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CORO, CONTRARIOS, MASSA: A EXPERIENCIA TROPICALISTA E O BRASIL DE FINS DOS ANOS 60 Flora Siissekind A disting3o entre momento e movimento, sublinhada por Renato Poggioli na sua teoria da vanguarda, e retomada por Marjorie Perloff no seu estudo sobre 0 futurismo, parece também se impor quando observamos as formas de criagio, de convergéncia ¢ de intensa contaminacao miitua no ambito da produgo cultural brasileira de fins dos anos 60 ¢ inicio da década de 70, Talver seja 0 caso, nesse sentido, de ndo se pensar unicamente, entio, ‘em movimento (no queesta expressao supe de programéticoe organizacional), mas num “estado mais amplo e profundo”, numa “arena de agitaglo”,’ num “momento tropicalista” cuja abrangéncia iria bem além do campo estritamente musical (no qual se poderia pensar, de fato, num grupo mais coeso, constituido basicamente pelos participantes do disco-manifesto Tropicdlia), ou de uma limitago temporal demasiado rigida (se bem que o biénio 1967-68 concentra, de fato, algumas de suas mais. intensas e significativas manifestagdes). “0 tropicalismo nunca existiu”, chegou a dizer José Celso Martinez Corréa em “ ruras 1977.10 qu existin” segundo oe act, cm vériasfrentes?-* Rupmiras que APE consciéncia de foram se processando sem plena Bee “estado intedigacio e abrangéncia ou de wm POST criador geral”.? Lembre-se, desse pomto de 15° 2 ‘Nova Objetividade Brasileira, 1967 ¢0 ano da mostra aechiie realizada em abril no MAM-RJy na qual Hélio ¢ ti apresentaria a instalagdo Tropicdlia; da exibigao, maio, na mesma cidade, do filme Terra em transt, de Glauber Rocha; da proposisao, por Lygia Clark, de suas Méscaras sensoriais; da composicio, por Caetano Veloso, da cangdo que tomaria emprestado 0 titulo do trabalho de Oiticica; da encenagao, pelo grupo Oficina, da pega 0 Rei da Vela,* de Oswald de Andrade; da apresentagio, por Caetano e Gil, em outubro, no Festival de Miisica da Tv Record de Sao Paulo, das cang6es “Alegria, alegria” e “Domingo no parque”. E é também esse o ano de publicagao do romance Panamvrica, de José Agrippino de Paula, no qual se sucedem, em fluxo incessante, quadros urbanos € multiddes cadticas e ferazes, personagens literdrios e mitos de massa, imagens de guerrilheiros, familias, policiais, érgdos sexuais alados, helicépteros, telas de televisio, facas, navalhas, foices, martelos, bazueas, tacapes. Tudo sob a perspectiva por vezes panorimica, por vezes perigosamente préxima, de um olho-cmera, de um movimento narrativo em fuga, violento, sem fim. E marcado pelo rastro exasperado da modernizagio perversa, do crescimento urbano desordenado e espetacularizado e da brutalizagao da politica que caracterizariam a vida brasileira pés- golpe militar de 1964. ‘Nao faltaram, igualmente, ao longo do ano de 1967, e antes mesmo de a imprensa brasileira falar em “tropicalismo”,’ a exposigao de uma intencionalidade transformadora ou a vontade expressa em alto e bom som, de uma “tomada de posi¢a0”, acompanhadas de reformas € reorientagdes no ambito da expressao artistica, no sentido de sua afirmaco nio como um “ismo”, mas como ‘um campo experimental ativo, miltiplo, comprometido, £ o que procura fazer Hélio Oiticica em manifesto Publicado no eatdlogo da exposicio Nova Objetvidade, da qual participaram 47 artistas¢ de tendéncias diversas a> e-ujo objetivo era trauma espécie de pene uma caracterizagiogerl do “estado dane brasileira”. E de, pelo inventatio desses “es, Vanguardy individuais”, tentar “agrups-los culturalmenye 0s Um desejo de ages coletivas também presen, nesse momento, nanova musica opularbrni Sao exemplares, nese sentido, as notas publica, Torquato Neto, 20 longo do.ano de 195, na sus do Jornal dos Sports, que funcionam como registry dentro, das rupturas culturaisentao desejadas oy cc processo. “E necesséria a imediatainsttucionalin, deum novo movimento da miisica brasileira exemplo do que foi feito com a bossa nova”, diia Gilberto Gil em 21 de maio de 1967. panic de uma identificagio de interesses e dividas e cenezas.e problemas, os compositores chegaram a0 momento grave da definigdo”, anunciaria Torquato dois dias depois, afirmando a urgéncia de “uma tomada de posicdo frente a um piblico que, de repente, precisae exige definigdes de seus artistas”." No seu “Esquema geral da Nova Objetividade” Citicica chamaria a atencdo, como tracos gerais dessa produgao experimental, para a“vontade construtiva geral”, para o abandono de suportes tadicionais, a preocupago participativa e uma posigio necessariamente contra “coisas, argumentos, fatos”, “contra tudo que seria em suma o conformismo cultural, politico, ético, social”.» E sublinharia, fandamentalmente, a necessidade, de um lado, de criagdo de novas condigées experimentais (ligadas aproposigdes de ordem coletivo-ambiental e3 exigéncia de uma participagao ativa, de uma vivencia direta, na experiéncia artistica) e, de outro, de uma “superantropofagia” que (inspirada no “Manifesto antropéfago”, de Oswald de Andrade, de 1928) levass¢ auma absoreao exacerbada e critica nao apenas 40 “colonialismo cultural”, dos modelos estrangeitos, mas também do repertorio imagético brasileiro, das tentativas mais recorrentes de mitologizasio ¢ caracterizaco da nacionalidade. Essa redescoberta da “antropofigia” funcionaria, de fato, como um dos pontos fundamentais de intersego cultural entre linguagens artisticas distin’ 242s por Tropas nas ruas do Rio de Janeiro um dia apés 0 golpe militar de 1964. Abaixo: Governador estadual Carlos Lacerda entrincheirado no Palicio Guanabara. nesse momento. “A obra mais antropotiigica da arte brasileira”: seria assim que Hélio Oiticica definiria 0 ambiente Tropica por elecriado. Na verdade, uma compilagdo, em forma de labirinto, de um conjunto de “idéias tropicais” (araras, areia, plantas, cascalho), “lugares reais” (Rio de Janeiro, morro da Mangueira) ¢ imagens” diversas (estruturas a favelas, inscrig eométricas, barracdes, tabuletas de madeira, televisio). Um “penetravel” cujo percurso, que se encerrava diante n de uma TV sempre ligada, devia resultar daimag segundo assinalaria o artista, no “terrivel sentimento’ de “estar sendo devorado pelo trabalho, como se este fosse um enorme animal”. “Foi uma verdadeira revolucio momento que nasce uma procura estética nova”, diria Glauber Rocha sobre a “rela 1969. “Provocou consciénei da cultura colonial que! ; “Ba partir desse gio antropofigica” em uma atitude diante dio é uma rejeigio a cultura ocidental”, explica em “Tropica no, antropologia, mito, ideograma”, pois “aceitamos a rcerione{recepg20) integral, a ingestio dos métodos fundamentais de uma cultura completa ¢ complexa mas também a transformagdo mediante os nostri succhi {nossos sucos (gistricos)] e através da utilizagao ¢ elaboragio da politica correta”." Consciéncia que também impor ‘uma confrontagio critica do *subdesenvolvimento”, da “realidade brasileira em todos os sentidos ea todas as profundidades”,* com relacdo aos “nacionalismos uut6picos” e “elementos tip 9s da cultura popular” que alimentariam, a seu ver, “a boa consciéncia gerada por uma arte que se diz de esquerda porque comunica usando a velha linguagem ‘Dai, segundo ele, a devoragio em cadeia a que submete os personagens do filme 0 dragdo da maldade contra o santo guerreiro: “O t6nio (da professor com Mortes}, Antonio come o cangaceiro, Laura come o comissario, o professor come Cliudia, os assassinos comem 0 povo, o professor ‘come o cangaceiro”.* “Resta agora a antropofagia”, diria José Celso, chamando a atencio, igualmente, para 0 exemplo oswaldiano. Processo que define como necessariamente bifronte. Voltado tanto para as “imagens transatlinticas”, 4a devoragio da informagao do imperialismo pelo seu. 33 Cenas da pega 0 Rei da Vela, dirigida por José Celso Martinez Corréa, cenério de Hélio Eichbauer, Teatro Oficina, 1967 36 filho, 0 escravo, o neocolono' strépico despético”," para “uma deuma idéia ufanista’, de uma “tradgag a compromisso", €o “oportanisino”. Nts que chamaria de “aparelho nedcolonia ds “a came humana velha que i devia ter sido dann” esti fedendo e mandsndo bras, para ose monn demortos. A eficécia politica édevorartoiy mitologia deste pas”.” Dafa ruptura via Osvaig de Andrade e sua devoracio de “todas as fone, dramatdrgicas possiveis”, de um “Brasil de pore Enate[sucedaneo} da nossa verdadeizahistsne ocariter de “espetécalo-manifesto”atibuido por, Celso Martinez Cortéa, ainda durante osensiive “quanto para g 5, cultura Fue part montagem de O Rei da Vela: “A peca é Fundamental atimidez artesanal do teatro brasileiro de hoje, tic distante do arrojo estético do cinema novo”. Cabe nesse senti lo, & dramaturgia oswaldiana a funcio, segundo ele, de violacao “da barreira dacriagdo no teatro”, de exposigao das “possibilidades do teatro como forma, isto é, como arte”, “como expresso audiovisual” e, “prineipalmente, como mau “Oswald os (nos) unia”,® sintetizaria Caetano incluindo nesse “os” alguns de seus interlocutor fundamentais nos anos 60: ndo apenas Glauber Rocha ou o préprio José Celso, cuja montagem de 0 Reid Vela representaria, para o compositor, ‘a revelag de que hav no Brasil”, mas também os poetas concretos, responsaveis pela rediscussio, na época, da obra oswaldiana, e os misicos ligados ao dodecafi Avanguarda musical dos anos 50 € 60, especialmente Julio Medaglia, Rogério Duprat ¢ Damiano Cozzela, do grupo Miisica Nova,” que se responsabil pelos arranjos musicais de muitas das cangGes do grupo tropicalista. E se as idéias de uma devoragio e reinvencio sistematica dos aportes estrangeiros de um entrecruzamento sincrético de perspectivas, linguagens e ritmos temporais distintos e de um tensionamento e um transito constantes (e vistos como constitutivos do processo cultural brasileiro) entre “alta cultura” e “mau gosto”, cultura letrada e “tradig6es orais”, entre nacional e estrangeiro, arcaico ¢ ia de fato um movimento acontecendo ismo, moderno, entre atalizacao e revisto de Betas Glakcinalliade'aorsincn ee era i lmente evident i e Bite ttine a . Ou ria Caetano Veloso, entre a expetiéncia modernista dos anos 20" ¢ os ane televi : ivos € fonomecinicos dos anos 60°.* E também, seria pos . Ses €0 dos grupos eoncreto € neoconcreto no Brasil dos anos 50, Essa diferenca envolveria modos e graus diversos de conjugagio de uma consciéncia manifesta da condigio de pais periférico (tendo em vista a ordem capitalista internaciona), e de seu proceso necessariamente desigual e excludente de modemiza¢io, a uma pritica artista transformadora. Contrastam, nesse sentido, as condigées histéricas bastante distintas em que se ensaiam essas conjugagSes. A comecar por uma experiéncia cultural como a do modernismo, na qual a conjungio de “desrecalque localista e assimilagio da vanguarda européia”,* como observa Antonio Candido, se achava ainda ligada a certo otimismo embutido na idéia de “pafs novo” e na prefigurago de inevitéveis transformagGes sociais futuras. Quanto as vanguardas construtivas brasileiras do decénio de 1950, dialogam com um momento no qual, 20 lado de acentuada consciéncia da miséria e do atraso tecnolégico do pais, experimentava-se, no entanto, em sintonia com 0 desenvolvimentismo urbano-industrial eo crescimento econ6mico do periodo Kubitschek, uma expectativa positiva de desenvolvimento e afirmagio nacional que teria na construgao de Brasilia sua imagem exemplar. dno Brasil de fins dos anos 60 a situagio é bem titucionalizagdo da ditadura militar outra. Vive-sea inst iciada em 12de abril de 1964, e que se manteria ir E 1967 1968 seriam anos no poder por vinte anos. cruciais no processo de “endurecimento” dessa intervengo militar ainda “envergonhada” no governo Castello Branco, apesar das cassacdes politicas, das deniincias de tortura e da intervengao nos sindicatos ¢ federagGes de trabalhadores. E que, com a posse de ‘Artur da Costa Silva, em margo de 1967, ganharia um nEUO EICHBAUER, Maquete para o.cendrio a peca O Rei da Vela, 967 37 erescendo de violnciaerepressfo, “escancarando” sua snaturezaautoriiria econvertendo-se, coma ners iio Gaspari, num “regime aum s6 tempo amin nos quarts violento nas prisdes"-7 Eno qual modemizagio industrial, os i ee ndustrial, 0s indices de erescimento ¢ urbanizagio eo investimento macigo em tecnologia aliadosa.uma ordem autoritériaeauma polities’ .. tinham como contrapartida Perceptivel ‘uma dissolucio da cidadania, um endindarene externo crescente e uma altissima concentragio de renda, que intensificavam as desigualdades sociais ¢ accrise urbana. Vivia-se, como assinalou na época josé Celso, “o sonho e 0 mito bobo de uma tecnocracia de segunda mio”. Nesse contexto, no havia muita perspectiva otimista possivel. Converte-sc, endo, a criagio cultural mais conseqiiente, no pais, em manifestagio justamente da cisdo entre os projetos de modernizagao e transformagio social das vanguardas artisticas brasileiras¢ a realidade de uma industrializagdo utoritéria ede um “presente doloroso” que “no se redime pornenhum horizonte de transformagées”» Besse ocontexto da Tropicdlia. Fator fundamental de diferenciago com relagio 2o modernismo e as vanguardas construtivas, é necessaio, no entanto, dimensionar devidamente esse desencanto histérico. Pois, a0 lado do “aqui é 0 fim do mundo | aqui o Terceiro Mundo / pede a béngio vai dormir”, da cangdo “Margindlia 11” (de Gile Torquato Neto), havia a constatagio estratégica de que, para “fazer histria", teria de se operar uma reinvengio expressiva capaz de, ora numa “anti”, ora numa “hiper” teatralidade porvezes grotesca, parédica, expor a “ndo-hist6ria”” presente e seus descompassos ¢ simulacros. Mas seria possivel acrescentar a essa tensdo entre desencanto esatirizagdo um outro elemento-o seu alcance de massa que distingue nitidamente 0 momento tropicalista de outros movimentos artisticos do Brasil do século xx. Mesmo das manifestag@es culturais com as quais seus integrantes mantiveram didlogo mais i Pois, se sao evidentes os aportes, entao, da Ieitura de Herbert Marcuse, Jean-Paul Sartre, Frantz Fanon, Merleau-Ponty, Edgar Morin, do cinema de Jean-Luc Godard e da nouvelle vague francesa, da arte ‘Cenas da peca 0 Rei da Vela, dirigida por José Celso Martinez Corréa, Teatro Oficina, 1967 intenso. Pop americana, do happening, da produgdo musical dos Beatles ou Jimi Hendrix, é fundamental, na Soules eee tropicalit, a percepgo de wusalic ‘interna”,* da revisdo critica que nele 8¢ opera da tradigio moderna brasileira. Em particular a producdo modenista dos anos 20 e 30, da poesi concreta, da bossa nova, do cinema novo e, no amt das artes plisticas, do neoconcretismo. ‘Mas, sobretudo: ‘se comparados ao piiblico de massa da televisio eda indiistriafonogrifica e cinematogrifica da década de 60, o grau de repercussio desses movimentos era, evidentemente, bem mais restrito, “O nosso grupo era pouco popular, pois era um Srupo de artistas intelectuais que nil tinha contato enhum com o povo", comentaria Lygia Clark, em carta de 14 de novembro de 1968 dirigida a Hélio iticica, comparando os neoconcretos ao “pessoal da Tropicélia”. £ mesmo os antagonismos e dispatas, de acordo com a artista, também vinham, entao,de “artistas como nés ou intelectuais que abominavam nnossas idéias".» © campo de agao e reagao ea recepgao pareciam assim ter paradoxalmente se ampliado, e diversificado bastante, na primeira década de regime autoritario, e de uma politica cultural na qual se combinaram, taticamente, praticas repressivas (com relagao aos lagos entre criagao cultural e movimentos sociais organizados) e expansionistas (de afirmagio ~via Tv ~ de umaestética do espetdculo). Sobretudo como resultado da estratégia, adotada desde © governo Castello Branco, de desenvolvimento das telecomunicacdes, expansao do mercado publicitdrio, do mimero de emissoras dev ¢ investimento na formagio de redes, vistas como recurso fundamental numa politica de controle social e de “integracio nacional” (para empregar expresso cara & retérica politica da época). Registre-se, nesse sentido, que o niimero de domicilios brasileiros com ao menos um aparelho de televisdo pularia de 4,61%, em 1960, para 24,11% em 1970. Expansdo geminada a violenta implantagdo, no Brasil p6s-64, de novos padrdes de produgio e crédito e& ampliagio de uma nova classe média na qual se apoiaria o fortalecimento da indiistria cultural e do mercado de bens de consumo. 39 aque se tomaria um dos ncleosprimordias no tab, jeivura da sé Glauber Rocl aa exam, porno aPe028 2ST ica (em © enarefienie de José Celso, Glatber Rosi, Cartan antropofagit 05a rivo")” de algumas Veloso, Gil, Tom Zé, Torquato Neto, iélio Oiticica, ae ona aren eden -uaiquerencaminharento par ma posit polis cigdes caracteristicas — Beammistode — disiaoctiteD Jean-Claude Bernardet em carta de 2: de (concreta en ie Seer submetigo, _julho de 1967 a Glauber Rocha, “é barrado pela classe vontade construciva ¢ “~vontade ee Seen média (essa classe média que joga papel picado na ru, porém, a uma especie lca de mases Saat oan {quando cai Goulart eascende Castello, o mesmo pape confrontaga | eae oeefora, que “uniam” 0 BTUPO picado quando o Brasil faz um gol num campeonato ori t cocial desalentadora, i Seo ou se. sermitiam a intersificagao de um didlogo internacional, o mesmo papel picado quando falece = ee: jl de fins dos anos 60. Castello)”. “A tinica possibilidade de eficdcia ¢ eae ralmente, entdo, uma forte obrigara se tomar posigdes e fazer este pais, queé uma Configure se Aaa ditadura de classe média, tentar sair desse marasmo",» | ‘consciéneia das imposigdes do mercado, do eo frralecimento da indGstria do entretenimento, da afirmaria José Celso. we. ‘Dafa opcdo por uma mudanea ttica significativa lizagao aque eram submetidos sobretudo os : i es -sfsea populaz “NZo cantar apagava _comrclagdo Aarts envio ‘considerada oficialmente a visualidade de Torquato, na fase em que se instaurava de protesto, a que se ligara aos cpcs durante o sm mals fora ocantor-imagem”,® comentaria Tom SO¥er"0 Jodo Goulart, e que se norteava por um Zé. “Um més depois de composto”, lamentava Chico Aidatismo estticoe por certas simplificagdesformais Buarque, no programa da montagem desua pega Rela qe, segundo acreditavam, a tomavam passive! viva pelo grupo Oficina, “meu samba ja nao émais meu”. de mais fécil assimilagdo ¢ empatia por uma faixa Mieceim “mercadoria exposta consumo, desgastt, _idealmente populat de piblico. “Nao se trata mais de proselitismo, mas de provocagio”, dria José Celso ridjculo”.» Nio & toa sua pega trataria, em linguagem pseudo-religiosa, da invengio, da publicidade e das Sobretudo porque a ligago com as camadas populares formas de multiplicagao e devoracio da imagem de politizadas se achava cortada desde 1964. E 0 publico real ou potencial das manifestagées culturais do ‘um idolo pop. Consciéncia da propria exposigao do mercado de bens culturais no qual atuavam, que periodo era, na verdade, “essa classe média que devora snvolveria, ainda aconstatagdo de seer, enfim, como _sabonetes novelas” ou que, politizada, participa firerlocutor findamental, naquele momento, sobretudo do movimento estudanti ou de uma idéntica vontade tum piblico declasse média capaz de consumirdiscos, de resistencia. shows, filmes. ‘Tratava-se, pois, de “incorporar a problematica brasileira num nivel de expressdo revoluciondtia e ferir Oh deus vos salve / esta casa santa / onde a gente janta J com nossos pais / oh deus vos salve / esta mesa farta | feijfo verdura | ternura e paz” a letra da cangio de Caetano Veloso e Torquato Neto tinha enderego certo e figurava satiricamente o universo de valores da classe média brasileira que assistia aos programas de audit6rio e festivais de musica da televisao. “Compre, compre, compre!”, gritava-se para a platéia de Roda viva. Uma platéia figurada ora como um grupo de crentes em procissao, ora como “macacas de auditsrio” estracalhando seu {dolo. Exposigio dos mecanismos de produgio e consumo da industria do entretenimento 0 ptiblico”* (Glauber Rocha), de “colocar esse piiblico em termos de nudez absoluta, sem defesas, incité-lo 3 iniciativa, & criagao de um caminho novo”, inédito, “fora de todos os oportunismos até entio estabelecidos”* (sé Celso). “Eu, pessoalmente, sinto necessidade de violéncia. Acho que nao dé pé pra gente ficar se acariciando”, afirmaria, por sua vez Caetano, em entrevista de 20 de agosto de 1967: “Quero que a gente saiba mesmo, que a gente engula e veja que a gente esta num pafs que nao pode nem falar de si mesmo. A gente tem que passar a vergonha toda pra poder arrebentar as coisas”.** Radicalizag2o que dialogava, é claro, com aque se processava igualmente, naquele periodo, no terreno da resistencia politica clandestina no pais. Pois, sevive um momento no qual, a0 lado de um erescimento darepressio governamental e das ages paramilitares dos “comandos de caca aos comunistas”, se ampliariam, também, o recrutamento de militantes para a criagio de focos guerrilheiros e o nimero de agdes armadas esquerda, sobretudo os assaltos @ agéncias bancdrias ea carros-fortes.# Umavioléncia que, no campo da produgao cultural, estaria embutida, indiretamente, tanto na ruptura de limites, na exigéncia de participagio corporal direta, de transformagao do espectador em participador, fandamentais ao trabalho de Lygia Clark e Hélio Citicica de fins dos anos 60, quanto nas formas de dissolugio da separagdo entre palco e platéia, teatro e cotidiano, e de contato fisico exercitadas pelos atores do grupo Oficina, assim como nos conffontos explicitos provocados pelas apresentagdes-happenings dos compositores tropicalistas em shows e programas de auditério. Violéncia que, barrada pela viruléncia crescente do regime politico, seria, no entanto, reapresentada no s6 no emprego da guerrilha como metéfora privilegiada para a pratica artisica nesse momento (“Vietnas da cultura”, segundo José Celso; “fonts polémicos”, pediria Glauber Rocha), ‘mas também nas muitas imagens bélicas presentes nas cangées, no “boxe de sombras” brechtiano que organiza a ago de Na selva das cidades, nas jau grades empregadas como elemento cénico recorrente por José Celso Martinez Corréa, e como cendtio (quebrado ao final), por Caetano Veloso, numa das edigdes semanais do programa do grupo de cantores e compositores da Tropicalia na tv Tupi em 1968. Assim como no rastro do “lixo”, dos restos e margens, do “avango econdmico”, visualizado nos pedagos de tecido, plistico, madeira, empregados por Citicica nos seus “parangolés"® e “penetraveis”,* nas pichagdes pintadas nas laterais do palco do programa tropicalista da Tv Tupi, nas latas amassadas usadas para percussi0 pelos Mutantes ao acompanhar Gilberto Gil na cangio Juta contra alata ou a faléncia do café”, ou mesmo no lixo real (do bairro paulista do Bexiga) recolhido na rua e exposto no palco pela arquiteta Lina Bo Bardi na confecgdo do cendrio do Teatro Oficina para a encenagio da pega do jovem Brecht. Seria, pois, numa dupla direydo que se encaminharia 0 exercicio (no interior do mercado, dos eis de comunicago) de uma consciéncia critica do consumo e do espetéculo, De um lado, hi, de fato, uma ocupagao tatica intencional de todos os canais possiveis de difusio em massa; acompanhada, simultaneamente, por outro lado, de um continuado a tensionamento interno desses meios,e de formas diversas deexposicio consciente, de dramatisagio mesma dessa Ocupacio. Em 1Vs, ridio, shows, festvais ddemisica, desfiles de moda, jornas, evistas de grande tragem. “Vamos dizer presente no programa de grande sudiéncia de Chacrinha e Dona Dercy, do Corte Ravol ‘Show e Multifone*,# anunciava Torquato Neto em jutho de 1967. “Uma forma mais pop poderia levar nossa masica a0 contato com as grandes massas” declarava Gilberto Gil em outubro de 1968. E seria uso consciente dessa superexposicio que faria de Caetano Veloso, nesse momento, uma espécie de superastro", desdobrado em “riatura, atficio, arte, cenunciado”,* e também em catalisador da devorasa0 eda iia do pablico — 0 que se iniciaria com o sucesso de suas apresentagSes em programas de auditério da ‘zw Record de S40 Paulo, em 1957, e se ampliaria com as partcipagoes em festivais musicais, e com a “Noite da Banana”, em abril de 1968, além de outros programas promovidos pelo animador Abelardo Barbosa, 0 CChacrinha. Sua presenca ganharia, porém, crescente negatvidade, sobretudo depois da apresentacio da cangdo “E proibido proibir” sob vaias, xingamentos -objetos diversos langados pelo pilico do Festival Internacional da Cangdo. E se manteria assim enquanto arou o show semanal Divino, marailhos, realizado pela Tupi, no qual seintensiicariasignificativamente sua estratégiacaracteristica de uma critica-espetdculo realizada dedentro mesmo do espeticulo. Usamos uma érea de grande poder centralizador, explorando ao maximo suas capacidades”,* registr 0 diretor teatral José Celso Martinez Corréa. Auto exposicdo, estratégia de ocupago dos meios de massa ede espetacularizacdo da provocagio, de um lado. ‘Acompanhadas, porém, no que se refere as varias formas de manifestagio artistica, de uma apropriagao satirica tanto da retérica desenvolvimentista, tecnocratica, quanto dos arcaismos polit comportamentais, dos mitos € nacionalidade que, em aparente o discuirso regressivo e saudosista da mesma direita que promovera o golpe militar se achava frente da modernizacao industrial. Sio exemplares, nesse ico-culturais € “ra(zes” identitdrias da paradoxo, sustentavam sentido, cangdes como “Tropicélia”, de Caetano Veloso, € “Geldia geral”, de Gil e Torquato Neto, “Retocai o céu de anil | bandeirolas no cordao | grande festa em toda | nag | despertai com oragées | 0 avanco industrial I vem trazer nossa redencio”: cantava também Tom Zé ‘em “Parque industrial”, tensionando as imagens desse avango industrial (as garotas-propaganda, 0 sorriso engarrafado, o produto “made in Brazil") com indicagSes de um arnaigado moralismo (lista de pecados, oragdes, redencio) de um nacionalismo provinciano, sentimental (bandeirolas, ternura, festa, nago), ‘que parecem evocar “o catecismo de fuzil” dos desfiles militares e das marchas familiares de apoio a0 golpe militar de 1964. Registro sinerético (e internamente dissonante) tanto da presenca em expansio da comunicagio de massa e das novas imposigdes de consumo (vide “Baby ou “Superbacana”, de Caetano Veloso, ou “Sem entrada sem mais nada”, de Tom Zé), quanto das “reliquias do Brasil” (vide “Lindonéia”, de Caetano, ou “Margindlia 11°, de Gil e Torquato Neto), tanto da tradigio musical brasileira (baidio, samba exaltacio, cangéo de amor, hino, marcha, violio, batuque, tamborim), quanto do novo mercado musical (programas de TY, alto- falantes, “ié-ié-ié”, guitarras, rédio de pilha). Eé também como uma relagao de luta que se estruturam, essas composigdes. Como luta interna, critica, entre 43 modos de locugio, entre uma do paise de sua hora histérica, € presenta como forgosamente fo que se aproximam as cangOes de Caetano, Gil, Tom Zé, Torquato Neto, Capinan, do conjunto Os Mutantes, dos filmes de Glauber Rocha de fins dos anos 60 e das montagens realizadas, nesse periodo, pelo grupo Oficina. Trabalhos cuja composicao, baseada numa compilagio de elementos heterdclitos (¢ ‘numa fugazo enredo), e cujo processo de formalizagio, sob violenta ¢ indescartavel tensao_ interna, parecem apontar no sentido de uma forgosa instabilizagao, de uma quase’ insustentabilidade estrutural, de uma ‘exposigao ao limite do meio expressivo em que se opera. O que se manifestaria, com énfase particular, na rejeigdo, por parte de Hélio Oiticica, ao “estilo”, a formas de “expresso unilateral”, “departamentalizada” (como a pintura e a escultura) ou representacional, que sero substituidas, no seu trabalho, pela “criagdo de novas ordens além da arte”, pelas suas proposigdes de manifestagdes ambientais, envolvendo diversos campos expressivos ¢ experiéncias corporais coletivas. ‘Uma vontade construtiva de afirmagao de novas relagdes estruturais, conjugada paradoxalmente a uma antiformalizacao desintegradora, a uma fuga {auto)consciente da forma, tornam-se, pois, elementos fundamentais ao processo de trabalho no apenas de Oiticica ou de compositores como Caetano, Gil, ‘Tom Zé; sio, igualmente, essenciais a nogao de antiespetdculo, ao privilégio do “acontecimento” (e nao da “representago”), invocados pelo grupo Oficina (e potencializados em montagens como Na selva das cidades e Gracias, Seior), as formas de improvisagao imagens, materiais € fragmentiria, agonica. Ni trabalhadas por Glauber Rocha em Cancer, e as “imagens descentralizadas e errantes”, a “desestetizagao”, 4 “negagio da forma do filme” que marcariam o cinema de Rogério Sganzerla e Jilio Bressane. Essa negatividade envolveria, inclusive, a propria designacdo de um movimento coletivo. E se a sugestio, no in{cio de 1968, de uma “cruzada tropicalista”, pela imprensa carioca, fora vista pelos seus integrantes, a principio, com humor (Torquato Neto: “No fundo, € uma brincadeira total”) e desconfianga (Hélio Oiticica: “Quem fala em tropicalismo apanha diretamente ‘aimagem para o consumo, ultra-superficial, mas a vivéncia existencial escapa”),*e, em seguida, apropriada como meio de interferéncia mididtica (Caetano: “Se essa éa palavra que ficou, entio vamos andar com ela”),* com freqiténcia se tentatia “enterrar”, publicamente, a designagio. Como na versio original do roteiro de Tv “Vida, paixo ebanana do tropicalismo”, redigido por José Carlos Capinan e ‘Torquato Neto, e previsto para gravacio (no realizada) em junho de 1968, que incluiria tanto a inauguragao de um monumento satirico & Tropicdlia quanto a sua demoligao sob um disparo de canhao e a agio de ‘um coro que deveria repetir “Abaixo o tropicalismo! Viva 0 tropicalismo!”, “Viva o tropicalismo! Abaixo 0 tropicalismo!” e, ao mesmo tempo, empreender a total destruigao do cendrio do programa. “O tropicalismo uma fase critica que se esgota quando cumpre o seu papel”, * afirmava o roteiro, liquidando-o assim poucos meses depois de rotulado pela imprensa. E antes mesmo do langamento do disco-manifesto do grupo de compositores, o que sé aconteceria em agosto de 1968. Concomitante a esse desejo de dissolugao do rétulo “tropicalismo” haveria, no entanto, a percepcio de se experimentar, no pais, uma intensificagio da intercomunicagio de diversos campos culturais, e de se processar, entdo, como observaria Hélio Citicica, uma “espécie de sintese, em todos os campos”, uma checagem de valores, em trabalhos que “se revitalizam” e se refizem com a incorporagio de novas vivéncias. “O pessoal do cinema novo, da misica brasileira vé e revé O Rei da Vela, incorpora nossa experiéncia ‘em suas realizagdes”, comentaria José Celso. “Eu ouco as miisicas, vejo e revejo os filmes”, acrescentaria, sublinhando a inter-relagao, 0 processo de “re-criago” que caracterizariam ‘0 momento tropicalista no Brasil. Isso se evidenciaria nio s6 na disseminagio do. nome Tropicélia, mas também numa vasta série de interferéncias ¢ citagdes mtituas. Exemplos: a criagéo por Hélio Oiticica de “parangolés” em homenagem a Caetano Veloso, José Celso, Gilberto Gil; areutilizagao por Torquato Neto da expresso “geléia geral” (cunhada jornal Correio da Manhd, no dia seguinte, sobre aquela {que ficaria conhecida como a Passeata dos Cem Mil, realizada no Rio de Janeiro em 26 de junho de 1968. ai, também, o papel fundamental atribuido por Hélio Citicica a essas marchas na génese de suas experiéncias com estruturas coletivas abertas, prefiguradas, no entanto, pelos seus “bélides” (caixas manipuldveis de vidro ou madeira, de 1963 e 64) e pelos “parangolés” (criados em 1964).? “A grande Passeata dos Cem Mil teria sido a introdugdo para a Apocalipopétese”, sublinharia, no entanto, Oiticica na Inglaterra em 1969, “sua impressio e vivéncias gerais ainda me sdo presentes” Evidenciando essa multiplicago de praticas corais, de processos (re)criativos mtituos, essas experiéncias coletivas de criagdo e discussao cultural que marcariam o momento da Tropicdlia no Brasil, nao seria & toa que Lygia Clark chegaria a inventar, a certa altura, brincando com essas inter-relagGes, uma entidade plural a que chamaria de “HéliCaetaGério” 7 resultado da fusio dos so nomes de Oiticica, Caetano e Rogério Duarte. Cabendo, no entanto, mais uma vez, a Hélio Oiticica a produgio de ‘uma reflexdo particularmente esclarecedora sobre essas ‘manifestagGes em texto de outubro de 1969, no qual comentaria a experiéncia realizada em Apocalipopdtese ‘se voltaria para os modos de criagao de interagGes e cestruturas gerais, “abertas 20 comportamento coletivo- casual-momentaneo”. Ele destacaria, de saida, a diferenca entre, de um. lado, as experiéncias de “grupo aberto”, de “contato coletivo direto”, como as que procurava trabalhar, ¢, de outro, qualquer idéia de defesa de uma “estética grupal” ou de possiveis “arte-ismos”. “Numa experiéncia desse calibre”, segundo Oiticica, tratando dos pontos abertos, “o ponto comum seria a predisposigoem, os participantes admitirem a direta interferéncia do imponderdvel”.”” Dai sublinhar, também, com relagdo ao que acontecera em Apocalipopétest: “As pessoas participavam diretamente, o| sei Id mais como—_mas 0 importante é o sei Id mais ‘como, 0 indefinido que se exprime pela inteligéncia clara de Lygia Pape ou pela turbuléncia de Antonio ‘Manuel, ou pela perplexo-participacao das pessoas”.”* fundamental parecendo estar, a seu ver, ento, na constituigdo de “estruturas abertas a0 comportamento”, na “contingéncia de varias coisas, fatos, momentos vividos”,” E numa afirmagao nao s6 da “ago corporal” (deabriros ovos, quebrar as urnas, vestir as capas), da “natureza relacional” dessas estruturas coletivas, como também da idéia mesma de “momento” — pois, em meioa um complexo de vivéncias e agdes simultineas, parecia materializar-se o efeito do tempo, intensificar-se a experiéncia mesma do presente. Aproximando-se o artista, desse ponto devista, nao apenas das nogGes de “momento da percepgio”, de Merleau-Ponty, ou de “momento do acaso”, trabalhada, na época, pelo er/tico Mério Pedrosa, mas também das idéias de José Celso, de que “o interessante é0 que se passa naquele momento”, e de Lygia Clark, de que “o ‘momento, 0 agora é a tinica realidade tangivel que ainda comunica algo”.*E de que “o existir”, acrescentaria a artista, se convertera numa “mudanga radical do mundo em vez de ser somente uma interpretagao do mesmo”. contnirios”. © operador fundamental dos modos corais do grupo da Tropicilia é, portanto, a simultaneizacio. ‘Como na observaca0 epistolar glauberiana sobreo filme Tera em transe; como, enfocando a érea teatral, no ‘emprego | ‘sistematico de métodos corais diversos a0 Jongo de toda a trajetria do grupo Oficina, assim como na deJosé Celso, desde o Teatro Oficina (fechado em 1974) 2 oficina Uzyna Uzona (criada em 1984). Pensando, porém, apenas nos anos 60 € 70, basta lembrara encenagiio, i maneira de uma celebragio ritual, de Roda viva, convertida num grande coro antropofigico “que avangou sobre o piiblico, ocupou a sala, saiu para a rua foi empurrado de volta para. jaula do paleo". Ou, naversio do Teatro Oficina para a peca Galileu Galilei, de Brecht, a refiguragao enjaulada do grupo, do coro “barbaro” de Roda viva. Ou, ainda, jd em 1972, Gracias, Sefior, trabalho de criacao coletiva e de “investigacdo conjunta com as pessoas da sala”, essa coralizagio seria trabalhada por meio de uma exacerbagio da tensio entre corpo individual e corpo coletivo, ¢ entre “um grupo unido— 0 nosso no palco”, como explicaria José Celso, ‘0s espectadores, “um grupo ainda nao solidrio, ainda estracalhado, ainda morto”.** £ bastante diverso, para ficar num tinico exemplo, 0 uso do coro num grupo teatral como o Arena, de So Paulo, na mesma época. Mesmo quando se empregavam dois coros, como em Arena conta Tiradentes, de 1967, ‘0 processo dominante nao era, de modo algum, a simultaneizagio, mas uma alternancia maniqueista, didética, entre “coro-mocinho” e “coro-bandido”, para empregar expresses utilizadas pelo dramaturgo € diretor Augusto Boal no texto introdutério® 4 edicao da pega. Ambos os coros eram dominados, ainda, por uma estruturagdo musical e ritmica de ficil memorizac0, e repetidos de modo a poderem ser cantados, a uma sé voz, também pela platéia. Por vezes, além dessas repetigdes, as cancdes-hinos se viam explicadas, traduzidas, logo em seguida 2 sua emissio, pelo corifeu ‘ou pelas ages dramatizadas. Nao hd, nesse caso, propriamente uma experimentagdo com a pratica coral, ‘cumprindo essas narragdes ¢ intervengdes polifonicas a fuungio de simplesmente figurar e reforgar um grande Sujeito coletivo (“o povo”),” moldado em Tiradentes, heréi da Inconfidéncia Mineira, no Brasil setecentista. E emprestando, desse modo, “uma substancialidade épica”” e uma coesiio ideologica a cena e&relacao paleo- platéia. O oposto do que ocorria no Teatro Oficina e nos coros ecenas de massa da Tropicdlia, onde as formas corais ndo funcionavam como elemento reduplicador, mas sublinhavam dissensées, atritavam fisicamente © publico, materializavam contradicdes que, assim como no espago social, nao se homogeneizavam didaticamente no ambito da produgao artistica. ‘Observando-se ainda, no sentido dessas refiguragGes do coro, lembre-se, também o interesse de Hélio Oiticica por um ambiente caracte mente coral, com sua sintese entre misica, danca, enredo, como ¢o da Mangueira, escola de samba carieca, referéncia fundamental quando se pensa na inclusdo da danga, do samba, do ritmo, do “ato corporal” em_ didlogo com o “ritmo interior do coletivo”, no seu trabalho. Interesse que se espraiaria, igualmente, por modos corais considerados quase “espirios” ento, mas repensados por Oiticica. Como as platéias com fungao participante dos programas de auditério da televisio brasileira nos anos 60. Pois, imaginando uma espécie de grande “consumo-teatro”, visualizaria, nesse tipo de ptiblico, “um calor comunicativo” que lembraria, a seu ver, “o papel do coro na tragédia grega’. Com a diferenca, porém, de, nesse caso, nao haver propriamente catarse, mas “o deslanchamento da acdo sem sublimacao, ultra-improvisada, contando com o imponderavel mesmo”.”* ‘Um impondersivel que Hélio Oiticica detectaria, igualmente, como elemento caracteristico auma outra forma de “participacdo coletiva” bastante distinta - as marchas de protesto contra a ditadura militar -, cuja presenca, intensificada ento na experiéncia hist6rica brasileira, logo se veria extinta pelo recrudescimento do regime, Nelas, segundoo artista, a diferenga residiria no fato de, mesmo havendo certa coesao. obrigatéria de propésitos, e uma resisténcia politica em comum, se admitirem “as surpresas do desconhecido”. Dat ‘um ato relativamente localizado de protesto poder transformar-se em “gigantesca manifestasdo populat”, com mais de seis horas de duracio, como diria 0 apresentagdo conjunta de uma série de trabalhos, pela mistura de “capas-parangolés”, samba e maconha coma abertura dos “ovos” (cubos de madeira embrulhados em papel ou plistico colorido) de Lygia Pape, coma quebra das “urnas quentes” (caixas de madeira lacradas, cujo interior continha textos diversos e imagens violentas, retiradas de jornais), produzidas (exatamente para serem arrebentadas pelo piblico) por Antonio Manuel, pela conjugagdo dos poemas-objeto de Pedro Geraldo Escosteguy, e das roupas fosforescentes de Sami Mattar, ‘com um show envolvendo um domador de animais ¢ sua matilha de cdes policiais amestrados, levados ao aterro do Flamengo por Rogério Duarte. Nao é de estranhar que essas manifestacdes coletivas, com sua dimensao participativa, sua criagio de um campo experimental vazado ao campo social, Se fizessem acompanhar de investigagdes recorrentes Sobre possiveis formas e fungdes corais na pratica amtistica, e por sucessdo de experiéncias concretas diversas de uso do coro e das cenas de massa. Seriam €xemplares, nesse sentido, 0 uso, a guisa de comentario, decoro, por Glauber Rocha, das cangdes de Sérgio Ricardo em Deus o diabona tera do sol, assimcomo as Feit &© conjunto, de comicio,agitacao, com escola Fa numbss Participasio de populares, multiplcacio de ‘gurantes, em Terra em transe. Ou, mais tarde, as cenas de rua com a cidade fancionando como espago de interferéncia do diverso, do mii Claro ow A idade da terra Caberia, alids, a0 cineasta, em comentirio sobre ‘Terraem transe, fazer uma reflexdo esclarecedora sobre essa dimensao coral caracteristica da produgio cultural brasileira de fins dos anos 60. 0 filme é st MULTANEO endo PARAL iplo—em filmes como 110", diria ele assim mesmo, com as duas expressdes escritas em caixa alta, quase gritando, em carta de 1967 aJean- trataria, nesses “coros' laude Bernardet. Pois nao se deatividades ou elementos ue, voltados para a mesma dirego, pudessem operar de modo colateral, sem entrecruzamento —0 que estaria embutido nanogio de paralelismo. Essa colateralidade era, porém, de certa forma, a idéia dominante nas tentativas de producao de “frentes Ainicas” de resisténcia, na arte ena cangdo de protesto brasileira de entao, em seu desejo de cantar “a uma 86 voz", ¢ de, via emocionalizacdo, via “palavras de ordem”, refrdos, produzir uma homogeneidade coral eum poss(vel paralelismo na agio coletiva, Exemplo paradigmtico seria a apresentacao da cangio “Pra néo dizer que nao falei de flores”, do compositor Geraldo Vandré, em setembro de 1968, durante um festival da cangio promovido pela rv Globo, no Rio de Janeiro, “As 20 mil pessoas que estavam no Maracanizinho transformaram-se em coral”, relembra Elio Gaspari sobre a repercussao do evento. ‘Ao contrario, nas criagdes da Tropicalia, interessava, como se viu, provocar o puiblico e expor-lhe suas cisées, sublinhando disparidades, descompassos, trabalhando comuma multiplicidade descontinua de dicgdes, ‘materiais, com imagens que se desdobram, que se contrariam mutuamente ¢ potencializam tenses. “Toda simultaneidade ¢ complexa”, enfatizaria Glauber. Nao se trata, af, pois, de criar correspondéncias, homogeneidades ou analogias entre elementos que, sem e apenas paralelos, mantenham-se ”, Seu coro inelui expoe maior interferéncia, seguindo na mesma direcio 47 por Décio Pignatari para expressar uma diluigdo cultural generalizada) como titulo de composicao feita em parceria com Gil; a refigurago musical, por Caetano Veloso, de A bela Lindonéia, ou a Gioconda do subsirbio, ‘obra apresentada por Rubens Gerchman na exposi¢a0 Nova Objetividade; a incorporacdo do estandarte Seja marginal, sja herdi (homenagem de Citicica ao bandido carioca Cara de Cavalo) ao cendrio de show de Caetano, Gil e dos Mutantes na boate Sucata,** no Rio de Janeiro, em outubro de 1968. Ou, ainda, numa bela retomada glauberiana, por Caetano Veloso, durante a gravagao do programa Divino, maravilhaso do Natal de 1968, ‘enquanto cantava, “sem énfase”, “calmo e doce”, mas com um revdlver na mao, a canco “Boas festas”, de Assis Valente, Caetano evoca diretamente, desse modo, a iltima seqiiéncia de Terra em transe:*a da morte do jornalista e poeta Paulo Martins, com uma metralhadora na mio. A cena é reduplicada, também, pelo préprio Glauber Rocha, na participagio de Hélio Oiticica, “com uma pistola falando nem lembro 0 qué”,* edo ator Anténio Pitanga, também armado, mas mirando diretamente a camera, no filme Gincer, realizado naquele ano, no Rio de Janeiro. E que, iquela altura, ainda tinha o longo titulo “Naquele dia alucinante a pzisagem era um cancer fascinante”. Essas confluéncias se desdobrariam em interferéncias, colaborages, contatos coletivos diversos, passariam a ser encaradas para além de especifcidades expressivas ede campos artisticos ou genéricos definidos. Como ocorreria, durante a gravagao do disco ‘Tropicdlia, ou Panis et Circensis ou de Divino, maravihoso (a série de programas-happening semanais do grupo da Tropicdlia), quando a incorporagio, as cangoes, de improvisos e colagens nao estritamente musicais se converteria em relevante suplemento critico 20 processo de composigdo. Uma das apropriagoes mais conhecidas de improvisos desse tipo seria 0 relato-pastiche da descoberta do Brasil, realizado por tum percussionista apenas para testar 0 som de um microfone, e depois inclu{do por Rogério Duprat como introdugdo a faixa “Tropicalia’, de Caetano Veloso. Outra experiéncia de trabalho coletivo igualmente significativa, nesse sentido, se daria durante aflmagem, em apenas quatro dias, de Cancer, toda ela apoiada em improvisag6es realizadas a partir de um nao-roteiro de Glauber Rocha. Nele, trés personagens, uma mulher de classe média (Odete Lara) e dois assaltantes (Antonio itanga, Hugo Carvana), se véem submetidos a distintas situagSes de violéncia e 4 interaco com uma série de no-atores, na qual se inclufam os artistas plasticos Hélio Diticica e Rogério Duarte, os diretores de cinema Zelito Viana, Luis Carlos Saldanha e Eduardo Coutinho. ‘Além de alguns moradores do morro da Mangueira, como Tineca, grande amiga de Oiticica. ‘Também exemplar, do ponto de vista das experiéncias de contato grupal, seria 2 manifestagio ambiental ‘Apocalipapétese, imaginada por Hélio Oiticica, erealizada, em julho de 1968, no aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, com a participagio, dentre outros, de sambistas da Mangueira, do poeta Torquato Neto (vestindo uma das capas de Oiticica) ¢ dos artistas Antonio Manvel, Lygia Pape, Rogério Duarte, Raimundo Amado € Leonardo Bartucci, estes dois tiltimos os responsdveis pelo registro em filme de toda a agio coletiva. Agio tmarcada propositadamente pela simultaneizagio ¢ [No que parece apontar para a “abertura antropol6gica”,** paraas priticas “além da arte” dominantes na sua trajet6ria e na de Oiticica, que seriam radicalizadas, porém, a0 longo dos: nos 70. E que teriam formulagio bastante caracteristica, também, no convite-manifesto do grupo Oficina para Gracias, Seior, espetdculo, de certo modo, de sua prépria dissolucao: “O tinico papel do teatro | € levar as pessoas pra fora dos teatros | Destruir teatro onde houver teatro / Construir teatro onde nao houver teatro / Chegar na frente da televisto / Quebrar video e dizer: qual é / - Eu t6 vivo! / Eu estou vivo, bandeira ¢ estar vivo! | BANDERA £ ESTAR vivo!" Nao é de estranhar contudo que, nesse momento, ‘em meio exatamente a afirmagio da criacio coletiva, se enfatize tanto, no convite-manifesto, a primeira pesso: do singular; e, no & toa, ao lado do verbo “viver”. Poi a partir da decretagao do at-s, em 13 de dezembro de 1968, € do fechamento do Congresso, se passaria aviver um clima de violenta perseguigdo politica, de “salve-se quem puder”, de “cada um por si”, reforgado pelos muitos desaparecimentos e prisGes, pela instirucionalizagdo da censura prévia, pela banalizado da tortura como pratica repressiva. “A nova ordem gerou uma dispersao geral”," diria Torquato Neto em junho de 1971, lamentando a perda da “perspectiva de conjunto”. E, de fato, Caetano Veloso e Gilberto Gil, depois de soltos, iriam, em 1969, para a Inglaterra, onde ficariam até 1972. Glauber Rocha, que, em dezembro de 1968, jé avisava ~ “As gaiolas esto cheias de pdssaros, mas como Corisco eu nio sou passarinho para viver na prisdo” ~,® apesar de muitas viagens em 1969 e 1970, s6 em 1971 partiria para um exilio que se estenderia por cinco anos. Hélio Oiticica, porsua vez, depois de um periodo londrino em 1969, iria, gragas a uma Bolsa Guggenheim, para Nova York em 1970, onde viveria até 1978. E 0 proprio José Celso Martinez Corréa, preso e torturado em 1974, partria no mesmo ano para o exilio, virendo em Portugal ¢ Mocambique, ¢ voltando ao Brasil em 1978. “Sua forga estava no coletivo":” 0 comentario de José Celso sobre a “geragio de Roda viva” parece apontar, igualmente, para o fator inter-relacional fundamental a génese da Tropicdlia, 3 instauracio de ‘um campo experimental com intensa capacidade de intervengao eritica na pritica cultural, no ambito comportamental e na compreensio mesma do pais. B, impossibilitado historicamente 0 exerefcio coral, caberia a esse grupo revisitar algumas de suas estratégias mais caracteristicas, procurando ttravar, assim, uma generalizac2o diluidora. “Acritica ‘que as idéias da Tropicalia geraram a0 culto do bom gosto”, exemplificaria Hélio Oiticica, “foi transformada em algo reacionério pelos diluidores da mesma: instituiu-se a cafonice estagnatéria, ja ‘que instituir a idéia de cafona conduz a glorificagio permanente de coisas passadas (olha-se para trds)”.™ Outra reorientagio: se, na Tropicdlia, a perspectiva dominante era no sentido “do Brasil para o mando”, a diregao, agora, depois da didspora do grupo, tornara-se “do mundo para o Brasil”. Pois “anulara condigao colonialista”, reafirmaria Oiticica, “é assumir deglutir os valores positivos dados por essa condigo, € io eviti-los como se fossem uma miragem”” Degiutigao, devoracao, perspectiva antropofégica que, no entanto, seriam redefinidas também. E revisitadas por formas diversas de “vampirizagao”. “Eu senti que 6 vampiro em mim tinha morrido e que comigo morria ali toda uma dinastia de vampiros”, comentaria José Celso, sobre o seu desdnimo depois da proibigio de Gracias, Sefor, em junho de 1972. Renato Borghi, ator do Oficina, chegaria a planejar, a certa altura, a montagem de uma pega que se chamaria Os vampires, e na qual contaria com a colaboracao de Hélio Oiticica. “Filmes de vampiro, transas por ai, vocé acha que eu ia perder uma maravilha dessas?”, comentaria Torquato Neto, em carta também a Oiticica, sobre sua atuagao como protagonista de Nosfrato no Brasil filme de 1971 de Ivan Cardoso. “Nostorquato nio é performer, é Nostorquato prototipico”, “subterrinico Nosferato”, elogiaria, de Nova York, o artista, sublinhando a “anulagao de estilo”, realizada pelo cineasta, e o vampiro que tropecava, levantava e dava cabecada de Torquato. Acrescente-se, ainda, a essa breve lista de “vampiros”, Caetano Veloso, cantando, em 1970, a composicdo “Vampiro”, de Jorge Mautner, no filme experimental 0 demiurgo, realizado em Londres, e no qual interpretaria também o papel-titulo. st © poeta Murilo Mendes usando Ceulos de tGia CLARK, 1968 Na pagina seguinte: Rogério Duarte no filme Cancer, de GLAUBER ROCHA, 1968 Nesse filme, dirigido por Mautner (que o de uma “chanchada filosfea"), 0 personagens eer, as voltas com uma série de intrigas, inclusive con, tentatira de assassinato de Gil-Pa (por meio deum, Coca-Cola envenenada) ¢com 0 ataque de um grupo e amazonas-bacantes que deseja matar o protagonise, finin com, “Caetano-demiurgo”, em clara alusio as platéiss dos audit6tios de ry freqiientados por ele antes do exilio, Tais vampirizagdes-em-série sublinhariam tanto uma perda da dimensio coletiva, ritual, da devoracio, no novo contexto politico, quanto uma redefiniaio de status do artista (no mais antropéfago, mas uma espécie dvida de morto-vivo) e de sua atividade (cujo cardter é agora secreto, noturno) no Brasil dos anos 70, “Enterremo-nos vivos ~ desaparecamos — sejamos 0 ndo do nao”, conclamaria Oiticica em 1969. Uma refigura¢Zo enquanto mortos-vivos que envolveria a conscientizacio do préprio isolamento, do policiamento institucional e das restrigdes e diluicdes impostas ao trabalho artistico entao no pais. “Nao se esqueca de que vocé est cereado, olhe em volta e dé um rolé. Cuidado com as imitagdes”,* avisa Torquato Neto na coluna “Geléia geral” do jornal Ultima Hora em novembro de 1971; 0 tom apressado, ctimplice, dos avisos, ¢0 uso do imperativo enfatizando a urgéncia (endo apenas para ele, é claro) de uma reorientagdo da prdtica cultural. Uma reorientago que ensaiaria, entio, alguns coros. Como o do tinico niimero da revista Navilouca, organizada pelo proprio Torquato e pelo poeta Waly Salomao, e na qual colaborariam, entre outros, Oiticica, Lygia Clark, Caetano Veloso, Augusto ¢ Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Ivan Cardoso, Luciano Figueiredo, Rogério Duarte. Esta publicacio, cujo titulo evocava a imagem da stulifera navis medieval, na qual se recolhiam os loucos e inadaptados de todo tipo, exporia, ao lado de outras publicacées independentes (como Flordo Mal, Bondinho, Presenca), no apenas os caminhos individuais trilhados, entao, or aqueles artistas, mas também a situagdo& margem da produgao artistico-experimental naquele momento. E funcionaria como uma espécie de marco decisivo, de impulso & realizagio e circulagao nao-oficiais de livros, gravagées, revistas e filmes super-8, as produgdes independentes do mercado, ede qualquer incentivo institucional ou empresarial,& afirmagao de uma “cultura alternativa” no pais durante a década de 70. “Minha atividade atual, no seu todo, quero chamat de subterrinea: nao serd exposta, mas feta, seu lugar no tempo é aberto” > comentaria Hélio Oiticicaem anotagio do dia 27 de junho de 1970, Uma designacao que indicaria, igualmente, um outro transito: o da Tropicdlia para uma Subterrénia — uma “posigio critica”, “experimental”, “construtiva”, marcada pela énfase em “posigdes globais vida ~ mundo ~linguagem - comportamento”, em “atividades que nao se limitem asi enquanto arte”,» e se traduzam em atividades comportamentais “nio-condicionadas” » Uma “sub —atividade” para “vencer” uma “super— parandia ~repressio - impoténcia”,* explicaria Oiticica Pois, no caso brasileiro (distinto, a seu ver, do underground norte-americano), dadas a “condigao subdesenvolvimento” e “a posigdo conservadora” entio dominantes, “a coisa jé é automaticamente aqui underground”.»” E 0 “under", na verdade, é uma espécie de “sub-sub”, pois se trata, nesse caso, de uma espécie de Subterrénia do jé subterrineo. E osub-subterrdneo, cuja prime formulagdo por Oiticica se daria, nao é de estranhar, em meio a uma experiéncia coletiva realizada jd fora do Brasil—0 projeto Eden -9* no qual revisitaria seus “parangolés” e “penetraveis” e marcaria diferenga significativa com relacdo a um ambiente como Tropicdlia. Pois enquanto no trabalho mais antigo, conforme observaria Celso Favaretto, tratava-se, ainda, de um “exercicio com as imagens”, de uma operacio de 55. sdecifagdo”, 0 que dominaria na experiéneia da galeria Whitechapel seria a “circulagao”, a deambulacio, a sugestio de um “contexto para o comportamento, para ida”, de um ‘além-ambiente”.” Um “além- ambiente” coletivo no qual, no entanto, se invocariam todo o tempo outros ambientes. Dentre eles, a ‘Tropicdlia, cuja presenca seria intensificada em especial ‘numa das tendas de Oiticica: a Gaetano-Gil. A maneira da Tv sempre ligada do ambiente de 1967 (e como ‘uma espécie de coro sub-repticio, “outro”, em tensio 56 como novo ambiente), dois anos depois, na galeria inglesa, é 0 som das cangdes de Caetano Veloso e Gilberto Gil que se passa a ouvir incessantemente, Como a apontar, por meio de um coro de vozes ausentes, para outra choréia, aquela da experiéncia critico-experimental coletiva dos anos 1967 e 1968, Sublinhando, simultaneamente, por meio dessas cangées, desse rastro vocal gravado, a entdo inevitavel volatilizacao da perspectiva coral que definira o momento tropicalista no Brasil. ws /AUSALOMRO € TORQUATO NETO, capa da revista Navilouca, 1974

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