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DAISaAC P= ta nelson brissac peixoto lJ Ff Da 0 espaco de trabalho e laze téncia do homem urbano, motiva e: Roe RUE ee ecco eRe a ERG ee Meu Ta Teneo eee rome ce tLe eee desmedido das metrépoles como uma Toco ence tee mon ce ferro ON en a A arte assim mobilizada se exerce em CTT ORT SUT OC SAME UE RC ELT PER e cr cme ie Oo noe ec enn em nemo E no esforco de reinventar a localizagao ea permanéneia. Trata-se portanto, 0 autor afirma, de redescobrir a cidade, Pee nG nase enon | o horizonte confundir-se com a calga- 2€ Na qual olhar para cima equivale PRO Eco een Oe SU ee TEM errr oem OMT ese CO eer on On Tecra Con Ne Oneme Co Mme erm mT Tie Ease nen eC ME eo em diversos planos. Paz surgir uma PORE cE MeO TEC M NITE een RUM Con SRT CC Rae Mee OTE TCO OR eam CO Ce propor¢ae, contornos nem fim”. Autor de obras instigantes e de van- guarda intelectual, Nelson ‘Brissac Fer ORME TC MeO ce Te at PCMAG Rta Tad ont W eae n Cue Re LIN DAU LenS Le eee eC Neem ae oe FTE RTs CSE ATC een Po OEE Ma Mer on Eo) apropriacao institucional e as imposi re Une mee Lorene ny COMO Ones Con NOOO cio 227112 COMPRA PAISAGENS URBANAS Nelson Brissac Peixoto editora senac so paulo SUMARIO [6 [8] [16 [1741 [208] (292) Nota do Editor Introdugao Luz Visdo da cidade Retratos Orrosto ea paisagem Quadros mecanicos Fisionomias urbanas Janelas, estatuas Um outro paisagismo Muros Nao se vé com os olhos Tempo As imagens sabem esperar? Transito Video: arquitetura/pintura/cinema Ruinas Oessencial ainda esta por vir Imago urbis A experiéncia da construgao Distancias Arquitetura dos limites Informe Urbanismo e arte nas megacidades 227112 NOTA DO EDITOR Em nova edic¢ao e com 0 selo exclusivo do Senac Sao Paulo, aparece este Paisagens urbanas, de Nelson Brissac Peixoto, que desde 1996, em seu Jangamento, desfruta do prestigio de uma obra de referéncia em diversos campos ~ arquitetura, urbanismo, fotografia, artes plasticas, cinema, lite- ratura, filosofia. Trata-se de um estudo sobre cidades e sobre como nelas se situa as pessoas que as fazem eas habitam. F ainda, e principalmente, um livro sobre o olhar para as paisagens, num mundo que, segundo o autor, esta ficando opaco e ja nao se descortina como um horizonte sem fim. “As cidades sao as paisagens contemporaneas”, ele diz, e néo quer apontar apenas para a megacidade de Sao Paulo (embora esta protagonize 0 tex- to). Aponta para as pracas de Belém, que “circunscrevem o mesmo vazio de Brasilia”. Para as margens lamacentas do Capibaribe, em Recife, e 0 solo pedregoso de Sevilha. Para “Manaus dos igarapés e as cidades torna- das pela égua e a bruma do vale do Pd”. Diante de um horizonte que nao se deixa perpassar, da paisagem que é um muro, “o olhar é um embate”. Nelson Brissac Peixoto faz aqui uma reflexdo sobre a arte em rela- Gao com o lugar, base tedrica de um importante projeto aplicado na capi- tal paulista, do qual resultou também 0 notavel livro, por ele organizado, Intervencées urbanas. Arte/Cidade, lancamento do Senac Sao Paulo em 2002. INTRODUGAO 227112 Nada aparentemente mais anacr6nico do que um livro sobre paisagens. A avalanche mididtica, levando-nos a olhar cada vez mais rapidamente as coisas, relegou essas vistas — com suas tintas a cada dia mais esmaecidas e empoeiradas — as pinacotecas. 0 mundo nao se descortina mais, como nas perspectivas tradicionais, num horizonte sem fim. Nao se pode mais pretender olhé-lo como fazia o pintor, com seu cavalete armado no alto de uma colina: como de uma janela. No horizonte, wm mundo cada vez mais opaco. Quanto mais se re- trata, mais as coisas nos escapam. Uma obsessao que, ao invés de criar transparéncia, s6 redobra essa saturagao. Qual o destino de nossas ima- gens, esses espectros descartaveis e ser significado? Ja se destacou a modernidade da paisagem, sua aparicao recente na historia da arte: a pintura de paisagern — revelando o trabalho das nuvens — foia maior c1 do século XIX.' De fato, Constable conciliou a defesa da experimentacao coma cépia de schemata de nuvens feitas por paisagistas do século XVIII, rearticulando-as a ponto de tornd-las irreconheciveis. Nao foi essa nova fungao da arte, quando a pintura narrativa classica morreu, que traria a pintura de paisagens ao primeiro plano?? Toda a hist6ria da pintura moderna poderia ser contada a partir desse elemento celeste: a nebulosidade se presta a um questionamento John Ruskin, Les peintres modernes: le paysage (Paris: Laurens, 1914) = Emest H. Gombrich, Arte ¢ ilusdo (Sao Paulo: Martins Fontes, 1985), p Projeto Arte/Cidade - Cidade sem janelas 227112 site radical do dispositivo perspéctico classico. A nuvem, este “corpo sem superficie” que nao se deixa retratar, por muito tempo excluido do cam- po pictérico, serviu a pintura para problematizar a perspectiva, contesta- da por essas massas nebulosas.? 0 esquema da visdéo converte-se numa justaposicao de planos heterogéneos, pois a fluidez das nuvens requer um olhar que percorra lateralmente o quadro. A pintura de paisagens instaura uma nova maneira de ver 0 mundo. A janela também aparece na arte moderna. Mas, ao contrario da tradicao perspectivista, aqui essa imagem 6 tomada como simultanea- mente transparente’e opaca. A superficie que admite luz também reflete. Leva para dentro e da para fora: duplicidade que faz com que se estenda, como uma grelha, em todas as diregdes, até o infinito. A janela cumpre a mesina fungao que tiveram as nuvens: instaura o espaco sem profundida- de nem limites, que conforma a visualidade contemporanea. Cada obra de arte se apresenta, entao, como mero fragmento, uma mintscula peca arbitrariamente recortada de um tecido infinitamente mais amplo. Como se olhassemos a paisagem através de uma janela, 0 quadro truncando a vista, mas nunca abalando a certeza de que a paisa- gem continua para além dos limites do que podemos ver naquele mo- mento.‘ Esse alargamento lateral do espaco 6 proporcionado, paradoxal- mente, pela janela. A paisagerm entaéo deixa de ser aquilo que se oferece 14 ao fundo para se converter no campo, plano e extenso, em que se articulam todas as coisas: uma grade. As cidades sao as paisagens contemporaneas. O skyline de Sao Paulo, visto do alto dos prédios, alastra-se como o chao arcaico do Pelourinho. As pracas de Belém circunscrevem o mesmo vazio de Brasilia. As margens lamacentas do Capibaribe em Recife — diz 0 poeta — e 0 solo pedregoso de Sevilha. Manaus dos igarapés e as cidades tomadas pela agua e a bruma do Vale do Po. Hubert Damisch, Théorie du nuage (Paris: Seuil, 1972). * Rosalind Krauss, “Grids”, em The Originality of the Avant-Garde and Other Myths (Cambridge: MIT Press, 1986) Projeto Arte/Cidade - A cidade e seus fluxos 113] rrecugao Campo de interseccao de pintura e fotografia, cinema e video. En- tre todas essas imagens e a arquitetura. Horizonte saturado de inscri- Goes, depdsita em que se acumulam vestigios arqueolégicos, antigos monumentos, tragos de meméria e 0 imaginario criado pela arte contem- poranea. Esse cruzamento entre diferentes espacos e tempos, entre di- versos suportes ¢ tipos de imagem, é que constitui a paisagem das cidades. O olhar hoje 6 um embate com uma superficie que nao se deixa perpassar. Cidades sem janelas, um horizonte cada vez mais espesso e concreto. Superficie que enruga, fende, descasca. Sobreposicao de inii- meras camadas de material, actmulo de coisas que se recusam a partir. Tudo 6 textura: o skyline confunde-se com a calcada; olhar para cima. equivale a voltar-se para 0 chao. A paisagem 6 um muro. Cidades feitas de fluxos, em transito permanente, sistema de interfaces. Fraturas que esgarcam 0 tecido urbano, desprovido de rosto e historia. Mas esses fragmentos criam analogias, produzem inusitados entrelagamentos. Um campo vazado e permedvel através do qual transi- tam as coisas. Tudo se passa nessas franjas, nesses espacos intersticiais, nessas pregas. Cidades de historias, dotadas do peso e da permanéncia das extraor- dinarias paisagens. Horizontes de pedra, onde 0 mais moderno convive com a decadéncia, 0 futuro com a antiguidade. Um solo arcaico, juncado de vestigios e lembrangas. Visdes da cidade como um sitio arqueoldgico. Os textos aqui apresentados situam-se neste territ6rio intermedia- rio, de transigao, entre diferentes suportes, na passagem da pintura a fotografia, da arquitetura ao cinema. Formam um quadro necessariamente fragmentado; tudo 0 que se pode visar sao constelacSes que os articu- lem, Cada capitulo corresponde a um recorte possivel ~ e inteiramente diferente — da relacao entre arte e cidade. O resultado 6 um caleidosc6- pio que talvez sintetize melhor a paisagern urbana. Tenta-se abordar as obras dos artistas enfocados mediante outras referéncias, buscadas em 4reas totalmente distintas. Assim é que 0 tra- balho de um pintor aparece através dos projetos de um arquiteto, videos que colocam a questéo do tempo sao abordados tendo 0 cinema como referéncia e ensaios fotograficos sao revelados a partir dos “quadros mecanicos” do século XIX e da escultura contemporanea. Ea experién- cia da metrépole, a cidade como horizonte, que possibilita esse entrela- camento de linguagens. Daf paisagens urbanas. A crise da autonomia modernista da obra de arte, tomada como um objeto fechado em si préprio e isolado no espa- co, coloca a questao da localizagéo, da relagdo da obra com o entorno. A grade e as nuvens ~ categorias centrais da critica de arte contermporanea —estabelecem este recorte mais amplo em que a obra se inscreve: a pai- sagem. Da mesma forma, é preciso que aquele que vé nao seja estranho ao mundo que ele olha. Ele deve ser visto de fora, instalado em meio as coisas, surpreendido no ato de consideré-las de determinado lugar? Paisagens urbanas 6 uma reflexao sobre a arte em relagdo defini- da com o lugar. A nocao de especificidade do sitio, propria ao trabalho escultérico, ganha aqui conotacdo mais ampla. Trata-se de tirar as obras das instituigoes culturais, dos circuitos de exibicao estabelecidos, dos padrdes convencionais de classificagao, e leva-las a um didlogo mais am- plo. Nao tomar as obras isoladamente, mas como intervengdes num espa- co mais complexo. Redefinir o lugar da obra de arte contemporanea, a partir da sua integragao com outras linguagens e outros suportes. Sitio que nao é necessariamente uma localizagao topografica, mas 0 campo criado por essas articulagdes. Os trabalhos especfficos ao lugar levam para fora do atelié tradicional, substitufdo pela indtstria, a midia e o ur- banismo Aqui se explicita a relacgao entre arte e cidade: trata-se de desper- tar a experiéncia do mundo de que toda arte é expressao. Atentar para o sitio em que as obras se localizam e que constituem como lugar. Pois retornar as proprias coisas é voltar ao mundo anterior ao conhecimento, ao qual este sempre remete e com relagao ao qual qualquer determina- cao cientifica 6 abstrata e dependente. Como a geografia 6 uma abstra- y. Le visible et invisible (Paris: Gallimard, 1964), p. 177. [19] ‘Ptrodugtio cao da paisagem, onde nds aprendemos 0 que ¢ uma floresta, um campo. ou um rio.® Retornar da geografia a paisagem. E possivel, hoje em dia, um paisagismo? Poderia o mundo contem- poraneo ser visto segundo esse olhar, tido por construfdo para horizon- tes passados? Essas paisagens seriam capazes de revelar a alma das cida- des — 0 horizonte do nosso tempo — perdida na indistingao arquitetonica e na crise urbana? A fungao da arte 6 construir imagens da cidade que sejam novas, que passem a fazer parte da propria paisagem urbana. Quando parecfa- mos Condenados as imagens uniformemente aceleradas e sem espessura, tipicas da midia atual, reinventar a localizacfo e a permanéncia. Quando a fragmentacao e 0 caos parecem avassaladores, defrontar-se com 0 des- medido das metropoles como uma nova experiéncia das escalas, da dis- tancia e do tempo. Através dessas paisagens, redescobrir a cidade. Maurice Merleau-Ponty, Phénomenologée de la perception (Paris: Gallimard: 1981), p. III. IFCE - CAMPUS FORTAL Ezal LUZ Vis&o da cidade Por wm breve momento, diz Griffith, com a invengao do cinema, deu-se uma apari mostra de imediato, que nao se deixa facilmente retratar. Um esplendor que, entretanto, acabaria desaparecendo ~ talvez para sempre ~ dos filmes. A cena ~ em Ordet, de Dreyer ~ 6 inesquecivel. Uma casa no cam- po, quase a beira-mar. Ao lado, uma colina recoberta por um trigal. Uma escada conduz ao topo. La, postos para secar ao sol, estendidos num varal, lengéis brancos tremulam ao vento. Nenhum ruido ecoa na paisa- gem. Apenas a presenc¢a discreta, mas consistente, do vento se faz sentir: aragem que ondula a relva. Com a mesma forca impalpavel que 0 sagrado faz sua aparicao na casa. Imagens do que nao se pode descrever. Um cinema que faz ver o inefavel. : a beleza do vento soprando nas arvores. Algo que nao se O invisivel nao €é, porém, alguma coisa que esteja para além do que 6 visivel. Mas é simplesmente aquilo que nao conseguimos ver. Ou ainda: 6 aquilo que torna possivel a visao. O enigma que a pintura celebra — Jembra Merleau-Ponty — nao é outro senao o da visibilidade. Ela nao evo- ca coisa alguma. Ao inverso, ela dé existéncia visivel aquilo que a visao profana acredita invisivel. E, portanto, no limite, o visfvel o que a pintura nos faz ver. O que nos faz ver mais do que vemos — a arvore ressequida 0 olho ¢ o espérito, trad. Marilena Chaui, Colecao Os Pensadores (Sao Paulo: Abril, 1980), p. 281 __ re Fra Angelico [19] luz visa da cidade que, a noite, 6 um espectro — e também o que nao vemos ao ver — 0 intervalo entre as arvores, 0 vento.? Assistir a um velho filme do cinema mudo. Na sala, nenhum rufdo, salvo as vezes a mtisica que 0 acompanha. O siléncio é completo. Vemos aquelas figuras fantasmag( is se agitarem na tela coma certeza de que ja pertencem ao passado. Os gestos bruscos e espontaneos ressaltam a naturalidade e a inocéncia com que se deixam retratar, olhando sérios para a cAmera. Aqui tudo é verdadeiro e transparente. O cinema entao era capaz de uma apreensao imediata da realidade Antes que esta lhe tivesse escapado, antes de 0 cinema ter se contentado com 0 “efeito de realidade”. Era capaz de mostrar rostos e paisagens. Com os filmes mudos, as imagens eram dotadas de materialidade, reves- liam-se do aspecto natural das coisas e dos seres. A imagem remetia a uma natureza fisica inocente, a uma vida imediata que nao tinha necessi- dade de linguagem. O cinema mudo, diz Deleuze, sempre mostrou a cida- de e tudo aquilo do que ela é feita, entretanto ele Ihes dé uma espécie de naturalidade, que é 0 segredo e a beleza da imagem silenciosa.* Nao 6 apenas 0 passado do cinema que se mostra nesses filmes. Estamos sendo confrontados com uma outra coisa: uma presenga, vi- brando particularmente nesses rostos e cidades. E isso — esta evidéncia de algo que nao podemos ver nem tocar — que dé consisténcia e verdade @ essas imagens. Mas 6 isto ~ essa beleza — que se perdeu. O que mais escapa as imagens contemporaneas? O que elas sd0 mais incapazes de retratar? 0 que parece ter desaparecido por cormpleto da fotografia, do cinema? O rosto e a paisagem. Ao fazer suas “cdpias de pontos de vista”, por volta de 1826, Niépce nao estava simplesmente inventando a fotografia. Colocando sua camera obscura na janela, ele vé surgir na placa de estanho uma “ténue imagem” das construcdes e ruelas em frente. Naquelas impressdes muito claras, Marilena Chaui, Da reatidade sem mistérios ao mistério do mundo (Sto Paulo: Brasiliense, 1981), p. 256, Gilles Deleuze, Ltimage-temps (Paris: Minuit, 1985), pp. 292-293. Joseph Nicéphore Niépce {21] lue—wsdo de cidade quase imperceptiveis, mais parecidas com nuvens, alguma coisa se daa ver. Configura-se, surgindo como volumes de sombras, uma cena urbana. Esbogada, como que por milagre, simples resultado da Juz, naquela cha- pa de metal. Tratava-se, para Niépce, de conservar sem intervencao manual a cena que se formava na camera obscura, criando um meio de fixar a imagem de modo que a luz que a criou nao a destruisse quando ela fosse observada. Era preciso interromper 0 processo da sensibilidade a luz e impressionar a imagem. A foto 6 uma sombra fixada para sempre, uma “gravura de luz”. Essas “escrituras solares” deixam ver menos 0s objetos, dificilmente discerniveis e privados de cor, do que uma espécie de luminancia. A pla- ca heliografica visa menos mostrar corpos do que se deixar “impressio- nar”, captar os sinais transmitidos pela alternancia da luz e da sombra. Imagem aqui diz respeito & fotossensibilidade. Antes que se chegasse a fixacao da fotografia no papel, tratava-se do espelhamento da placa me- télica do daguerrestipo. A heliografia — acao luminosa sobre placas meta- licas ~ implicava uma desvalorizacao dos sdlidos na qual, diz Niépce, os contornos se perdem.‘ A fotografia nasceu como registro da luz. Antes de ser uma imagem que reproduz as aparéncias de algo, a fotografia 6 da ordem da impressao, do traco.* Ela surge ao se conseguir captar e imprimir diretamente os raios luminosos emitidos por um obje- to. A fotografia é em primeiro lugar uma impressao luminosa. O aparelho de fotografar nao 6, em principio, indispensavel para que haja fotografia ~ 0 dispositivo dtico (a camera obscura) é antecedido por um dispositi- vo quimico. Os photogenic drawings — desenvolvidos primeiro por Talbot (por volta de 1840) — consistem em fotografias obtidas sem aparelho fotogra- fico, pela simples agao da luz. Num local escuro colocam-se objetos di- retamente sobre suporte emulsionado com solucao de nitrato de prata e * Paul Virilio, La machine de vision (Paris: Galiléc, 1988). * Philippe Dubois, 0 ato fotogrdfico e outros ensaios (Campinas: Papirus, 1994), p. 61. (22) paisagans ufbanas expde-se tudo a luz. As partes nao protegidas dos raios solares escure- cem, enquanto 0 suporte permanece branco sobre 0 objeto. O resultado sao silhuetas claras sobre fundo escuro. Implicam a eliminacgao de toda parte Otica do dispositivo fotografico, além do préprio negativo. O procedimento, retomado pela vanguarda dos anos 1920, com Man Ray e Moholy-Nagy, 6 uma impressao por contato. 6 um trabalho sobre os efeitos da matéria luminosa como tal, apreendendo apenas os tracos fantasmaticos de objetos desaparecidos, que s6 subsistem na forma imaterial de efeitos de texturas, de modulagoes e transparéncias. Processo que 6 essencialmente mantido quando Talbot imprime, com uma cdmera obscura, agora sobre papel sensivel, vistas do exterior de sua residéncia de Lacock Abbey. Em todos os casos, trata-se de obter imagens diretamente, em exemplar tinico, da exposicao do objeto a luz. Veja a conhecida passagem de Proust sobre a sonata de Venteuil. Tudo esta contido ali. De repente, em meio aos sons, sem poder distin- guir claramente um contorno ou dar nome ao que lhe seduzia, uma frase nos “abre mais amplamente a alma, como certos odores de rosas circu- lando no ar timido da noite tém a propriedade de dilatar nossas narinas”. Uma impressao propriamente musical, sine materia. Um mundo aparentemente sem forma porque nossos olhos nao a percebem, sem significado porque escapa a nossa inteligéncia. Uma pe- quena frase que exige despojar a alma de todo recurso do raciocinio e fazé-la percorrer sozinha 0 caminho do som. Swann faria tocar certas sonatas para ver se nao descobria nelas uma dessas “realidades invisi- veis”. Certas imagens — os rostos e as cidades — podem ecoar como essa. pequena frase musical. O passado entao repercute no momento presente, condensado ir- resistivelmente quando Proust, ao percorrer pela tiltima vez a regiao de Combray, percebe 0 entrecruzamento de todos os caminhos. “Neste ins- tante, a paisagem se agita como ao vento.”* Marcel Proust, Un amour de Swann (Paris: Gallimard, 1954), pp. 52-53. William Henry Fox Talbot Abbey, photogenic craning, 1839 Jusaum of Art, Nova York (24) pacagons ubanes E assim que descobre, no quadro Vista de Delft, de Vermeer, um pequeno muro amarelo. Parece, olhado separadamente, uma obra de arte chinesa, de uma beleza que basta a si propria. Entao ele nota pequenas personagens azuis e a areia rosa, além da “preciosa matéria do pequeno muro amarelo”. A razdo do encanto: a cor. Os quadros de Vermeer sao fragmentos de um s6 mundo, sempre a mesma mesa, 0 mesmo tapete, a mesma mulher. A mesma nova e tinica beleza, enigma inexplicavel se néo assimilarmos a impressao particular que a cor produz. Af se da, pela cor, a criagao da alma dos lugares. Algo que nao se reduz a nenhuma dessas coisas, mas que se aninha no préprio material, a cor. Essa beleza miste- riosa que 0 escritor, personagem de Proust, gostaria de possuir, tornando suas frases mais preciosas com varias camadas de cor. Como 0 pequeno muro amarelo. O que, na verdade, faria de Lumiére um pintor ~ “o ultimo dos pintores impressionistas” —, um contemporaneo de Proust? A capacida- de de fazer ver 0 que a pintura da época também procurava revelar. Ao fundo da imagem de um de seus filmes véem-se arvores, e suas folhas sao agitadas pelo vento. Nas vistas de Lumiére, 0 ar, a 4gua, a propria luz tornam-se palpéveis A pintura e, depois, a fotografia lutariam para produzir esse tipo de efeito magico. Retratar o “sopro das nuvens”. Diirer, diz Erasmo, pinta 0 que nao pode ser pintado: o fogo, os raios, as tempestades e as nuvens passando sobre os muros. Mas ha no século XIX uma pintura de nuvens, de tempestades e de arco-iris — de folhas ao vento. O que marca 0 século que inventaria o cinema ¢ ter convertido a luz o ar em temas pictéricos. Com Lumiére tem-se a tiltima tentativa de colocar 0 problema — pictérico ~ da figuraco do impalpavel, do invisivel. Ali o cinema encontra-se, pela primeira e talvez tltima vez, com a pintura. Desde entao, reitera-se a mesma busca. Assim existe, para Barthes, um sudoeste, “nao uma regido, mas apenas uma linha, um trajeto vivido”. Suas fronteiras sao anunciadas por sinais imperceptiveis ao olhar des- * Jacques Aumont, L’eeil intermimable (Paris: Seguier, 1980), pp. 24-26. [25] uz ~ visio da exdade provido de memGria, “uma palmeira no patio de uma casa, uma certa altura das nuvens que da ao terreno a mobilidade de um rosto”. Ai domi- na a luz do sudoeste, definida menos pelas cores com que afeta as coisas que pelo carater iminentemente habitavel que ela dé a paisagem. “Iumi- nando cada coisa em sua diferenga, ela preserva 0 lugar de qualquer vul- garidade, de qualquer gregariedade e torna-o impréprio ao turismo”. Destas nuances — tempos, luzes — 6 que provém “o poder que esta terra tem de desfazer a fria imobilidade dos cartdes-postais”.£ Calvino diz que existem diversas maneiras de falar de uma cidade.’ Uma é descrevé-la. Dizer de suas torres, pontes, bairros e feiras, todas as informacoes a respeito da cidade no passado, presente e futuro. Nesse Mapeamento, porém, a cidade desaparece enquanto paisagem. As cida- des, mais do que qualquer outra paisagem, tornaram-se opacas ao olhar. Resistem a quem pretenda exploré-las. Uma simples panoramica nao da mais conta de seus relevos, de seus rios subterraneos, da vida latente em suas fachadas. Tornaram-se uma paisagem invis{vel. Todas as tentativas de descricgao redundam em mera. enumeracao, que nao da conta da verdadeira paisagem. 0 desenvolvimento da fotogra- fia e do cinema acarretou a morte da descri¢&o cldssica, 0s minuciosos painéis com que se reconstitufam lugares e personagens. O retratista e 0 escritor de folhetim sao figuras do perfodo. Agora, quando tudo se tor- nou visivel demais, a literatura e a pintura perderam a paisagem. A imagem explicita provoca 0 esgotamento da capacidade de des- crever. Sob a ditadura da visao imediata, o olhar perdeu sua abrangéncia panoramica. Isso vale também para 0 rosto: hoje nao hé mais 0 costume sisteméatico de retratar, com o que se fez uma verdadeira fisionomia de uma €poca. O advento do cinema sé aceleraria esse processo. Tudo pas- sou a ser instantaneamente mapeado. A imagem mididtica 6 desde logo uma descrigao. Roland Barthes, “A luz do sudoeste”, -m [ncidentes (Rio de Janeiro: Guanabara, 1988), p. 24 Italo Calvino, Cédades invistvess (Sto Paulo: Companhia das Letras, 1990) IFCE - CAMPUS F@RTALEZA| { [26] paisagens urbanas A literatura — como todas as outras formas de olhar, inclusive 0 fotografico — voltou-se para 0 menos evidente. Sem personagens nem rostos, a literatura tornou-se introspectiva, voltada para os mistérios e percalcos da alma humana. A pintura, entéo, mergulhou cada vez mais na abstracao. Mas como fazer o olhar recuperar a paisagem? Trata-se de narrar a cidade sem ser pela descrigao — as cifras arrecadadas pelos impostos ou as dimensdes das novas avenidas. Fi ainda possfvel pintar paisagens? Nao por acaso Calvino recria o estilo fabulério das histérias classicas de aven- turas. Na figura do viajante, ele reedita o marinheiro benjaminiano, ar- quétipo do contador de histérias, para quem a perda da experiéncia no mundo contemporaneo impossibilita a narragao. Calvino retoma as per- sonagens e o tempo em que se relatavam terras distantes. Uma tentativa de resgatar a narrativa, “esta arte hoje em dia tao negligenciada”? Neste género tao anacr6nico — como o paisagismo — mas ao mesmo tempo tao atual, a literatura encontra a pintura. Mas 0 explorador, recém-chegado e ignorando completamente as Iinguas da regio, nao pode se exprimir de outra maneira senéo “com gestos, saltos, gritos de maravilha ¢ de horror’. O estrangeiro s6 pode transmitir as mesmas sensacdes que experimentara diante daquelas paisagens, como se as estivesse contemplando naquele instante. Com 0 mesmo espanto e a mesma falta de palavras provocados pelo que é indescritivel. Hoje em dia, a descric&o esta substituindo a paisagem. Nao se pode, na maioria das vezes, dizer nada a respeito de uma cidade além do que seus prdprios habitantes repetem. O que ja se disse recobre seus contor- nos € nuances. Nas cidades, os olhos nao véem coisas, mas figuras de coisas que significam outras coisas. {cones, estatuas, tudo é simbolo. Aqui tudo é linguagem, tudo se presta de imediato a descrigao, ao mapearnento. Como é realmente a cidade sob esse carregado invdlucro de siubolos, 0 que contém e 0 que esconde, parece impossivel saber. Uma maneira diferente de falar de uma cidade: a partir das primei- ras impressdes que ternos ao chegar, das pedras e cinzas que restam dela Louis Lumiére [28] pasegens urberes ou de velhos cart6es-postais. Ou ainda dos seus nomes, capazes de evo- car a vista, a luz, os rumores e até 0 ar no qual paira a poeira de suas ruas. E por meio desses indicios — e nao das descri¢Ges — que se pode obter um verdadeiro quadro dos lugares. Ser, na expressao de Valéry, o olho que transforma 0 muro em nu- vem. Apoiar-se sobre 0 que ha de mais leve, as nuvens e 0 vento, e dirigir o olhar para aquilo que sé pode se revelar por uma visao indireta.!” Toda uma paisagistica esta contida af. Capaz de - sem deixar de dar concregao e espessura as coisas ~ subtrair peso do mundo. Leve, mas precisa e de- terminada como o véo de um péssaro. Capaz de tratar a gravidade com graca. “Retirar 0 peso” é transformar o mundo em paisagem, pinta-lo com aquarela, com pastéis. Buscar imagens de leveza — graos de poeira que turbilhonam no ar. Aliviar a paisagem de todo o seu peso até fazé-la semelhante a luz da lua. Transformar tudo em luz: idedrio classico da pintura de paisagem. Um paisagismo — fundado na luz, na cor, nos sons e na memoria que se assemelha ao delineado pelos panoramas urbanos de Benjamin. A mesma tentativa de surpreender o brilho intenso e a delicada beleza pre- sentes nas primeiras impressGes, na meméria e nos nomes das cidades. Uma vontade insistente de fazer aflorar de cada frase — como se fossem pinceladas — mais uma coluna, mais um telhado, mais um vulto humano sentado a janela. Como se essas paisagens urbanas tivessem que ser resgatadas do limbo escuro em que ficaram confinadas e 86 se consti- tuissem nessas historias. As palavras tém que lutar sem descanso contra a opacidade e a retracao da paisagem. Uma narrativa direcionada sempre para um ponto onde algo ainda nao foi dito, embora tenha sido obscura- mente pressentido, que se desenvolve “na borda extrema do visivel”. Em contraposicao a essa perda do instante, temos os fragmentos de Benjamin sobre a cidade." Eles nao descrevem a experiéncia da infancia Italo Calvino, Seis propostas para o préximo milénio (Seo Paulo: Companhia das Letras, 1990) Walter Benjamin, “Infancia em Berlim por volta de 1900", em Obras escolhidas, vol. I (Sa0 Paulo: Brasiliense, 1987), e Didrio de Moscou (Sao Paulo: Companhia das Letras, 1989). [29] uz visto da cidace nem a condicao do estrangeiro, mas as apreendem como acontecimento. Inscrevem 0 seu inatingivel. Aquilo que faz do encontro de uma palavra, de um cheiro, de um lugar, de um rosto nao é comparado com outros eventos. ‘Tem um valor de iniciacéo em si préprio, ainda que s6 venhamos a sabé-lo mais tarde. 5 0 que faz as cidades parecerem paisagens. O reconhecimento que a crianca empreende do seu mundo segue os mais inesperados rastros. Um mapeamento da cidade através dos apa- rentemente insignificantes acenos — a vertigem dos caleidoscdpios de feira, 0 piscar das arvores de Natal oua buzina do carrinho de sorvete — que ela lhe faz. Assim é que da infancia ecoa nao o ressoar dos canhdes, as sirenes das fabricas ou a algazarra das bolsas de valores. 0 que se ouve €o0 tinir da lampada de gas, o rufar da banda de miisica e 0 latido distante na rua. Sao esses sons ~ na delicadeza daquilo que é infinitamente pe- queno, a que s6 uma crianga prestaria atencao — que para Benjamin fa- zem soar 0 século XIX A inesgotavel imaginacao do recém-chegado, atraido por tudo aquilo que nunca havia visto, lanca mao de todos os recursos possiveis para _construir sua cenografia. Até a neve contribuiria para fazer de Moscou uma paisagem. Instaura um siléncio que faz crer que se esta nos confins do pafs. Como até os sinos se calaram, tudo contribui para dar @ cidade uma quietude de paisagem. Além disso, em nenhuma outra cidade, por causa dos edificios muito baixos, se vé um céu tao amplo. O céu, assim tao presente, também instaura extensdes naturais. Entre os telhados aca- mhados sempre penetra na cidade o horizonte da vasta planicie. Esta 6, para ele, uma das condigdes essenciais da beleza dessa ci- dade: nenhuma de suas pracas possui um monumento. E por isso que -parecem clareiras e lagos. Na Europa ocidental, ndo existe quase ne- nhum espaco secreto que nao tenha sido profanado, no século XIX, por ‘um monumento. Os monumentos sao como mapas: tragam inexora- velmente o perfil da cidade. S40 marcos que estabelecem sem apelacao a e os caminhos do lugar, que reduzem suas espessas camadas de a signos exteriores erguidos sobre a grama. Eles excluem 0 nao dito, o invisivel, da cidade. Louis-Jacques Mandé Daguerre 31] uz ~ visio da cidacts E por isso que o estrangeiro, incapaz de reconhecer 0 que essas estatuas significam, pode ter acesso ao rosto interior das cidades, nao estampado nos mapas nem esculpido nos monumentos. Sensivel aos ace- nos sutis — luzes, nomes, barulhos ~ que as cidades fazem para nés, ele pode desvendar os seus segredos, 0 seu mistério. Os mais inusitados re- cursos, retirados diretamente do arsenal do explorador tropical, nos con- duzem pelas cidades estrangeiras. O viajante — aquele que persegue, como se estivesse cacando borboletas, os sons dos lugares - é a figura emble- matica desse paisagismo urbano. Mas a imagem contemporanea pode falar dessa paisagem invisivel? A imagem seria capaz de, como postula Deleuze, exercer um choque s0- bre a imaginacao, levando-a ao seu limite? Um choque que force 0 pensa- mento a presenca de algo que nao pode ser dito. Como podem as ima- gens abordar aquilo que nos escapa? A imagem cinematogrdfica opera uma suspensao que, longe de tornar visiveis as idéias, dirige-se ao que nao se deixa mostrar. es Esses graos dangantes nao sao feitos para serem vistos. O cinza, 0 vapor, a névoa ~ em Dreyer ou Kurosawa — nao constituem um véu indis- tinto colocado diante das coisas. Sao, diz Deleuze, um “aquém da ima- gem” que nos defronta com suas proprias condigdes. Essas cenas, feitas de poeira luminosa, longe de serem abstratas, sao as mais perturbadoras do cinema. Imagens em que a indiscernibilidade da terra e das aguas, do céu e da terra, evidencia a possibilidade da visio. Suspensao do mundo que torna visivel Os amantes do teatro argumentam que ao cinema faltara sempre alguma coisa: a presenca dos corpos. Ele s6 mostraria ondas e luzes que simulam coisas. Mas j4 se disse desde Bazin que existe uma outra moda- lidade de presenca, cinematografica, propria da imagem. Porque a ima- gem — operando com aquela “poeira luminosa” — afeta 0 visivel de um modo que contradiz a percepcao natural. Ocorre entao a génese de um visf- | vel que ainda escapa a visao. O advento de corpos em fungao de um bran- co, de um preto, de cores, de um comeco de visfvel que ainda nao é figura nem acao. Pois, para Deleuze, 0 problema nao é o de uma presenca de oe corpos, mas o de “uma crenca capaz de nos devolver o mundo e o corpo a partir do que significa sua auséncia”."? Quando a midia parece querer transformar o mundo em imagens, multiplicando-as ao infinito, destituidas de necessidade interna, 0 pro- blema esta precisamente — na formulagao de Calvino — em apreciar a beleza do vago e do indeterminado. Lm esforco para dar conta do aspec- to sensivel das coisas, de tudo aquilo que nao é dizivel. Perseguir aquilo que escapa & expressao, a infinita variedade das coisas mais humildes e contingentes. Um aproximar-se das coisas com discrigao e cautela, res- peitando o que as coisas comunicam sem o recurso das palavras. Desen- volver 0 poder de evocar imagens i absentia. Imagens de tudo aquilo que nao 6, mas poderia ter sido. Imagens que nao constem do repertério disponivel, cada vez mais confundido com nossa experiéncia direta. “Fa- zer falar 0 que nao tem palavra, 0 péssaro que pousa no beiral, a arvore na primavera e no outono, a pedra, 0 cimento, 0 plastico...” A fotografia foi considerada, nas suas origens, um meio destinado a liberar a pintura do trabalho ingrato da reproducao fiel, que poderia en- tao se dedicar a figuracao abstrata. J4 a fotografia seria destinada a uma espécie de catalogacao cientifica do mundo. Mas esse designio realista comporta, diz Susan Sontag, um outro aspecto: nesta disposicao de ser- vir o real com humildade, a imagem fixada pelo aparelho fotografico é uma revelagao. A visao fotografica quer, seja qual for seu objeto, assina- lar a presenca do mistério. Os fotégrafos europeus tratavam os tipos sociais do mesmo modo que as espécies naturais. Os “retratos de arquétipos” de Sander faziam um verdadeiro levantamento socioldgico das diferentes méscaras sociais. Mas a paisagem americana sempre pareceu grande demais, variada demais, fugidia e misteriosa, para ser objeto de um inventdrio cientifico. E nesse contexto que se deve compreender, conclui Sontag, a re- cusa de varios fotografos atuais de recorrer aos inumeraveis recursos técnicos disponiveis. Eles estimam que um aparelho mais rudimentar, + Gilles Deleuze, L’image temps, clt., p. 262. [33] lu —visao da cidade com menos automatismos, permite obter imagens mais expressivas, faci- litando a intervengao do acaso. £ como se a camera fotografica retornasse as suas origens: a polaroid retoma o principio do daguerreétipo, produz aimagem como um objeto tnico. E os slides remetem as antigas lanter- nas magicas.** O cinema tem, ultimamente, manifestado as mesmas ten- déncias: basta ver como, em filmes recentes, aparelhos 6ticos pré-cine- matograficos desempenham este papel revelador da imagem. Em todos 08 casos, passa-se da vontade de tirar partido dos avangos técnicos ao desejo de reinventar a fotografia, repartindo de suas origens, reintro- duzindo nas imagens um elemento de mistério. A obra de arte tenta testemunhar 0 indeterminado, o inexprimivel. E esta busca do que nao pode ser mostrado que a defronta com o subli- me. Kant diz que o sentimento do belo atesta o prazer suscitado pela harmonia livre entre as imagens e os conceitos. J4 0 sublime 6 um outro sentimento, conflitivo. Ele tem lugar quando, ao contrario, a imaginacao fracassa ao apresentar um objeto que concorde com um conceito.!! E quando um objeto grande ~ o deserto, uma montanha, uma piramide — ou muito potente — uma tempestade no oceano, a erup¢ao de um vulcao suscita a idéia de um absoluto que nao pode ser pensado e nao tem apre- sentagao sensivel possivel. A impoténcia da imaginacao a leva a tentar mostrar 0 que nao pode ser mostrado. Desde Burke,"* a poesia ¢ investida dessa dupla tarefa de difundir 0 terror — ameacando sem descanso a linguagem de siléncio com o que parece Ihe escapar - e enfrenta-lo, acolhendo este evento a que sempre faltarao palavras. Quando se chama de sublime a visao do céu estrelado, nao se devem tomar os pontos brilhantes sobre nds como séis em movi- mento orbital apropriado, mas olhé-los simplesmente como 0s vemos, como uma vasta ctipula que envolve tudo. Tal como fazem os poetas, segundo 0 espetdculo que se oferece a vista. Esta 6, para Kant, a condi- Susan Sontag, La photographie (Paris: Seull, 1979), p. 142. * Emmanuel Kant, Critique de la faculté de juger (Paris; Vrin, 1979), p. 86. © Edmund Burke, Recherche philosophique sur Vorigine de nos idées du sublime ot du beau (Paris: Vrin, 1973). | [34] Paisagens urbanas cao para ver 0 sublime de uma paisagem: nao ver o céu como uma meca- nica astral, mas como uma ab6dbada iluminada. Fazer ver que ha algo que se pode conceber e que nao se pode ver nem fazer ver: esta 6 a tarefa da pintura. Ela se consagra a fazer alusao ao inapresentavel. A arte, assim, propriamente, nao diz 0 indizivel, ela diz que nao se pode dizé-lo. Sera que olhamos um quadro e vernos uma pai- sagem? ~ pergunta-se Lyotard.'* Como uma janela, diriam os italianos. Mas 0 ideal do suporte abrindo para uma viséo em profundidade cessou de comandar a organizacao figurativa. A mise-en- frente do que é representado, 0 artificio se assinala. A paisagem e 0 rosto sao assim colocados em sursis de presenca. cone se mostra na A pintura parece negar a presenca. Mas af, por que pintar? Bastaria escrever. O azul luminoso de certa manha de verao. 0 que faz com que essa palidez muda provoque hoje, ao despertar, no nosso espirito ainda adormecido, um maravilhamento que nos levaré muito tempo para asso- ciar a um passeio de bicicleta, de madrugada, muitos anos atras? Hoje podemos dizer que é 0 pastel dos céus daquele lugar, perto do mar, na- quela época. Agora podemos até dizer que o azul de hoje detona na alma adulta uma narrativa da memoria. Mas nao foia reflexao que fez vir aque- le timbre cromatico da manha. O azul se adiantou. Esta é a presenca. E este timbre que o artista quer obter. Ou melhor: 0 quadro deve ser, para qualquer observador, um acomtecimento, aquela manha, aquela cor.” 0 azul pastel nao foi escolhido de uma palheta e aplicado sobre 0 horizonte da viagem. Apenas aconteceu. O espfrito se refaz e conta as hisiGrias dessa cor. Mas estava, l4 naquele lugar, emudecido pelo aconte- cimento azul, por essa presenca material. Como a presenca sonora que Proust tenta trazer pela escrita. O pintor tenta fazer com que o quadro. seja um pedaco de céu de madrugada. Que isso acontega ou nao, s6 se * Jean-Francois Lyotard, L’inkumaén (Paris: Galilée, 1988), p. 109. Ver também Heidegger ot “ies juifs” (Paris: Galilée, 1988), p. 81; Le Postmoderne expliqué aux enfants (Patis Galilée, 1988), p. 26 * Jean-Francois Lyotard, Que peindre? (Paris: La Différence, 1987) 36] ue visto da cidade sabera quando o quadro estiver pronto. 36 a pintura pode testemunhar se o azul tem lugar. Nao 6 a presenca do azul, ele que é presenca. Dai a importancia dada @ cor, em detrimento do desenho. A cor é a retragao do trago. No desenho, a paisagem nos escapa, como se estivéssemos sentados de cos- tas num trem. Na tela colorida a diregao se inverte: a paisagem vern em nossa direcao, revelada pela graca da luz, que o corte abrupto do trago ignora. Como a montanha se apresenta a Cézanne. Um acesso & alma, diz Lyotard, é aberto pelas tintas intermediarias entre noite e dia que ba- nham o rosto e a paisagem. Muito diferente da paisagem do gravador que, sem ter acesso a cor, € obrigado a buscar 0 movimento, a enfatizar o trago. Nao ha espera pos- sivel, a gravura é trabalho. O gravador tem de produzir tudo, com o mini- mo de tracos, cercando as superficies, fazendo surgir volumes pela sobreposicao das perspectivas."* A paisagem do gravador é acao, a do pintor é revelagao. A nuvem, este “corpo sem superficie” que nao se deixa retratar, por muito tempo excluido do campo pictérico, serviu a pintura para nao s6 problematizar a perspectiva classica, contestada por essas massas ne- bulosas, como para se colocar a questao do traco e da cor.'* O abandono dos contornos nitidamente delineados foi condigao para que se pudes- sem apreender as brumas impalpaveis. Mas Mantegna fez nuvens forte- mente desenhadas, como se tentasse pelo traco liberar-se do espaco retilineo, e Erasmo escreveu que as nuvens sao imateriais demais para poderem ser expressas em cores. Entao, pintar 0 qué? Para Barnett Newman, a indagagao ¢ uma continuidade de “como pintar?”, 0 que dé ao ato uma dimensao ontolégica. A pintura é destituida do sentido da transcendéncia, levando ao abando- no do dispositivo perspectivo, da relacao figura-fundo, dos limites Gaston Bachelard, “Introdugao & dinamica da palsagem”, em O déreito de sonhar (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1981). * Hubert Damisch, Théorie du nuage, miméticos da tela e da composigao interna da superficie pictdrica. O enig- ma dessa pintura esta na sua forga de evidéncia, que se impde indepen- dentemente de qualquer projeto prévio. Numa tela coberta por pigmento, Newman estende uma fita adesi- va, espalhando sobre ela cor mais clara. Ele passaria meses contemplan- do o quadro. A colocagao da fita, essa abrupta interrupgao do processo de pintar, é um acontecimento. Algo se da ali — diante do caos aterroriza- dor, a presenga da linha — bloqueando o processo da pintura, levando 0 artista ao siléncio. Uma reflexao que se segue ao vazio deixado por essa suspensao.*? A linha, intervindo no campo pictérico, coloca o espectador dentro dele. Mas num espaco que excede 0 campo visual. 'm espago de que nao podemos dar conta. Diante da relacao assimétrica provocada por diver- sos campos de cor, impedindo a definigaéo de um centro, impde-se a evi- déncia luminosa da area colorida. A faixa de cor 6 a ocorréncia que nos confronta com o imensamente grande. O campo de cor central, ladeado por duas areas assimétricas, colo- ca em causa nossa percepcao dos limites do quadro. A assimetria impede a definicao tanto do centro quanto das bordas. Somos obrigados a abrir mao de determinar o lugar preciso: vernos apenas que a cor esta ali. So- mos confrontados com este hic et nunc. Nao importa, para Lyotard, 0 que é representado no quadro. Pintar retratos e paisagens nao para mostrar seus contornos e relevos, as ex- presses € os eventos que neles se déem. Ao contrario, pintar rostos & paisagens para testemunhar a presenca. Aquilo que pare estar ali: 0 céu do entardecer. O que escapa a intriga e se aproxima ~ pela matéria, pela cor — do inenarravel. Os personagens tendem, de fato, a se retirar da pintura contempo- ranea. Nao ha mais enredo. Como em Poussin: suntuosidade das paisa- gens e deslocamento da trama. O ponto central passa a ser uma paisa- e impossivel ing Newman’, en Painting as Model (Cambridge: MIT Press, 1933), nett Newman: o que ¢ pintar?”, em Artepensamento (Sao Paulo: Compa- as, 1994). nhia das Li [97] Lz - visto da cidace gem, fundo sem cena. O desenho comeg¢a pelo primeiro plano, 0 trago depois organiza o fundo, 0 contexto. A cena estd a servico da trama. Na pintura é 0 contrario: primeiro se estabelecem as paisagens, 0 céu, 0 longinquo, e o ator s6 é alojado no fim. Este lugar ilocalizdvel da arte, sem espaco nem tempo, é a paisagem. Onde ocorre a paisagem? As paisagens naéo formam, em seu con- junto, uma histéria e uma geografia. Seus limites sao indefiniveis, nao tém localizacao, hierarquia nem centro. De que forma entao apontar 0 sopro que abala 0 espirito, quando chega a paisagem? Sua forca se faz sentir pelo fato de interromper as narracdes. Em vez de contar, apresen- tar. Mas como, sem falar de como e quando se chegou — dos aconteci- mentos, da ag&o? A narracao faz correr 0 tempo, a paisagem 0 suspende. A poesia entao nasceria da compreensao da incapacidade de as palavras darem conta da paisagem. Ela torna disponivel a invaséo das nuances, torna passivel ao timbre: 6 a escrita da descrigao impossivel. Da mesma maneira, a metrépole. 6 um lugar desprovido de situa- Gao, nao tem medida nem limites. Ela nao tem interior nem exterior, ali nao se esta dentro nem fora, tudo é estrangeiro e nada o é. Um trafico continuo entre os interesses, entre as paixdes, entre os pensamentos. ‘Todas essas passagens desenham a zona incerta onde se deve pensar esta conformacao nunca acabada. Como entao pensar 0 excesso? Como a presenga pela qual nos ace- nao que 6 sem relacao, 0 que excede toda formalizacao. Pensamento que passa no limite do que pode ser apresentado. Um olhar de relance sobre o visivel, para entrever 0 que nao é visivel, o que nao tern contornos, a cidade. Pensamentos que nao tém lugar, um territdrio designado: sfio como nuvens. A periferia de uma nuvem nao 6 precisamente mensuravel, 6 uma linha fractal. As nuvens projetam suas sombras sobre as outras, 0s contornos variando segundo o angulo que se vé. Impelidas segundo velo- cidades varidveis, nao cessam de mudar de posicgao uma com relacao a outra. Quem se poe a discutir as nuvens, como lida com sua elisao? [38] paisagens urbenas O tempo nao autoriza nunca a sintese dos momentos, quando nos acercamos do céu. Desloca a nuvem, quando se acreditava conhecé-la exatamente. As nuvens sao 0 objeto do pensamento quando ele assume a relatividade que 0 afeta. A metafora das nuvens serve para elaborar 0 estatuto dessas coisas indeterminadas, 0 vento nas arvores, a cidade.” © As imagens podem fazer 0 cego ver? O cego vé 0 que nao se pode ver, 0 invisivel. O vento, as paisagens do passado, um rosto desarmado de quem sabe nao estar sendo visto. Visao daqueles que fecham os olhos para ver, Evgen Bavcar 6 cego. Ele fotografa contra o vento. Soprando em sua direcdo, o vento delineia 0 contorno e a posigao das coisas. Mais: a ventania confere sentido ao seu olhar. Primeiro, acariciando seu rosto, dando-lhe postura e direcao, possibilita-Ihe armar a visio. O vento 6 aquilo que, como um interlocutor, permite ao cego retribuir o olhar. Quando o vento sopra, as imagens sao menos precisas, 0 mero far- falhar dos arbustos basta para fazer desaparecer a paisagem. O vento batendo nas drvores, sempre esse invisivel. Daf uma das aus@ncias maio- res ser o céu, ua das imagens mais apagadas. As estrelas, que 0 cami- nho da meméria quase nao alcanga mais. O vento tem a forca miraculosa de lembrar imagens de outros tem- pos, nascidas de um movimento continuo, revelando-se 0 contraponto de coisas duraveis que nada pode abalar. Montanhas e cidades permanecem iguais, 0 vento apenas parece delinear seus contornos. Mais forte, nele sé se reconhecem gritos e o bater dos galhos, imagens sonoras que imprimi- ram para sempre sua percepcao. : Ele pode voltar 0 rosto para objetos que haviam desaparecido do‘ seu alcance ou contemplar coisas que Lhe tinham sido indicadas e que, no Jean-Frangois Lyotard, Pérégrinations (Paris: Galilée, 1990) e Moralétés postmodernes (Paris: Galilée, 1993) Evgen Bavcar, Le voyeur absolu (Paris: Seull, 1992) paT- 224412 227112 Evgen Bavcer [40] pacegens ubaras vento, tornam-se perfeitamente visiveis. E nesses momentos que ele pode levar a plenitude suas visdes, imagens celestes de nuvens, 0s fragmentos luminosos que compéem efemeramente um rosto. Ele se entrega as ima- gens no rumor do vento, na espera aterrorizada da calmaria. O cego 6 aquele que se dedica a olhar no vento. Os clichés nos permitem apreender apenas 0 que nos interessa das coisas. Ver cada vez menos. Mas um outro tipo de imagem 6 possivel: que faca surgir a coisa em si mesma, no seu excesso de horror e beleza. Uma iluminacao. Tornar-se visiondrio Estamos diante de algo intoleravel, alguma coisa de muito forte ou muito bela que nos retira toda possibilidade de acao, que nos cega. Algo ficou forte demais na imagem. A percepgao do visiondrio 6 uma expe- riéncia que resulta do ofuscamento do olhar habitual, o excesso que acom- panha a falta de visao comum. Ele fala por enigmas. A visao é uma evi- déncia do invisivel. Tentativa de apresentar pela linguagem aquilo que se experimenta como radicalmente ausente, ela convoca o simbolo a exer- cer-se na sua plenitude. A viséo impée: toda distancia ou nenhuma.** Vidente 6 aquele que enxerga no visivel sinais invisiveis aos nossos olhos profanos. O cego recorre A lembranga, A sensibilidade, a varias des- cricdes. Um modo polifénico de ver, composigao de todos esses olhares. Da voz a todos eles. Desloca o olhar retiniano de sua centralidade con- vencional, multiplicando os pontos de vista. Passa do olhar a visdo. O cego é a figura embleméatica das imagens contemporaneas. Quando o olho da lugar a vidéncia, a imagem passa a ser tao legivel quanto visivel. A visibilidade da imagem torna-se uma legibilidade. tamente como ocorre no plano opaco e horizontal da pintura contempo- ranea ou do video eletr6nico. Toda uma analitica da imagem se constitui a partir dai. A visao — em vez do olhar, submetido ao visivel — permite apreender 0 que nao se pode mais ver. Tudo 0 que foi soterrado pela xa- civilizacao do cliché, As vezes 6 preciso buscar aquilo que se tirou da José Miguel Wisnik, “Tuminagdes pro et al., O olhar (Sao Paulo: Companhia das Letr (poetas, profetas, drogados)”, em Adauto Novaes 1988) ~ 41] Lz-visdo da cidade imagem para torna-la mais atraente, Outras vezes, deve-se rarefazer a imagem, suprimir todas as coisas que Ihe foram adicionadas para nos fazer crer que viamos tudo. Essa imagem ¢ uma verdadeira visao. Para Godard nés entramos ~ quando as imagens parecem cada vez mais entregues a uma galopante inflagao — numa “era do refluxo do visual”. O que seria o visual que essas imagens viriam justamente reprimir? Re- mete a percepcao do visiondrio, ao cego. O visual é uma qualidade especial do visivel que s6 se produz em imagens muito raras. Ele nao tem nada a ver com a aparéncia — 0 look — das imagens, muitas vezes privilegiada em desfavor daquilo que se esta vendo. E uma marca impossivel de se reproduzir. O visual pode ser 0 nome deste inesperado desvelamento que nos invade de repente, uma vez.a cada dez mil tomadas de cena, trazendo uma emocao: a de uma fragil e instavel presenca de seres e coisas na tela. Algo ocorre que torna misteriosamente presente aquilo que até entao era meramente visivel. Nesses momentos, aquele ator, aquele céu, aquela drvore tornam-se efe- tivamente coisas que respiram nesta terra e, por segundos, essa sensa- cao de vida é miraculosamente capaz de chegar até nés.* Esta marca do visual pode aparecer em varios lugares, mas nada tem a ver com o fotogénico. Essa misteriosa qualidade se manifesta em algum ponto entre a postura e o olhar da camera. Nada tema ver também com 0 roteiro, mas exige atencdo para as suas inesperadas aparicdes uma qualidade de luz, um movimento, uma expressao no rosto. Daf fil- mar buscar o visual — ser uma recusa a se submeter a determinacdes naturais do visivel. O cinema contemporaneo ~ como o de Tarkévski, uma procura de transcendéncia num mundo opaco ~ é feito de imagens visiondrias.” No simplesmente visivel, seus personagens estao no exilio. Tentativa de pro- Gilles Deleuze, L’image-mouvement (Paris: Minuit, 1983), pp. 29-34 = Alain Bergala, “The Other Side ofthe Bouquet”, em Jean-Luc Godard, Son + Jmage (Nova York: The Museum of Modem Art, 1992) © Youssef Ishagpour, Cenéma contemporain: de ce coté du miroir (Paris: La Différence, 1988), pp. 309-317,

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