois então na Hermes
Macedo eu fui fazer um estágio em Cascavel. Na época morei
seis meses lá em Cascavel. A mulher morava aqui, trabalhava
no hospital. E eu trabalhei cm Cascavel na Hermes Macedo,
fazendo estágio lá, vendendo pneu. Pneu, motores, bomba
d’água, motores estacionares, motor diesel, motor a gasolina
(pausa).93
Ainda trabalhando na mesma empresa, Liduíno informou
não ter sido cobrado a aprender a língua alemã,
Até porque é uma firma que tinha tradição. Porque que nem a
Hermes Macedo é uma firma... ela foi. o início foi em Curitiba
(pausa). Hermes Macedo é português, né? É! Macedo é por­
tuguês! E ate os diretores da empresa, na época, que cra uma
grande empresa, Tinha... chamava-se Lojas do... Rio Grande
ao Grande Rio (pausa). Tinha mais de 200 lojas, essa rede.
209
Então, e os diretores eram todos eles... Seu Manue!, portugu­
ês mesmo! Manuel... era o...94
Ao mesmo tempo em que atribuiu um significado
protecionista à grande empresa de departamentos, que o
resguardou em parte das tensões enunciadas pelos depr>entes,
faz notar, implicitamente, as dificuldades dos trabalhadores
migrantes novos, sulinos como ele, de manter e ou conseguir
trabalho naquele lugar.
Além de fazer notar como se protegeu daquelas tensões,
por meio de seu emprego “numa firma que tinha tradição”,
mostrou-se também aberto para penetrar naquele universo de
relações, quando:
Então no comércio... e também, eu senti, eu gostava... Eu...
não desprezo tanto à língua, que eu gostava dc aprender.
Mas era uma dificuldade tão grande de aprender essa língua
alemã! Eu não aprendi! Trabalho 20 poucos anos no comér­
cio e... Mas não aprendi nada.1'5
Seu Liduíno não rejeitava a exigência da língua alemã,
mas identificavanelaumapossibilidadede inserção, principalmente
como estratégia para melhorar seus ganhos salariais como
vendedor por produtividade ou talvez mesmo construir seu
enraizamento. Nesse sentido, amarrou num mesmo campo
narrativo uma versão protagonista acerca daqueles impeditivos
dos usos da língua às suas qualidades profissionais de vendedor
especializado, que de algum modo poderiam ser ainda melhor
incrementadas com a proficiênciada língua alemã, de tão grande
importância no seu meio social:
E aquilo pra venda é muito interessante se a gente soubesse
falar a língua. Até porque eu via, eu via pessoas daqui com a
experiência menor e... com uma experiência menor em vendas
e técnicas. Porque a venda tem técnica. E sem técnica, mas só
porque falava... simplesmente falava a língua, ele vendia mais
do que eu. Eu tive anos que eu entrei o inteiro fui o melhor

210
vendedor dentro da empresa. Mas tinha essas dificuldades.
Que às vezes, o cara simplesmente por falar a língua alemã,
ele vendia mais. E vendia melhor, porque podia convencer
mcihor o freguês. As pessoas dc idade, assim, chega... Ate
hoje, se você tem... chega uma senhora aí, é de origem e você
fala a língua. Então elajá tem total confiança. É! É interessan­
te até porque... Parece que por simplesmente falar a língua...
A pessoa de idade ela confia mais.96
A esposa de seu Liduíno, dona Maria José de Souza,
nascida na cidade paranaense de Siqueira Campos, chegou em
1975, coincidentemente o mesmo ano em que o marido
desembarcou em Cândido Rondon. Dona Maria viera para a
regiãotrabalharcomo enfermeira, pois havia sido informada sobre
a carência de profissionais de saúde na época. Quando começou
a trabalhar num dos hospitais da cidade viveu o seu primeiro
estranhamento com a língua falada no lugar:
O mais difícil era pra você atender aquelas pessoas idosas,
que só falavam alemão. Então a gente tinha um pouco de
dificuldade, nessa parte, bastante! Porque a pessoa falava o
alemão, não entendia nada. E o que eu falava. Elas não enten­
diam nada. E na época tinha bastantes pessoas idosas (pau­
sa). A maioria assim vinha, origem alemã, quase só, falavam...97
A narrativa de dona Maria registrou a questão da língua
no rol das dificuldades de suas tarefas diárias de enfermeira no
seu primeiro emprego, situações em que demonstrou muita
tolerância com os pacientes:
Eu já sabia que aquela pessoa era assim. Então eu já... eu ia
arrumava o quarto, deixava as cama delas arrumada e alguém
que né, falava o alemão que vinha atender as outras. Dar
medicamento, ver pressão, temperatura, essas coisa, deixava
pra uma outra...98
Por outro lado, lembrou com ressentimentos que o
problema maior não estava localizado, exclusivamente, no
tratamento profissional que dedicava aos pacientes mais antigos.

211
Conforme lembrou, seu estranhamento era no espaço de trabalho
entre os próprios colegas de ofício:
Ah! Eu sentia... sentia mal. Sentia descriminada! No refeitó­
rio muitas vezes, as meninas ficavam enchendo o saco. Fa­
lando... (pausa). Aí eu brigava! Ah! Eu não deixava de graça
não! Brigava mesmo! Falava: não senhora, vocês que estão
comendo no nosso prato. Eu sempre falei. Porque Paraná, eu
era paranaense, porque os outro veio do Rio Grande, veio de
Santa Catarina, veio não sei de onde lá... falam em alemão e
vai querer mandar aqui. Vocês que estão comendo no nosso
prato. Nós... Eu estou no meu lugar. E dava duro mesmo. É!
Mas você... Por que você não aprende falar em alemão? Por­
que muitas vezes ela elas sentavam... (...) É! Elas queriam que
eu aprendesse. Muiuis vezes elas ficavam falando. Que nem
a... ela falava bem o alemão, era de Flor da Serra, mas tinha
outras que falava. A cozinheira falava alemão, bastante pes­
soas... Bastante enfermeira ali que falava o alemão, alemão
mesmo... E então, a gente sentia um pouco... meio estranha
no meio da turma."
Interessante observar como dona Maria lembrou ter
respondido àquelas discriminações no espaço de trabalho. Buscou
nas suas raízes paranaenses as respostas para lidar com aquelas
diferenças que eram apresentadas como naturais daquele espaço.
Diferentemente de seu marido, seu Liduíno, que narrou ter lidado
com tolerância tais conflitos, dona Maria fez questão de mostrar
que respondeu com firmeza àquelas tensões que eram
experimentadas nos primeiros tempos.
De uma maneira geral, os depoentes que lembraram os
estranhamentos dimensionados especialmente pelas diferenças
raciais fizeram notar a sua diminuição desde o tempo de suas
ocorrências e sua resignificação no tempo presente de sua
avaliação.
Maria Aparecida, por exemplo, esboçou com grande
fôlego narrativo o seu próprioentendimento da naturezaambígua
das distinções genéricas construídas no social accrca das tensões
no espaço familiar e do trabalho. Ao reler sua própria trajetória,
na transcrição do depoimento, fez notar uma diminuição dessas
tensões na mesma medida em que pareceu crescer em sua
participação pol ítica como sujeito ao longo de toda a sua vida.
Embora tenha observado que “tem muita gente racista; muito,
muito mesmo!”,100as balizas pessoais com as quais avaliou e
atuou no universo dessas relações mostraram-se bastante
modi ficadas no decorrer do tempo. No seu caso, principalmente,
depois do casamento: “Mas eu acho assim que... Eles fala da
cor, mas eu sou casada com alemão. Quando a gente namorava,
a minha sogra lia e escrevia em alemão.”101

Os matrimônios
Diferentes experiências de estranhamento marcaram as
memórias dos enlaces matrimoniais, especial e exclusivamente
entre as depoentes. Para surpresa de Maria Aparecida, por
exemplo, a sogra não se opôs diretamente ao casamento, em
compensação uma das cunhadas exerceu oposição direta. E
justifica a posição da sogra: “p-orque ela gostava muito... que ela
morava com uma filha que judiava dela e eu tratava ela muito
bem”.102
Surpresa maior para a depoente foi a oposição exercida
por sua mãe, dona Maria Senhora, que “não queria o casamento,
que ele era alemão. Minha mãe achava que eu tinha que casar
com alguém da minha cor”.103 Diante da oposição da mãe,
lembrou MariaAparecida, contudo, de não a ter imobilizado:
E daí, eu tipo namorava ele meio escondido da minha mãe.
Não queria nem saber. Minha .nac achava que rapaz que ti­
nha, queria moça pobre pra se aproveitar. E daí, foi a briga, em
vez dela me incentivar, ela foi contra: - ah, não porque ele só
quer aproveitar de você, e depois vai te deixar. Eu sempre fui
assim de... Quando eu quero alguma coisa eu vou ate o fim. E
aí foi, foi, foi... Ate que um dia eu fugi com ele. Aí ele avisou
a minha cunhada, a irmã dele morava com eles, ela era casada.

213
Desocupa a casa que a Cida vai morar aqui, e tal, tal. A mãe
era contra... Eu fui morar com ele.,<M
Além da sua força transgressora que buscou ressaltar,
deve-se considerar, nessas tensões, os diferentes significados
atribuídos por sua mãe na demarcação de sua oposição. Na
lembrança da oposição de dona Maria Senhora, reconstituída
pela sua filha, a preocupação não se baseava na questão racial,
mas na de classe. Dona Maria Senhora talvez olhasse para o
futuro genro não propriamente como um tipo estrangeiro,
“alemão”, numa acepção de sujeito étnico diferente, mas como
um membro das classes dominantes. Como mesma interpelou:
“minha mãe achava que rapaz que tinha, queria moça pobre pra
se aproveitar.”
De muitos modos, o casamento parecia significar para
MariaAparecida, mas não exclusivamente, uma possibilidade de
desprender-se do seu uni verso social e familiar e, nessa senda,
parece ter atuado de alguma maneira. Num outro momento da
narrativa, como num traball 10 da memória, ainda mais envolvida
no desvelamento de sua consciência daquelas tensões, fez notar
como construiu sua alteridade, principalmente em relação à sua
sogra, quando no relacionamento cotidiano pôde mostrar-se mais:
E aí, a minha sogra ela quando passava alguém moreno ela
falava: ai, aquela nega! De tanto que ela conviveu comigo,
que ela pensava que eu era uma pessoa branca” .105
Nesse trecho do depoimento, MariaAparecida procurou
dar visibilidade à sua estranheza acerca do comportamento
discriminatóriode sua sogra. Ao mesmo acrescentou o seu valioso
papel protagonista transformador, “de tanto que ela conviveu
comigo”. Contudo, a convivência positiva, onde então pôde se
mostrar, não fez de todo afirmar uma alteridade plena, já que a
sogra a aceitou pensando que ‘‘eu era uma pessoa branca’’Acerca
desse plano da análise sugerido pelo depoimento observou

214
DaMattaque:
Existem outros critérios que podem nuançar e modificar essa
classificação pelas características físicas (que são definidas
culturalmente). Assim, por exemplo, o dinheiro ou o poder
político permitem classificar um preto como mulato ou até
mesmo como branco. Como se o peso de um elemento (como
o econômico) pudesse apagar o outro fator.106
Já em relação às suas cunhadas, as estranhezas foram
mediadas por uma narrativa de confronto aberto:
E as irmã dele falava, que naquela época não tinha casado no
papel. Elas vinham na minha casa e falava: — meu irmão só
quer você pra empregada, porque você é de cor, não sei o
quê. Meu irmão é que quebrou a tradição, ele deveria ter
casado com uma alemã. E daí eu me casei direitinho no papel,
e tal tal. Só que ainda hoje, eu ainda tenho problema com as
minha cunhada. Tem três cunhadas minha que não sc dá
comigo, que eu corri com elas de casa. Sou meio pavio cur­
to.107
O casamento firmado com o “papel passado” somente
aconteceu num segundo momento do relacionamento, passando
a significar uma maior garantiade afirmação pessoal no ambiente
familiar. Nas entrelinhasda narrativa, outras estratégias para manter
seu relacionamento livre daquelas tensões foram buscadas, entre
elas o casamento reconhecido pelo registro legal público. Ao
finalizar, avaliou que suas estratégias não foramde todo suficientes
para lidar com aquelas tensões e “ainda hoje, ainda tenho
problema com as minha cunhada”
Entre os informantes, Marizete Dantas foi adepoente
que mais acentuou, da maneira mais diretae conteste, a estranheza
comaquiloque nomeou de racismoenfrentadopelos filhos quando
estes foram se casar. Antes, porém, de prosseguir nessa direção
vale a pena abrir um parCntese.
Marizete foi a depoente que dirccionou a entrevista de
maneira mais explícita. Foi também quem verbalizou estar

215
acomrn.i ;!u i ido os caminhos invcstigativos do pesquisador, talvez
até mais do que ele própr io. Sempre que pôde, cobrou do
pesquisador os vagos rodeios em relação ao tema sensível dc
sua percepção desses estranhamentos: “do racismo você está
falando?” ou então, “Eu... você fala mode o racismo?”.108
Marizete lembrou em detalhes a seqüência dos
casamentos dos filhos e as conflituosas redes de convivência social
decorrentes deles::
O primeiro filho meu casou com uma aiemoa. Esse daí eu não
conhecia quase a família deles nada. Ela lambém... Elajá era... Era
mais era mais velha do que ele, já era dc maior, ela sabia o que
estava fazendo. Se ajuntou com ele depois casaram.... Sc ajun-
tou com ele. Eu não sei se a família daquela vez, que eu não
conhecia a família dela, assim se em uma coisa pra ela ou não, sei
que ela num... Se era ela nunca importou, que ela foi ficou com
ele até hoje tem, tem filha de 14 anos, vai fazer 14 ano...109
O casamento duradouro do filho foi lembrado com certo
orgulho por Marizete. Embora tenha chamado à atenção para o
fato de não conhecer, na época, a família de sua nora, há um
sentido implícito na composição dessa lembrança positiva, que
emergiu contrastada logo em seguida, pela experiência de seu
outro filho, o mais velho, quando casou-se com a cunhada do
irmão:
E depois disso aí meu o filho mais velho namorou, começou
namorar a irmã dela [da nora] que era das mais nova... (...) Aí
ele [filho mais velho] começou namorar a cunhada do irmão
dele. E ele [irmão da nora] não queria o namoro. Tem o irmão
dela ah! A velha, o velho concordou, mas ele tinha um irmão
(...) ele não queria porque era preto, ele não queria! Chamava
ele de saqueiro que ele não queria o namoro dele. E era caçu­
la. E ela estudava e o pai não queria dar o estudo pra ela e
nem o irmão e... E ela não importou gostava dele, não impor­
tou casaram. Casaram e ela gostava muito de estudar, ele
trabalhou, deu o estudo dela, ela se formou, ela fez faculda­
de, hoje ela é professora.110

216
Interessante notar que os termos impeditivos para a
rea!ização do casamento de seu filho mais velho foramlembrados
por meio dos estereótipos discriminatórios da pobrezae do seu
ofício dc ensacador, os quais o irmão da futura esposa impunha a
seu outro 11II10 naquele momento.
A composição narrativa de Marizete deu vazão a certos
sentidos ambíguos daqueln experiência do estranhamento,
valorizando o importante papel do filho na realização dos mais
caros sonhos de sua nora, que também pareceu ser os seus para
seus filhos. Ou seja, de estudar e ser professora, quando “ele
trabalhou, deu o estudo dela, ela se formou, ela fez faculdade,
hoje ela é professora.”
Em seu trabalho da memóriacompôs uma lembrança da
realização dos sonhos de letramento da nora não como uma
vingança premeditada ao estranhamento enfrentado em sua
vivência social. Alembrança, reforçada por um sentido vitorioso,
foi utilizadacomo recurso de sua composição protagonista dessas
experiências vividas no coletivo com seus filhos, como uma
instância de afirmação de sua alteridade e de seus valores no
interior da classe, principalmente nos momentos em que estes
foramprofundamente questionados.
No momento seguinte, Marizete lembrou dos
problemas enfrentados na ocasião do casamento dc seu filho
maisjovem. De início, expressou ter tentado responder àquelas
expressões da diferença com a não-autorização do casamento,
posto que o filho era menor de idade, posição que não conseguiu
sustentar
Logo que a mãe dela fez tanta oposição pra não querer que
namorasse, que era preto ou coisa e tal! Também não vou
assinar pra ele casar. Daí ela queria vim na minha casa pra
pedir pra mim assinar, que eles casaram. A mãe dela agora aí.
Mas não precisou, eu tenho coração de manteiga derretida
mesmo! Eu fui, eles casaram. Hoje vive uma vida boa !.111

217
Há que sublinhar, no escopo da análise, o modo com
que Marizete privilegiou as tensões em tomo do casamento de
seus filhos. Num primeiro plano, há em sua estrutura narrativa
uma comparação entre os embates enfrentados, denotando
situações bem distintas. Todavia, háum elemento impertinente na
menção ao casamento do segundo filho, quando então atuou
restabelecendo e ressignificando alguns códigos tradicionais
remanescentes de um lugar temporal passado muito impreciso.
Destarte, os termos da negociação, mesmo que
subliminarmente, pareceramsercobrados nalgummomento dessa
economia de trocas, uma vez que o filho mais velho “casar[a]m
e ela [nora] gostava muito de estudar, ele trabalhou, deu o estudo
dela, ela se formou, ela fez faculdade, hoje ela é professora.”
Entretanto, os termos do estranhamento informam muito mais
acerca de uma reciprocidade partida, uma vez que a nora se
tomara professora e o filho permanecera, talvez, na mesma
posição social.
UdilmaLins Weirich, que é professora do ensino público
mas que desempenha atividades burocráticas na administração
municipal, também tocou nos estranhamentos relacionados a seu
casamento de uma maneira bastante singular. Nascida na cidade
de Borrazópolis, noutra região do Paraná, chegou ainda criança
à zona rural de Marechal Cândido Rondon em 1961, com sua
mãe Amara e o restante de sua numerosa família. A narrativa de
Udilma foi mediada por fartos e minuciosos relatos da pobreza
de sua família, assim como pela educação autoritária e violenta
do pai, principalmente em relação à mãe e às filhas. Estimulada
por uma questão prepositiva acerca da difusão da germanidade
na cidade, Udilma relacionou-a imediatamente ao seu
casamento:
Tem uma questão interessante com referência alemã, que nem
eu falei pra você. Não percebi isso, antes, mas quando eu fui
casar, eu casei com um descendente de alemão, colonizador,

218
dos pioneiros e a família dele não me aceitaram, que ele ia
casar com preto....112
Udil machegou a mencionar ter descoberto o peso dessas
tensões somente algum tempo depois de casada, uma vez que:
Ele [seu marido] morava sozinho, daí eu conheci a mãe. As
irmãs eu conheci no dia do casamento. Irmão dele eu conheci
no dia do casamento e os outros tios dele tudo eu fiquei
sabendo depois. Eu demorei pra conhecer toda família, ape­
sar que a maioria morava por aqui.113
A depoente narrou suas estranhezas como um processo
inacabado, do qual ainda pretendia compreender a natureza e
suas significações na dinâmica de sua vida familiar e social. No
primeiromomento, recorreu às causas das tensões, principalmente
quandoessas tambémpareceramcompartilhadaspelo seu marido,
quando “ele próprio não abriu muito. Ele não se identifica muito
com eles”,114 procurando, de alguma maneira, justificar o
distanciamento familiar ainda persistente no presente. Por outro
lado, articulou sua experiência na classe como um aporte de
compreensão do modo como viveu aquele processo, quando
‘‘então houveesse... Eu não senti muito porque ali aquelaquestão...
Você já estava acostumada a ser o bicho diferente. Agente se
sentiu sempre um bicho diferente!”115
Algo de indizível tomou-se então a expressão desses
sentimentos persistentes. As memórias de Udilma e sua mãe
Amaracruzame se mterpenetram, fazendoemergir novos sentidos
para os próprios sujeitos diante das tensões namidas, tanto quanto
o próprio lugar de afirmação de suas alteridades.

Estranhamentos e vivência escolar


As memórias dos estranhamentos matizaram outras
experiências de convívio, em que a discriminação se mostrou
muito marcante nas trajetórias dos depoentes. Leopoldina, por
exemplo, lembrou dos problemas de aceitação dos filhos numa

21 9
escola da cidade, quando ela então se viu obrigada a transferir as
crianças para um outro colégio. Depois de interromper a narrativa
com um riso irônico, argumentou conclusivamente que era “a
questão do nível social, da cor, até com que que a criançachegava
naescola Não importavaque estavacoma mensalidadeemdia”.116
Já Udilma Lins reportou-se ressentidamente à discriminação que
sofreu nos primeiros tempos de sua formação escolar
Porque na época do ginásio foi assim meio complicado, por­
que as... Digamos assim... Minhas colegas de turma, eram
tudo filhas de pessoas da elite, digamos assim. Então elas
tinham o mundo delas, convivência delas c sobravam pou­
cas assim que gente podia.... Digamos, um aluno que vinha
do interior ou... Eu tinha um grupo de amigas na sala de aula,
mas que não eram daqui da cidade, a maioria era de fora. Aí
depois, quando eu fui pro magistério, aí, talvez porque a gen­
te... Mais adulto, com uma vivência maior, a gente formou
amizades.117
Os primeiros tempos da vivência escolar de Udilma
também foram recordados entre as balizas da diferenciação de
classe. No caso dessa trabalhadora estes foram especialmente
lidos pela sua consciência crítica acerca do processo social de
pertencimento ao grupo de trabalhadores rurais pobres recém-
migrados para a cidade. Anarrativa, recortadapor silêncios, tocou
nas dificuldades de convívio social entre aqueles quejáhabitavam
a cidade e aqueles do convívio rural, especialmente pobres, “que
vinha do interior ou...” então, como faz supor por meio de
reticências, talvez diferenciados pela sua cor da pele. Apassagem
da vida rural para a urbana, como vimos, foi também lembradapor
Paulo Selhorst, que acentuou demasiadamente as dificuldades de
adaptaçãoaos diferentes modos de vidapraticados no meio urbano.
No momento seguinte da narrativa, Udilma procurou
expressar seus próprios códigos de compreensão daquelas
tensões presentes em sua trajetória de trabalhadora, informando
sua percepção do lugar e do alcance daquelas diferenças que lhe

220
continuaram sendo afirmadas. Nesse trabalho da memória, ela
demonstrou uii iacoi iípi eensão políticaampJiadadas forças sociais
dominantes:
E interessante, que eu percebo hoje, ainda, aqui, as pessoas
não querem que você saiba fazer nada, que possa te destacar
no meio dos outros. Por exemplo, se você faz uma coisa mui­
to bem, aquilo causa inveja. Eu ouvi assim, eu vi pessoas
falar assim: mas você é metida mesmo! Tem que estar em
tudo! Então eu não podia querer conquistar um espaço.118
Na seqüência da narrativa, Udilma retomou ao universo
de sua vida estudantil para recortar os temas de sua leitura da
discriminação vivida no presente:
Que nem eu era atleta, eu tinha bons resultados na competi­
ção, eu ganhava dos alemão, dos alemães. E tinha uma guria
que ela não sossegou enquanto ela não me venceu. Então eu
já tava com 22 anos, praticamente sem treinamento sem nada,
mas ela teve que competir comigo pra ganhar de mim. Porque
o problema dela era perder pra mim. Ela havia perdido pra
mim. Então quando ela percebeu que eujá tava fora de forma,
sem treinamento. Então, teve que me instigar pra competi­
ção, pra dizer: não eu venci. Teve muito isso. Até hoje, é
assim. Até há pouco tempo mesmo uma pessoa chegou e
falou assim pra mim. Olha, como você faz isso, é metida mes­
mo! Tipo assim, você não pode fazer isso. Isso não é pra
você fazer. Não é pro seu bico... Isso tem!119
Estimuladapor um diálogo inquietante sobre suatrajetória
estudantil, Udilma foi conduzindo a narrativa para as questões
candentes ainda hoje. Nesse caso, e uma vez mais, observa-se
como a entrevista lhe motivou expressar os significados, de modo
colado aos estranhamentos, da incompreensão das limitações
mais amplas ao avanço em sua carreira profissional:
Eu acho que continua difícil, continua complicado, só que
com outros tipos de dificuldades. Outros tipos de... Eu não
sei porque, sabe? As.vezes eu fico me perguntando, procu-

221
rando descobrir, mas apesar dc tudo, vocc vê: eu fiz faculda­
de, fiz especialização. (...) Fiz Ciências Contábeis. E fiz espe­
cialização na área também. E de certa forma eu continuei mar­
chando no mesmo lugar. Não houve... Tentei evoluir mas cu
não consegui evoluir o que deveria ter evoluído. Eu penso
que isso seja uma atribuição da própria educação que a gen­
te teve, do próprio sistema de vida que a gente cresceu, e foi
e chegou... Então você, de uma certa maneira, acho que você
enraíza aquilo, você continua alimentando...120
Na mesma senda interpretativa do passado, nota-se uma
vez mais a percepção de Udilma acerca da crise entre os valores
e modos de vida da classe do passado e aqueles impositi vos das
novas necessidades criadas pelo mundo atual. Adepoente pareceu
ocupar-se, assim, de uma certa nostalgia. Não da nostalgia de
um passado na forma como era, mas reinventado a partir das
experimentações do estranhamento e de suas tentativas de
superação. Num primeiro momento Udilma mostrou a sua
percepção daquelas transformações:
Eu tava mesmo comentando, cu tenho, meu lilho tem 21 anos,
ele não consegue se firmar, ele quer um computador pra fazer
o serviço dele, em casa, do jeito que ele quer, ele não quer
prestar serviço pra ninguém. E nós não temos condições dc
comprar o computador hoje. Então isso deixa você acabada.
E uma dificuldade, eu acho, muito pior, do que antigamente.
Porque antigamente se você levantava de manhã, tinha man­
dioca pra comer, você tinha mandioca. Você ia na roça e pega­
va mandioca. Você catava um ovo, a gente comia...121
O passado da classe rememorado não foi, contudo,
preservado de uma intervenção dos novos valores e dos padrões
de vida adquiridos. De maneira interessante, Udilma trabalhou
para renovar os sentidos daquele passado, evidenciando uma
reconstrução compartilhada de valores e modos de vida com os
que, em algum tempo, foram apresentados como os de seus
estranhados. Mesmo porque, depois:

222
E ali eu acho que um pouco do desleixo, que meu pai não
sabia viver na terra. Hoje analisando eu vejo que ele não
sabia viver na terra. Que a gente poderia ter muito mais, ter
vivido melhor, se alimentado melhor. Que você podia ter...
Condições tinha de plantar uma verdura diferente, de ter um
frango, de ter uma vaca, porque nem vaca meu pai não tinha.
Uma época ele tinha depois ele se desfazia. Então eu acho
que é um desleixo do agricultor que não tem uma vaca pra dar
o leite. Mas você de certa forma, você comia uma fruta, co­
mia, se num tinha... Você não tava descalço e aquilo era nor­
mal, entendeu? Você não tinha festa de aniversário, mas aquilo
era normal. Sabe, você não tinha o ovo de páscoa que na
vizinhança todo mundo tinha, pra eles era um absurdo, nós
não tínhamos isso, o chocolate na páscoa, bolacha pintada
que o alemão sempre tem. Não fazia cuca na páscoa, não fazia
cuca no natal, não fazia pão. Mas, pra nós aquilo não tinha
diferença, agora hoje em casa, se não tem pão... Deus me
livre, tem que ter pão. Não tem cuca? Não tem uma bolacha,
entendeu?122
Embora os estranhamentos tivessemsidoevocados como
um gênero narrativo episódico, emaranhado na forma de
acontecimentos ocorridos num possível passado longínquo, estes
apontaram para o horizonte da transformação, cuja avaliação
somente pôde ser observada no presente. Assim, como muito
bem observou Ciampa:
Na verdade, a realidade sempre é movimento, é transforma­
ção. Quando um momento biográfico é focalizado não o é
para afirmar que só aí a metamorfose esta se dando; é apenas
um recurso para lançar mais luz num episódio onde é mais
visível o que se está afirmando.123
Nesse âmbito, é preciso considerar que as lembranças
mais dramáticas, e por vezes traumáticas, foram reportadas pelos
depoentes para afirmar o lugar da construção dos sentidos de
suas experiências no tempo histórico, em que participaram como
transformadores e transformados.

223
Estranhamentos e alteridades no conflito de classes
As dilèientes dimensões doestranhamento, entre conflitos
e transformações, foram narradas numa intersecção entre a face
protagonista, evocada pela memória individual, e os ricos
processos sociais constitutivos de alteridades e de formação de
sentidos políticos construídos pelos depoentes.
Cabe sublinhar, ainda, que os estranhamentos tratados
nestecapítulo ajudaramahistoricizar, não apenas e exclusivamente,
o cotidiano das tensões vividas mas também, e sobretudo, as
transformações dos próprios sujeitos e a maneira como se viram
como transformadores desse meio social. Desse modo, destaca-
se que, como ainda notou Ciampa, “a questão a identidade, assim,
deve ser vista não como uma questão apenas científica, nem
meramente acadêmica: é sobretudo uma questão social, uma
questão política”.124
O estranhamento foi discutido como expressão dos
sentimentos dos sujeitos no estabelecimento das tensões entre os
diferentes valores, modos de vidas e bagagens culturais das
trajetórias entrelaçados na fronteira, num espaço de luta de
classes. Nessa direção, procurou dialogar com alguns dos
diferentes usos do estranhamento pelas memórias dos
trabalhadores no encontro/desencontro com o novo projetado e
vivido na migração. Essa opção procurou, por certo, escapar
das rédeas marcadoras do conflito entre identidades prontas e
acabadas, especialmente as supostamente étnicas. Além disso,
procurou distanciar-se da abordagem do estranhamento como
acontecimentos ensimesmados oujá ultrapassados.
A abordagem da diversidade de trajetórias e os
significados da migração, que inspiraramos capítulos anteriores,
corroboraram de modo especial como aporte investigativo da
heterogeneidade dos estranhamentos e das experiências dessa
paisagem social. Outrossim, muito mais que gêneros narrativos,

224
as memórias do estranhamento deram visibilidade a um conjunto
de novas dimensões históricas substanciais, que passam a
contemplar a participação dos sujeitos na construção desse
espaço, como vimos, marcado por profundas tensões e
transformações.
A proposta foi historicizar as diferentes experiências do
estranliamento lembradas pelos trabalhadores investigados, como
um campo do fazer-se sujeitos num processo social dinâmico.
Nessa senda, pretendeu-se dialogar com as lembranças dessas
tensões não como contrapartida mecânica à memória oficial,
produzida e alimentada nos espaços de poder acerca de uma
suposta identidade germânica ou italiana. O aporte documental
privilegiou as memórias do estranhamento. Nesse caso, é preciso
sublinhar que as elas emergiramnos depoimentos comuma relativa
recorrência. Destaca-se, todavia, que as narrativas pontuaram
trabalhos da memória ressentidos sobre o lugar ou os agentes
que nele habitavam, compondo uma estaitura de linguagem
expressada na forma de episódios de elevado teor dramático.
Num plano geral, entre as questões suscitadas pelo diálogo com
as memórias de trabalhadores, uma se destacou e diz respeito ao
cuidado necessário para a distinção entre as expressões do
estranhamento alimentadas pelas imagens oficiais e as
experimentadas pelos sujeitos sociais. Ao revolver tais processos
sociais pelo viés das memórias, as imagens oficiais passaram a se
mostrar muito mais contraditórias, porque, embora emaranhadas
em lutas de distinção de classes, foram obscurecidas nos
contordonismos dos projetos políticos aspiradores da identidade
única. Nesse campo ainda, uma outra margem de sentidos pôde
se desenhar com a afirmação de alteridades, que extrapolam,
sobremaneira, a pura e simples estratificação que a memória
dominante procura impor.
Ao longo do diálogo com os relatos, tanto quanto na
convivência comos depoentes, observou-se uma heterogeneidade

225
das expressões do estranhamento, que não se restringem ao
conflito étnico, tampouco a ressentimento, vingança ou ódio
recalcado. Ao meigulhar noutras mediações, para alémdo campo
das previsibilidades que tais sentimentos sustentam, procurou-se
dar visibilidade ao universo do viver social da classe, entre os
conflitos e as trocas entre bagagens culturais diferenciadas,
atentando ao universo dessas memórias e suas relações com o
mundo do trabalho, a luta pela moradia e os demais códigos de
convivência social com eles entrelaçados.
Embora tivesse havido desde o inicio uma preocupação
de não demarcar uma distinção entre os migrados das diferentes
áreas brasileiras, observei, todavia, memórias com estruturas
narrativas bastante diferentes. Por exemplo, os trabalhadores
sulinos matizam a migração com os sentidos frustrados da
conquista da terra prometida. Por sua vez, os migrantes
provenientes de outras regiões organizaram narrativas mais
centradas nos estranhamentos do racismo ou da discriminação
de classe.
A demarcação desse palco das tensões, todavia, não
limitaou compartimentatais experiências. Outrossim, horizontaliza
suas conexões ou possíveis disjunções, que por suavez, explicitam
a riqueza substancial desse processo social. Pois, tal como inspirou
Tzevetan Todorov, não se trata de uma abordagemprivilegjadora
de “um ou o outro, mas o um e o outro”.125
Assim, o diálogo com os depoimentos possibilitou
aproximar-se muito mais de perto da questão do racismo, tantas
vezes lembrada ou silenciada no campo da memória social. Nesse
caso, é preciso considerá-lo em sincronia com a multipl'cidade
das estratégias do enraizamento articuladas pelas narrativas do
estranhamento.
No âmbito das tensões lembradas ou omitidas, são
subtraídas as mais diferentes experiências e reações subliminares
ao racismo. Para citar alguns exemplos, mosiram-se muito

226
significativos a tolerância negociada por seu Chico e seu Orlando,
assim como os conflitos abertos realçados por dona Maria José
e Maria Aparecida. Além desses, outros trajetos alternativos
precisam ser considerados, como os trilhados por Donana e dona
Margarida, que lembraramdo enraizamento pelo viés da inserção
na comunidade religiosa a que pertenciam em outros lugares.
Mesmo constatadas estruturas narrativas peculiares,
produzidas por trabalhadores de bagagens culturais e trajetórias
migratórias diferenciadas, a classe foi revelada como o espaço
privilegiado da experimentação do estranhamento e da construção
dos significados emancipadores dos sujeitos investigados. Nesse
ponto, o diálogo com as memórias abriu espaço para as lutas de
inserção nos espaços sociais vividos. Por outro lado, informaram
mais sobre a diversidade da paisagem social - suas trajetórias e
bagagens culturais - que propriamente quaisquer outras distinções
desejadas entre os diferentes migrados no período.
Para além da narração do estranhamento, os
depoimentos reivindicaramuma versão protagonista do processo
social e ressignificaram suas lutas em face das nuvens de
discriminação e de outros estereótipos que pairaram sobre suas
trajetórias. Essa atenção aos novos sentidos dados ao passado
realçou as contradições subjacentes ao suposto patrimônio
mnemônico identitário étnico defendido no campo dominante.
De outra ordem, tais dimensões suscitadas nesse diálogo
com os depoimentos orais abrem um flanco importante à idéia
cristalizada em tomo do mito do Sul brasileiro que teria dado
certo, comparado com outras regiões mais pobres, como o Norte
e Nordeste. Há de se notar, essa idéia cristalizada leva a uma
homogeneização e alimentamuitos sentidos ufanistas que projetam
a região Sul acima da realidade brasileira como um todo. Em
especial, valorizam-se o predomínio da pequena propriedade, o
trabalho disciplinado moldado pela cultura européia, assimcomo
a reserva de outras qualidades adicionais de sua população em
detrimento das do restante do país, como a cor branca da pele e
a herança da imigração estrangeira na formação histórica dos
estados sulinos.
Diferentemente dos sentidos genéricos, estáticos e
unificadores já observados em tomo da memória oficial, as
memórias estudadas mostraram-se dinâmicas e plurais. Assim
como em relação ao estranhamento, que além de historicizar a
diversidade da paisagem social historicamente constituída, as
memórias esmiuçaram a natureza e os códigos políticos dos
conflitos engendrados pelas imagens oficiais. Muito além, e mais
importante, contribuíram para historicizar as ricas experiências
individuais pela inserção nos espaços de sobrevivência social
encontrados fechados pelos migrantes chegados em diferentes
momentos.
As experiências do estranhamento mostraram-se
heterogêneas e impossíveis de quaisquer esquadrinhamentos.
Todavia, algumas margens de sentidos podem ser evidenciadas
no plano das trajetórias investigadas. Ou seja, as participações
religiosas de Donana e dona Margarida, por exemplo, foram
narradas como importantes reencontros com a vida social.
Enquanto outros, como Paulo Selhorst, seu Zelmo, seu Chico,
seu Liduíno, dona Maria, seu Orlando, Pracinha, Udilma e Neuza,
que narraramsuas trajetórias peloviés do trabalho e davalorização
do ofício. Já Maria Aparecida e Marizete lutaram pela inserção
social por meio da instituição familiar, própria ou dos filhos.
Leopoldina, dona Maria Senhora e dona Maria Encinas,
entretanto, compuseram as memórias nas mediações entre a luta
pela moradia e o fazer-se como mulher e trabalhadora.

228
N otas
1 Depoimento dc Paulo Selhorst, 52 anos, gravado cm 3 dc fevereiro
dc 2001, p. 1.
2 Ibidem.
3Ibidem
4Idem, p. 2.
5Ibidem.
6Ibidem.
7ANSART, Pierre. História e Memória dos Ressentimentos. Memória
e (res)sentimento. BRESCIANE, Stella; NAXARA, Márcia (orgs.).
Campinas, Editora da Umcamp, 2001, p. 19.
8Idcm, p. 21.
l) PORTELLI, Alessandro. Forma e significado na História Oral. A pes­
quisa como um experimento em igualdade. Projeto História. São Pau­
lo, PUC/SP, n° 14, 1997, p. 7.
10 ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro,
Zaar, 2000, p. 46.
11 Depoimento de Amara Antonia Lins, 72 anos, gravado em 9 de
fevereiro de 2001, p. 12.
12Idem, p. 13.
13 Ibidem.
14Depoimento de Ana Josefina de Souza, 61 anos, gravado em 8 de
março de 2001, p. 7.
15Ibidem.
16Ibidem.
17Ibidem.
18Idem, p. 11.
19Depoimento dc Ana Josefina dc Souza, 61 anos, gravado em 8 de
março de 2001, p. 12.
20Idem, p. 13-14.
21Depoimento de Francisco Oliveira Souza, 70 anos, gravado em 13 de
março de 2001, p. 6.
: Ibidem.
23Ibidem.
24Depoimento de Orlando Bauduíno dos Santos, 75 anos, gravado em
15 dc fevereiro de 2001, p. 10.
25 Ibidem.
26Depoimento dc Zelmo de Gonzatto, 63 anos, gravado cm 27 dc abril

229
de 2001, p. 12.
27Ibidem.
28Ibidem.
29Idem, p. 2.
30Depoimento de Francisco dc Oliveira Souza, 70 anos, gravado em 13
de março de 2001, p.7.
31 CIAMPA, Antonio da Costa. A estória do Severino e a história da
Severina. São Paulo, Editora Brasiliense, 1998, p. 128.
32BOSI, Ecléa fO rg) WEIL, Simone. A condição operária e outros
estudos sobre a opressão. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, p. 411.
33 Sobre o surgimento do cooperativismo na região Oeste e a funda­
ção da COPAGRIL ver: GERK, Amo. COPAGRIL: uma análise do
cooperativismo do Oeste do Paraná. Curitiba, UFPR, Dissertação
(Mestrado em História), 1992.
34Depoimento dc Paulo Selhorst, 52 anos, gravado em 3 dc fevereiro
de 2001, p. 9.
35Depoimento de Orlando Bauduíno dos Santos, 75 anos, gravado em
15defevereirode2001,p. 8.
36Ibidem.
37Depoimento de Paulo Selhorst, 52 anos, gravado em 3 de fevereiro
de 2001, p. 9.
38Idem, p. 12.
39DaMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropolo­
gia social. Rio de Janeiro, Rocco, 2000, p. 77.
40Idem, p. 68.
41Depoimento dc Francisco Oliveira Souza, 70 anos, gravado cm 13 de
março de 2001, p. 6.
42POLLAK, Michael. Memória, esquecimento silêncio. Estudos His­
tóricos. Rio dc Janeiro, CPDOC/FGV, vol. 2, n° 3,1989, p. 5.
43 Depoimento de Neuza Maria de Fátima Neves Oliveira, 48 anos,
gravado em 5 dc março de 2001. p. 4.
44Ibidem.
45Ibidem.
46Idem, p. 10.
47Idem, p. 5.
48Depoimento dc Cosmc Ferreira Gonçalves, 54 anos, gravado cm 24
de abril de 2001, p. 7.
49Idem, p. 8.
S0Idcm, p. 14.

230
51 Depoimento de Aiia Josefina de Souza, 61 anos, gravado em 8 de
março dc 2001, p. 7.
52Depoimento de Liduíno Adelino de Souza, 52 anos, gravado em 5 dc
fevereiro dc 2001, p. 14.
53Idem, p. 15.
54Idem, p. 17.
55Depoimento de Cosme Ferreira Gonçalves, 54 anos, gravado em 2 de
maio de 2001, p. 14.
56Ibidem.
57 Depoimento de Maria José de Souza, 49 anos, gravado em 5 de
fevereiro dc 2001, p. 17-18.
58Depoimento de Cosme Ferreira Gonçalves, 54 anos, gravado cm 2 de
maio de 2001, p. 14.
59Idem, p. 15.
60Ibidem.
61Ibidem.
62Ibidem.
63Idem, p. 15-16.
64Idem, p. 16.
65Depoimento dc Maria Senhora do Nascimento, 53 anos, gravado cm
26 de abril de 2001, p. 26.
66Ibidem.
67Idem, p. 10.
68Ibidem.
69Depoimento de Maria Senhora do Nascimento, 53 anos, gravado em
26 de abril de 2001, p. 11.
70Depoimento de Marizete Dantas dos Santos, 56 anos, gravado em Io
dc maio dc 2001, p. 6.
71Ibidem.
72Ibidem.
73Depoimento de Leopoldina Angélica Lopes, 47 anos, gravado em 15
de fevereiro de 2001, p. 7.
74Depoimento de Maria Senhora do Nascimento, 53 anos, gravado em
26 de abril de 2001, p. 11.
75ZAAR, Miriam Hermi. A produção do espaço agrário: da coloniza­
ção à modernização agrícola e formação do Lago de Itaipu. Casca­
vel, EDUNlGIiSTRp. 116.
76Depoimento dc Paulo Selhorst, 52 anos, gravado cm 3 dc fevereiro
de 2001, p. 10.

231
77 Depoimento de Maria Felipa Encinas, 64 anos, gravado em 14 de
fevereiro de 2001, p. 9.
78Depoimento de Margarida, 49 anos, costureira, gravado em 21 de
fevereiro dc 20Ü1, p. 25.
79Idem, p. 22.
80Idem, p. 24.
81 VON BORSTEL, Clarice Nadir. Aspectos do bilingüismo: alemão/
português em Marechal Cândido Rondon - Paraná - Brasil.
Florianópolis, UFSC, Dissertação (Mestrado em Letras-Linguística),
1992, p. 67. Segundo a autora: “os dialetos maisfalados em Marechal
Cândido Rondon são o thunsrückisch\ ,pomeranos\ e o
lhochdeutsch'. Já o dialeto ‘wstphalich ■e o ‘deutsche-russ' sãofala­
dos por um pequeno grupo de descendentes de alemães. ”
82ELIAS, Norbcrt. op. cit. p. 32.
83Depoimento dc Leopoldina Angélica Lopes, 47 anos, gravado em 15
dc fevereiro dc 2001, p. 8.
84 BURKE, Pcter. A arte da conversação. São Paulo, Editora da Uncsp,
p. 94.
85 Esse depoimento foi colhido na cxccução do Projeto dc Extensão
“(Re) vivendo a Escola: a organização dos acervos documentais do
Colcgio Estadual Eron Domingucs (1968-1998)” , vinculado ao Centro
dc Estudos, Pesquisas c Documentação da América Latina-CEPEDAL,
da UNIOESTE, em convcnio com o Colcgio Estadual Eron Domingues,
sob coordenação desse pesquisador e da ProP. D? Dilma Andrade de
Paula.
86Depoimento de Idalina Guzzoni, 69 anos, gravado em 17 dejunho de
1999, p. 39.
87Idem, p. 20.
“ Ibidem,
89Idem, p. 39.
90Depoimento de Maria Aparecida dc Oliveira, 35 anos, gravado em 26
de abril dc 2001, p. 4.
91Ibidem.
92Depoimento dc Liduíno Adelino de Souza, 52 anos, gravado em 5 de
fevereiro de 2001, p. 6.
93Ibidem.
94Ibidcm.
95Idem, p. 7.
96Ibidem.
97 Depoimento de Maria José de Souza, 49 anos, gravado em 5 de
fevereiro de 2001, p. 4.
98Idem, p. 5.
w Depoimento dc Liduíno Adelino dc Souza. 52 anos. gravado cm 5 dc
fevereiro de 2001, p. 5
100Depoimento dc Maria Aparecida de Oliveira, 35 anos, gravado em
26 de abril de 2001, p. 4.
101Ibidem.
102Idem, p. 5.
105Ibidem.
104Ibidem.
105Ibidem.
106DaMATTA, op. cit., p. 81.
107Depoimento dc Maria Aparecida dc Oliveira, 35 anos, gravado cm
26de abril de 2001, p. 5.
108Depoimento dc Miirizetc Dantas dos Santos. 56 anos, gravado cm
Iodc maio dc 2001, p. 9-10.
109Idem, p. 9.
110Ibidem.
111Idem, p. 10
1,2Depoimento Udilma Lins Wcirich, 44 anos, gravado cm 15 dc feve­
reiro dc 2001, p. 16.
113Ibidem.
1,4Idem, p. 17.
115Ibidem.
116Depoimento de Leopoldina Angélica Lopes, 47 anos, gravado em
15 de fevereiro de 2001, p. 8.
117Depoimento Udilma Lins Weirich, 44 anos, gravado em 15 de feve­
reiro de 2001, p. 16.
118Idem, p. 17.
119Ibidem.
120Ibidem.
121Idem, p. 18.
122Ibidem.
125CIAMPA, op. cit. p. 139.
124Idein, p. 127.
125TODOROV, Tzcvctan. Nós e os Outros. Rio dc Janeiro. Zahar, 1993,
p. 13.

233
C A P ím .o 4

Trabalho e inserção social na fronteira

A chegada à ddade põe aos imigrantes problemas muito mais


delicados do que qualquer deslocação no intenor do inundo
rural: a mudança dc profissão é apenas um aspccto da mudança,
não mais importante do que a alteração do quadro de vida ou
das formas de relações sociais.
Jean-PierreRaison, Enciclopédia Einaudi, 1986.

As memórias do trabalho
Vimos que, a partir da década de 1970, a região do
Extremo-Oeste paranaense foi palco de transformações
econômicas e sociais bastante complcx^ principalmente quando
comparada ao período de ocupação planejada pela Colonizadora
MAR1PA, iniciadonos anos 1950. Neste último capítulo, propõe-
se historicizar, entre as mudanças de maior visibilidade e
importância, algumas ocorridas nos mundos do trabalho e na
vida social da fronteira, em especial as transformações
experimentadas pelos depoentes da pesquisa no pós-1970.
Atenta-se, (le modo especial, para os sujeitos que, entre
outras dimensões do viver, migraram para as pequenas cidades da
região, abandonando o campo e os afazeres cotidianos nas lavouras
de subsistência e arrimo familiar. Ou para os trabalhadores
agregados, parceiros, porcenteiros ou assalariados que
sobreviveram como lavradores desde os tempos da colonização.
Por último, muitos outros sujeitos de vários tempos de chegada,
camponesesque migraramjá na condição detrabalhadoresurbanos.
A bem da verdade, em fins da década de 1960, novos
modos de trabalhar na lavourajá haviamsido estabcleodos, a partir
da implementação de técnicas e maquinários modet nos de cultivo,
especialmente pelos agricultores com melhores condições
econômicas. Importa considerar, entretanto, como essas
transformações foram tratadas na historiografia regional e na
bibliografiaespecializada. Nessa direção, sintetizou Mirian H. Zaar,
ao pensar essa questão pai a Oeste paranaense:
A modernização da agricultura teve um papel fundamental,
ao ‘expulsar’ do campo trabalhadores rurais que se transfor­
maram em mão-de-obra barata nas indústrias, e ao direcionar
a ociíjAiçáo de áreas favoráveis à mecanização agrícola. Coino
resultado desses processos, o movimento migratório inten-
sificou-se; em poucas décadas a população rural urbanizou-
se e a porção ocidental do País foi povoada.1
O conjunto das transformações do sistema produtivo
passou a ser assimcaracterizado, transmutando-se emumconceito
analítico de grande lastro, com o qual se passou a operar análises
econômicas e históricas de toda espécie. Nesse caso, observo
comressalvas, como muitosoutros críticos, o sentidogeneralizador
dessa abordagem das transformações, tendo em vista o caráter
empobrecedor do chão histórico dos processos individuais das
itínerâncias e suas temporalidades. Esses, por sua vez, quando
admitidos, são usados como aportes permeados de perspectivas
economicistas e, por certo, com raras notações críticas.
No plano teórico, a compreensão desses processos
resulta, em muitos casos, em rasa perspectiva, de reluzente
linearidade, já que postula, implicitamente, uma quase certa
inexorabilidade de tais processos. Toma-se, desse modo, uma
justificativa sistêmica e pouco palpável, desprovida de
historicidade, desatenta para os agentes concretos dessas
transformações.
O campo crítico das teorias da modernização,
intersecionado, sobretudo, pelo corpo historiográfico e empírico
da pesquisa, teve nas análises de E. P. Thompson a abertura de
sendas de percepção e uma motivação especial de investigação.
Como observou o autor:

236
A construção de conceitos históricos não é, evidentemente,
um privilégio especial peculiar ao materialismo histórico. Tais
conceitos surgem dentro do discurso comum dos historia­
dores, ou são desenvolvidos nas disciplinas adjacentes.2
Nesses termos, os conceitos, entre os quais incluímos o
de modernização agrícola:
Que são generalizados pela lógica a partir de muitos exem­
plos, são confrontados com as evidências, não tanto como
‘modelos’, mas antes como ‘expectativas’. Não impõem uma
regra, mas apressam e facilitam a indagação das evidências,
embora se verifique com freqüência que cada caso se afasta
da regra, sob este ou aquele aspecto.3
O tema da modernização agrícola, que tem predominado
como conceito articulador da compreensão historiográfica sobre a
região no pós-1970, mostra-se largamente comprometido com os
horizontesbipolanes extremos- positivos e negativos- do progresso
na agricultura nas últimas três décadas. Uma vez mais recorramos
a Thompson:
O “progresso” é um conceito sem significado ou pior, quan­
do imputado como um atributo ao passado (e essas atribui­
ções podem ser denunciadas, com razão, como ‘historicistas’),
que só pode adquirir significado a partir de uma determinada
posição no presente, uma posição de valor em busca de sua
própria genealogia. Essas genealogias existem, nas evidên­
cias: houve homens e mulheres de honra, coragem e “previ­
são” , e houve movimentos históricos informados por essas
qualidades.4
Uma apreensão hermética do tema da modernização da
agricultura tem, por vezes, dificultado as discussões críticas sobre
as políticas autoritárias do regime militar na implementação das
prioridades produtivas do capital. Além disso, realça as nuvens
escuras de seus desdobramentos mais danosos e silenciaos conflitos
vividos durante o processo de implementação. Por vezes, dificulta
a formulação de novas questões e problemas para a compreensão
da heterogeneidade das experiências e da atribuição de significados
dos sujeitos acerca da rejeição, da reelaboração, da assimilação
ou da invenção de novos fazeres.
Nas recordações dos depoentes, as trajetórias dos oficios
e os modos de trabalhar destacaram-se como o mais importante
veio narrativo dos trabalhos da memória. Entre perdas e
estranhamentos diversos vividos, as memórias do trabalho insistem
nos sentidos heterogêneos do fazer-sedos trabalhadores enquanto
classe, na mesma medida em que se intersecionaram para a
constituição da nova paisagemsocial desseespaço. Emtomo dessa
dimensão a que recorremas memórias, EcléaBosi, emseu trabalho
com“lembranças de velhos”, notou com sensibilidade que:
O trabalho manual, mecânico, intelectual, ocupou boa parte
da vida dos nossos entrevistados. Ele tem, para cada um
deles, uma dupla significação: 1) Envolve uma série de movi­
mentos do corpo penetrando fundamente na vida psicológi­
ca. Há o período do adestramento, cheio de exigências e re­
ceios; depois, uma longa fase de práticas, que se acaba con­
fundindo com o próprio cotidiano do indivíduo adulto. 2)
Simultaneamente com seu caráter corpóreo, subjetivo, o tra­
balho significa a inserção obrigatória do sujeito no sistema
das relações econômicas e sociais. Ele é um emprego, não só
como fonte salarial, mas também lugar na hierarquia de uma
sociedade feita de classes e de grupos de status. Temos,
portanto, de atender a essas duas dimensões do trabalho:
sua repercussão no tempo subjetivo do entrevistado e sua
realidade objetiva no interior da estrutura capitalista.5
Em torno das discussões sobre o trabalho e os
trabalhadores é destaque o caminho teórico-metodológico
defendidopor HeloisadeFaria Cruz, acerca dos modos detrabalhar
e seus significados para novas leituras da realidade presente. A
autora aponta para a riqueza das possibilidades críticas quando
dedicadas à compreensão das relações sociais e as transformações

238
ampliadas dos mundos do trabalho na contemporaneidade. Como
sugeriua autora:
No campo tcmático das relações entre Cultura e Trabalho,
destacam-se preocupações com os estudos que, colocando
em evidência os espaços e modos de trabalhar e as práticas e
tradições dos trabalhadores nas cidades, promovem a refle­
xão critica sobre os processos que, na atualidade, buscam
produzir a invisibilidade social da pobreza e da exclusão e do
consenso neolibcral que estabelecem a desigualdade como
paradigma do relacionamento social e de organização da do­
minação. Trata-se de desenvolver a pesquisa sobre os faze-
res e os viveres dos trabalhadores, dimensões da sua vida
material, suas práticas e modos dc trabalhar, suas tradições,
crenças e valores, as instituições e organizações políticas da
classe, como campo inspirador da critica àqueles paradigmas.6
As discussões aludidas mapeiama inspiração e o lugar da
discussão que aqui se pretende tecer. Tendo em vista o sentido
ideologizado evocado pela categoria trabalho, é preciso ressaltar
que não se trata de uma referência enquanto parte e natureza
disciplinar da lógica capitalista dominante ou mesmo mera força
motriz da sobrevivência material. A proposta desse caminho é
investigar os modos de trabalhar, em especial o modo como são
relembrados. Comisso, pretende-se apreender os fazereshistóricos
dastrajetórias dos sujeitosdepoentes, compreendidos como cultura
e experiência social.
Na trilha dessas notações são de grande inspiração as
preocupações de Déa Ribeiro Fenelon, autora que se destaca por
sua contribuiçãono campo da históriasocial do Brasil. Nas palavras
da historiadora:
E nesse campo que queremos também redefinir nossas no­
ções de lutas de classes, para perceber que esta cultura nada
mais e do que o modo dc vida das classes trabalhadoras e
que aí sc define o campo dc forças, cm embates constantes,
tornando a cultura assim entendida, o espaço privilegiado

239
para o entendimento das contradições colocadas pelo pro­
cesso. E o interesse nesta abordagem não passa por concep­
ções de descrever ou consiatar como se desenvolve esta
vida e se desenrolam estas lutas, mas pr;r: <; por entender o
como c porque isto acontece, recuperanc cuiimentos, va­
lores, sensações de perda e necessidade de reconstrução e
sobrevivência para entender o constante fazer-se e refazer-
se das classes trabalhadoras.7
Tendotraçado as coordenadas da caminhada, asam como
consciente do conjunto expressivamente fragmentado, porémrico,
dos depoimentos orais produzidos pela pesquisa, põe-se à frente
o desafiode dialogarcomas memórias do trabalho e suasdimensões
de importância para processo social vivido dos migrantes. Mais
importante, talvez, e especialmente, pretende se atentar para os
trabalhos da memória como intervenção e significação das
transformações mais amplas dos mundos do trabalho da fronteira,
como de suas lutas de inserção e sobrevivência social dos sujeitos
investigados.

Pracinha e a importância da lembrança


Nas lembranças dos trabalhadores depoentes sãovibrantes
as narrativas dos ofícios e modos de trabalhar trazidos do passado
das itinerâncias e refeitos no presente. Um entre os depoimentos, o
de Pracinha, mostrou-se especialmente rico pela maneira como
recordou os modos de trabalhar ainda nos tempos da ocupação,
quando se praticava o cultivo de hortelã, nos períodos de 1966 a
1972no meio rural deAssis Chateaubriande, até 1979 emMarechal
Cândido Rondon.8De uma forma narrativa ininterrupta, e deveras
extensa, merece atenção o tom de singularidade com que
rememorou sua vida de e no trabalho. Especialmente quando
começou a trabalhar como arrendatário nos plantios de hortelã da
região, dando relevo a esse moinonto do passado como uma
espécie de marco de seu aprendizado:

240
Plantio de hortelã ele é desse tipo: você entra no mato... que
hortelã ele quer terra forte e nova. Então você entra no mato,
derruba, queima, daí você vai dcscoivarar. O que é dcscoivarar
pra quem não entende? Porque quando você queima uma
derrubada dc mata, então sobra muitos galho. Esses galhos
eles impede você caminhar bem na lavoura. Então, você des-
galha tudo que sobra depois do fogo. Inclusive, os galho
fininho você acaba queimando dc novo e os melhor você já
corta ejá deixa empilhado. Faz os monte, empilha, pra servir
pra alambicar mesmo o hortelã depois. Então, dai a terra ta
preparada, você descoivarou, destocou... Que naquela épo­
ca nós destocava de enxada, hoje destoca com trator, né?
Então, ai você planta a hortelã. Hortelã é o seguinte: é planta­
do em mudas, né? É plantado em mudas e então você só
pode plantar os dias de chuva, com a terra bem molhada. A
terra estando bem molhada você... Ou com o enxadão ou
então com... Nós tinha tipo uma cavadeira própria pra isso.
Então você bate a cavadeira e então você dá um balanço nela
pra lá e pra cá, tira ela, fica uma covazinha. Então ali você põe
a muda dc hortelã, aperta e vai pra frente. Então ele é planta­
do, no caso, de metro em metro. Pode plantar de carreira,
metro em metro quadrado, no caso. E daí, ele debaixo do chão
ele vai se criando as raiz e daquelas raiz dele ela penetra pro
chão afora. Elas se ajunta dum pc pro outro as raiz e brota por
cima. Inclusive, a própria muda você planta, vocc pode u tili­
zar ela até pra produzir o óleo depois! Quando ela floresce,
ela cresce, floresce, aí você pega e corta. No se cortar ela dá
força pras raízes pra vim a brotaçao das raiz que já ta cruzan­
do uma com as outra embaixo do chão. E daí então, você leva
pro alambique... E daí, então, o alambique é o seguinte: é uma
pipa, é uma pipa... As vez tem alambique de cachaça que é
aquelas pipa idêntica. Então se leva a rama... Se você tem
caminhão... A gente deve ter por aí, e com o tempo eu quero
pegar, e deve ter algum desses binóculo, nós tirava fotogra­
fia que a gente tajunto com o caminhão carregado de rama de
hortelã e com os peão cm cima. E tem alguns que nós tiremos
foto no alambique. Ele funcionava dc unn forma seguinte:
com a uma pipa dessas dc aiambique de cachaça, então, você
joga a rama dentro... Vocc joga a rama dentro... Joga a rama

241
dentro c você pisa. Só que tem uma fornalha de uma caldeira
com água e a fornalha debaixo. Ela é tocada a fogo. Então
você põe fogo debaixo daquela caldeira cheia de água, aque­
la água esquenta, o vapor entra dentro daquela pipa com
rama que a gente pisou bastante. Inclusive, dá uma friagem
quando você ta socando a pipa de hortelã, uma friagem bem
esquisita do hortelã mesmo. Mas aí depois que ela ta
socadinha, daí vocc fecha ela, é fechado com uma tampa pra
não vazar ar em volta. Então com a pressão do fogo que
entra, aquela pressão, daí ele começa a evaporar o óleo. Só
que ele vapora porque você sabe? A pressão, ela debaixo pra
cima, pode cuidar, uma tampa que você põe numa chaleira,
ela cria água né? Aquele vapor que vira água. Então, o óleo
de hortelã, ele mistura com aquele vapor. Só que dali, pelo
tampão... Tem um tampão da pipa, aquele vapor ele empurra o
óleo pra cima, com vapor com água e tudo. Daí ele passa por
um processo, desce num processo que nós chamamos ser­
pentina. Dentro de uma caixa d’água e aquela serpentina, ela
é assim: é uns cano de cobre e dentro daquela caixa d’água.
Então aquele óleo e a aquela água junto ele passa dentro
daqueles cano da serpentina, sabe pra que? Pra esfriar. Daí
ele cai junto dum tamborzinho, tem uma biquinha. Ele pas­
sando por aquele processo de serpentina, ele vai num outro
cano, sai num outro cano. Vai numa tomerazinha e cai dentro
dum latão ou qualquer coisa que você quer por lá, que possa,
que cai dentro. Só que o óleo de hortelã ele não mistura com
a água, ele ta sempre por cima, entendeu? Então ele ta sempre
por cima. Então você quando corre tudo o óleo, que aquele
tambor... Tem uma biquinha que a água vai saindo fora, fica
um tanto da água ali dentro. Mais, partes vai saindo fora
porque senão o óleo ele acaba... Vai entornar por cima do
tambor. Então pra num acontecer isso, ele tem uma altura, tem
uma biquinha que ele despacha a água. (...) E, só a água. O
óleo, você vê que nem banha no caso, né. (...) E daí então,
quando terminou, que você nota pela aquela biquinha, você
nota, você pega um copinho e daí você vê que o que ta
saindo lá da bica já ta ficando só em água, que já num ta
vindo quase óleo. É que ta no ponto de você jogar aquele
bagaço fora. E daí então, você naquele tambor, depois que

242
correu todo aquele óleo daquela pipa você separa o óleo só.
Já leva prum tambor de duzentos litros. Sempre tinha isso
nos alambique pra ponhar o óleo. E ai cêjá tirava a água dele,
já passava só o óleo pro tambor, do depósito dc óleo mesmo.
E daíjá partia pra descarregar aquela pipa né, então, debaixo
daquela pipa tem um carrinho, um carrinho de ferro. Você
ergue a pipa pra cima. Depois que ta pronta fica o queijo, nós
fala o queijo, fica aquele queijo alto, então o carrinho...(...) O
carrinho já ta ali debaixo, que ela já c apoiada em cima, dai
vocêjá solta ele por uma barranccira, que esse alambique já c
feito assim tipo uma grota, assim, pra despachar aquele ba­
gaço que c muito nc. Daí despacha aquele c... Vbcc trabalha
com dois carrinho. Lá dc vez em quando tem dois lá que tão
descarregando aquele queijo que se fala que é o bagaço do
hortelã, entãojá tem outros, já coloca outro carrinho ejá vai...
(...) Todo o óleo ele cozinha e evapora tudo o óleo. Então é
um processo assim, vamos dizer assim, bem simples, mas pra
quem não conhece, nunca viu, c importante cara!.9
Há de se notar, entre os sentidos mais aparentes, a riqueza
do relato dos modos de trabalhar. E contumaz, nesse caso, perceber
a atribuição de importância que empenhou na rememoração de
taisprocessos. O depoimento é estruturado emtomo de uma lógica
particular e única de interatividade, onde depoente e entrevistador
adquirempapéis sociais especialmente representativos.
Desde o início, Pracinha atribuiu muita importância à
solicitação feita por esse entrevistador para esclarecer sobre os
antigos modos de trabalhar nos plantios de hortelã Essa “é uma
boapergunta! Porquehojeaqui tadifidl pravocê derepente entender
como é que é o... plantio de hortelã”.10Anarrativa incontida, nesse
caso, é reveladoraefunciona, talvez, como umcontra-esquedmento,
ao qual imprimiu uma entonação crescente e ininterrupta.
Pracinha enfrentoucertadificuldadedefazerseuinterlocutor
entender tais modos de trabalhar. Por certo, o cultivo da hortelã
não foi a atividade agrícola e econômica mais importante da região
no período, mas compareceu na listagementre as mais importantes

243
desenvolvidas entre os anos 1975 e 1978, ao lado das culturas da
soja, trigo, milho, arroz e feijão, lembrados emordempelaextensão
territorial da área plantada, exceto o feijão, a menos importante
dessas culturas." As menções ao cultivo da hortelã e aos seus
trabalhadores são pontuais nos estudos acadêmicos e nas memórias
locais. De tão soterrados, “hoje aqui ta difícil pra você de repente
entender”, como atentou Pracinha. Por isso, reconstituiu com
eloqüente riqueza de detalhes cada procedimento do antigo ofício
hortelaneiro. Um a um, os movimentos, os gestos e as tarefas
rotineiras, que aprendeu em 1966 quando chegou de Minas, são
revelados ao pesquisador, considerado pelo depoente um leigo ou
desinformado dos acontecimentos passados. Sua narrativa é
marcadamente didática e trata de um saber guardado, esquecido e
ignorado. A entrevista, nesse sentido, opera como um reencontro
de sentidos perdidos e agora, talvez, reencontrados pela atribuição
deimportânciaà sua61a Subliminaimente, pareceatribuir significado
especial ao domínio completo do processo produtivo, perdido com
as transformações que experimentou.
O passado itinerante e os estranhamentos vividos,
intersecionados com a lembrança do antigo oficio mostraram-se,
pois, “um processo assim, vamos dizer assim, bem simples, mas
pra quemnão conhece, nuncaviu, é importante cara!”. O tom forte
e alerta da narrativa consistiu, assim se pode inferir, num sentido
político de mensuração de perdas não abertamente assumidas. Em
outras palavras, mostrou-se consciente da realidade presente, cujos
sonhose expectativas da migraçãoforamtransformados. Até mesmo
o oficio de lavrador, que aprendeu com a famílianas roças de café
nos estados de Minas Gerais e Espirito Santo, já ficou pra trás há
algumtempo em sua trajetória.
A estrutura do depoimento evoca uma outra questão
importante. Quando trabalhou no cultivo de hortelã no Paraná, o
fezcomo agricultor meeiro. Sua memória, entretanto, não revelou

244
essa inserção subalterna no sistema produtivo da hortelã, que
objetivava atender as demandas de algumas empresasjaponesas
que fizeram na região a sua comercialização. Pelo contrário, ao
ressaltar a importância do resgate daquele processo produtivo,
pareceapresentar-se como sujeito ativo de umtrabalho socialmente
relevante. Em sua narrativa, destacou-seuma atenção para a divisão
social do trabalho em tomo dessas atividades, ajudando-nos a
compreender, em parte, os sentidos didático - e político de sua
lembrança, já que “vamos dizer assim, porque o alemão, a origem
alemão, eles não mexia com a lavoura de hortelã. Só que eles
também dependia do serviço braçal nosso na colheita do milho,
que era tudo mesmo braçal na época”.12
No período em questão, o cultivo da hortelã, entretanto,
não se constituía na única fonte de subsistência para esses
trabalhadores percenteiros. Segundo lembrouPracinha:
Então nós, o período que nós tinha uma folga, nós trabalha­
va por dia pra eles, ganhando uns trocado por dia. Colhendo
milho, colhendo soja, de repente época de plantação. Então,
às vezes a gente tinha folga no nosso, porque o hortelã é o
seguinte: três em três meses é colhido, mas a gente limpava,
carpia a lavoura, a vez nesses três mês, duas, até três vezes.
Mas como ele é uma lavoura que fechava toda, ele não dava
muita mão-de-obra pra limpar. Então, você fazia catação, como
você faz no soja quando ta fechado, então nós fazia no hor­
telã e isso era rápido. E naqueles período dc folga nós traba­
lhava pros alemães, melhor dizendo, que a maioria de origem
alemão e nós trabalhava pra eles por dia.13
Alémda renda proveniente da hortelã, esses trabalhadores
eramvolantes nas plantações dos agricultores proprietários mais
antigos no lugar. Observa-se, no relato, que a modernização da
agricultora não foi assimilada, quanto menos implementada, do dia
para noite. No final da década de 1970, conforme evidenciou
Pracinha, os agricultores recorriam à mão-de-obra sazonal dos
que migrarampara a região.14

245
De outra maneira, e por suavez curiosa, a lembrança e\w;
e revigora os significados do oficio de agricultor e os seus modos
de trabalhar, entre eles as diversas atividades e papéis
desempenhados na hierarquiada atividade agrícola, bemcomo os
resultados econômicos obtidos. As relações como proprietário da
terra para quem trabalhava Pracinha não são abertamente
mensuradas. Nesse caso, a bemdaverdade, a recordação alimenta-
se muito mais das imagens de fartura e do ganho financeiro,
propiciados pelo cultivo da hortelã:
Então, porque esses japoneses é que tinha dinheiro. Porque
na época do hortelã ninguém dava cheque, na época do hor­
telã era dinheiro! O cara ia lá no alambique, então chegava lá,
quantos quilo tivesse, ele abria uma pasta e desfolhava... Era
assim... Então foi uma coisa que... que foi bom! Foi bastante
bom. Hoje já num... Você hoje já... praticameiuc por aqui já
nem existe, então...15
Quando interrogado acerca do declínio do cultivo da
hortelã, Pracinlia completou:
Pelo seguinte: deixou de existir porque as terra foi tudo de­
vastada, hortelã quer terra nova. (...) Ele produz, mas ele pro­
duz mal. Então ele não rende, porque ele quer terra forte, terra
pouco mexida. E hoje com... Até porque esta questão de esti­
agem também um pouco, então deixou de existir, não com­
pensa, porque ele morre fácil também, num campo aberto
assim sabe, ele morre fácil, porque foi feitos testes né, a terra
lavrada, plantar hortelã, não funcionou, porque o hortelã,
mesmo nas época que nós cheguemos ali em Assis, tinha
lavoura de hortelã que ela durava cinco, seis ano. E agora,
ultimamente, dois ano já tava...16
Por vezes, Pracinha fez notar em seu depoimento que o
frescor do solo recém-desmatado constituía-se na condição
imprescindível para o plantioe desenvolvimento da hortelã cultivada
em grande escala. Apesar de denotar a responsabilidade desse
processo para a degradação ainbiental, não deu valoração negativa

246
para esse tipo de exploração agrícola.
Na recordação dos modos de trabalhar da época, outras
dimensões importantes entraram em cena, entre elas um dado
conhecimento do ciclo da natureza, um saber acumulado acerca
do alambique desse óleo vegetal, assimcomo a presença de outros
agentes e interesses externos, que exploravameconomicamente a
região. Entre eles, os quenão sobreviviamunicamente das atividades
de cultivo de cereaisdiversos que nesse lugar erampredominantes.
Findo o contrato de parceria, Pracinha e sua família
continuaram a trabalhar na terra, mas uma mudança importante
frisou suamemória:
E dai então a gente veio trabalhar na Fazenda [nome omitido
pelo pesquisador]. Só que na Fazenda... já foi diferente, eu
fui trabalhar com lavoura de soja, milho, gado. Eu até tinha
me esquecido de dizer sobre isso, é uma parte até importante!
Que a Fazenda [nome omitido pelo pesquisador] nós traba­
lhou com milho, soja, as lavouras dc todas as espécies, me­
nos com o hortelã c ainda com a criação dc gado. Só que ali
cu não vim trabalhar pra assim, pra mim mesmo, ali foi quan­
do eu comecei trabalhar dc empregado nessa fazenda. E...
Quando eu comecei a trabalhar de empregado. Então a gente
trabalhava nesse ramo, de lavoura e de gado, a gente mexia
com gado e mexia com a lavoura. Então ali eu fiquei também
uns... fiquei oito anos na fazenda.17
E importante notar como Pracinha narrou essa mudança
A narrativa da trajetóriade vida, como emtodo o seu depoimento,
confunde-se com a trajetória do trabalho. Contudo, no tempo em
quetrabalhavano cultivo dahortelã, embora não sendoproprietário
de sua lavoura, mas arrendatário, os modos detrabalhar lembrados
tinham para ele um sentido de liberdade. Já o novo trabalho
assalariado na fazenda de soja e gado é matizado por ele como
uma perda, “que ali eu nãovimtrabalhar pra assim, pra mimmesmo,
ali foi quando eu comecei trabalhar de empregado nessafazenda”.
O trabalho não foi empreendido no minifúndio de uma possível

247
chácara, sítio ou colônia, mas numa fazenda que, conforme narrou,
ocupavauma considerável extensão deterra e empregava diversos
outros trabalhadores assalariados O mito de soberania da pequena
propriedade minifundiaria como dimensão da estruturafundiária e
produtiva no âmbito regional aparece esgarçado pela memória
individual de Pracinha. Não se pressupõe quantificá-las, mas
perceber dimensões que sejuntam ao feixe das singularidades
perdidas entregeneralizações.
Enquanto a referência aos modos de trabalhar da
experiência anterior foi afetiva e permeada de simbolismos, o
trabalho em sua nova modalidade de assalariado é relembrado
como tempo contabilizado, marcado, numerado, uma vez que
“então ali, eu fiquei também uns... fiquei oito anos na fazenda”.
O cotidiano nessa fazenda onde trabalhou como
assalariado é silenciado por ele. Em compensação, têm prioridade
a tensão com o fazendeiro patrão:
Eu morava na sede da fazenda, eu morava um pouco retirado,
nos fundos da fazenda e lá não tinha luz e eu lá trabalhava.
Só tinha geladeira a gás, fogão a gás, então era bem sofrido.
E só que aí eu pedi pro meu patrão pra... Porque que ele não
puxava a luz pra mim. Só que a distância da fazenda até na
minha casa daria mais de 700 metros. E ele falava que ia ficar
muito caro, mas se por acaso passasse a rede de luz em ou­
tros vizinho que tinha perto de mim, que é outros colono, no
caso, e existe hoje lá ainda. E então aí ia ficar a questão de 80,
100 metros e então daí ia puxar luz pra mim também.18
Para o desapontamento de Pracinha:
Só que no decorrer do tempo, a luz veio pra aqueles vizinho,
aqueles colono, então ficou perto pra mim, então eu comecei
a pedir pra ele. Eu comecei a pedir pra ele se ele ia colocar a
luz pra mim. Ele disse: ‘vamos ver depois da colheita e tal,
tal’. Aí passava a colheita... Nada! Aí eu tornava falar com
ele, ele dizia a mesma coisa: ‘na próxima agora, colheita, eu
acho que vai dar tudo certo aí eu vou puxar a luz pra você’. E

24 8
daí passava mais uma colheita c dava boa as vez até. Teve
colheitas ruim, teve colheitas boas e ele nunca então puxou...
Fez dc conta assim que, eujá tava lá em baixo mesmo. Então,
dali ele: ‘não vai sair, então’? Na época meus filho tudo pe­
queno ainda e você sabe quando a gente...19
A reivindicação pela instalação da rede de luz elétrica em
sua casa ergueu uma trincheira contra o fazendeiro. A eletrificação
rural passou a ser uma condição básica para a sobrevivência de
sua família no campo e se justificava, entre outras coisas, na
observação daimplementação dessebeneficioparaos trabalhadores
aviziiiliados, razão pelaqual passou a significarumdireito. Contudo,
mais do que o próprio conforto almejado, sua demanda mostrou-
se comprometida com a dignidade de sua reivindicação e a
desconfiança que passou a atribuir ao patrão, muito mais do que
propriamente a razão de seu objeto. Em seu diálogo reconstituiu
comrigor a sua performance diante do conflito:
Então aí foi indo, a gente ficou... Você vê. Foi bastante, a
gente ficou lá com eles uns oito anos na fazenda junto com
eles trabalhando, um dia eu resolvi. Então falei assim: —
Olha, o sciilior não vai colocar luz pra mim? — Não vou, por
enquanto não posso, só na próxima safra! —Então é o se­
guinte: eu vou sair! Só que eu falei assim com ele que eu ia
sair. Ele calculou que era só uma conversa. Mas, naquelas
altura, quando eu falei com ele, eujá tinha arrumado serviço
em Novo Horizonte.20
E possível inferir que a eletrificação rural, a qual se atribui
como parte das mudanças implementadas no campo, inclui-se
como pautadas tensões \ividas pelostrabalhadoresrurais, instituindo
novos valores. Atensão travada com o fazendeiro emergiu como
um trabalho da memória de sentidos estratégicos. Por um lado,
teceuuma leitura conscientedo logro do patrão e, por outro, atribuiu
importância ao modo como planejou agir no embate.
Atensão pareceter marcado profundamente suatrajetória,
pois ocupou váriaspáginas de transcriçãode seudepoimento. Como

249
evidenciou Pracinha, buscou fazer acreditar o fazendeiro de que
sua ameaça de demissão“era só uma conversa”, quando naverdade
já havia conseguido outro trabalho, tomando-o mais tranqüilo e
desimpedido para suatomada de decisão definitiva. Mais umavez,
ainda que numa posição subordinada, soi Pracinha não renuncia a
formular estratégias e a agir com certo controle da situação.
O domínio narrativo das tensões passadas, como vemos,
permanece marcando os compassos de sua luta no presente.
Continuou, assim, Pradnha:
Daí nós fizemos o acerto, me lembro até como se fosse on­
tem. Nesses oito anos, eu tinha oito anos de carteira assina­
da. Mas nessa dita fazenda... Então a gente na época que eu
pedi os 30... Eu... Porque nós sempre fomos assim de acredi­
tar no próximo. E a gente veio na época no sindicato rural,
dos trabalhador rural, então pra mim ver o que eu tinha direi­
to na cpoca. Inclusive cu tenho essa papelama guardado
hoje. Aí o rapaz... Só que naquele dia eu não trouxe minha
carteira. Aí cu chcguei c falei... Naquela cpoca era o [omitido
pelo pesquisador] que trabalhava no sindicato. Aí cu falei
pro [omitido pelo pesquisador]: — Ó, cu quero que vocc faz
a conta do meu direito. Que eu pedi os 30, os 30 dia. Então eu
trabalho 15 dia, 15 dia é pra mim me virar. Ele pegou e falou
comigo: — Se for do jeito que você ta falando comigo, então
você tem tanto pra receber, só que eu quero que você traga
sua carteira de trabalho, porque você não trouxe, você traz
pra mim ver. Que eu tô falando do jeito que você me conta,
que você trabalhou oito anos e não recebeu nada. Então cu
quero ver sua carteira, que eu tô te falando do jeito que você
me explicou. Agora a realidade é quando você traz a carteira!
Na outra semana eu peguei e trouxe a carteira, quando ele
abriu a carteira ele falou comigo, falou olha: — Ó, aqui já tem
um problema! Você tem direito daqui pra frente, pra trás você
já recebeu! Eu falei assim: — Mas eu não recebi nada! —
Entao Mas aqui consta que até mudou de firma! — Mas cu
tô fazendo os mesmo serviço, nos mesmo lugar! Daí ele falou
assim: — Mas aqui na carteira consta, que pra acertar você
só tem daqui pra frente! Aí ele falou assim: — Até voccs

250
descobrir que o focinho de porco não é tomada vocês vão
sofrer muito. Porque vocês assinam os papel, às vezes até em
branco, acreditando nos outros. E daí até acha que os outros
pode ser que nem você.21
A experiência na condição de trabalhador assalariado
mostrou-se traumática e, por conseguinte, emblemática para esse
depoente. Pracinha mostrou-se emocionalmente aturdido com as
regras desonestas daquelejogo desigual, ganhando ênfase na sua
lembrança. A perda dos direitos referentes ao seu tempo de serviço
como valor em dinheiro é diminuta se comparada ao sentido da
decepção pessoal motivada pela má-fé do patrão. É interessante
notar, pois, como reestruturou a vida de trabalho em face dessa
perda:
Até porque eu decidi uma coisa: eu deveria ter saído antes.
Pelo que veio me acontecendo dali pra cá, eu deveria de ter
saído antes. Eu não deveria ter ficado os oito ano, deveria ter
saído bem antes. Talvez eu tinha acertado, mas é que eu
também eu também tinha medo, minhas criança tudo peque­
na. Então, você imagina muito, quando você ta empregado.
Se você não ganha muito, mas você, você tem os filho pra
tratar, tem família pra você sustentar Então tem um monte de
coisa, você tem que pensar antes de tomar certa decisão, tem
que pensar bem pra não arrepender depois. Só que eu, eu fui
invertido, que as vez tem muitos que arrepende porque pediu
a conta em determinado tempo. Eu não deveria ter pedido,
alguns imagina. Tem muitos que é assim. Eu não! Eu, depois
de tudo, eu arrependi porque eu não pedi a conta antes. Uns
dois anos pelo menos, antes. Pra mim tinha dado mais certo.
Só que eu não podia adivinhar, eu tinha medo. E eles achava
que eu não ia nem... Nunca sair de lá, porque eu tinha os filho
e ia acabar ficar lá, dependendo deles...22
A decisão pelo pedido de demissão, que insistiu ser muito
corajosatendo emvista as obrigações de pai defkmília, foi avaliada
nopresente como umaaçãodeliberdadetardia, especialmentese
O rompimento com os laços de dependência do patrão é
recordado não como uma ação padronizada que observava como
comumentreos trabalhadores que compartilhavamdo seu convívio,
já que “eu não deveria ter pedido [a demissão], alguns imagina”.
Traçou, assim, sua marcação distintiva - e política - naqueles
mundos do trabalho, fazendo emergir convertida num sentido
protagonista, mesmo porque“tem muitos que é assim. Eu não!”A
distinção que operou a posição dividida entre suatrajetória e a dos
demais trabalhadores tem um sentido importante que precisa ser
levado emconta, especialmenteporque acenou para a multiplicidnde
de ações individuaistomadas ou não naqueles mundos do trabalho.
A narração incontida de Pracinha continuou pedindo para
não ser recortada, fazendo das memórias do trabalho a razão de
sua dignidade e da sua essência humana. Nessa senda continuou a
mostrar novos sentidos e outras tensões:
£ aí então quando eu tomei a decisão, na época, aí então eu
saí. Peguei direitinho o mínimo que eu tinha, que era os quatro
ano, em vez de oito e ai vim pra Novo Horizonte. Novo Hori­
zonte, na colônia, daí eu fui trabalhar por conta. (...) Aí era
porcentagem, aí eu não dava meia Agente fez lá um contratinho
veibal, como se diz, então, o mínimo que era pra uuiu ficar era
uns três anos lá nesse lugar. Só que eu cheguei lá, eu peguei
uns dois e meio alqueire dc terra que era muito inçada. Quan­
do se fala em inço eu acho que você sabe, que é muito
empraguejada, é terra que não é bem cuidada, então o inço.
(...) É, muito mato! E eu peguei uns dois alqueire e meio de
terra, assim, bastante suja, que cu tinha que desempraguejar,
e peguei na épocajá tinha um destocado, tinha uns murundus,
então peguei aquilo pra plantar também e pequei um pasto.
Ai eu tinha umas duas vaca, ou três, umas cabeça de porco, lá
na fazenda tinha um lugarzinho que eu criava, daí então umas
galinha. Só que então eu fiz um contratinho verbal com o dono
dessa terra cm Novo Horizonte.23
O novo trabalho foi conquistado comjúbilo, pois “daí eu
fui trabalhar por conta”. Pracinha retomou seu passado de

252
trabalhador de parceria, talvez imaginando reencontrar e reviver
seu passado de hortelaneiro:
Daí eu fiz um conlratinho verbal com ele [proprietário da ter­
ra], que eu ia trazer as minhas cabccinha de gado, meus
porquinho. Eu ia trazer minhas galinha e ali, quando eu me
instalasse ali. Eu tinha espaço pra criar mais gado do que eu
tinha. Então, eu ia comprar umas três vaca leiteira e umas
galinha poedeira, mais umas duas porca... Eu já no primeiro
ano, eu ia por lá, eu ia cuidar o meu e o dele. Só que aí eu tinha
que entregar o leite pra ele, pro gasto dele. (...) Ovos, também
pra ele, não pra ele vender, pro gasto dele, que eles era em
quatro [pessoasj. £ ovos e banha. (...) É, isso eu tinha que
cnl regar pra ele, só que ele ia colocar esse animais a mais lá.
E o que sobrasse, então, vender como os leiteiro vende hoje
aqui. Mas, aconteceu o seguinte: daquilo que eu tinha, que
eu trouxe de lá... eu tinha que tirar pra ele.24
Emborativessetrabailiado como assalariadoemsuaúltima
ocupação, Pracinhamanteveos laços afetivoscomos antigos modos
de trabalhar, especialmente por conseguir conciliar suas tarefas
rotineiras obrigatórias na fazenda com a criação de alguns animais
para provimento de came, leite e banha para a subsistência familiar.
Na fazenda, onde tinha trabalhado anteriormente, “aí eu criei umas
duasvaca, umas cabeça de porco. Lá nafazendatinhaumluganzinho
que eu criava daí uma galinha.”25
A referência ao contrato verbal de trabalho no diminutivo
(“contratinho”) confere um certo valor afetivo. Há uma pressão
contestadora firmada no retomo à antiga maneira de contratação
detrabalho pelo acordo verbal. Essa dimensão emerge num sentido
subliminar e somente pode ser entendida quando observada na
constituição do relato como um todo. O contrato de trabalho
anterior, feito segundo as regularidades da lei pelo registrona carteira
de trabalho, não foi suficiente para garantir seus direitos. Já as
cláusulas do “contratinho verbal” acordadas com o proprietário da
terra, assim como o desejo confesso do retomo ao trabalho

253
arrendatárioda terra, reiteraramsentidos de liberdade, que Pracinha
mostrou construirna experimentação daquelesmundosdo trabalho
emtransformação. Contudo, no campo dessas experimentações
lamentouPracinhaviver a sua derradeiradecepção, a que o levaria,
finalmente, a mudar-se para a cidade. Nos próprios termos
acordados no “contratinhoverbal”:
É, isso eu tinha que entregar pra ele [a produção]. Só que ele
ia colocar esses animais a mais lá. E o que sobrasse, então,
vender como os leiteiro vende hoje aqui. Mas, aconteceu o
seguinte: daquilo que eu tinha, que eu trouxe de lá... eu tinha
que tirar pra ele. Só que passou um ano ele não comprou
nenhuma cabeça de nada e eu tinha que tirar do meu pra
poder levar pra ele. (...) E levar na casa! É, ainda levar na casa!
Então, passou-se um ano, ele não comprou nada, aí eu falei
pra minha esposa assim: acho que nós vamos ir pra cidade!
Daí, ela falou assim: mas eu acho que não vai dar certo nós na
cidade não! Eu falei assim: cu tô disposto! Aí pelo seguinte:
de repente eu estou nessa entrevista e, muitas vezes eu até
me comprometo, mas não tem problema não, porque é a rea­
lidade. Eu ainda falei pra ela assim: nós fica aqui, ás vezes
minha fanülia, cu tenho que sustentar mais uma com tudo
que é meu! Nunca ele colocou nada! Aí ela falou: vamos
agüentar mais um ano, quem sabe dá certo! A vez normaliza!
Que era o nosso plano, nós íicar mais tempo lá. (...) Eu falei:
então vamos ficar! Só que daí passou então o segundo ano,
segundo ano, não aconteceu praticamente nada. Continua­
va eu tendo que trabalhar, tratar da minha família... (...) A dele!
Então ai, a minha mulher, a minha mulher então, ela pegou e
falou assim: agora eu tô disposta! Se você quiser ir pra cida­
de, daí nós vamos!24
A decisão de migrar para a cidade foi motivada por uma
outra decepção. Antes, porém, de notar os sentidos da mudança,
ressaltou com ressentimento a exploração a que foramsubmetidos
nesse tempo de trabalho na propriedade dos colonos "italianos”,
da localidade de Novo Horizonte. Ao compartilhar com o patrão
os usufrutos de seus animais, denunciou compesar a subserviência

254
que este lhe exigia de “ainda levar na casa!”. Nesse instante da
narrativa, sugere também ter marcado uma pausa para refletir a
sua trajetória e fazer a avaliação desse passado camponês.
A ida para a cidade foi lembrada mais como uma
predisposição do que propriamente como uma aspiração. Uma
indecisão tomava conta e foi pautada pelo medo da mudança,
requerendo primeiro a aposta numa melhoria nas condições de
trabalho que tinham, mesmo porque “era o nosso plano, nós ficar
mais tempo lá”, na terra arrendada.
A construção narrativade Pracinha evidencia, entre outras
coisas, que o êxodo não foi uma decisão facil. A maneira afetiva
como narrou o retomo à vida de agregado e a esperança se subsistir
com a famíliano campo, somadas, por sua vez, às experiências de
trabalho frustrantes, serviram-lhe como nós para sua decisão. De
outra maneira, também, nota-se que a migração foi uma decisão
partilhada com a esposa um tempo depois, já que essa parecia
menos desejosa pelo êxodo, e muito mais preocupada com a
adaptação ao mundo que encontrariamna ddade.
A recordação da mudança para a ddade, com a mulher e
os seis filhos, emerge em meio a significados de emancipação
vibrantes para Pracinha, naqueles mundos do trabalho dos anos
1980. Novas alternativas foramaos poucos sendo implementadas,
revelando também um processo permeado por novos
aprendizados, encontro de alternativas e a superação de limites.
Como ele mesmo recordou:
Aí um dia nós tava meio apurado lá, mas nós tinha umas
mandioquinha nova, boa pra vender na cidade né, e daí en­
tão... E mais umas coisinha lá. Aí eu falei pra mulher: eu vou
carregar umas... É, umas coisa aqui, e vou levar pra cidade,
vou ver se eu vendo assim. Aí eu peguei meus dois piá, o
terceiro e o quarto piá, na época. (...) Então, nós fazia os
pacote e aí eu vim pra cidade e conversei com o vendedor de
fruta, quejá tava na nia. E tinha maçã, tinha umas laranja. Daí
cu peguei com ele, a gente conhecia 11111pouco, falei com ele:

255
você me arranja um bocado aí? E eu vou pegar e vou sair
vendendo. Aí quando eu terminar dc vender, ou que eu achar
que não vendo mais, cu volto c acertamos... o que cu vendi
cu te pago c entrego o resto. Ta! E nós saímos, cu passei num
posto cm Novo Horizonte, não esqueço nunca, cu não tinha
dinheiro pra abastecer, mas tinha crédito pra abastecer fiado.
Mas naquela minha vinda pra cá eu consegui vender tudo o
que eu trouxe de lá e o que eu peguei do rapaz aqui. Então,
deu pra mim fazer o rancho [compras do mês] comprar açúcar,
comprar café, comprar as coisa necessária pra levar pra casa,
fiz um ranchinho bom, coloquei uma gasolina no carro. Voltei,
paguei o posto e ainda sobrou umas quirerinha, cara! É, foi
bom demais! Então, aquilo ali foi uma empolgação pra mim
vim pra cidade, porque eu na verdade... Eu na cidade eu... Na
época, pra mim trabalhar, eu tinha que trabalhar, eu tinha que
trabalhar de servente de pedreiro que eu não tinha profissão.
Então eu pensei como isso, esse negócio aqui vai dar certo, pra
mim tratar a criançada. Acho que eu vou me estacionar na rua e
vou vender frutas. E daí então, empolgamos com aquilo...27
Pracinha trabalhou como vendedor de frutas ambulante
desde que assimchegou emMarechal Cândido Rondon, atividade
que desempenhou por alguns anos. Como enfatizou, as tensões
não ficaram para trás. Por suas próprias palavras, é interessante
notar como outras transformações foramexperimentadas por esse
trabalhador:
É aí eu vendia tudo! Aí eu vendia tudo, vendia tudo e pedia
mais. Aí começou a pintar os vendedor de tudo que c lado.
(...) É, só que aí eu enfrentei mais uma barra pesada. Até um
tipo uma discriminação porque esse mesmo cara [um outro
vendedor ambulante]... Com o tempo, eu comprei uma Kombi
velha, uma Kombi azul velha. Que ela tinha mais espaço den­
tro pra gente colocar fruta, carregava mais, etc.. E daí os cara
ia lá no ponto dele, que ele era um tradicional fruteiro daqui.
Então ele falava com o pessoal que aquele carro que eu tinha,
que era a Variante e a Kombi velha, que era dele, tudo ali era
dele. E daí então, foi uns três anos cara até o povo saber que
eu era eu! Que o carro era meu, foi uns três anos t...) É, que o

256
negócio todo era dele, que ele tinha o monopólio das fruta.
Mas aí eu venci essa barreira! Eu venci essa barreira. Aí com
o tempo... Eu até fui, na época do [nome omitido pelo pesqui­
sador] é mais um ponto, ele não queria que a gente trabalhas­
se na rua. Só que eles não dava uma luz assim, um lugar. A
gente ia lá, eles ia lá e notificava a gente: cm 48 horas você
tem que aparecer lá em tal lugar na prefeitura pra gente ir
conversar. A gente chegava lá e falava com ele: então vocês
cobra um alvará e daí a gente paga e continua trabalhando.
Eu quero é trabalhar! O que eu sei fazer é isso e eu não posso
parar! Daí: ah! Mas nós não queremos isso aqui! Mas nas
outra cidade tudo tem! Por quê tem mesmo, toda cidade tem
camelô! É, mas nós não queremos isso aqui! Aí, a gente ia lá
conversava e voltava de novo pra rua.28
No viver uibano, o ex-trabalhador niral continuou a lutar
pela sobrevivência social e material. Entre os dramas do êxodo,
Pracinha precisou dividir, em meio a conflitos diversos, a
ocupação com outros trabalhadores vindos do campo, que,
como ele, lutavam por trabalho na cidade. Um dos
enfrentamentos mais difíceis foi com o poder público local, que
por vezes tentou impedir o comércio ambulante de rua. A
argumentação que apresentou como defesa foi respaldada numa
compreensão ampliada das mudanças nos mundos do trabalho,
cunhada, talvez, pelas experiências da itinerância ou mesmo
pela observação ampliada da realidade, afinal, “mas nas outra
cidade tudo tem! Por quê tem mesmo! Toda cidade tem
camelô!”.
Foi na vida de trabalho como fruteiro ambulante que
ganhou a alcunha de Pracinha, com o qual “todo mundo me
conhece”. O novo nome, a que reserva grande respeito, é
apropriado como uma marca de uma identidade particular, a
que usa como publicidade no seu pequeno estabelecimento
comercial de secos e molhados na Rua dos Ofícios, localizado
no Conjunto Habitacional São Lucas de Marechal Cândido
Rondon, onde reside e trabalha.

257
O fio da trajetória de trabalho de Pracinha, recordado
como alto valor de alteridade nesse lugar de enfrentamentos e
estranhamentos diversos, é de relevância para compreender os
meandros da transformação nos mundos do trabalho e nos seus
significados. Porém, não abarca a dimensão ampliada e, por sua
vez fragmentada, das trajetórias de vidas entrelaçadas nesse espaço
de fronteira.
A trajetóriade Pracinha até aqui interpelada pelo caminho
narrativo de sua itinerânciatalvez pudesse sertraduzida, emtermos
mais amplos, num trabalho da memória de sai enraizamento. O
oficio de comerciante desempenhado atualmente, alémde seruma
evidenteconquistamaterial e social, foi evocado comtons coloridos
de conquista e com um desfecho positivo de realização pessoal e
profissional. Entretanto, é preciso atentar ao fato de que Pracinha
manteve uma janela aberta para o passado, pela qual vê com
nostalgia e criticidade o presente, em que “hoje a vida é muito
maliciosa, sabe?”29
A narrativa de Pracinha configura um descerramento, e
também um encerramento, da vida itinerante desde os tempos da
primara migração, quando saiudeMinas, que feznotar pelafixação
na cidade e como sujeito desse meio social. Antes de finalizar a
entrevista, Pracinha prolongou-se, ainda, acerca dos dilemas do
presente e futuro, especialmente daqueles da realidade imediata de
seubairro:
E o seguinte: vocc sabe que o Mutirão, não que eu queira
discriminar, porque e a nossa constnição aqui foi construído
cm termos dc mutirão. Só que a construção foi bem feita,
mas só que quando se fala... Existe na cabeça da maioria,
que quando se fala em mutirão, são aquelas pessoa mais
ruim, que são... (...) São discriminados, são essas pessoa
que mais vem pros mutirão. Então, porque nós tentemos
tirar, pra essa imagem acabar, essa imagem negativa, por
que era essa imagem negativa com esse nome. Porque, você
pode notar, que no centro da cidade acontece várias barba­

258
ridades também, todo lugar acontece. Só que no mutirão
como se diz, se acontecer uma coisinha, eles já diz assim:
‘também você vê... Mutirão!!! Vê quem que mora lá? Só o
caqueiro!’30
Em seguida, interveio:
E nós achemos assim, por causa de ser discriminado o Mutirão,
nós se reunimos a Associação dos Moradores e pedimos
que nos talões dc água, luz, não colocasse isso. Aí, a prefei­
tura nos atendeu. Que hoje você pode pegar um talão dc luz
nossa, talão de água, que é Conjunto Habitacional São Lucas.
Aí então melhorou mais cem por cento, porque daí tira essa
imagem negativa. Inclusive, aqui em Rondon, depois de nós,
até esses Mutirões primeiros, agora já tão tudo tendo seu
nome. Aí tem o três que é Santo Amaro. Tem lá o um e o dois
que tem outros nome. Então o povo já, eu acredito como o
decorrer de mais uns tempo, não vai nem... Quando se for
construir alguns conjuntos ai, já não vão falar: Vamos cons­
truir Mutirão!’. Vão construir um Conjunto Habitacional. (...)
Então, nós achamos por bem tirar essa imagem de Mutirão e
conseguimos! Nós conseguimos, a luta nossa foi nesse fim.
Esse lugarzinho aqui não é de primeira, mas é um lugarzinho
privilegiado. O povo aqui é um povo caprichoso, porque
pela idade desse Conjunto aqui, se você dá uma olhada, a
época que foi inaugurado aqui. Aqui quase todo... 85 a 90%
já mexeu na propriedade. É fazendo muro, cercando a frente,
emendando a casa, todo mundo já fez alguma coisa. Então, é
um privilégio bem grande que nós temos aqui. Por isso nós
temos que brigar por esse patrimônio, que não é assim con­
forme tem muitos que imagina.31
Sobre os dilemas do presente metaforizou Pracinha que
“começamos na picada e hoje estamos no asfalto” mas o caminho
continua. Como mesmo notou, sua liderança é reconhecida pelos
demais moradores, mesmo porque:
A comunidade acaba me cobrando, dc uma maneira ou de
outra eu tô contribuindo. Quero contribuir. Inclusive fui con­
vidado pra fazer parte dessa nova diretoria, mas eu não quis

259
pra mim. Só falei pra eles que eu quero ser um colaborador
espontâneo, porque eu tenho as minha obrigação, tenho o
meu serviço.32
Não se pretende que a trajetória de Pracinha possa servir
de um modelo de compreensão das trajetórias de trabalho dos
depoentes. Ela é, nesse sentido, única. Buscou-se, até aqui, discutir
a riqueza de significados dessa trama entre a vida pessoal e social
com o trabalho. Essa dimensão é tomada possível tão-somente
pela audição da inteireza da narrativa, que abre caminhos sensíveis
para compreender modos de trabalhar e as lutas de inserção social
de outros depoentes.

Trabalhadores de múltiplos lugares e tempos


Os motivos e significadosessenciaisda migraçãoemergem
nas narrativas dos depoentes, em larga medida, como lutas do e
pelo trabalho. Na mesma proporção, pode-se inferir também, em
relação à rede de itínerâncias, não apenas o sentido estrito da
mudança provisória de um lugar para outro, mas os sentimentos
intrínsecos, e intercambiáveis, de antigos para novos ofícios, que
muitas vezes se revelaramentre as determinações da mudança e as
hitasde enraizamento. Importanesseolharqueevidenciasigrtificados
e temporalidades diversos, atentar para as construções narrativas
pontuadas pelo convívio e a sobrevivência social, cujas memórias
dedicamuma centralidade aos ofícios ou às profissões. Esse veio
narrativo informa, acima de tudo, sobre os variados caminhos do
enraizamento pelo trabalho, principalmente em relação às
promessas da itinerância que possibilitaram o adiamento da
realização da vida sonhada em outros lugares prometidos.
Quando chegou na cidade, em 1973, seu Francisco
continuou a vida trabalhando como carroceiro. Comprava lenha
na serraria e vendia-a de casa em casa. Em Iporã, onde morara,
desempenhou este mesmo oficio, mas fazendo somente pequenos
fretes. Amigração foi motivada por um colega que, não adaptado

260
a Marechal Cândido Rondon, propôs a seu Francisco trocarem
de casa: o amigo muda-se para Iporã e seu Francisco vai para
Cândido Rondon. Não houve, entretanto, troca de oficio, pois “ali
em Iporã eu trabalhei mais de ano próprio meu, próprio meu...
Como é que a gente fàzno cartório? [Ele mesmo responde] Cartão
de assinatura. Eu fiz o cartão de assinatura lá no Iporã como
cairinhdro. Cheguei aqui, fü láa moça fàlou: vale a mesma coisa, o
senhor é caninheiro ”33
A ênfase ao registro documental público no “cartão de
assinatura” do cartório de notas acentuou a importância do oficio
para seu Francisco. As lembranças do tempo de carroceiro são
vigorosas para esse trabalhador, pois:
Não faltava o dinheirinho, todo dia o senhor tinha. Todo dia
o senhor tinha o dinheiro de comprar o arroz, o açúcar, a
carne, todo dia o senhor tinha, (pausa) Depois que foi que eu
entrei no Itaú, entrei na vigilância. Aí eu... O cavalo velho já
tava velhoJá tava cansado, aí eu pensei: Não! Pronto!54
Conquanto, a mudança profissional de Francisco parecia
que não tinha sido assimilada comtanta tranqüilidadejá:
Que serviço dc carrinheiro é bom. Mas muito cansativo, mui­
to cansativo. Que o senhor faz quatro ou cinco viagem por
dia, carregando lenha, pegar ejogar, jogar e até chegar, des­
carregar. À tarde você esta bem cansado. Mas dá dinheiro! E
mesmo eu tava acostumado, tava acostumado com o servi­
ço, nunca... Não achava ruim não!35
Donana, sua esposa, detalhou mais o cotidiano do oficio
de seu marido que ele próprio. Segundo a mulher, quando seu
Francisco chegou na cidade:
Trabalhava de carrinho dc animal, só que ele não puxava
frete, ele vendia lenha. Essas lenha picadinha assim. Aqui,
pra fogão econômico [á lenha]. Tinha serrana que já picava
essa lenha pequenininha. Então ele ia na serraria com o carri­
nho de cavalo, enchia de lenha e saía vendendo na cidade.34

261
Segundo aindadetalhou:
O povo fazia pedido. Encontrava com ele: ó, me leva uma
carga de lenha amanhã, mc leva amanhã uma carga de lenha
depois de amanhã. Ou, daqui oito dia você pode levar uma
carga de lenha? Ou já tinha aquelas pessoas, né, certo, que
levava todo mês uma carga de lenha pra aquela pessoa. Ou
duas carga pros hotéis, levava lenha também. E daí ele traba­
lhou mais ou menos com isso uns três ano. Aí começou fra­
cassar o movimento da venda da lenha.37
Para Donana, a mudança profissional de seuFrancisco foi
motivada pela crise e extinção do oficio dc carroceiro de lenha,
com a chegada dos fogões a gás durante os anos 1970:
Até foi aqui que eu aprendi a usar fogão a gás, que eu não
sabia. Nunca tinha usado fogão a gás. Foi aqui, mais ou
menos, quer ver, em 76, que a gente veio comprar um fogão a
gás. Aí começou a fracassar então a venda de lenha. Aí meu
velho mudou de profissão.51'
Cruzando as memórias de seu Francisco e com as de sua
esposa, nota-se um silêncio deste em relação à crise que o levou a
trabalharcomovigilante. Como“guardião”, seuFranciscotrabalhou
até se aposentar, “Quando [então] eu quebrei ojoelho. Aí fiquei
encostado uns tempo. Depois eles me aposentaram. Eu com 30
anos de guarda, me aposentaramcomo operário, hein! Falei: mas
não pode!?”.39Há que se notar, ainda, a insatisfação de Francisco
sobre os termos do oficio em que foi aposentado. Ou seja, alémde
não se reconhecer como um operário, autoritariamente definido
por outro, fez questão de dizer que a decisão de se aposentar não
fora sua.
Seu Waldemar Pereira da Silva, de quem falamos agora
pela primeiravez, migrou do meio rural de Ijuí, Rio Grande do Sul,
em 1970, em busca de nova vida no Oeste paranaense. O destino
inicial era a ddade de Toledo, “porque Rondon não era muito, nem
se via falar lá no Rio Grande do Sul, Rondon”; entretanto há em

262
Marechal Cândido Rondon que acabou se fixando. Já em suas
primeiras palavras lembrou seuWaldemar da infância de trabalho
no campo deixada no Rio Grande do Sul:
Então nós trabalhava. Eu com seis irmãos nós trabalhamos
na lavoura. Nós plantava, nós plantava arroz, mas molhado.
Era no mato do banhado que nós trabalhava. Dai nós, as
duas irmã, eram as mais velha. Então nós éramos em seis
irmãos, nós trabalhava. Dai pra estudar que era difícil. Nós
tinha um colégio que precisava caminhar a base de seis qui­
lômetros. Aí eu fiz o primário, mas foi sofrido, que era muito
frio lá no inverno, o inverno não é fácil.40
Embora tenha iniciado seu depoimento pelas lembranças
do trabalho no campo, sua narrativa não é romântica. A difíceis
condições vividas nos plantios de arroz de várzea, onde “era no
mato do banhado que nós trabalhava”, são lembradas numa
associação ao sofrimento comas baixas temperaturas da região e
à longa distânciaque se moviampara chegar à escolamais próxima
onde estudavam ele e os cinco irmãos.
Desde os momentos iniciais da entrevista seu Waldemar
foi costurando as motivações que o levarama migrar para o Oeste
do Paraná. Alembrançado tempo no Exército, aindano Rio Grande
do Sul, onde serviu durante os primeiros anos posteriores ao golpe
militar de 1964, parece influenciar em sua decisão de migrar, pois
“daí eu servi o Exército. Então, a gente fica maior. Então, naquele
tempo nosso pai dava liberdade. Se é maior, serviu o Exército,
fàça o que quiser. Daí eu aventurei isso aí [de vir para o Paraná] .”41
Por outro lado, o tempo dedicado ao Exército lhe possibilitou
também experimentar a vida fora do ambiente de trabalho familiar.
Nesse sentido, recorda do tempo quando serviu no quartel,
vivenciando a violência e o autoritarismo dos primeiros anos do
regimemilitar
Inclusive o que me marcou muito quando en tava servindo,
naquele tempo, nós se desloquemos. Nós nunca fica no quar­

263
tel. Dá qualquer coisa o quartel se desloca da cidade. Então
daí o, nós viemos pra banda de Três Passos, Humaitá e Santo
Augusto. Nós se desloquemos ali. Então era muito terrível
porque o exército chega e toma conta da cidadezinha peque­
na. Pô! Mas não pode ter três, quatro assim na rua. Pode
andar só dois, e dai nós acampemos num clube na cidade, o
melhor cube que tinha era o Humaitá, me lembro como hoje.
Daí então, nós tirava serviço na rua e ia buscar esses caras
que tinham se complicado, assinado isso aí [lista de assina­
tura em apoio à Brizola, quando integrava o chamado Grupo
dos Onze], nós ia buscar os caras em casa. Chegava na colô­
nia, na roça assim com caminhão, nós tudo armado, vinha um
aspirante, um sargento junto, nós chegava e dava voz de
prisão e diz: — Ó, vai embarcar no carro.42
Ao retomar do serviço militar, seuWaldemar trabalhou,
ainda que desmotivado, por um breve período de tempo com seu
pai na colônia de terras da família. Entretanto, já quase convencido
de não trabalhar mais no meio rural, o que lhe pôs atento para a
migração: “Era muito falado que era muito boa as terra e tudo mais.
Mas o finado meu pai tinha certeza que eu ia ficar na colônia. Mas,
eu tinha aquela idéia de sempre procurar uma vida mais facil” 43
Interessante observar que, embora a migração fosse
motivadapelapromessa deccboaasterraetudo mais”, seuhorizonte
de trabalhojá vislumbrava o meio urbano ou aquilo que expressou
mais próximo disso:
Porque Rondon não era muito... Nem se via falar lá no Rio
Grande do Sul, Rondon. Naquele tempo [1970] Rondon era...
Não era assim, tava começando, não tinha nada quase. Daí
era puro... não tinha nada. Era estrada dc chão tudo. Daí cu
vim praqui. Cheguei, aí tinha um frigorífico bem novo que
tinha inaugurado.44
Seu Waldemar decidiu e migrou sozinho, chegando na
rodoviária da cidade com apenas a mala de roupas, uma pequena
reserva emdinheiro e o valoroso certificado de reservista Enfatizou,
ainda, que não tinha tirado sua carteira de trabalho e assim que

264
chegou precisou cuidar da sua expedição. Na época, “pra
documento aqui, para tirar era só tudo em Toledo. Pra mim, tirar
minha carteira profissional eu tive que ir emToledo. Qualquer coisa
que precisava assim, sabe?”45
Embora a vida deixada para trás no meio rural não tenha
sido lembrada com tanto entusiasmo, foi essa mesma,
contraditoriamente, quelheabriuasportas para o primeiroemprego:
“olha, pra mim foi muito fãcil, porque naquele tempo era... Eles
sempre procurava pegar mais cara da colônia, que trabalhou na
roça, naagricultura”.46
Em relação ao primeirotrabalho seuWaldemar expressou
uma forte carga emotiva ao reconhecimento e valorização de seu
saber camponês no frigorífico recém-instalado na cidade. Pois,
“então, talvezali, olharampramimassim... Vocêtrabalhava?Matava
porco? Matava. Ah, não pode ir fazer a carteira em Toledo? Ta
trabalhandocomnós. Aí eu comecei a trabalhar. Me dei bemporque
a gente tinha disposição quando éjovem, pra trabalhar”.47
Tendo em vista a entusiasmada conquista do primeiro
empregonofrigorífico, a narrativade seuWaldemarfoi possibilitando
a leiturade outros sentidos. Passou a expressar, entreoutras coisas,
a alegria do dia-a-dia e as relações pessoais diversas construídas
com os demais colegas de empresa onde trabalhava:
Domingo de tarde, então nós, a firma tinha sempre um cami­
nhão, enchia o caminhão, nós ia jogar em tudo esses distrito
aí. Disputava campeonato, era bem divertido, futebol era o
único, divertimento era o futebol. E, depois pra rapaz solteiro
era cinema, as moça, guria, cinema.48
Embora tenha se silenciado sobre a função que pri­
meiro desempenhou no antigo frigorífico da marca Frimesa,
ela é referida implicitamente na comparação dos diferentes
tempos de sua atividade produtiva. Tendo em vista, especial­
mente, a atribuição de importância que deu ao uniforme e aos
instrumentos utilizados pelo cameador:

265
Naquele tempo não tinha muito equipamento. Por exemplo,
uniforme a firma não dava, por exemplo, bota, proteção, as­
sim pro frio, se trabalhasse nas câmaras frias não davam. Eu
tive que comprar bota, tive que mandar fazer roupa branca,
tudo. Assim é que funcionava naquele tempo trinta anos
atrás. E agora qualquer firma ai da uniforme, da tudo. Naque­
le tempo eles não davam, precisava comprar tudo, até faca
precisava comprar! Charpa pra chariar faca, precisava com­
prar. Mas foi duro pra começar!49
Observando com atenção, outros significados
encontram-se implícitos na crítica às condições de trabalho.
Não se trata, pois, somente da cobrança dos equipamentos
negados no passado, mas também de uma construção narrativa
da lembrança valorativa dos instrumentos rituais de trabalho
utilizados no frigorífico. Em outras palavras, são componentes
obrigatórios para o desempenho do oficio. Seu Waldemar
lembrou orgulhosamente de sua especialidade como operário
técnico de refrigeração, que obteria mais tarde graças a sua
dedicação:
Eu sai pra fora quando fechou a antiga Frimesa [a primeira em
empresa que trabalhou], que cu era solteiro c cu tinha uma
profissão boa. Porque eu me especializei em refrigeração. Dai
eu... Tinha eu e outro colega que era encarregado geral, um
tal dc Ozório Machado, ele ta cm Santa Catarina. Dai ele falou
vamos dar uma volta por aí. Daí eu, ele tinha carro, e ele
pegou o carro e nós saímos aqui pro norte. Fomos pra
Apucarana, Maringá, Arapongas. Daí era coincidência, todo
lugar que chegava eu arrumava serviço e ele não, mas a mi­
nha profissão era bem diferente do que a dele, daí pra eu ficar
e ele não então...50
Nesse sentido, enfatizou ainda que:
Em Toledo eu cheguei na Sadia no outro dia eu saí trabalhan­
do. Então eu tinha profissão boa, porque naquele tempo va­
lia profissão boa. Daí... Quando dai restando dois, três me­
ses, daí a Swift comprou. Daí, foram dá atrás dc mim lá em

266
Toledo. Eu lava na minha seção, tudo, ofereceram mais. Na­
quele tempo eu ganhava um bom dinheiro e daí foram lá.
Conversaram pra mim voltar, que me pagavam tanto, e eu
estava numa potência lá na Sadia. E a Sadia cra forte, daí
voltei. Daí fiquei até hoje.51
Logo emseguida, sintetizou a sua vida de trabalho:
É que fui trocando de firma. Mas eu trabalhei na Frimesa,
mais ou menos sete, oito anos. Mais ou menos!?Depois foi
pra a Svvift e Cevai. Trabalhei 27,28 [anos] e veio a conversão
depois. Me aposentei, praticamente... Me dediquei minha vida
aqui dentro desse frigorífico. Aí saí pra fora.52
Sua relação com o frigorífico, há que se observar, foi de
uma interação que extrapolava o espaço da empresa, chegando
a ponto de ocupar espaços da sua vida pessoal, entre os quais: o
lazer do futebol com os colegas de trabalho e a moradia quase
sempre nas imediações do frigorífico, chegando a residir emuma
das casas destinadas aos encarregados:
Pros caras que eram mais acreditado eles davam casa. Eles
ficavam na firma, eles ficavam com as casa. E depois ali em
baixo tinha uma vila ali, perto desse caminho dc futebol ali
[faz um gesto de direção], 23 casas ali.53
Sua dedicação ao frigorífico foi tamanha que chegou a
ser compensada com a indicação da empresa para concorrer ao
prêmio Operário Padrão. Interessante notar, entretanto, que essa
lembrança se deu como resposta para uma indagação acerca de
sua participação numa possível organização sindical:
“(Pausa) Não! Não porque, eu nunca quis porque a firma
naquele tempo era, agora, ou não sei como é que era, não
gostava que o cara fosse sindicalista ou sócio do sindica­
to. Eu não quis porque, a firma perseguir, eu tinha um cole­
ga que era da comissão do sindicato da alimentação ali... A
firma não gosta que o cara seja sindicalista. Daí no tempo
da Swift eu fui operário padrão. Isso que eu tava me esque­
cendo” .54

267
O trabalhador de Ijuí atuou em sua entrevista para dar
publicidadeà suavitoriosatrajetóriamigrante: “eufui operáriopadrão
em70,88. Foi que a firma, foi pra Swift que eu fui operáriopadrão.
Eraumconcurso emCascavel. Daí fui pra Curitiba. E láemCuritiba
não...?Enão... Nem, não fui classificado. Fui classificadosó regional.
Daí em 88 foi operário padrão.”5SNesse tom narrativo insistiu,
“mas eu tenho placa, tenho tudo aí, foi operário padrão!”56
A avaliação laudatória da conquista da migração pelo
trabalho, presente nas narrativas de Pracinha e seu Waldemar,
postula a migração como campo marcado entre conquistas ou
derrotas. As narrativas atuam como pontes de sentido entre os
sonhos de conquista e a vida experimentada. São envolvidas,
sobretudo, numa esteira de avaliações pessoais muito fortes.
Entretanto, vistas com mais cuidado, informamtambém sobre as
lutas de inserção e do respeito conquistado no espaço público. E,
por certo, o valor do trabalho como lugar de constituição da
alteridade e do enraizamento, tendo em vista, sobretudo, uma
subliminar compreensão dos migrantes acerca da fragmentação
da paisagem social da fronteira em que se vêem.
No dia da realização da entrevista combinamos, a pedido
de seu Waldemar, o teto de horário do final da tarde, pois estaria
ocupado em seguida no trabalho de vigilância noturna. Se, de um
lado, a construção narrativaatuou naavaliação poativada interação
social pelo trabalho, por outro, um campo residual contraditório
pululou nos momentos descontraídos da entrevista, especialmente
emseufinal. Umdessestraços residuais importantes de suatrajetória
brotou quando indagado se feriatudo novamente:
Ah, o que eu não faria é trabalhar de empregado. Gostaria de
trabalhar por conta. O sonho da gente é botar tuna coisa pra
trabalhar. Então, trabalhar de empregado, acho que não é
qualquer um que agüenta trabalhar 30 anos. Porque eu sofri
também pra me aposentar. Por exemplo, para minhas filhas
desejaria que elas não dependessem dc trabalhar de empre-

268
gado uni dia, ser empregado. E pudesse dar um jeito de traba­
lhar por conta, era bem melhor.”
Mesmo exibindo uma autocrítica inquietante, a narrativa
de seu Waldemar incorpora sonhos para a futura geração,
particularmente a de suas duas filhas. Ao mesmo tempo, identifica
e projeta o “trabalho por conta” como uma das possibilidades
para o presente que se faz, dando mostras de uma estabilidade não
inteiramentegarantidaou deum enraizamento não definitivamente
plantado. A itinerância das trajetórias para e no trabalho mantém-
se para alguns depoentes, entre eles seu Waldemar, como uma
porta de retomo entreaberta:
Até quando me aposentei eu estava meio em dúvida, que
não sabia. Digo bom, agora que eu me aposentei e vamos pra
lá perto dos parentes, inclusive aqui no Paraná não tenho
nenhum parente do meu lado, tem só a mulher. A li tem os tios
dela, os pais dela tudo sabe, mora em Toledo. Então fomos
ficando, era pra morar pra Toledo. E depois por causa do
estudo das meninas, estão habituadas aqui e tudo mais. Olha,
eu tive uma proposta muito boa no Mato Grosso, pra traba­
lhar lá. Tinha refrigeração né, porque daí... Mas eu não quis ir
por causa do... Se habituar lá não é fácil. É dois mil quilômetro
longe. Então eu não quis ir, mas pro Sul eu teria saudade de
ir.58
Nair Freitas, que migrou de Santo Cristo, no Rio Grande
do Sul, lembrou entusiasmada sobre o começo da sua vida
profissional: “e daí eles vieram pedir. Se não quisesse trabalhar...
Eu digo: então vamos trabalhar! Daí eu fiii trabalhar. Gostei demais,
até porque eu entrei comozeladora láe daí deu bastantemovimento
um dia e eu comecei a atender”. 59Na ocasião, Nair começou a
vender
Por conta assim. Eu pensei: vou ajudar a mostrar. Mostrei
geladeira, fogão. Ah! No outro dia eu cheguei, daí o patrão
me chamou no escritório. Ih! Vou ganhar a conta porque não
e o meu setor, como é que vou atender as pessoas se é pra

269
mim fazer limpeza. Isso fazia meio expediente só. Dai ele me
chamou diz ele: — Você pode vim o dia todo? Digo: — Posso.
— Então a partir de hoje tu passa a ser balconista e nós
vamos arrumar outra zeladora. Meu Deus! Que alegria! (ri­
sos).60
A realização profissional ou dè ofido, tal como a migração
enquanto conquista, como vimos observando, articulam-se em
tramas narrativas essenciais para os depoentes. Ainda entre
aqueles que migraram para a região nos anos 1970, seu Zelmo
de Gonzatto foi o que mais valorizou seu aprendizado de ofício.
No seu caso, embora com uma bagagem de trabalho no campo
até a juventude, quando chegou à região já trabalhava como
motorista de uma madeireira em Itacorá, uma pequena cidade
próxima à Foz de Iguaçu. Quando anunciada a construção da
barragem de Itaipu, que se confirmou depois com a submersão
da cidade uma década depois, e da iminente ameaça de
desemprego, antecipou-se e mudou-se para Marechal Cândido
Rondon, onde na época residia um cunhado seu.
Seu Zelmo informou que tentou primeiramente manter-
se na profissão de motorista e “aí fiz ficha e tal! Não consegui,
não tinhavaga”.Algumtempo depois:
Ai encontrei um construtor dc uma firma. Ele, até ele era de
Santa Catarina, esse construtor, mas já morava aqui em Ma­
rechal Cândido Rondon. Dai ele me falou:— Oh! Estou dan­
do uma casinha assim, assim, assim na cidade, você quer
trabalhar? Mas eu não entendo nada de carpintaria. Não,
mas tenta! Vai me ajudar lá fazer, eu tenho umas... cu nem
sabia o que era caixaria. Vai lá me ajudar fazer umas caixaria.
Ta! Ai eu fui (pausa). (...) Max o nome desse, um catarinense.
E o Max diz isso: — Oh! você tenta aí comigo que cu vou te
ensinar você trabalhar. Ta! Eu trabalhei uns três, quatro mês
de servente. Aí ele me passou... Mc levou na... no escritório
da fmna c falou pro engenheiro: pode passar ele de carpintei­
ro. Nem de meio oficial nada, pode passar de oficial de car­
pinteiro! Ele vai bem na parte dc carpintaria.61

270
Nesse trecho seu Zelmo mostrou-se insatisfeito em
relembrar tão-somente do primeiro trabalho na cidade, mas
também e fundamentalmente, de sua iniciação no oficio de
carpinteiro. Com poucas palavras procurou valorizar o rápido
aprendizado e o significado da profissão que acabou por
desempenhar na vida de trabalho até a sua aposentadoria. Em
seguida, passou a relembrar, uma a uma, as construções que
ajudou a fazer na cidade e nas redondezas, destacando,
sobremaneira, sua preocupação com o trabalho “sempre com
carteira assinada”. Pois, “se eu não fosse caprichar, hoje eu num
ia nem me aposentar. Não! Não tinha como contribuir no INSS.
Foi o que eu me escapei sobre isso ai”.62Além de atribuir
importância ao registro emcarteirae à contribuição previdenciária,
que garantiram a sua atual aposentadoria, insistiu em rememorar
a vida trabalho e de suas mãos na construção de uma infinidade
obras na cidade e na região: “Aí no contar todas obra que eu
ajudei afazer... Posso contar?!”63
Além de marcar a valorização do oficio e de expressar
os seus sentimentos protagonistas mais caros, ainda que
ressentidamente não compartilhados, da sua participação na
construção da cidade, seu Zelmo lembrou orgulhoso, sobretudo,
da sua presença e atuação na fundação do sindicato de sua
categoria:
O sindicato aí foi formado dc noite, trabalhado só dc noite as
reuniõezinhas. Vinha advogado dc noite, dc Toledo. Ele vi­
nha dc noite. Fazia uma rcuniãozinha, marcava outra. Fazia
outra reunião ate chegar na hora dc registrar o sindicato. A
hora que registrou o sindicato aí eles... divulgou!64
Do mesmo modo, em sua militância político partidária:
Ah! Eu... primeiro voto, que eu dei na minha vida foi pro
Brizola, no Rio Grande do Sul, pra governador. E quando eu
era piá, eu lembro o partido dele era o PTB, conforme meu pai
era do PTB. Aí como houve aquela mudança. Ali nem existia

271
depois no governo do PDT. Era assim o PTB. O Brizola fun­
dou formou esse partido. Mas eu aqui em Rondon não tinha
PDT, eu sempre ia com o PMDB. Acompanhei. Agora uma
vez, uma noite um cara me falou: — Eu estou sem partido.
Falou pra mim: eu estou sem partido. Eu digo, eu não estou
sem partido. É o PDT? Pois eu não, eu vou com o PT. Falei no
meio da turma, no meio de urna turma mesmo. Eu vou com o
PT! Não estou sem partido, eujá tenho. Diz: ah! Porque vem
falar que está sem partido? Já dei dc dedo, eu não estou sem
partido já. Eu estou com o PT agora.65
As narrativas do trabalho são denotadamente expressivas
em seus sentidos políticos. Por meio delas, apreendemos também
as dimensões organizadas da experiênciapolítica, ainda que surdas
e diferenciadas. Entre as opções dos depoentes, deve-se atentar
para outras formas organizadas, entre as quais: a interação coletiva
e interveniente de Pracinhajunto à associação dos moradores do
bairro onde mora ou mesmo a luta com o poder público para
manter-se na ocupação nos tempos em que trabalhava como
vendedor ambulante; a atuação individual e profissional de seu
Waldemarno seu espaço do trabalho, emboratendo que considerar
os limites de sua interação consensual com a dinâmica do trabalho
na empresa capitalista; finalmente a atuação sindical de seuZelmo.
No caso desse último, dividido com a sua militância política
partidária, ainda que nebulosa, pendendo para o campo da
esquerda.
As trajetórias de Pracinha, seu Waldemar e seu Zelmo,
coloridas com as experiências e bagagens culturais trazidas de seus
diferentes lugares, sugeriramcaminhos sensíveis de percepção da
migração, especialmente aquelas iniciadas na região durante a
década de 1970. Sobretudo, acerca de suas dinâmicas, há que se
dizer inconclusas, entre o trabalho e o viver social, assimcomo de
seu fa/eres como sujeitos políticos, organizados ou não.

272
Anos 1980 e o trabalho das mulheres
Quanto aos trabalhadores que migrarampara a região nos
anos 1980 são expressivas as memórias de trabalho das mulheres.
Quando chegou emMarechal Cândido Rondon, em 1986, dona
Maria Senhora do Nascimento trabalhou como “bóia-fiia” por
algumtempo, mesmafunçãoque exerceranoutros liigarespor onde
passara. De sua trajetória lembrou-se, ressentida, do trabalho de
bóia-fria, aindana cidade paranaense de Três Barras, onde parece
ter vivido os piores momentos de suavida detrabalho e, por cato,
um contrapeso para sua avaliação do seu presente:
Nessas Três Barras daí eu vou contar pra você como é que
foi minha vida lá também. Nessa Três Barras nós foi num
lugar, era a cidade, era Três Barra, mas um lugar que eu morei
chamava Saudade. Então cu... Tinha uma mulher que cu tra­
balhava com ela. As minha menina era tudo pequeninha. En­
tão nós ia trabalhar. Eu trabalhava com cia na roça. Então, cu
trabalhava com ela e o meu marido trabalhava de, assim por
dia, saia ficava a semana toda sem vim pra casa. Eu ia traba­
lhar pra essa mulher. Eu lavava a roupa de manhã cedo. Eu
limpava a minha casa de manhã e eu ia trabalhar. Trabalhava
meio dia pra ela. O cê vê, eu já passei tanto momento na
minha vida! Eu trabalhava pra essa mulher. Eu tinha todos os
meus fio. Eu tinha naquele tempo, eu trabalhava pra uma
mulher que ela tinha um moinho. Você sabe o que é um moi­
nho de milho, tirar o fubá, essas coisa, quelerinha. Eu traba­
lhava pra essa mulher. Ela chamava Lourdes, eu trabalhava
pra ela o dia intero. Aí ela me dava... Ela me dava uma garrafa
de leite. Cê entende o que é uma garrafa? Eu pegava uma
garrafa dc leite, um pacote, um meio quilo de fubá por esse
meio dia que eu trabalhava. E, duas xícara de arroz, que era
um moinho. Eles descascava, ela não vendia eu por quilo
nem nada, era pelo serviço que eu fazia.**
Prosseguiu asam, Maria Senhora:
Tinha vez que eu tava na roça assim e eu descorçoava tanto.
Eu trabalhava sozinha. Ela [patroa] dava as empreita pra mim.

273
Era um tanto que era pra carpir, eu ia sozinha. Então quando
eu cansava, trabalhava, trabalhava. Eu mandava as menina
pra escola. O mais pequeno era o piá, então ele ficava. E eu ia
pra roça trabalhar. Chegava de tarde eu tinha uma fome e
olhava o sol, ta lá no meio do céu. Aí eu pegava, danava
cantar até que eu vencia aquela para daquelas coisa ali. Foi
nessa vez que eu falei com você tudo isso eu já passei. Já
trabalhei tanto pra aquela vez que eu cheguei em Francisco
Alves. Mas eu já trabalhei todo nesses povoado que tinha
sempre. Mas o ano que eu fiquei melhor foi esse ano agora
que nós ta aqui.47
Maria Senhora lembrou emocionada desse tempo de
trabalhodramáticodeixadopratrás. Todavia, umadimensão pessoal
restou-lhe nos dias atuais: a deter enfrentado sozinha as tardas “na
bóia-fria” para sustentar a família,já que “ele [marido] nunca foi de
gostar de trabalhar de bóia-fria. Ele foi de trabalhar por dia. De
qualquer coisa ele fazia, menos de bóia-fria”.68
Desde quando chegou “trabalhava de bóia-fria. Era um
dia de bóia-fria, um dia de doméstica, quando eu achava. E as
minhas menina foi trabalhando assim. Essas duas que eu tenho,
elas trabalhava de diarista”.69Por conseguinte, a vida nos primeiros
anos foi revelada por meio da memória do trabalho, sua e de suas
filhas, que na época:
Falava que Rondon era muito bom pra serviço, tinha muito
emprego. E cê sabe que quando cu cheguei aqui se eu tives­
se com umas seis filhas mulher pra trabalhar dc doméstica,
elas tava tudo trabalhando c tinha gente pedindo elas pra
trabalhar.70
Com o passar do tempo, novas relações sociais foram
sendotecidas, “então quando eu cheguei, eutrabalhando, trabalhava
de diarista. Aí eu conheci a Neuza [a pessoa que oferecera
trabalho]”.71Incrivelmente, peloviés da memória do trabalho, tanto
quanto pelotrabalho da memória, donaMaria Senhorafoi cerzindo
a sobrevivência e a sua interação social. No seu caso, tomada mais

274
dificil, haja vista a pobreza a que estavam submetidos. Nesse
momento a narrativaexpandiu os sentidos e se alargou para abarcar
a dinâmica de interação e solidariedade na classe:
Quando foi um tempo, eu vim conhecer a Raquel [uma ami­
ga]. Quando eu conheci a Raquel, as coisas mudou mais. Por
causa que eu conheci a Raquel. Ela explicava: oh, tal coisa
assim tem mais barato pra vender. Tinha uma mulher mesmo
que agora ela é morta, essa miudagem de porco, que o marido
dela trabalhava num açougue, trazia. E eu pegava e ia com­
prando as coisinha mais barato dela, né!?72
O trabalho e a interação social na situação de pobreza
articulam-se na narrativa de dona Maria Senhora como sentidos
importantes, ainda que não completamente límpidos. A memória
atua parajuntar as peças de sua existência entre as identidades de
trabalhadora, mãe e nova moradora do lugar. Não se trata, nesse
caso, de uma narrativa previamente elaborada. É construída no
instante da entrevista apontando para as múltiplas dimensões do
vivido, entreos quaiso trabalho. Comsuaspalavrasassimregistrou:
Quando eu chegava da roça, então eu chegava em casa, ti­
nha vez que num tinha nada pra comer. Aí, essa menina mi­
nha que trabalhava, lá eles vendia frango, pro cê ver, nós era
em quanto... Nós era em cinco fios, os meus, e esse meu
irmão mais essa mulher, eu mais meu marido. Então, um fran­
go tinha que dar pra um almoço e pra uma janta. Cê vê o quê
que eujá passei aqui também, que foi muito dificil por que eu
num conhecia ninguém.73
Algumtempo depois, donaMaria Senhora deixou a“bóia-
fria” e os bicos como diarista para trabalhar como zeladora no
Centro Social Urbano da cidade, aonde veio a se fixar mais tarde
como funcionária públicamunicipal:
Venho trabalhando. Eu consegui também naquele tempo.
Passei no... fiz o concurso. Passei também. Que naquele tem­
po o concurso era mais fácil. Agora hoje em dia é mais difícil.
Agora se fosse pra mim fazer de novo, eu nem arriscava pra

275
fazer, porque tem bastante pergunta que cai, que tinha que a
pessoa saber Ier, sabia escrever. E nesse eu não sei ler, num
sei cscrcvcr. Isso ali cu nem posso fazer mais. Sc cai dc fazer
um concurso eu nem posso fazer mais.74
Cumpre destacar que a narrativa de dona Maria Senhora
atua como uma percepção politizada das contradições entre as
promessas da migração e o mundo real vivido pela família. Nos
termos de suaprópriaexperiência, foi dando visibilidade, por certo
denunciando, a pequena ou quase inexistente rede de relações
sociais nos primeiros tempos da migração, mostrando-lhe as
distinções entreos antigos itinerários e o novo (e atual) lugar. Assim
também foi em relação ao diminuto campo de oportunidades de
emprego, que a lançou e às filhas no trabalho doméstico, o que
paradoxalmente a surpreendeu pela fartura em termos de postos
de trabalho. Em linhas gerais, norteou sua percepção das
transformações ameaçadoras a que assistenos mundos do trabalho,
particularmente acerca das novas exigências de leitura e de escrita
que promete, uma vez mais, excluí-la. Dona Maria Senhora
reconhece, nesse sentido, que não é possível voltar atrás, para o
trabalho de bóia-fria. Por um lado, porque “hoje em dia, de bóia-
friajá num tem mais porque... Num é que as pessoas não prccisa,
precisa trabalhar de bóia-fria. E... Mais é que nem eu falei com
você, é muito maquinário, numtem como as pessoa trabalhar”.75
Por outro:
Hoje em dia a gente fica véio, mais cansado. Não é as coisas
que a gente levanta ccdo. A gente tem mais aquela boa von­
tade de fazer as coisas que nem a gente tinha antes. Mas a
gente ainda faz. É véia, mas ainda faz (risos). É véia, mas
ainda faz (risos).76
De maneira instigante, dona Maria Senhora mostrou-se
atenta à dinâmica das relações entre capital e trabalho no novo
lugar, dedicando ao tema uma cuidadosa e politizada atenção no
instante final do seu depoimento:

276
É, quando eu cheguei aqui eu falei: meu Deus! Tanta coisa,
tanta pessoa tem tanto dinheiro fácil, parece que nem traba­
lha tanto pra ter as coisa. A gente sofre tanto e trabalha tanto
pra morrer pobre. Ainda que a gente tem saúde tudo bem. E
quando a gente não tem? Mas assim é bom...77
Há que sublinhar, nesse caso, que o trabalho tomou-se
uma baliza de compreensão primordial para os migrados,
principalmente em relação às desiguais relações sociais a que se
vêem envolvidos, assim como das contradições do lugar onde
vivem.
Dona MariaFelipaEncinas, que veio de Guaíra ainda nos
anos 1950, migrou do campo para a cidade no começo da década
de 1980. Viúva e com nove filhos a tiracolo, começou a vida na
ddade de Marechal Cândido Rondon trabalhando:
Só de empregadinha assim, uma parte da manhã aqui, a parte
da tarde lá e assim. Alguma vez a noite eu ia no... assim na
lanchonete, no hotel. A pessoa me chamava. Vem Dona Ma­
ria lavar um pano de prato, uma toalha dc mesa pra amanhã ta
pronto. Eu ia fazer, eu trabalhava, trabalhava mesmo pra não
meus criança passar fome.78
Como pagamento, também recebia “daí aquela comida,
deixa assim na churrascaria. Aíjá estão preparando a panela. E
falava: Dona Maria, não é resto de comida, essa é uma comida,
igual vou levar pra você que a senhora é caprichosa. Branqueava
aqueles panos pra eles, toalha. E assim eu tratei meus filho até,
até...”79 A sobrevivência da família nos primeiros anos foi
extremamente difícil, inclusivedependendo das mãos da filantropia.
Já que “eu morava lá na Vila Gaúcha. Ah, num chiqueirão, numa
casadechiqueirão. Limpei, né?Tratdvaca, porco. Efiqudnaqude,
limpei, lavd tudo”.80
No começo dos anos 1990, dona MariaEncinas começou
a trabalhar como gari no serviço de limpeza pública munidpal. Esse
primeiro trabalho com carteira assinada foi lembrado em meio a

277
unia intricada narrativa sobre os laços políticos partidários locais,
pouco compreensíveis e estrategicamente codificados. Todavia,
há de se notar o brilho narrativo dessaconquistaparaa trabailíadora:
Aijá comecei a trabalhar. Quatro anos trabalhei no CODECAR.
De CODECARjá logo fizemos um curso de limpeza, entrou
um professor pra nós. Daí ela falou agora vocês vão olhar lá
na parede, tal lugar na rua Santa Catarina. Se vocês entrar,
vocês vão ver. Aí tudo meu filho, meu neto, correu lá. E um
piá falou, olhou lá, já achou meu nome. Já achou o nome da
irmã, da tia, tudo lá. Fiquemo contente. Aí comecei continuar,
ta indo pra nove ano que... Com nove ano que eu parei. Dia
oito de abril vai fazer nove ano que eu tava trabalhando já.*1
A inclusão de seu nome na relação dos contratados é
lembrada com vários sentidos para sua trajetória, entre esses o
de ritual de passagem entre diferentes mundos. Acarteira assinada
tomou-se a diferençamais significativa de sua conquista, seguido
da sua conseqüente promessa de estabilidade. Essa expectativa
acabou se confirmando na prática, já que “vai fazer nove ano que
eu tava trabalhando”, motivo pelo qual gravou na memória o dia
de aniversário da conquista do seu novo trabalho. Qual seja, “no
dia oito de abril [de 2001] vai fazer nove ano que eu tava
trabalhando lá.”
Maria Encinas foi confusa em sua explicação sobre os
motivos de sua demissão, ocorrida no início de 2001. Não
deixando dúvidas, todavia de relacioná-los ao processo eleitoral
ocorrido no ano anterior. Mostrou-se, assim, profundamente
entristecida com essa perda:
Porque é muito sofrido você não tem carteira assinado. Algu­
ma vez você vai, amanhã não vai. Ou você ta doente. Se
chega lá, eu não veio ontem porque eu tó doente. Ah, já tem
outro de novo [no lugar], pode ir embora. E a firma não. Você
tem a carteira assinada, se ta doente vai pro médico entregar
atestado. Eu acordei com essa ali, acordei mesmo!82

278
DonaEncinasmostrou, emseguida, o processo de tomada
de consciênciada exploração pelos dois patrões anteriores, quando
aindatrabalhava como doméstica, que“podiaassinar minhacarteira
antes”.83Desse modo, acentuou também a sua resistência para
voltar ao trabalho doméstico, pois:
Tem dia que era dificil. Mas que minhas patroa uma vez dá.
Maria, vai em tal lugar trabalhar. Dai eu trabalhava aqui, da­
qui tem que ir lá. Eu tenho que fazer isso. Não era muito dificil
pra mim, emprego. É que agora falei que, assim, pra trabalhar,
mas eu não quero. Se me arrumar varrer rua de novo, tô feita
(risos).®4
Não setrata apenas da perda do emprego, mas da ameaça
latente davolta ao trabalho doméstico e a conseqüenteprecariedade
das relações que circundam essa ocupação. A condição de
desempregada, assim como a interrupção do registro na carteira
de trabalho, tornou-se ainda mais dolorosa em razão da
prorrogação ou mesmo negação de sua aposentadoria. Caso “eu,
se eu não trabalhar, eles vão me fazer. Eu vou lá e eles têm que
aprovar que eu trabalhei na casa dele [antigo patrão] pra mim me
aposentar'’.85
Há que ressaltar a luta de dona Maria Encinas, ainda que
subliminar, de inclusão social pelo trabalho. Na produção da
entrevista foi a depoente que mais valorizou a sua aceitação nesse
espaço social. O realce narrativo de unânime inserção configura o
pano de fundo de sua trajetória, que se pode considerar
emblemático, tendo em vista a sua ênfase dedicada. Com suas
próprias palavras registrou que:
Eu tenho bastante amiga aqui em Marechal Cândido Rondon.
Eu tenho gente, mulher e homem, e rapaz, e moça, muito... Eu
sou muito preferida aqui em Marechal Cândido Rondon pra
toda pessoa. Tem bastante demais.**
Uma espécie de carência social herdada de sua trajetória
de trabalho parece movê-la em diferentes direções. A participação

279
religiosa, aindaque sob tensões, informasobresuas lutas de inserção
no bairro, “eu, a primeira que eu foi Pastoral [da criança], participei
da Pastoral. Então a minhafilha, umaamigadela, conseguiuaqui no
Líder”.Enquanto:
Minha netinha e a filha trabalha ali. Ali eles pesa, vê quantos
quilos ta. Eu tô preparando chimarrão e lanche. Eu sou do
lanche c do chimarrão. Lanche e chimarrão. Aquele é meu
parte. Eles não quer que eu saio, porque eu sei fazer isso.
Esse chimarrão cheio de flor pra eles.87
Na Pastoral da Criança, contudo, dona Maria Encinas
lembrou das primeirastensões, e precisou reforçar o seu papel de
importânciapara o grupo:
Alguma vez a gente acha uma mulher, tal de mulher, que a
mulher ficou brava comigo que... tinha uma mulher grávida.
Então queria ganhar cuca [bolo doce preparado com fermen­
to de pão e recheado com requeijão ou frutas]. Daí eu dei pra
ela. Daí cu dei pra ela. Daí a mulher falou, a mulher, a mãe das
crianças falou: pode dar pra mulherada, não precisa dar pras
criança. Por isso que cu pedi pra sair. E daí foram falar pra
dona Maria. A dona Maria veio e falou: dona Maria, você vai
ficar, não vai sair. Então fiquei de novo. Que ele gosta dc mim
ali.8*
A interação religiosa de Maria Encinas, herdada de
antecedentes católicos, foi narrada em subordinação às estratégias
de sobrevivência social e aos mundos do trabalho, mostrando-se
nebulosa e pouco aficionada:
Mas agora mudei. Participar da Igreja da Missão Jesus Cris­
to. Porque a gente vai um relaxamento, ele [povò] começa a
olhar na gente. Ali [na Missão] a gente vai de qualquer [jei­
to], não olha”. Na Igreja Católica enfatizou ter problemas,
pois: nossa! É aquele vestido longo. Olha de assim
[gestualiza] na gente.89
Juntando as pontas dessa trama de vida, observa-se um
intricado movimento de autovalorização individual, motivado pela

280
exploração do trabalho e enredado pelas diversasformas de negação
da vida social. São dimensões subliminares da luta contra umajá
experimentadaapartação social, traduzidaprincipalmentepor meio
de seus mais caros sentimentos de pertencimento e importânciano
mundo.
Quando começou a vida em Marechal Cândido Rondon,
em 1983, Leopoldina também começou como faxineira
trabalhando:
Três vezes por semana. E aí, à tarde, comecei fazer amizade
com uma pessoa ou outra. E aí à tarde eu saía na casa de
algumas pessoas que eu conhecia. Enquanto elas tomavam
chimarrão, eu cortava os cabelos delas e tudo assim. Então
eu comecei assim meia... Depois que eu fui pro salão.90
O aprendizado do oficio de cabeleireira, função que exerce
desde a chegada, é rememorado com detalhes, especialmente
acerca do sentido de melhoriafinanceira, e intransferível, do trabalho
como elemento de conquista da migração. No seu caso, viabilizado
graças ao seu empenho pessoal: “como eu cortava o cabelo em
casa de uma ou outra pessoa que era vizinha, que sabia. Aí aquela
dizia: ah, eu vou tomar chimarrão em tal lugar, você não quer ir
cortar de tal pessoa?Aí eu pegava os material e ia”.91Até que um
dia, “umavizinha disse assim pra mim: que um salão precisava de
uma cabeleireira. Aí eu fui lá”.92
Leopoldina recordou com detalhes sua iniciação ao oficio
de cabeleireira profissional:
A cabeleireira não tava, só estava as duas manicuri. Ela tava
pra Cascavel. Aí nisso chegou uma mulher pra cortar cabelo
e aí as manicuri ligou pra ela em Cascavel. Falou assim: ó, tem
uma pessoa aqui procurando serviço pra cortar cabelo e ta a
cliente tua aqui, pra cortar cabelo. Aí ela falou assim: então
manda essa mulher aí cortar o cabelo dela. Eu cortei. Ela veio
só três dias depois que eu estava trabalhando no salão. En­
tão não conheci ela. Não foi ela que deu o sim pra mim.1”

281
Nesse salão de beleza Leopoldina trabalhou por pouco
tempo, pois:
Fui trabalhando, só que quando ela [a dona] chegou, ela era
uma pessoa bem diferente do que eu pensava. Aí ela impôs
uma série de coisas. Mas eu fui sempre submissa. A respeitar
o que é do outro, assim, em termos de trabalho. É pra fazer
aquilo, é assim. Eu sempre fui subordinada nesse tipo de
coisa, respeitei sempre esse lado.94
Segundo elamesmaobservou, “aos poucos assim, passou
alguma coisa ou outra assim. Porque minhaformade trabalhar era
diferente da dela”.95O novo posto de trabalho significou não
somente o lugar da iniciação do oficio mas também das tensões
com os modos de trabalhar locais vividos quando ainda era
empregadadoméstica:
Então cu sempre tive um jogo muito aberto com os clientes.
|Eu] Já dizia: usa tal produto. Lavei com tal shampoo. Tô
usando tal spray. Vocc c alérgica a isso ou aquilo? Isso não
só foi conquistando a clicnte. Mas cra minha forma dc traba­
lhar. De sempre deixar claro pras pessoas. Eu nunca, nunca
imaginei de enganar uma pessoa. Mesmo se eu tava usando
um produto que era de experiência, já avisava a cliente: ó,
você quer usar tal cor? Se vai ser como experiência não vou
te cobrar, porque é como experiência. Então isso não agra­
dou a dona do salão, não! (risos). Não agradou ela, porque
ela achava que mesmo que era experiência teria que ser co­
brado. Porque aquilo custou pra ela. Ai então, deu contradi­
ção (risos).96
As imagens rituais do ofício informam os sentidos do
trabalho para sua vida. Além disso, ao rememorar os primeiros
tempos, distinguiu sua prática de ofício com um processo ao qual
incorporouvalores solidários e de respeitabilidade, construídos ao
longo de suatrajetória. Até porque:
Eu sempre acho que se é bom pra mim. eu devo usar aquele
também pro outro. Então, cu sempre fui assim. Então, cu acho

282
que foi aí que começou a dar os problemas. Daí, trabalhei oito
meses c daí cu inc afastei. Aí cu não ia trabalhar mais, mas as
mulheres me procuravam cm casa.97
Um sentimento profundo de auto-avaliação marca a
inteireza do depoimento de Leopoldina, narrado como um modo
de viver participante e interveniente em seu meio social. Como
assumiu, “porque eu sempre fui um pouquinho, asam, envolvida...
agora não. Mas gostei bastante de política (risos).”98
Entremos, pois, no universo mais amplo de suas inserções
na coletividade. Algreja Católica, da qual participa até hoje, foi o
lugaronde primeirotentou:
Então cheguei e perguntei pro padre. Falei: olha padre, estou
morando aqui. Se eu sou útil pra alguma coisa...? Aí tinha o
apostolado da oração, era dia de reunião. E aquele dia eles
iam eleger a presidente, naquela época tava com 28 anos. Aí
o padre foi, me apresentou pras senhorinhas. Que é bastante
senhoras de idade, eram 53 senhoras. Aí me apresentou. Mas
já me apresentou como candidata à presidente, e as mulheres
votaram ne mim. Com 28 anos. Aí, bom, tudo bem, sempre fui
metida a querer liderar alguma coisa, tinha facilidade.99
Nos termos do seu relato, sua primeira participação na
oiganização do Apostolado da Oração proporcionou uma grande
troca de experiências dos seus modos de vida e saberes culinários
de outro lugar com aquele grupo de senhorinhas:
Aquele café foi um sucesso, rendeu muito pra gente. Aí, no
final, as pessoas iam na cozinha, queria receita disso, queria
receita daquilo. Então fiquei super conhecida por causa do
cardápio. E foi engraçado, assim. Então aquela renda foi bas­
tante grande. Mas ali, já entrou minha primeira decepção.
Porque na minha cabeça a gente trabalha e depois a Igreja
administra quem precisa eles lá. Então esse era meu ver. Mi­
nha questão, estava cumprindo o trabalho. Aí começou apro­
ximar uma pessoa, a outra, a outra. Eu preciso disso, eu pre­
ciso daquilo, preciso disso e daquilo, sabe? Você olhava aque­
las pessoas bem vestidas c pedindo. Teve uma senhorinha

283
que pediu pra mim assim: mas eu preciso trocar o azulejo do
meu banheiro. Então eu fiquei assim!? Falei assim: olha gen­
te... Então, peguei e cheguei pro padre: olha padre, ta aí o
dinheiro, administra. Vê o que o senhor faz e eu tô saindo.
Daí, permaneci depois algum tempo, assim, colaborando mais
não fui mais.100
Interessante sublinhar uma intersecção entre o fazer-se
profissional, bem-sucedido deLeopoldina, e os estranhamentos
diversos vividos nesse lugar, que a fizeram experimentar e
reavaliar alguns códigos sociais utilizados na interação ao novo
lugar
Então... sofri. Sofri mas aprendi. Aprendi muito. Aprendi a
valorizar um monte de coisas, inclusive a lutar pelas coisas
melhor. Que aí veio aquela... Subiu um pouquinho também na
cabeça.... na cabeça da gente. Assim por causa da indiferen­
ça que as pessoas tinha com a gente por questão de profis­
são, de salário, na escola, em loja, em vários lugares que a
gente chegava. Então veio aquela coisa na cabeça da gente
de ter uma casa melhor, ter um carro melhor. Assim porque se
status aqui preenchia uma coisa, isso chegou um pouquinho
a passar na cabeça da gente. Ainda bem que já passou. Mas
subiu sim, sabe?101
Além da contínua auto-avaliação, a narrativa de
Leopoldina é entrecortada por sentimentos de incompreensão d
ou inconformismo, em relação à dinâmica social e política do
lugar onde vive há quase 20 anos. “Eu sinto muito isso daí. Como
eu digo pro cê: tem muito mistério. Mistério bastante pessoal,
bastante familiar. Essa ambição, essa ganância deles, é uma coisa
genética, hereditária, sei lá”.l02Mesmo assim, ede um outro modo,
tambémtentou intervir:
Mas, rezo muito por Rondon, rezo muito por tudo que já
aconteceu aqui, por tudo que aconteceu com a geração tão
longe, mas, geração que vieram pra cá. Que eles têm muita
coisa do passado que é influenciado na vida deles.103

284
Com um pouco mais de atenção focada nessee emoutros
trechos de seu depoimento, observamos que a experiência de
Leopoldina transcende a percepção das contradições entre
diferentes modos de viver e trabalhar encontrados no novo lugar:
Já enfrentei assim alguns problemas sociais, assim, que achei
que não tava no meu alcance pra mim resolver. Ai então algu­
mas coisas que não tava do meu alcance assim, pra mim re­
solver. Que eu achava que eu deveria pedir ajuda de uma
pessoa superior. Procurei, fui recebida. Esclareci o meu pro­
blema. As pessoas até acharam que eu era muito corajosa.
Apontei aonde é que eu achava que aquilo que eles não
tinha solução, onde que tava. Eles achou que eu fosse mui­
to... não. Mas, eu sempre fui assim. Quando precisei de uma...
pra procurar autoridade, eu fui. Procurei, me esclareci. Então
eles achavam assim pô... A primeira coisa que eles diziam,
você não é daqui! Não! Não sou daqui, mas agora sou daqui.
Então assim: ah! Então tem tal coisa assim. Assim entendo,
mas eu não sei agir. Falei: ah! você não sabe? Você quer que
eu dê uma dica? Eles ficavam ‘p’ da vida. Pôxa! Então esse
medo nunca tive, enfrentei. Enfrentei dificuldade aqui,
complicndinlias. Eles disseram assim: vocc é louca? Falei
assim: bom...l(M
Entretanto deixou evidente em sua narrativa o penetrante
envolvimento, quaseumenfrentamento, aoproportransfoimaçõesque
julgou importantesa partirda suaexperiência. À parteascontradições
e fiiezas que o relato denuncia, há que se notar um sentido de
pertencimento que entrecorta sua leitura dessas transformações,
revelada, sobremaneira, de forma politizada no que tange aos
enfrentamentoslembrados, sobretudoos deinserçãosociale mediados
pda suaauto-estimaconstituídano seufezer-sepelotrabalho.

O trabalho e a pobreza
A pesquisa dc campo também ouviu trajetórias de alguns
filhos dos migrantes da primeira geração, a maioria entre os

285
depoentes. Odilo Encinas, de quem falamos agora pela primeira
vez, é um deles. Caçula dos nove filhos de dona Maria Encinas,
Odilo mudou-se com a mãe para a cidade, em 1978, aos nove
anos de idade. Sua trajetória de trabalho é entrecortada por
recordações da pobreza da família. Quando ainda morava em
Curvado, lembrou que a sobrevivênciaeragarantidapela execução
de pequenastarefesesporádicas paraosvizinhosagricultores. Nesse
tempo, “era todo mundo na lavoura, sempre ocupado. Tinha os
vizinhos que criava porco. E aí eu até trabalhava. Trabalhava ate
cinco horas, seis horas com minha mãe na roça. Aí das seis em
diante eu ia nos vizinho ajudar a cortar pasto. Ajudar a tratar as
vacas, os porco”.105
Ao longo do depoimento, a pobreza foi aos poucos sendo
revelada:
A gente não tinha onde morar. E ele [dono de uma colônia]
cedeu aquele lugar pra gente. Só que dai a gente trabalhava
lá na roça dele, trabalhava pros outros. Então não era assim
especialmente pra ele. A gente não recebia dele pra trabalhar.
Ele tinha uma casa lá e a gente foi lá. Eu trabalhava pra ele,
trabalhava pros outros. Mas a gente tinha que se virar se não
era fixo pra ele. E também a gente não ganhava renda do que
era plantado. Porque lá ele tinha duas colônias. E a gente não
ganhava assim, vamos dizer um salário pra fica lá. É, simples­
mente ele cedeu aquele lugar. Pra gente limpar, lá tinha água.
Tinha um lugar pra a gente viver. Porque a gente não tinha
pra onde ir. E, mas, assim a gente trabalhava em volta pra
poder se virar, se manter, comer.106
Além de destacar a precariedade das relações de trabalho
que mediavama sobrevivênciada famíliano campo, Odilo lembrou
das péssimas condições da moradia em que habitaram por algum
tempo: “porque o que a gente passou lá... E, a gente não tinha
fogão, nosso f. .:ão era o chão. Cama era umas tábuas assim que
nãotinhafeito. E.. O negódo eracalonamãomesmo, na enxada”.107
Todavia, foi aí “então, eu comecei a criarjuízo novo assim. Juízo,

286
não digo porque... Mas eu sei que a vida é difícil”.108
A pobreza e o trabalho duro, entretanto, não impediram a
sobrevivênciano campo e algumasdasestratégias foramlembradas.
Uma delas mostrou ser particularmente importante para Odilo:
Então lá onde a gente morava era uma baixada. Ela descia
assim [faz gesto]. Dai era uma baixada, daí lá em cima subia. E
quando chovia... aí todos os carros... Era uma estrada muito
ruim e passava ônibus, passava muito carro ali. Essa estrada
saía em Pato Bragado, a estrada velha. Hoje eles vão por
Iguiporã porque tem asfalto. Essa estrada ainda existe. Cho­
veu, eu ficáva ali no pé daquele morro ali. E ficava o dia
inteiro ali. O carro que vinha, ele atolava (risos). E daí tinha
um colono que tinha um trator. Ele dava três ou quatro quilô­
metros de casa. Ele era o único assim que tinha trator lá perto.
Que naquela época também era poucos que tinham trator. Era
o... Um [trator] fazia o serviço de cinco, seis colono. Um tra­
tor fazia o serviço. Então, não era todos que tinha trator. E
naquela época, então, era só aquele um que tinha aquele
trator. Aí o carro parava e atolava. E os cara descia, empurra­
va e não ia, porque era barro mesmo! Aí eu descia do barran­
co assim e falava pra eles: vocês não querem um trator pra
puxar? Daí ele falavam: ah, mas você sabe onde é que tem?
Ah, eu sei! Ah, então vai lá chamar. Aí eu ficava assim o dia
inteiro. Aí eu ganhava dos cara que eu ia chamar. E do dono
do trator (risos). E daí então aquilo dava uma renda! (risos).109
Além dajocosidade do episódio que se repetia nos dias
de chuva de sua infância, subliminarmente há um sentimento
interiorizado de subversão da lógica do trabalho que realizava, haja
vista o brilho nos olhos e a fartura das risadas que envolveram a
narrativa. Noutras palavras, seu trabalho da memória procurou
protegê-lo dos meandros da exclusão e do esquecimento.
Odilo revelou-se um observador das transformações
ocorridas no campo, especialmente a que se refere à maneira lenta
como os maquinários agrícolas iam sendo implementadosjá “que
naquela época também era poucos que tinham trator”. Nesse

287
sentido lembrou, ainda, das tarefas manuais e exaustivas realizadas
nosperíodosdecolheita, “quenaqudaépocanãotinhaceifetambém.
Ceifa era caro, e era poucos colonos que tinha. E daí era colhido
soja na foicinha. E depois era trilhado na trilhadeira”. Tamanha a
morosidade do processo de trabalho que “às vezes a gente ia até
10,11 horanaroça, botavam um lampião assim...”110
Quando chegaramà ddade mudaram-se para o bairro da
VilaGaúcha, onde a moradia “era um chiqueiião assim que... Era
um chiqueirão, só que o homem não criava mais porco. Só que
tinha tipo um paiol assim que tinha duas, três repartição. E aí a
gente limpou, a mãe limpoutudo lá. Lavaram e era um lugar que a
gente tinha pra morar naquela época”.111Arespdto da moradia,
Odilo, tal como sua mãe, recordou a pobreza na migração do
campo para a cidade.
Alémda precariedade da moradia, a feita dos utensílios e
instrumentos próprios do mundo urbano ficou marcada em sua
memória:
Até que a gente começou a normalizar, que a minha mãe co­
meçou a comprar um fogão. Começou a comprar uma cama
pra nós, começou a comprar uma pia. E... geladeira foi uma
coisa que depois que a gente morou aqui na cidade demorou
muitos anos pra a gente ter. Televisão eu tinha que ir nos
vizinho."2
Para Odilo, a pobreza e a jornada trabalho que lhe
impunhamo estudo noturno são apresentados como responsáveis
pelasuadesestiuturação pessoal e femiliarocorridaposteriormente:
A gente depois se mudou lá na Coopagril e eu amimei um
emprego lá, pra lá da onde é a [Rádio] Difusora hoje. E eu não
tinha bicicleta, então eu tinha que descer seis horas até na
[Cooperativa] Coopagril a pé, tomar um banho rapidinho,
pegar a minha pasta de estudo subir até no [Colégio] Eron
Domingues. Dali eu tinha que descer em casa, cansado, jan­
tava, dormia. E, e naquela época eu não começava sete e

288
meia, quinze pras oito. Começava as sete da manhã, então
seis horas, cinco e meia. Seis horas tinha que estar de péjá de
novo e começar tudo dia assim. Isso foi, foi me desanimando.
Foi me desanimando e comecei a enturmar com o pessoal aijá
nem na igreja não fui mais. Comecei a tomar... E até andei...
uns oito, oito a nove anos, é na bebida, na droga. Fui viciado
em maconha e assim minha vida foi... Nessa fase ai foi uma
baderna mesmo entende? A gente saia e eu ia Ia pros baile,
badernava, é brigava, aquelajuventude bem louca. Se reunia
tudo no lugar só, tudo jovens da cidade iam só naquele lu-
gar.m
Odilo recordou arrependido o caminho que escolheu.
Particularmente, “porque eu trabalhava assim vamos dizer três,
quatro mês numafirma queria saber do acerto (risos). Porque eu
estava faltando isso ou estava faltando aquilo”.114Por outro lado,
acentuou o fato de que “no trabalho eu sempre fui certo”.115Na
narrativa, mostrou, sobretudo, queadispücêndanãoofàziaromper
comdeterminados padrões morais de honestidade e de trabalhador
eficiente, pois:
Chegava assim no patrão falava: eu quero fazer o acerto e
sair da firma porque... Ah, mas que motivo? Ah, não tem
motivo nenhum, eu quero sair! Ah, fica com nós, trabalha aí.
Fica aí vamos trabalhar, gostamos do seu serviço! Não,
não!.116
Durante o período de sua recuperação da dependência
química, Odilo tentou a vida em Curitiba como operário de uma
grande fabrica de móveis. Esse emprego e a moradia foram
conseguidos por um prezado amigo de infância, do tempo emque
morava em Curvado. Na última casa que em morou cedida pela
empresa, “olha, era um brejo! Então tinha uma favelinha assimpra
baixo e à noite não tinha luz. Tinhaum bico de luz quase na frente
da nossa casa e o resto era matagal. E ali de noite era tiroteio, era
gente que vinha fazer macumba. Olha, era triste ali”.117Todavia,

289
esse não foi o único motivo para o retomo de Curitiba:
Até foi por causa da bebida que eu voltei. Encrenquei lá com
uma gangue lá. Assim coisa de bcbado mesmo. Ai me estra­
nhei com um pessoal lá num bar. E ai começou tudo assim
aquele desgosto de vim embora de novo. Porque já não me
sentia mais seguro andando lá na rua.11’
A bemda verdade, a rememoração, franca e aberta, desse
período traumático somente tomou-se possível pela leitura de um
novo momento de suavida. Amemória não silenciou emrelação às
turbulências do passado, mas exaltou, sobretudo, a transcendência
dessas em significados preciosos de sua superação pessoal e de
reinserção social:
Minha mulher passou o pior comigo, assim, sabe? Passou o
pior, que você possa imaginar num lar assim ela passou comi­
go. É, revolta! Eu chegava em casa não sabia o que fazia,
porque tava sem cabeça, tava semjuízo. E aí ela era católica e
aí ela viu o desespero dentro de casa e procurou uma igreja,
procurou uma igreja e começou a ir. Ai esse pessoal... Como
todo, todo, todo mundano, todo alcoólatra não gosta de cren­
te dejeito nenhum, né? Eu também não gostava (risos) e ela ia.
Até eu ia assim embriagado. Eu ia na igreja e xingava lá. Que eu
queria que ela voltasse pra casa. E ela persistiu, persistiu. E
esse pessoal começou a chegar em mim fazer visita, conversar,
o pessoal. Aí um dia cu, assim, coinccci a gostar deles."9
Quanto então “um dia fizeram um culto lá em casa. Aí
pediram se eu queria aceitar Jesus, mudar de vida. Daí naquele
dia eu e ela [esposa] a gente aceitou Jesus lá em casa”.120Como
reconheceu Odilo, “só que passou uns três, quatro meses, assim,
pra mim é... sair totalmente. E aí comecei a freqüentar a Igreja
[Missão Jesus Cristo]”. Quando então:
Daí eu comecei cantando. Porque na época não tinha bateria
lá. Só tinha guitarra e baixo. Ai, eles trouxeram uma bateria. E
dai eu falei que eu sabia tocar um pouco e tal. Daí eu comecei
a participar.'1-'

290
Embora tendo se sentido acolhido pelo e no espaço
religioso, não se mostrou isento dos dramas de seu presente.
Quando aconteceu a entrevista, Odiloprocuravatrabalho e morava
com a família num cômodo anexo à casa de sua mãe:
Todo mundo quer um emprego e está dificil, mas eu corro
atrás. Deixo endereço. Que nem hoje mesmo eu encontrei um
dono de uma construtora. Daí eu falei: mas você não está
precisando de servente, alguma coisa? Olha, eu peguei um
servente e um pedreiro ontem.122
Odilo frisou que a atual situação não é fruto de sua
despreocupação, mesmo porque:
A cidade sabe que eu estou desempregado. Muitas pessoas
sabem que assim que pintar um emprego ou qualquer traba­
lho eles ligam aqui. E eu vou lá e faço. Seépradois, três dias
eu faço. Se é pra ficar fichado, fichado está dificil, mas assim
uma semana, 15 dias. Então eu acho que aqui na terra é sofri­
do mesmo. E eu creio que aqui em Rondon bom não vai ficar.
A gente espera que melhore, mas isso é algo que só passa
ano e mais ano e promessa e promessa.121
Ainda asam analisou:
São famílias completas. É uma média de duas mil, duas mil e
quintas pessoas sem emprego, sem nada. Passando situação
aí que sabe, bem desagradável. Eu mesmo conheço famílias,
porque nessa classe dc vida que eu vivo eu converso com as
pessoas dessa classe. Converso também de classe alta, por­
que aqui em Rondon eu conheço muitas pessoas. Conheço
pobre, conheço rico. E tem pessoas aí que passam o dia aí c
não tem o que comer.124
Ao longo da trajetória de Odilo, observamos não só a
importânciadotrabalho paraa suainserçãosodal, ou a exclusividade
dessa intersecção, mas também outras dimensões do vivido
entrecruzam-se no fazer-se desse trabalhador. O viés da pobreza,
nesse caso, não é usado apenas como estratégia narrativa de

291
reconhecimento e constituição da classe. Aopção de Odilo pelas
drogas, numdeterminado momento de suavida, de maneira muito
impressionante, é relembrada como parte desse processo:
Que todos da minha... dessa, desse pessoal que eu conheci.
É, tinham assim um pouco de haver assim Tipo assim de uma
mesma, de um mesmo passado. Quase todos sofreram, pas­
saram necessidade, pobres. Então, desse pessoal é... quase
todos. Então a gente conversava muito. É... Oh! Eu morei em
tal lugar! Ich! Lá nós era pobre, lá nós nem tinha o que comer,
não tinha nem com o que se cobrir. Então desse pessoal a
gente trocava idéia. E eu pra mim foi assim tipo uma janela,
uma porta pra sei lá! Pra ver se eu achava coisa melhor. Mas
vem da revolta de tudo aquilo que eu passei. E pra mim foi
tipo assim um refresco.125
De outra maneira também, trata-se da leitura crítica do
conjunto das determinações encontradas enquanto classe, tanto
quanto das opções pessoais tecidas em face das contradições
do lugar e das possibilidades encontradas e/ou foijadas no
caminho.

Mundos do trabalho e paisagem social esgarçada


No conjunto dos trabalhadores depoentes migrados para
a região nos anos 1990, destacam-se as trajetórias de trabalho
esgarçadas pelas itínerâncias, especialmente as transfronteiriças.
Claudemir Mendonça, que é natural de Cruzeiro do Oeste, um
município localizado na porção Noroeste do estado, chegou em
Marechal Cândido Rondon, em 1971, com apenas 12 anos. Antes
disso, sua família havia migrado primeiro para Assis
Chateaubriand:
Que na época tinha bastante o negócio de posse de terra.
Então, a gente vinha muito influído nisso aí. Afim dc ganhar
um pedaço de terra então. Bem, aquilo passava por uma sim­
ples ilusão. A gente ia vivendo e passando tempo. Mas sem­
pre com a esperança de conseguir alguma coisa.126

292
Uma vez chegados à região, a família de Claudemir foi
morar na localidade da Linha Cinco Cantos, onde trabalharam
até 1976. “Então daí venceu o contrato e a gente comprou uma
terra no Paraguai”,127onde permaneceram até 1980. Assim
recordou:
No Paraguai era bom numa parte e noutra era ruim. Porque
pessoal que mora no Paraguai serve como escravo quase.
São obrigado muitas vezes a fazer o que eles querem. Então
muitas vezes acha que o cara é brasileiro, mora lá, é obrigado
eles pisar em cima. E as pessoa tem que se sujeitar muitas
vezes, não tem como sair.12*
Com 21 anos, Claudemir retornou para Marechal
Cândido Rondon, casou-se e teve dois filhos. Algum tempo
depois, voltou a migrar, agora para a cidade de Amambaí, Mato
Grosso do Sul. E “lá foi a história do emprego também, porque
aqui a coisa estava ficando dificil, cada vez pior. Então lá eu fui
pra trabalhar numa serraria, madeireira”.129
DeAmambaí, Claudemir retomou em 1993, casado pela
segunda vez com Maria Aparecida Mendonça, que também
participou pontualmente do depoimento. Sua atual esposa tem
uma trajetória itinerantetal como a sua. Nascida emMinas Gerais,
migrou ainda criança para a cidade de Sete Quedas, Mato Grosso
do Sul, e daí para o Paraguai. Atualmente, sua família está
espalhada entre essa região mato-grossense e o Oeste
paranaense. Os irmãos e o padrasto que, “infelizmente agora ele
ta enfiado no meio do sem-terra. Daí a mãe ta sozinha. Ela não
quer ficar no meio do sem-terra”.130
Na audição do depoimento de Maria, outros elementos
propulsores da mudança são abenamente expressos: “uma vez o
pai dele [do Claudemir] foi mordido pela cobra, daí ele tinha que
vir pra cá Daíjá voltou também, falou como que era aqui tudo. E
também nos tava apurado, mexendo com carvoeiro, daí nós
decidimos vender a casinha que tinha lá e vim pra cá”.131

293
Claudemir e Maria foramgentis e receptivos à realização
da entrevista, mas restringiram-se a dar respostas curtas e rápidas.
Mariamostrou-seapreensivae nervosa Atualmente, os doisresidem
numa casa construída com os esforços da família, pois “só tinha
uma casinhapequena e depois foi aumentando”.132Quandoretomou
a Marechal CândidoRondonpelaterceiravez, Claudemirtrabalhou
dois anos como assalariado numaempresa de artefatos de cimento.
Quando aconteceu a entrevista, dedicava-se a dois
trabalhos distintos: durante o dia era carpinteiro “autônomo”, na
construção civil, emque “daí a gente foi aprendendo algumacoisa,
a gente não sabe muita coisa, mas um pouco a gente entende”;133e
à noite eravendedor de cachorro-quente em seu próprio carrinho;
Maria, que sofre de uma dificuldade física, cuida da casa e dos
filhos. Na síntese de Claudemir, a vida “graças a Deus [é] muito
boa, não dá pra se queixar, emvisto a uns oito e nove anos atrás. É
boa!”134
Além da duplajornada de trabalho, Claudemir falou de
seu envolvimento com as demandas por melhorias das condições
de vida no bairro e de sua participação na Associação de
Moradores, onde ocupavaum caigo na diretoria. Essas dimensões
davida somenteforamlembradas algumtempo depoisde desligado
o gravador, particularmente num momento de maior de
descontração.
Como observamos, Claudemir traçou uma rede de
itínerâncias entre a região e a porção ao sul do Mato Grosso do
Suleo Paraguai, fixando-se somente em 1993. Importante sublinhar
que suatrajetória acabou tendo sempre o Oeste como um lugar de
convergência. Outras trajetórias de trabalho tiveram esta mesma
orientação, embora envolvidas em processos com outras
complexidades. A mineira Vanilda da Aparecida desenhou uma
dessas.
'Vànilda, que é natural deBetim, Minas Gerais, migroupara
a região com seu filho somente em 1996. Entretanto, sua origem

294
tem raízes fundadas no solo do Oeste paranaense desde 1969,
quando nasceu. Seus pais, que eram de Minas, haviam migrado
muito antes disso para a localidade de São Roque da Memória, no
munidpio de Toledo, e depois, para o Paraguai.
O nascimento emBetim aconteceu durante uma viagem
dos pais para Minas. Quando a menina tinha apenas três anos, sua
mãe no “caminho, na ida pra Belo Horizonte, ela faleceu. E nós
tínhamos ficado aqui em Toledo, na casa dessa minha irmã. E,
depois disso, meu pai ainda pegou a gente, nós fomos morar no
Paraguai. Eles tinha umas terra lá. Nós moramos no...”135
Em Betim, \ânilda fòi criada por de uma de suas irmãs,já
o pai “ficava entre vinha pra Mínas e vinha pra Toledo. Ele tinha
terras no Paraguai e tinha também outras coisas em Toledo pra
poder olhar. E numa dessas vindas pra cá ele faleceu aqui. E nós
continuamos lá em Minas e aí minha irmã terminou de criar a
gaite”.136Nesse ínterim, uma parcela dos irmãos ficou espalhada
por toda a região, indusivepdo Paraguai.
Avida de trabalho de Vanilda:
Eu comecei aos 10 anos. Assim a trabalhar, sair de casa, ir pra
fora pra trabalhar. Mas, antes disso eu já trabalhava por per­
to, com outro vizinho pra sobreviver. Então, com 12 anos me
tiraram da escola pra poder trabalhar. Porque não compensa­
va mais investir no estudo. E assim minha infância, o que cu
posso dizer. As poucas coisas que lembro, foi uma infância
muito dificil.157
Aos 12 anos, lembrou ter começado a trabalhar de
doméstica numa casa de família emBelo Horizonte, onde ficava a
semana toda. “Eu só vinha [para Betim] só final de semana. E aí,
assim: vinha aquelas coisas que durante a semana era pra mim
fàzerjá ainda estava me esperando final de semana”.138Essetempo:
Ah, era terrível, mesmo porque não cra a casa da gente. Não
era... O ambiente não era nada parecido com o que a gente
imaginava, sonhava. Porque a gente tinha que trabalhar igual

295
pra sobreviver. E como cra assim: eu ia começar segunda-
feira, minlrn irmãjá ia tipo hoje ou sábado, hoje é sexta-feira e
recebia o mês de salário.139
As condições de vida e trabalho de Vanilda foram
enormemente agravadas com o surgimento de uma gravidez,
quando então:
Foi complicado conviver com isso. Porque era uma coisa
nova e foi complicado conviver com o preconceito dos ou­
tros. Porque eu não podia, eu fui criada pra ser a menina
certinha. Então eu só ia trabalhar, trazer dinheiro pra casa.
Mas eu também não podia ter essa minha vida pessoal, a
minha vida intima não podia acontecer. E isso aconteceu na
casa onde eu trabalhei. A minha patroa sofreu bastante, vivia
jogando.140
Avidapessoal e detrabalho interpenetram-se no seu fàzer-
se como trabalhadora. As fronteiras tênues dessa relação foram
expressas pelo sentimento, ainda que contraditório, de Vanilda em
relação ao preconceito e a relação afetiva com a patroa:
Porque eu cuidava do cabelo dela [patroa], eu cuidava da
sobrancelha. Eu ajudava ela a se ajeitar pra sair. E no período
da gravidez, quando as vezes eu ia pintar o cabelo dela, que
eu encostava minha barriga nela, eu recebia crítica. E eu rece­
bi uma proposta de aborto, assim que ela nunca ia me fazer: o
que uma amiga dela usou com a empregada. A amiga dela
usou o tempo dc serviço que a empregada tinha pra cia fazer
um aborto c ela aceitou!141
Abandonada pelo pai de seu filho e sozinha no mundo,
Vanildaviu-se diante de maiores responsabilidades, o que a obrigou
a arrumar um segundo emprego:
Eu trabalhava durante o dia, no banco, com limpeza e conser­
vação. E à noite, quatro horas, quando terminava meu expe­
diente, eu voltava pra essa casa onde eu morava. Essa casa
eu trabalhei quase seis anos, a última casa que eu trabalhei
antes do Daniel nascer. Depois, o Daniel nasceu, eu fiquei
pouco tempo, foi um período que o Daniel adoeceu muito, eu

296
não tinha quein cuidar. Eu tinha que estar saindo pra médico
e acabei perdendo o emprego, mesmo antes de completar a
experiência.142
Demitida pelo banco, Vanilda moveu-se aguerrida uma
vezmais:
Um dia ele [pai do seu filho] me perguntou: se eu engravidasse
e a pessoa desse o fora, desse no pé, o que eu faria? Eu
respondi que eu ia lazer o que eu fiz, o que eu estou fazendo
hoje. Que eu ia pegar o Daniel, que é o meu nenê e ia sumir no
mundo. E ia cuidar da minha vida, não ia ficar esperando cair
do céu, que eu ia sobreviver igual. É o que está acontecendo
hoje. E sem programar que seria feito dessa forma, no meu
consciente eu fiz dessejeito. E fiz o que veio na frente e foi o
que realmente aconteceu. E eu trabalhei na Fiat. Entrei na
Fiat, eu tinha uma caderneta de poupança, ai resolvi comprar
um pedaço de uma área na favela, mais em baixo no Sovaco
da Cobra. Ai, estava lá... eu não me lembro na época se foi 20
reais. Hoje seriam 200 reais, me parece o valor hoje. Ai eu
juntei o dinheiro de dois meses, assim o que sobrava, o que
não sobrava...143
Na Fiat, “eu não era funcionária própria da montadora.
Eu erafuncionáriade uma empreiteira que prestava serviço dentro
da FiatAutomóveis”.m A narrativa de Vanilda atuou num sentido
de não sujeição às determinações cruéis postas em sua trajetória.
Acumulando os papéis de mãe e trabalhadora, ela ainda se lançou
na luta por um outro emprego e ao projeto da sua casa nunia
favela, o que não acabou não se concretizando, pois:
E eu estava cansada e o que eu tinha que me prendia era o
Daniel. E onde eu ia eu levava junto. Não tem ninguém que
me dizia: você não pode ir, porque o menino não pode ir. E foi
o que eu sempre usei, o argumento que eu sempre usei, quan­
do alguém falava: você não pode ir porque o Daniel assim... a
família dele. Eu sempre falei: não, onde eu for o Daniel vai
comigo. O que me prende em algum lugar é ele e onde eu for
ele pode ir junto e assim foi.145

297
Amatemidadefoi, talvez; agranderesponsável pelatomada
de decisão de voltar ao Paraná quase três décadas depois. Como
notouVanflda, as condições de sobrevivência e a convivênciasocial
exasperaram-na:
Uma pessoa sozinha, sem estrutura nenhuma, carente. Por­
que cidade grande como eu te falei: quer sofrer de solidão vai
pra uma cidade grande! Se você teve uma vida mais sofrida
ainda, sem pai, sem mãe, sem um vínculo familiar, é muito
maior a carência ainda. Eu estava a fim dc dar um rumo na
minha vida, eu ia ter uma família, eu ia ter uma pessoa do meu
lado pro que desse. Só que a história não foi bem assim, eu
sonhei de umjeito, mas se realizou de outra forma.144
Convidadaa retomarpor umade suas irmãs, Vanilda não
pensou duas vezes: migrou. Antes de se fixar, visitou os irmãos
espalhados emFoz do Iguaçu, emToledo, emMarechal Cândido
Rondon e no Paraguai. Há algo de simbólico nesse passeio e no
reencontro com a família, uma maneira de recomporum passado
de convíviofamiliarausente até então.
Aportou inicialmente emFoz do Iguaçu, onde começou
trabalhando como doméstica e pôde, umavez mais, experimentar
atensão entre os valores pessoais solidários e lutapela reprodução
da sua existência como doméstica:
[Segundo teria dito a patroa] Eu só posso te pagar tanto, se
você quer trabalhar por tanto, eu posso te pagar. Se você não
quer, eu não posso te pagar mais. Eu tinha deixado de voltar
pro apartamento onde eu trabalhava pro pessoal. São até
proprietários da (...). Porque eu fiquei com dó dela, porque
ela é uma senhora de mais idade. Uma série de coisas a gente
coloca na hora. Aí eu peguei e falei assim: não, eu não posso
trabalhar por menos! Isso não dá nem pra mim pagar as mi­
nhas despesas, pra comer. Então não vai dar. Porque já não
dava antes, tinha mês que sobra um real, dois reais pra poder
fàzer o rancho do mês. E era o que tinha que passar com
ele.147
No caso de Vanilda, sua narrativa do trabalho não atua
na constituição de um conjunto devaloresreferenciais da profissão
e/ou ofício. O valor do trabalho, além daquele da sobrevivência,
é conferido às relações sociais que o medeiam. Como ela mesmo
sintetizou, “uma série de coisas a gente coloca na hora”.
AindaemFoz do Iguaçu, Vanildatrabalhou numaempresa
de limpeza;
Ai meu irmão trabalha desde que ele mora em Foz do Iguaçu,
ele trabalha na [empresa omitida pelo autor], em Foz do Iguaçu
e eles estavam trocando, terceirizando os serviços gerais de
limpeza, aí eu peguei... E quando ele falou, falei: assim que
aparecer uma vaga, me avisa, que onde eu tiver eu saio e vou
trabalhar, porque tem carteira assinada e tudo. Aí eu trabalhei
e saiu essa vaga. Eu saí dessa casa e fui trabalhar nessa
empresa, no mês de agosto pra setembro. E foi aonde melho­
rou bastante. Porque o que eu fazia, o serviço que eu ia fazer,
o próprio pessoal que pegou, a empresa, não sabia fazer. Eles
não tinham muita prática com maquinário, que era uma
enceradeira industrial, clc não sabia.H8
A mudançapara Marechal Cândido Rondonfoi motivada
pela conquista da uma casa popular financiada no sistema de
mutirão, graças às suas economias e do dinheiro da venda do
tenreno da favela. EmFoz do Iguaçu, a moradia era muito precária:
“uma casa suja, construída em cima de uma fossa, tem barata,
tem pemilongo aos monte, tem sujeira, é uma casafria e eu comprei
a minha casa”.149Pois, se “a gente está no fundo do poço, a
gente não tem pra onde ir, o caminho é fazer o caminho de volta.
Ou então deixar que morra lá dentro. Porque se a gente ta no
fundo do poço, não tem mais pra onde ir, ou você fica lá ou você
sai. E isso eu aprendi muito bem!”.150
Desse modo, “foi onde eu vim parar de volta aqui. Vim
pra Marechal Rondon. Aí eu tive que começar. Só que aí foi mais
fàcil pra mimrecomeçar'’,151poistinhaparenteselaços de amizade
construídos quando esteve na cidade a passeio:

299
Tanto, que assim, eu fui trabalhar, ajudar numa janta. Até de
um pessoal que de vez em quando eu trabalho, a gente tem
uma amizade muito boa. Quando cu vim morar pra cá, nessa
casa, de volta, pra morar definitivo, os horizontes eram ou­
tros. Não sei se já eu não tinha o peso do aluguel, da dificul­
dade de morar, eu tinha mais ânimo.152
EmMarechal Cândido Rondon, Vanildacomeçou a vida
trabalhando mais uma vez como doméstica e enfrentou algumas
dificuldades de convivência e alguns estranhamentos,
especialmentepelo feto de ser sozinha e mãe solteira. A experiência
traumáticafoi transformadaemvalores de tolerância, talvezcomo
estratégia para garantir a inserção e a convivência social naquele
lugar em que se fixou.
A gente não pode se deixar rotular. Eu sou livre. Dentro do
meu país, dentro das regras que se tem, eu posso fazer e
viver da minha forma, só que tem pessoas que são assim.
Assim, como a gente tem que entender que um drogado, nós
hoje temos que saber tratar um drogado. Tem que saber tratar
muito bem o ser humano que não é drogado. E a grande
droga hoje é essa forma de viver hoje, lidar com o vício é o
mínimo, as pessoas tem que se abrir um pouco mais.153
Mesmo tendo falado muito pouco sobre a vida atual,
pois reside na cidade há não mais que sete anos, observa-se a
importância que atribuiu à comunidade do Bairro São Mateus,
onde mora. Vanilda integra a diretoria da Associação dos
Moradores do bairro e tambémparticipa ativamente das atividades
religiosas e das promoções para a construção da Igreja Católica
do Bairro Primavera, próxima à sua casa Além disso, orgulha-se
de ter voltado a estudar, tendo concluído no final de 2002 o
curso supletivo do ensino médio.
O presentenão foi narradonumplanode conquistas plenas,
apesar da aquisição da casa e da conquista do trabalho. Até:
Porque hoje cu ainda coloco... Hoje a minha dificuldade, dc
hoje, não é me manter no trabalho, não é manter as minhas

300
panela cheia. Não é a alimentação do Daniel. O meu grande
desafio é a educação dele! Eu passo informação de umjeito,
mas lá fora ele encontra informação de uma outra forma.1,4
Um olharmaisatento ao conjunto da narrativade Vanilda,
especialmente a maneiracomo lembrou, constata que elaconstruiu
umavalorizaçãomuitopositivade suainserção social emdetrimento
de uma diluição da importância do trabalho e sua dinâmica.
Evidentemente, as relações traumáticas do passado foram
substituídas e/ou transformadas para validar a conquista de sua
trajetória.Até porquecontinuaexercendoumtrabalhorelativamente
pesado e permeado por tensões. O maior peso talvez seja o feto
deumamulherocuparumafunçãotradicionalmentemasculina, qual
seja a laminação de fibras para autos. Nesse caso, embora tenha
falado pouco, não deixou de considerar a maneira corajosa com
que enfrenta os estigmas e preconceitos que rodeiamessadimensão
da sua vida.
Se, porumlado, Vanildaconstruiuumhorizontede sentidos
retroativo, da tragédiaao relativo sucesso, não devemosconsiderar
isso um parâmetro comparativo de leitura dessas trajetórias. Seu
Antonio Dutra dos Santos, de quem falamos agora pela primeira
vez, muito diferentemente, não construiu um enredo laudatório de
sua trajetória.
Seu Antônio, hoje com 67 anos, nasceu na zona rural de
VilaPratos, no munidpio de SantaRosa, Rio Grandedo Sul. Migrou
pelaúltimavezem 1996, de Marangatu, no Paraguai, paraMarechal
Cândido Rondon. Advertiu, entretanto, tratar-se de uma decisão
foijada pela sua esposa, que acatou a contragosto:
Mas, a finada minha esposa pedia sempre: vamos pra lá. Por­
que fica melhor, nós vamos se aposentar. E ela tinha um pro­
blema na cabeça, não estava muito bem dc saúde. E daí, todo
o tempo o remédio nunca podia faltar, nunca!155
SeuAntonio, todavia, mostrou-se nãoter secomprometido
com essas perspectivas desde o prindpio, umavez que “eu sempre

301
eu não quis vim”.156A avaliação pesarosa informa sobre a
precariedade da vida no Paraguai, que os movia pelos rastros de
sonho de sua esposa de encontrar novas condições de saúde e
seguridade, e tambémse reporta, implicitamente, ao atropelamento
que matou sua esposa às margens de uma rodovia próxima à sua
casa. Como expressou, “no começo tava tudo bem. Eu trabalhava
direto, a finada ficava em casa e eu pegava no serviço pra fora e ia
trabalhando direto. Depois que aconteceu que da faleceu daí eujá
num... .
Depois da viuvez, os problemas de saúde dificultaram a
obtenção de trabalho e a sobrevivência na cidade, pois “eu tava
com a úrsula e não sd. Fiz um tratamento grande, mas acho que
bembom ainda não estou. Temdias que a gente sente um pouco,
estava me tratando ainda”.158
Com a idadejá avançada e saúde precária, seuAntonio
atualmentevive com a filha, abandonada pelo marido, que trabalha
como empregada doméstica para sustentar o pai e os cinco filhos.
Como não consegue a aposentadoria, seu Antonio continua
trabalhando esporadicamente como bóia-fria. Já que “não tem
serviço. Quando é o tempo de arrancar mandioca assim, ainda...
Uns dias de serviço a gente anuma”.’59Assim, além dádemanda
sazonal de trabalho que pouco oferece postos de trabalho durante
ano todo, soma-se ainda o fato de se tratar de um trabalho
extremamente pesado para sua idade e de baixíssima remuneração,
já “eu trabalhei muito aqui por dez real por dia, oito. A maioria é
oito real por dia” 160
Ao tentar a aposentadoria, seu Antonio registrou as
contradições que tem enfrentado:
Eles querem nota de agricultor, mas da onde que... Um cara
que trabalha de peão... Porque o patrão ele vende e ganha a
nota, mas nota nós não podemos ganhar. Nem que a gente
trabalhe o ano inteiro de pcao, recebe o ordenadozinho que
ganha.141

302
Muitos dos trabalhadores brasileiros migrados para o
Paraguai, por vezes emaranhados em itinerâncias de um lado e de
outro da fronteira, procuram no Brasil a assistência médica e a
escola para os filhos. Muitos deles buscam, inclusive, a
aposentadoria Tais demandas ativamtensões, aindaque silenciadas,
quando relacionadas ao oferecimento desses serviços públicos,
hajavista o fàto de essestrabalhadores moraremna outra margem
da fronteirae de não seremcontribuintes ativosdos fiscos municipal,
estadual e federal.
EmboraseuAntonioresponsabilizeaúltimamigraçãocomo
a maiscruel eaorigináriadetodos os malesqueenfrentano presente,
toma-seimportantedialogarcoma entristecidanarrativadetrabalho
desse depoente. O objetivo desse intercurso é discutir o caráter
fragmentário e esgarçado dessas trajetórias de brasileiros no
Paraguai de diferentes lugares e tempos, muitos dos quais já
referendados pda pesquisa.
Muitas vezes a migração para o Paraguai é relatada como
uma restrita escolha pessoal pela conquista de espaços
transfronteiriços. Outras determinações e formas de resistência de
modos de vida e trabalho camponeses influemtambém de maneira
importante na decisão de migrar para o outro lado da fronteira.
Todavia, não se pode desviar a atenção do lugar de origem dessa
problemática, uma vez que é nele onde se dá o processo de
fragmentação e esgarçamento. Ouçamos os primórdios datrajetória
de seuAntonio.
Nasddo emfamílianumerosa, cujoprogenitorviviadoente,
seuAntonio lembraque “no tempo que nos era pequeno, nós sofria
muito. Culpa do meu pai que elegastavamuito com doença Muito!
E nós trabalhemos. Nós era em doze na família”.162Na época os
irmãos trabalhavamtodos na meia colônia do pai e “no fimminhas
irmãstrabalhavamumpouco de empregadanumafabricade linhaça
que tinha lá. Trabalharam acho que dois anos, por aí. Depois a
fabrica queimou e parou tudo. A nossa defesa era aquilo”.16J

303
Em 1959, casou-se e migrou pela primeiravez para Santa
Catarina, onde permaneceu por apenas dois anos “e voltei pro
município deTrêsPassos. Lá eu estavaindomaisou menosquando
alinhou, deu uma enchente de 65 no Rio Uruguai e eu fiquei sem
nada. Só eu, a mulher duas criança pequena que eu tinha aquela
vez”.164Nesse tempo:
Aí lá eu fui trabalhar numa terra dum homem lá. Daí um dia
chegou uns agrimensor lá e mediram a terra. Aí disse: pia
quem o senhor ta trabalhando? Estou trabalhando de agre­
gado aqui. Diz ele: não, o senhor era agregado uma vez. Mas
de hoje em diante o senhor não é mais agregado, o senhor é
dono. Digo: mas não tem cabimento isso!. Disse ele: não, mas
essa terra aqui, o dono dessa terra aqui, faz muitos anos, faz
50 anos que não existe mais e ele era um rapaz solteiro. E ele
me falou que era pra fazer o usucapião judicial e ficar. Nós
estava em três morando em cima de trina etária. E repartimos
dez pra cada um.145
Com a enchente em 1965:
Foi mais duro pra mim. Por causa de que a gente vim pra casa,
a gente estava lá na igreja. Chegar em casa, um pouco da
casa ficou, galpão foi tudo, chiqueiro foi tudo. E as criança...
Eu não tinha vendido o milho, o milho foi tudo embora. As
criança pedir comida, comida não linha, ali foi brabo! Ate que
deu pra gente poder viver, porque outro meio não tinha, tudo
que morava naquela região, meu pai, fmado meu pai, também
estava na mesma. Então eu resólvi de pescar. Aí eu vivi um
ano só do peixe.166
Como pescador seuAntonio:
Deu pra fazer dinheiro bem. Passava bem tranqüilo, só com o
peixe. Depois que eu vendi, daí eu já saí de lá. Por causa que
o rio Uruguai é um rio perigoso. Aquilo pra mim foi o pior. A
gente sofrer não é nada, mas pela gente a gente não interes­
sa. Mc interessa com as crianças. Então desgostei com aque­
le lugar e saí de lá.167

304
Em meio à lembrança dolorosa e insistente da enchente, a
posse da terra conseguida por usucapião parece não ter tido um
significado especial para seuAntonio. “Mas daí, quando eu estava
ali ainda, deu uma enchente no rio Uruguai, fiquei sem nada, foi
tudo...”. Depois, “daí eu me desgostei daquele lugar. Eu peguei e
vendi lá, barato até, e vim [mais uma vez] pra Santa Catarina e
fiquei dois anos em Santa Catarina”.'68
SeuAntonioe o cunhado, parceirodeitínerânciasanteiores,
migrarampara o Paraguai em 1974, onde:
Daí nós começamos a plantar hortelã. E naquele tempo dava
bem. Uma época boa pra... Tinha muito dinheiro naqueles
anos. O óleo dava bem e tudo. Agora, terminou com o óleo,
terminou tudo lá também. Agora lá veve a pessoa que tem
bastante. O pobre lá ta pior do que aqui. Mais que dá é o
gado. Quem não trabalha com gado não tem meio.,<í>
A região de Marangatu, referenciadapor sai Antonio, faz
fronteira com o município dePato Bragado, que até 1992 pertencia
ao município de Marechal Cândido Rondon. “Ali eu peguei taxa
da firma e trabalhava só. Não dava renda não. Com o tempo nós
demos renda pra firma, mas depois resolvemos de não dar nada e
ganhemos a parada”.170Ao relembrar dessa parceria, seuAntonio
mostrou-se explicitamente pela primara vez romper com a lógica
entristecida e aparentemente submissaque conduzia a narrativaaté
então:
Daí eu resolvi, dei um tempo e depois disse que não vou dar
mais [a renda] e pronto! Depois então resolvemos de não dar
mais renda e fiquemos aí. Então tem os direito, até hoje está
colocado. Tem gente lá que tem casa de material em cima da
terra e o governo não tira mais, porque lá não pode, não tem
despejo.171
Tendo denotado alguma forma de direito pelas terras
conseguidas no Paraguai, expressou, todavia, implicitamente as
dificuldades do retomo à região, hajavista as suas atuais condições

305
de saúde e o espalhamento de seus quatro filhos por todo o solo
brasileiro. Mesmo tendo como pano de fundo uma narrativa
melancólica, realizadano terreno baldiovizinho à sua casa, somente
interrompida pelo choro dos netos ao seu redor, manifestou algum
entusiasmo ao falar do trabalho. Até porque, “eu gosto muito de
trabalhar com boi, arado, arado grande”,172relembrando assim
antigas formas de trabalho substituídas pelas máquinas. Com esse
tom, sentenciou ao final do depoimento que “eu acho que o que eu
tinha que falar eujá alembrei tudo”.173
É preciso sublinhar que a precarização e a informalidade
não aparecem como problemas exclusivos dos trabalhadores das
médias e grandes cidades, mas afetam de diversos modos, e não
com menos brutezas, os migrados para o Oeste paranaense
chegados em vários tempos. As transformações ocorridas,
especialmente na década de 1990, são automaticamente atribuídas
a ummodelo neoliberal onipresente e onisciente, silenciando outras
dimensões, entre as quais os sentidos e práticas políticas diante
dessas tensões, como novos modos deviver e trabalhar instauradas
pelos trabalhadores.
As problemáticas da precarização e da informalidade,
postas pelos depoentes da pesquisa, são também pautadas pelo
invólucro do desemprego e subemprego, ou suas ameaças latentes,
alcançando de variados modos o viver dos depoentes, incluindo
os chegados há mais tempo e que estariam, por suposto,
definitivamente enraizados. É válido atentar, nesse sentido, que as
narrativas funcionam de uma maneira retrospectiva, e deveras
politizada, acerca dessas dimensões experimentadas nos mundos
do trabalho, sobretudo como um campo de percepção e de lutas
por sobrevivência material e social.
As novas configurações do mundo do trabalho emrelevo
nosanos 1990,jáassimiladaspelaliteraturacrítica ao neoliberalismo
e à globalização, certamente ofereceram evidências importantes.
Entretanto, no plano empírico do estudo, como fizemos notar no

306
diálogo com as memórias, as transformações mostraram-se muito
mais complexas e portadoras de uma riqueza de significados, haja
vista a diversidade das trajetórias marcadas pela itinerância e pelas
bagagens culturais reelaboradas nos processos individuais de
inserção social.
As narrativas dos trabalhadores revelaram outras faces
das transformações nos mundos do trabalho depois de 1970, e
pareceu indicarem a importância de sua permeabilidade social e
política para os sujeitos neles envolvidos. Entre as faces dessa
permeabilidade foi possível observar: as tensões entre as práticas
sociais e as formas de dominação de patrões e poderes
governamentais praticados por agentes reais e não exclusivamente
pelo sistema econômico modemizador como uma entidade
personificada; os novos modos do trabalhar e os sois significados
de sobrevivência material e sodal; os sentimentosvitalizados pdo
trabalho entre as itinerâncias; os sentidospolíticos construídosnesse
campo. Nessa direção, observou-se, sobretudo, a diversidade e
as tensões vividas entre as trajetórias de vida e de trabalho,
entrdaçadas nesse espaço defrontara entretantos tempos e tantas
mudanças.
E importante notar que uma parte significativa dos
munidpios da regjãojá haviaemandpado politicamente até os anos
1960, embora somente na década subseqüente os seus núcleos
urbanos tivessemas suas funções alteradas e tomadas, talvez, mais
visíveis. As memórias dos depoentes, prindpalmente entre os que
vivem há mais tempo na região, em sua maioria matizam os anos
1970 e 1980 como marcos entre as novas e antigas funções
econômicas, políticas e sociais atribuídas aos recentes núcleos
urbanos. Ou seja, os modos de trabalhar não são narrados
distintamente do processo de urbanização ou dos novos modos
de viver urbanos, com suas contradições. De outro modo, o
crescimento populacional dessas cidades, especialmente entre as

307
mais importantes no âmbito de ocupação pela colonizadora
MARIPÁ, comoToledo e Marechal Cândido Rondon, a partir da
década de 1970, é referenciado nas lembranças dos migrantes
como transformação da maior importância com a qual se viram
envolvidos.
Ao mesmo tempo, as narrativas evidenciaram, além da
informalidade e desregulamentação, uma pulverização dos ofícios
e profissões empreendidas pelos migrantes no processo de
enraizamento. Estes, por sua vez, mostraram-se envolvidos nas
determinações das transformações mais amplas do processo
produtivo, tanto quanto nas dinâmicas e tensões de dasse, narradas
como escolhas conscientes e/ou protagonistas.
Outrossim, as narrativas individuaisteceramumatramade
lutaspdo provimentodavidamaterial eda inserçãosocial, marcadas,
sobretudo, pelo componente adidonal do caráter de provisoriedade
das errâncias ou mesmo dos trajetos inconclusos da migração. As
alteridades afirmadas pelas memórias entrelaçam uma paisagem
social históricamarcadapor grandes tensões, nuançadas, sobretudo,
portrajetóriasdetrabalhadoresdebagagensculturaisplurais, vindos
de longínquos lugares e em tempos diversos.
N otas
1ZAAR, MiriamH. A migração rural no oeste paranaense/Brasil: a trajetória
dos “brasiguaios”. [onlineJ Revista Electrónica de Geografia y Ciências
Sociales. UniversidaddcBarcelona [ISSN 1138-9788], n°94 (88), l°deagosto
de 2001. Disponível na Internet via WWW URL: www.ub.es/geocrit/sn-94-
88.htm. Arquivo capturado em 10 de setembro de 2002.
2THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou umplanetário de erros. Rio de
Janeiro, Zahar, 1981,p. 56.
3Ibidem
4Idem, p. 53.
5BOSI, Ecléa.Memória e Sociedade: lembrançasde velhos. SãoPaulo, Cia da
Letras, 1994,p. 471.
6 CRUZ, Hdoisa de Faria Cultura, trabalhadores e viver uibano. Projeto
História. SãoPaulo, PUC/SP, n° 18,1999, p. 302.
7FENELON, DéaRibeiro. O historiadore a culturapopular históriadeclasse
ou história do povo?História &Perspectivas. Uberlândia, UFU,n° 6,jan-jun
de 1992,p. 18.
8 SAATKAMP, \fenilda Desafios, lutas e conquistas: história de Marechal
Cândido Rondon. Cascave1/PR,ASSOESTE, 1985, p. 123.0bservouaautora
que oplantio de liortelã constituía-se numa das principais culturas produzidas
emMarechal CândidoRondon nosanos 1978e 1979, contandocomo número
de 100 e 200 produtores, respectivamente.
9Depoimentodc CosmeFerreira Gonçalves, 54anos, gravadoem24 deabril de
2001, p. 8.
10Ibidem.
11SAATKAMP,\fenilda,Op.Qt, p. 121-123.
12Depoimentode CosmeFerreiraGonçalves, gravadoem2 demaiode2001, p.
15.
13Ibidem.
14SAATKAMP, \fenilda,Op.Gt, p. 116. Mencionoua autora topicamenteque
alguns contratosde trabalhodessa naturezajá eramfirmados desdeum tempo
mais remoto: 1nos anos 1953 e 1954, na Vila GeneralRondon, realizaram-se
asprimeiras experiências doplantio do cajè. Estas experiênciasmotivaram a
vinda de muitos colonospara desenvolverem a cafeicultura. Muitas vezes os
cafezcàs eram plantados e cultivadospor pessoas que tinham contratos com
os donos da terra \
15Depoimentode Cosme Ferreira Gonçalves, 54 anos, gravado em24 deabril
de2001,p. 11.
16Ibidem

309
17Idem, p. 16.
18Idem, p. 17.
l9Idan,p. 15-16.
“ Ibidem.
21Idem, p. 18.
22Idem, p. 19.
“ Idem,p. 19-20.
24Idem, p. 20.
25Ibidem
26Idem, p. 20-21.
27Idem,p. 21.
28Idem,p. 25-26.
29Idem, p. 2.
34Idem, p. 29.
11Ibidem
52Ibidem
33DepoimentodeFrancisooOliveira Souza, 70 anos, gravadoem 13de março
dc2001,p. 5.
54Ibidem.
15Ibidem
36Depoimento dcAna Josefina de Souza, 61 anos, gravado cm 8 dc março dc
2001, p. 6.
37Idem, p. 7.
“ Ibidem
39DepoimentodeFranciscoOliveiraSouza, 70anos, gravadoem 13demaiço
de2001,p.4
40Depoimento de Waldemar Pereira da Silva, 58 anos, gravado em 16 de
fevereirode2001,p. 1.
41Idem, p. 2.
42Idem, p. 3.
43Ibidem
44Idem, p. 4.
45Idem, p. 5.
^Ibidem.
47Ibidem
48Idem, p. 8.
49Idem, p. 5.
50Idem, p. 6.

310
51Ibidem.
52Ibidem.
5JIdem, p. 9.
54Idem, p. 13.
55Ibidem.
“ Ibidem.
57Idem,p. 15-16.
“ Idem, p. 16.
59Depoimento deNair Freitas, 52 anos, gravadoem25 deabri de 2001, p. 4.
60 Ibidem.
61DepoimentodeZelmodeGonzatto, 63 anos, gravadoem27 deabril de2001,
p. 9.
62Idem, p. 10.
63Ibidem.
64Idem, p. 16.
65Idem, p. 20.
66Depoimento dc Maria Senhora doNascimento, 53 anos, gravado cm 26 dc
abrilde2001,p. 14.
67Idem, p. 15.
68Idem, p. 16.
69Idem, p. 9.
70Ibidem
71Ibidem.
72Wem,p. 13.
75Ibidem.
74Idem, p. 10.
75Idem,p. 18.
76Idem, p. 28.
77Ibidem.
78DepoimentodeMariaFelipaEncinas,64anos, gravadoem 14de fevereirode
2001,p. 4.
79Ibidem
80Idem, p. 6.
*'Idem, p. 11.
82Idem, p. 12-13.
83Mem,p. 12.
84Idem, p. 10-11.

311
85Idem, p. 12.
86Idem, p. 9.
87Idem, p. 15.
wIdem, p. 14.
89Ibidem.
90Depoimento de Leopoldina Angélica Lopes, 47 anos, gravado em 15 de
fcvcrcirode2001,p. 9.
91Ibidem.
92Ibidem.
,J Ibidem.
94Ibidem
95Ibidem.
96Ibidem
97Ibidem
98Mem,p.4.
99Idem,p. 12.
'“ Ibidem.
101Idem, p. 10.
102Idem, p. 18.
"“Ibidem.
104Idem,p. 13-14.
105Depoimentode OdiloEncinas, 34anos,gravadoem3demaiode2001,p.
2
106Idem, p. 4.
107Idem, p. 2.
108Ibidem.
109Ibidem.
1,0Idem, p. 3.
111Ibidem.
ll2Idem,p.6.
llJIdem,p.6-7.
114Idem, p. 8.
ll5Ibidem.
‘“ Ibidem.
u7Idem,p. 12.
"*Idan,p. 13.

31 2
119Idem, p. 7.
120Idem, p. 8.
m Ibidem
122Idcin,p. 15.
123Idem, p. 15-16.
124Idem, p. 14.
125Idem, p. 13.
126Depoimentode ClaudemirMendonça, 44 anos, gravadoem lOdefevereiro
de2001,p. 1.
127Idem, p. 3.
128Idem, p. 6.
129Idem, p. 5.
130Depoimento de Maria Aparedda Alves Mendonça, 36 anos, gravado em
lOdefevereirode2001, p. 5.
131Idem, p. 9.
132Depoimentode ClaudemirMendonça, 44anos, gravadoem lOdefevereiro
de2001,p. 10.
133Idem, p. 9.
134Idem, p. 10.
135Depoimento dc Vanilda da Aparecida, 34 anos, gravado cm 27 dc abril dc
2001, p. 2.
136Ibidem
137Idem, p. 1.
138Idem, p. 4.
139Ibidem
140Idem, p. 7.
141Ibidem
142Idem, p. 4.
141Idem, p. 8.
144Idem, p. 6.
145Idem,p. 10-11.
146Idem, p. 8.
147Idem, p. 15.
14*Ibidem.
149Idem, p. 16.
150Idem, p. 17.

313
151Idem, p. 16.
152Idem, p. 17.
155Idem, p. 18.
154Idem, p. 17.
155Depoimento deAntonioDutra dos Santos, 68 anos, gravadoem 3 de maio
de2001,p.6.
I56lbklem.
157Idem, p. 7.
15SIbidem.
159Ibidem
160Idem, p. 8.
“'Idem, p. 7.
162Idem, p. 1.
163Idem, p. 2.
164Idem, p. 1.
145Idem, p. 3.
‘“ Idem, p. 7.
167Idem, p. 8.
168Idem, p. 3.
169Idem, p. 4.
170Idem, p. 5.
171Ibidem.
172Idem, p. 8.
173Idem, p. 9.
C o n sid e r a ç õ e s fin a is

A pesquisa de História Oral não isenta o historiador


das fortes emoções do convívio humano que ela proporciona,
quanto menos o deixa ileso de transformações em sua maneira
de ver o mundo e nele viver. Ao mesmo tempo em que
convidaram a inscrever outras histórias e enredos da fronteira
do Extremo-Oeste paranaense, os depoimentos sulcaram
problemas na maneira como eu interagia e compreendia o seu
tecido social. Esse processo fez-me rever algumas convicções
e olhar de outra maneira as generalizações dos sentidos
dominantes compartilhados socialmente nessa região,
ajudando-me a reconstruir novos sentidos de pertencimento.
É preciso sublinhar que as narrativas não nos poupam
das tensões, sentimentos, dramas e sonhos nelas reveladas,
sem dúvida alguma pouco dados a ver em registros escritos
do cotidiano vivido. Estas dimensões amalgamam-se numa
trama de sentidos polifônicos de dificil desembaraçamento
emocional e se puseram como adicionais à tarefa de
primeiramente produzir o corpus documental da pesquisa
antes de levá-la a cabo. O desafio maior foi incorporar tais
dimensões como essenciais ao fazer historiográfico.
A feitura das entrevistas, tal como o convívio com as
questões sensíveis que elas evocaram, revelou-se um processo
de trocas de emoções e outras cumplicidades afetivas
especiais. Assim, busquei historicizar tais sentidos, mantendo
o cuidado de não cair na apreensão populista dos
depoimentos. De um lado, havia o risco de romantizar as
trajetórias desses trabalhadores e, de outro, de reduzi-los a
uma definitiva subaltemidade. Os riscos foram assumidos, e
certamente muitos dos contornos dessa relação emblemática
permanecem abertos para investigações futuras.
Todavia, não devo deixar de considerar a riqueza do
convívio humano com os depoentes durante e depois da feitura
das entrevistas. Exceto um ou outro depoente que se mostrou
desconfiado e preocupado com sua finalidade da entrevista,
a maioria deles foi gentil e acolhedora. Impressionaram-me a
satisfação e a honradez que expressaram sentir por serem
convidados a falar de suas histórias de vida. Mais ainda,
talvez, pela importância a eles atribuídas no processo
histórico que eu investigava. Fui especialmente envolvido pelo
vigor das entonações e pela seriedade dedicada ao
depoimento, pondo-me a refletir sobre o significado dessas
recordações na afirmação de alteridades e lutas abertas ao
tempo presente.
E difícil falar dessas dimensões sem retomar o fio de
algumas trajetórias e o termo da cumplicidade construída. Seu
Orlando Bauduíno dos Santos, por exemplo, muito
zelosamente encerrou a narrativa com a oferta de um poema
escrito em 20 de fevereiro de 1997, quando então completara
70 anos de idade. No poema escrito no verso de sua foto
dedicada aos filhos assim expressou:
Nesta estrada 70 vezes 365 dias
Encontrei muitas encruzilhadas cheias de espinhos. O ho­
mem que tem fé em Deus vence todas. Sei que estou perto de
chegar na encruzilhada do preconceito, mas vencerei. Deus e
o Anjo da Guarda me guiam. Só tenho duas certezas na vida.
Deus e a morte. O mundo é meu professor. A vida é uma
lâmpada acesa. Apagou acabou!
Além de comovente, o gesto afável do
compartilhamento do poema, a ser deixado aos filhos na
ocasião da sua ausência, evidenciou outros sentidos
subliminares. Isto porque, além de dedicar muita confiabilidade
ao entrevistador, chamou a atenção para outras notações do
tempo que entrecruzou à sua trajetória. Como disse o próprio

31 6
título do poema, tratara-se de “70 vezes 365 dias”, emitindo
um sentido prolongando ao tempo de sua trajetória entre tantos
itinerários e itínerâncias.
O poema não pareceu apenas celebrar, mas tocou
também, subliminarmente, na questão aberta em seu presente,
a que chamou “encruzilhada do preconceito”. Embora pouco
revelado abertamente, o preconceito parece ter continuado
próximo e representado alguma ameaça. Ao tratar a questão
nos termos do porvir, representado pela encruzilhada,
privilegiou os diferentes caminhos que poderão ser tomados,
com a atenção para a idéia de alternativa. Nesse caso, com a
confiança de que “o mundo é meu professor”.
Outras vezes, a confiança permitiu a revelação de
sentidos desconsiderados na entrevista. Seu Liduino Adelino
de Souza, por exemplo, assim finalizou:
Eu chcguci cm Marechal Cândido Rondon um jovem cheio
dc vontade, dc amor pra dar c com vontade dc abarcar, dc
vencer. Uma força de vontade muito grande. E batalhei. Com
já... montei negócio, comércio, granja de suíno, não fui bem!
Aqui não fiz um futuro. Hoje eu penso, penso em só estabili­
dade assim. Penso de... Já não penso assim, por exemplo, de
abarcar o mundo, construir c botar granja dc porco c granja
daqui e coisarada. Essas coisas pra mim já não, já não... já
não... Não é uma coisa que me toca tanto. Eu penso assim de
tocar a vida assim mais... ter o essencial, o básico. Ter o
básico e sair mais. Viajar ainda penso. Ter mais lazer, mais
lazer. Porque eu estou muito desgastado também.1
Importante sublinhar que os infortúnios lembrados por
seu Liduino foram somente explicitados ao final do
depoimento. Antes porém, sua construção narrativa
protagonista não abrira brechas para uma outra avaliação
pessoal de sua trajetória, na sua visão talvez pouco autorizada
socialmente, especialmente tendo em vista as contradições
que ajudara a compor. Numa investida comparativa, comentou:

317
E até a gente contar da vida da gente é... Parece que a pessoa
não vai achar graça nenhuma (risos). Parece que não tem
importância. De repente as pessoas... tem alguém (risos) que
fala que uma besteira dessas tem importância (risos).2
Uma impressionante avalanche de sentidos de derrota
tomou conta da narrativa, já que “aqui eu não fiz um futuro”.
No decorrer da entrevista, foi se sentindo mais seguro para
falar, mesmo porque “é muito bom a gente encontrar, assim,
pessoas disposta, simpática”.3 Um tom narrativo de avaliação
semelhante foi também revelado por dona Vanda Scariott,
que assim procrastinou:
E eu espero que esses anos daqui pra frente só tenho coisas
boas, porque não pode haver muita coisa ruim no meio, por­
que quando a pessoa já está até metade da idade, ela se
considerada forte. Ah! Mas eu posso tudo! Mas quando ela
chega, já tenho um pouco de problema de saúde e a aí a gente
se olha no espelho: Huhn! A gente mudou tanto, bah! Estou
ficando velha. Já estou indo 45 anos e a aparência da gente...
Sempre a gente foi muito assim... A gente sejudiou demais no
trabalho e não teve muito cuidado, enfrentava sol direto. E a
gente se olha no espelho não tem mais concerto! E o pior que
a gente não vai ficar só assim, a gente vai ficar cada dia mais
velha, cada dia mais velha! (risos) Então penso que pelo
menos a velhice a gente tenha mais tranqüilidade.4
Dona Vanda, diferentemente, finalizou o depoimento
com os olhos voltados para “esses anos daqui pra frente”.
Mesmo tendo destacado o desgaste físico resultante da fadiga
do trabalho e da idade, a narrativa pautou-se na vivência do
presente como algo a construir. Interessante observar, assim,
que sua referência ao tempo foi matizada pelo viés do processo,
segundo o qual “estou indo 45 anos”.
Outra dimensão rica e de muita cumplicidade na
produção das narrativas foi relacionada ao aprendizado
construído nas interações sociais ao longo das trajetórias

318
vividas nesse espaço. Uma das mais interessantes foi revelada
por dona Hedwig Ringenberg, que com uma inspiração
religiosa argumentou:
Se é para dizer e vou nessa Igreja, vou naquela se me dizem.
Eu não vou disser eu não devo ir, isso é pecado. Não posso
porque um dia, estou na estrada, estou doente, será que mi­
nha irmã da minha Igreja me pode ajudar? Quem vem é o
próximo pra ajudar, então nós devemos ser unidos e ser ir­
mãos um com o outro e ter amor pro outro.3
Embora não tendo lembrado diretamente de
estranhamentos, dona Hedwig deixou no ar alguns de seus
vestígios, especialmente em relação a diferenças religiosas com
as quais possivelmente tenha conflitado. Interessante, entretanto,
o tom humanitário e universal que conferiu a sua interação ao
meio social, assinalando sua abertura à diversidade, naquele
momento pautada pela presença de um “outro”, o pesquisador.
A feitura da entrevista significou, assim, um convite de
convivência, para a qual apresentou a sua alteridade, que talvez
julgue pouco comum em relação ao meio social em que vive.
Leopoldina Angélica Lopes, por sua vez, também
finalizou o depoimento com uma apreensão narrativa de tom
religioso. Porém, é destacada a visibilidade à transformação
nos estranhamentos que vivenciara:
Dentro de tudo que eu questionei, que eu critiquei, como eu
disse pra você, cresci, não deixei dc ter a minha personalida­
de. Eu cresci muito! Ao mesmo tempo que cu sofri, eu cresci.
E acima de tudo, eu amo essas pessoas, com todos os seus
defeitos, com todas as suas qualidades, todos os seus erros,
seus pecados, suas liberdades. Então, cu amo essas pesso­
as, porque Deus não fez não fez nenhuma raça, fez todos
nós, com a sua imagem e semelhança. É nos que criamos o
outro lado. Então, indiferente de ser alemães, dc serem quem
eles são, eles são filhos dc Deus, como cu sou, como os
africanos são, como todos são.6

319
As conquistas pessoais do trabalho e da realização
familiar pareceram amparar sua reconciliação com o lugar e
as suas tensões. A criticidade que empregou ao longo do
depoimento, como lembrado pela própria depoente, foi
substituída em seu final por um tom conciliador. Até porque
“ao mesmo tempo que eu sofri, eu cresci”, valorizando assim
o aprendizado obtido em sua convivência social.
Para alguns depoentes, a entrevista desafiou
inseguranças e impôs uma revisão na maneira como se viam
até então. Nair Freitas, nesse sentido, buscou compartilhar
com outras pessoas de seu meio a angústia projetada pela
novidade do depoimento em sua vida:
Eu já falei ontem, disse pra minha amiga. Eu disse: ai meu
Deus! Eu estou com pouco estudo e fazer essas entrevistas!
(risos) Ela disse: que nada, é uma honra isso, ela falou. Até
pra falar é difícil.7
No âmbito das discussões propiciadas pelo fazer da
História Oral, é preciso considerar que as trajetórias investigadas
contribuíramde muitasformas paratrazer à cenaoutras indagações
ao processo histórico de formação da paisagem social da região,
que se apresenta muito nebuloso, tendo em vista a deferência
aos grandes acontecimentos e marcos privilegiados pela memória
hegemônica. Outras vezes, esse processo é idealizado pelas
formulações políticas dominantes que atuaram pela retirada do
seu caráter de lugar de fronteira e suas pulsantes contradições.
A pesquisa desnudou algumas faces do tecido social da
fronteira, obscurecidas por análises de tipologias da origem dos
atores ou grupos migratórios coesos que as teriam constituído. O
desprendimento dessa e outras tramas conceituais herdadas das
investigaçõesmigratórias e demográficas mais tradicionais permitiu
historicizar o que denominei neste trabalho de itinerâncias. Assim,
busquei apreender o movimento da migração e o caráter
inconduso das trajetórias nele envolvidas, que vemos em milhares

320
de outros brasileiros desenraizados e ao léu da conquista do
“futuro” nos mais longínquos lugares do território do país.
Assim, a investigação propôs um mesmo plano de análise
para as trajetórias de trabalhadores chegados de lugares e
momentos diversos. Essa opção metodológica firmou-se como
o eixo da problemática, embora seja evidente a ameaça de sua
legitimidade nos espaços dominantes. Além da confirmação da
hipótese inicial de uma diversidaderegional significativados pontos
de partida e das paradas anteriores ao Oeste paranaense dos
trabalhadores migrantes que lá aportaram, a mais importante
contribuição a que se chegou nessa direção foi a da desmistificação
das trajetórias dos migrantes gaúchos e catarinenses que
continuarama migrar mesmo depois do período pós-colonização,
destacando, inclusive, as itínerâncias e o seu carátcr inconcluso,
por vezes subsumidas ao afogadilho das interpretações do fluxo
ou surto migratório das análises histórico-demógraficas.
Os depoimentos foram imprescindíveis na apreensão
dessas tensões silenciadas e para qualificar as trajetórias sociais
aportadas e/ou de passagem pela região nas últimas três décadas.
Embora o recorte temporal da pesquisa tivesse objetivado os
modos de vida e as experiências dos chegados no período
posterior a 1970, a investigação não prescindiu o entrecruzamento
dos itinerários e seus significados para os migrados nos diferentes
momentos, inclusive durante a colonização, permitindo assim
confrontar motivações da migração e estranhamentos diversos
engendrados no interior e entre as classes.
As narrativas ajudaram a apreender, além da tensão mais
aparente resultante da afirmação das diferenças étnicas, um outro
campo onde as lutas e sentidos foram marcados pelo e no conflito
de classes. O estudo assimdialogou com os trabalhos da memória
como processos de afirmação identitárias e outras dimensões
destas lutas, privilegiando o fazer-se dos trabalhadores em relação
às tensões engendradas nesse campo.

321
No que se refere aos estranhamentos lembrados e/ou
reelaborados, entre aqueles os relacionados ao racismo e outros
estereótipos de classe, a pesquisa problematizou não só suas
múltiplas faces, mas também as estratégias de inserção e
sobrevivência sociais alternativas construídas a partir delas, entre
as quais destacaram-se os aprendizados profissionais ou do ofício
e a valorização do trabalho como elementos simbólicos essenciais
de avaliação das conquistas obtidas. Em contrapartida,
diagnosticou uma multiplicidade de tensões experimentadas no
mundo do trabalho, particularmente as correlacionadas às
itínerâncias e bagagens culturais diversas que se confrontaram na
paisagem social dessa fronteira.
Como historiador, e sujeito da pesquisa, preciso
considerar que as descobertas muito fertilizaram o solo de minha
atuação profissional e pessoal. Novas problemáticas foram
sulcadas para próximas pesquisas, especialmente sobre as
dinâmicas do mundo do trabalho e as formas alternativas de
sobrevivência social construídas no cotidiano. As sementes do
desafio foram lançadas, tanto que levo comigo a sensível
provocação de dona Vanda: “talvez um diavocê faça um filme. E
lá no meio daquele filme tem uma pessoa assim que tem que
enfrentar uns problemas que nem eu. E que saiba fazer o papel,
voiT*
N otas

1 Depoimento de Liduino Adelino de Souza, -53 anos, gravado em 5 de


fevereiro de 2001, -p. 23
1 Idem, -p. 24,
5Ibidem.
4Depoimento dc Vanderlei Scariott, 46 anos, gravado em 22 de fevereiro
de 2001, p. 45.
5 Depoimento de Hedwig Ringenberg, 76 anos, gravado em 7 de
fevereiro de 2001.
6Depoimento de Leopoldina Angélica Lopes, 48 anos, gravado em 15
de fevereiro de 2001, p. 21.
7Depoimento de Nair Freitas, 53 anos, gravado em 25 de abril de 2001,
p. 18.
*Depoimento de \fenderlei Scariott, 46 anos, gravado em 22 de fevereiro
de 2001, p. 45.
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O rais
Entrevistas realizadas pelo autor
AMARA ANTONIA LINS. Nascida em 1930, em Lagoa dos Gatos/PE, viúva,
teve 13 filhos. Veio de Borrazópolis em 1961, no então distrito de Novo
Horizonte e mudou-se para Marechal Cândido Rondon em 1971. Aposentada,
atualmente mora com uma das filhas e vive da pensão do marido.
ANA JOSEFINA DE SOUZA (DONANA). Nascida em 1941, em Condeúba/BA,
casada, 3 filhos. Mudou de Iporã/PR para Marechal Cândido Rondon em 1973.
Trabalhou como costureira c vendedora autônoma dc roupas. Quando aconteceu
a entrevista trabalhava numa pequena fábrica de confecções.

325
ANTONIO DUTRA DOS SANTOS. Nascido cm 1935, cm Santa Rosa/RS,
trabalhador volante, viúvo, 4 filhos. Migrou do Paraguai em 1996 Chegou em
Marechal Cândido Rondon em 1996 vindo do Paraguai. Ainda não aposentado,
quando da entrevista estava sem trabalho.
CLAUDEMIR MENDONÇA (NIL). Nascido em 1959, em Cruzeiro do Oeste/
Pr, casado, 3 filhos. Mudou-se de Assis Chateaubriand para Marechal Cândido
Rondon em 1971. Remigrou pouco tempo depois, vindo a retornar em 1993.
Quando esteve no Mato Grosso do Sul trabalhou como carvoeiro. Em Marechal
Cândido Rondon entre outros como operário numa fábrica de lajes. Quando o
entrevistei trabalhava em dois turnos, de pedreiro durante o dia e à noite como
vendedor de cachorro quente.
COSME FERREIRA GONÇALVES (PRACINHA). Nascido em 1948, em Itueta/
MG, casado, 6 filhos. Chegou em Marechal Cândido Rondon em 1972. Quando
chegou na região trabalhou como parceiro e assalariado no campo. Começou a
vida na cidade como vendedor ambulante de frutas e atualmente trabalha com
a família em seu pequeno comércio de secos e molhados que montou num dos
conjuntos habitacionais.
CURT RINGENBERG. Nascido em 1927, em Ibirama/SC, aposentado, casado,
3 filhos. Chegou no distrito de Porto Mendes em 1961 e migrou para Marechal
Cândido Rondon em 1981, para onde veio depois de perder uma parte da terra
para o represamento de Itaipu. Hoje está aposentado, mas ainda esporadicamente
ainda trabalha nas plantações com o seu filho.
FRANCISCO OLIVEIRA SOUZA (CHICO). Nascido em 1932, em Palmeiras
dos índios/AL casado, 3 filhos. Chegou em Marechal Cândido Rondon em
1973, onde começou a vida como carrinheiro, depois foi vigilante bancário.
Emigrou para Rondônia em 1985, ao retornar trabalhou como vigilante até se
aposentar.
HEDWIG RINGENBERG. Nascida em 1926, em Ibirama/SC, casada, 3 filhos.
Chegou ao distrito de Porto Mendes em 1961 e mudou-se para a cidade em 1981,
para onde veio depois de perder uma parte da terra para o represamento de Itaipu.
Atualmente está aposentada.
LEOPOLDINA ANGÉLICA LOPES. Nascida em 1955, em Nova Rezende/MG,
casada, 3 filhos. Chegou em Marechal Cândido Rondon, em 1983, vinda de
Curitiba. Começou na cidade trabalhando como faxineira. Trabalha como
cabeleireira há muitos anos.
LIDUÍNO ADELINO DE SOUZA. Nascido em 1950, em Concórdia/SC, casado,
3 filhos. Chegou a Marechal Cândido Rondon em 1975. Na região trabalhou
como operário frigorífico, vendedor dc peças de máquinas e eletro-eletrônicos.
Há muitos anos trabalha com a ajuda da esposa em sua pequena loja de produtos
agropecuários.
MARGARIDA Nascida cm 1954., em Paraisópolis/MCí, viúva, 3 filhos. Chegou
na cidade em 1992. Migrou entre outros lugares para Jundiaí/SP, Paraguai e Mato
Grosso do Sul. Começou a vida na cidade como Gari. Aprendeu a costurar e faz
pequenos consertos de roupas. Quando entrevistada estava desempregada.
MARIA APARECIDA ALVES MENDONÇA. Nascida em 1973, em Cezita/MG,
casada, 3 filhos. Chegou do Mato Grosso do Sul, em 1993. Cuida da casa e dos
filhos.
MARIAAPARECIDA DE OLIVEIRA. Nascida em 1967, em Porterinha/MG,
casada, uma filha. Chegou em Marechal Cândido Rondon em 1986. Quando

326
chegou na cidade trabalhou como empregada doméstica, faxineira e funcionária
de um mercado. Atualmente cuida da casa.
MARIA FELIPA ENCINAS. Nascida em 1938, em Guaíra/PR, casada, 9 filhos.
Chegou ao distrito de Belmonte no final dos anos 50 e foi morar na cidade em
1985. Trabalhou no campo como agregada e de favor. Na cidade começou a vida
como empregada doméstica e faxineira. Depois trabalhou muitos anos como
gari, mas quando entrevistada encontrava-se desempregada.
MARIA JOSÉ DE SOUZA. Nascida em 1953, em Siqueira Campos/PR, casada, 3
filhos. Chegou em Marechal Cândido Rondon em 1975. Começou a vida na
cidade como enfermeira. Trabalhou numa farmácia e hoje ajuda o marido no
pequeno comercio de produtos agropecuários. Além disso, complementa a renda
da família fazendo bicos esporádicos de cozinheira nos finais de semana em
restaurantes da cidade.
MARIA SENHORA DO NASCIMENTO. Nascida de 1949, em Lagoa Seca/SP,
casada, 5 filhos. Chegou em Marechal Cândido Rondon em 1986. Sua vida foi
marcada por muitos itinerários, entre os quais no Estado de Minas e no Norte e
Noroeste do Paraná. Começou a vida na cidade trabalhando como bóia-fria,
faxineira e doméstica. Hoje é servidora pública municipal na função de faxineira
escolar.
MARIZETE DANTAS DOS SANTOS. Nascida em 1946, em Cícero Dantas/BA,
casada, 7 filhos. Chegou em Marechal Cândido Rondon em 1986. Viveu em
muitos lugares para acompanhar o marido que trabalhava para uma grande
empreiteira. Sempre trabalhou como dona de casa.
MATILDE SCHAEFER. Nascida em 1928, em Santo Cristo/RS, viúva, 13 filhos.
Chegou em Marechal Cândido Rondon na primeira metade da década de 60. No
início dos anos 80 teve as terras indenizadas para a construção de Itaipu e migrou
para o município de Gaúcha do Norte, no estado do Mato Grosso, retornando
para Marechal Cândido Rondon em 1992. Hoje vive sozinha com a pensão do
marido.
NAIR FREITAS. Nascida em 1950, em Santo Cristo/RS, divorciada, 2 filhos.
Chegou com a família em Marechal Cândido Rondon em 1960. Trabalhou na
cidade como faxineira e vendedora numa loja de eletrodomésticos. Quando se
casou migrou para Guarapuava e Paranaguá, ambas cidades do Paraná. Em 1990
retomou e atualmente trabalha como faxineira numa escola privada.
NEUZA MARIA DA FÁTIMA NEVES OLIVEIRA. Nascida cm Barretos/SP, cm
1954, viúva, 2 filhos. Chegou em Marechal Cândido Rondon em 1976 na
companhia do marido que viera para trabalhar numa grande imobiliária da cidade.
Fez faculdade dc História e tornou-se professora do ensino fundamental no
município. Atualmente desempenha funções administrativas na Prefeitura.
ODILO ENCINAS. Nascido em 1969, no distrito de Curvado de Marechal Cândido
Rondon. Casado, 2 filhos. Migrou do campo para a cidade em 1978. Na cidade
trabalhou como carregador em algumas empresas da cidade até migrar para Curitiba
onde trabalhou numa fábrica de móveis, mas já retomou há algum tempo. Quando
aconteceu a entrevista encontrava-se desempregado.
ORLANDO BAUDUÍNO DOS SANTOS. Nascido em 1927, em Bonfim de Feira/
BA, casado, 9 filhos. Chegou em Marechal Cândido Rondon cm 1975. Antes
chegar na região trabalhou em vánas cidades do interior do Estado de São Paulo
e da região Norte do Paraná. Na cidade trabalhou como foguista de uma cooperativa
e zelador de um colégio público da cidade. Atualmente está aposentado.

327
PAULO SELHORST Nascido em 1950, em Braço do Norte/SC, casado, 2 filhos.
Chegou em Marechal Cândido Rondon em 1972. Depois migrou para São Paulo
e Bahia para estudar num seminário de formação católica. Em 1987 retomou e
começou a trabalhar como pedreiro. Trabalhou como assalariado, mas atualmente
como autônomo. Foi um dos fundadores do Sindicato da sua categoria e milita há
anos junto ao diretório do Partido dos Trabalhadores (PT) municipal.
UDILMA LINS WEIRICH. Nascida 1958, em Borrazópolis/PR, casada, tem 4
filhos. Chegou ao meio rural do distrito de Novo Horizonte, de Marechal Cândido
Rondon, em 1961 e na cidade em 1971. Na cidade trabalhou numa das rádios e fez
faculdade de Ciências Contábeis. Tomou-se professora do ensino fundamental do
município, mas atualmente trabalha em atividades administrativas na Prefeitura.
VANDERLEY SCARIOTT (DONA VANDA). Nascida em 1957, em São Miguel
do Oeste/SC, casada, 7 filhos, sendo dois adotivos. Chegou em Marechal Cândido
Rondon em 1990. Antes porém, migrou com o marido de Toledo/PR para o
Paraguai diversas vezes. Também registrou muitos itinerários por várias cidades
do Oeste paranaense. Trabalhou na agricultura, como faxineira, doméstica, operária
de facção. Na cidade estudou corte e costura e deseja ter seu próprio atelier. Além
disso é orquidófila e tem em sua casa uma grande coleção de plantas várias
espécies. Estudava no ensino fundamental supletivo. Quando aconteceu a
entrevista estava desempregada.
VANILDA DA APARECIDA. Nascida em 1969, em Betim/MG, solteira, um
filho. Embora nascida em Minas Gerais, sua família havia se espalhado pela
região e no Paraguai desde os anos 50. Em Belo Horizonte trabalhou como
faxineira, doméstica e em Betim como operária terceirizada da FIAT. Em face
das dificuldades de sobrevivência resolveu migrar nos anos noventa para tentar a
vida em Foz do Iguaçu onde viveu por algum tempo. Em 1996 mudou-se para
Marechal Cândido Rondon, onde recomeçou a vida como doméstica. Atualmente
trabalha como auxiliar de laminação. Na cidade fez o ensino médio pelo supletivo
e estava tentando o vestibular.
WALDEMAR PEREIRA DA SILVA. Nascido em 1945, em Ijuí/SC, casado, 2
filhas. Chegou em Marechal Cândido Rondon em 1970. Desde que chegou trabalhou
como operário frigorífico, onde se especializou como técnico de refrigeração.
Em 1988 recebeu o Premio Operário Padrão Paraná, promovido pelo SESI e o
jornal O Globo. Trabalhou no oficio até se aposentar. Quando entrevistado
trabalhava como vigilante noturno.
ZELMO FELICIANO GONZATTO. Nascido em 1939, em Ijuí/RS, casado, 6
filhos Migrou do Rio Grande do Sul para a região em 1973, para trabalhar como
motorista de uma grande serraria em Itacorá. Com a iminência de Itaipu perdeu
o emprego e mudou-se em 1974 para Marechal Cândido Rondon. Na cidade
trabalhou como carpinteiro de algumas construtoras até se aposentar Também
participou da criação do Sindicato da categoria.
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