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ABORDAGENS FEN SW GMI AS E TENDENCIAS CONTEMPORANEAS THOMAS BONNICI LUCIA OSANA ZOLIN CNA TEORIA LITERARIA ABORDAGENS HISTORICAS 5 TENDENCIAS CONTEMPORANEAS 3* Edigio (revista e ampliada) G— ‘Borrona pa Unuvensipaps Bstapva os Mazinod sr Do Sei i be, rt: Pe De Na Atl De Pf At as rch Pt ‘Consmuo Ebro ‘ret Pe nt Luce Br En Ci: Pr Dna lai Pf. DAB LP be nse ag St Bes Betoun ast Sen, yc, sas Se Cts tbr Ear pt oars fe, Dr. ln Tiny Pre vs Lan ear Pre Brit Aes Eamon: hate act er ae Pe zt ers ain, Pb tn ir a Past, Pe ite ah a adn Pra ‘Beas Saeed ot Cais C2 an ana rt Rapes ns Pl Da. ale at al, vr ight Bnei Dis Ps ‘Bs Ror a es Sess Mos Doe re Obata Pe: re ae en Bue Tenses Fonte ee Conc do Maa, 2 oni oe, Moot mana Hence, Ynt tne Somsr, Pita Clr» Ds Maz Hanah Sir rss abe Sie i Sr si Ca as Tuomas Bonnict Lucia Osana ZOuN (Organizadores) TEORIA LITERARIA ABORDAGENS HISTORICAS E TENDENCIAS CONTEMPORANEAS 3+ Buigéo (revista ¢ ampliada) PREEACIO Marisa Lajolo a Maringt 2008 Copyright © 2005 para ox azores 3 Big 2009 ‘as rempressfo da a, Pa. 2009, 2s, reispresso da Sa Ed, - 2011, 3. rimpresso de 3a Ba, - 2012, a. reimpressio da Ja Ed, ~ 2014 “Taos os direitos reservados, Probide srerodu, mesmo parca, por qualquer proceso mecineo, letonic, reprogrific ez, em autorizato, por escrit, dos autores. “Tos 0 deitoereervador desta ediio 2009 para Eves. ‘Revisi tentual grammatical: Mara Regina Pate, Antinio Augusto de Assis Normalizagio: Ana Cristina Hinte Jeger ‘Projeto grifico e dingrataagto: Marcos Cipriano da Sis, Mateos Keznyoskt Sassaka (Capa —fustragéor Tinie Machado (Capa~aree final: Laclano Wilan da Sika Iroagens:Fornesidas pelos autores icha catalogrifica: Elen Damasio (CRBS-1123) Fonte: Aldine#0i BT “Tiragem (versio impress: 500 exemplares Dados Infemnacionsis de Catelogueio-na-Publicagio (CIP) (Eduem - UEM, Marings PR, Brast! 16M toute Litexéria: shosdagens histériene © tendtnc: Bonnet, ite! HOO pe Ah 2 contenpertiess / organtaacto thems fgane feline 3. ods seve aapie == Mavingt 7 Baven, 2008 sspy 978-0627678-162-7 1, teorla Lyteréeta. 2. Poesia ~ erzetiva, 3. Basudos extt ceiteratuca) 3. dexto Literério. 6. Critica iiterdria. 7. Ae Bolin, Bele Onaney ong. THT. Tento. 62, 4, Pba-uosanntene 1. Bonates, eos, org. 7 ep 22. ad. 60 eles ace 8 Asseu ee =| a ULI ‘Eduem -Editora da Universidade Bstadual de Maringé ‘Ax Colombo, 5790 - Bloca 40 = Campus Universtrio~87020-900 ~ Marngs-Parond one: (xv) 2011-4108 ~ Pa (rc) 2011-1392 Site hp frwedser- war br ~B-msit edvern@uem br Aos nossos alunos PREFACIO INTRODUGAO.... Parte l O TEXTO LITERARIO CAPITULO 1 ABINAL, © QUE # LITERATURA? Miri Hisse Yaegashi Zappone e Vera Helena Go 1 Wielewicki Parts Il (OpERADORES DE LEITURA, CAPITULO 2 (OEnsDonES DH LEITURA DA NARRATIVA, ‘Amaldo Franco Junior CAPITULO 3 (OPERADORES DE LEITURA DA POBSIA wn Charice Zamonaro Cortex © Milton Hermes Rodrigues CAPITULO 4 COPERADORES DB LEITURA DO THXTO DRAMATICO ww Sonia Aparecida Vido Pescolst uw 15 19 59 8 Parte III (CRITIGA LITERARIA CONTEMPORANEA CAPITULO 5 FopMatismo Rus60 & NEW carricrst Amalde Branco Junior CAPITULO 6 ‘THORIAS HSTRUTURALISTAS B POS-ESTRUTURALISTAS.. ‘Thomas Bonnict CAPITULO 7 ABORDAGEM ESTILISTICA Milton Hermes Rodrigues CAPITULO 8 ‘Crfrica socrouéeica Marisa Corea Silva CAPITULO 9 Esriirica pa RECEPCAO ‘Mirian Hisse Viegashi Zappone CAPITULO 10 A DESCONSTRUGAO DB JACQUES DERRIDA... Marcos Siscar CAPITULO 11 MATERIALISMO LACANIANO . Marisa Corta Silva CAPITULO 12 (Calica sennista.. Licia Osana Zolin CAPITULO 13 (Cxtrica rstcanatinica Adalberto de Oliveirs Souza CAPITULO 14 ‘TTORIA x CRETICA POS-COLONIALISTAS.. ‘Thomat Bonnict CAPITULO 15 Catmica cenérica.. ‘Adalberto de Oliveira Souza 8—TEORIA LITERARIA 131 159 7 189 201 2a 217 243, 257 Parts IV ‘P6s-MODERNISMO & LITERATURA CAPITULO 16 © P6s-mopERNISMO. Giséle Manganell Femandes Parte V ‘Lrrerarura & ESTUDOS CULTURAIS CAPITULO 17 ‘LrvERATURA B ESTUDOS CULTURAL... ‘Maria Hlisa Cevaseo 319 caPiruLo 18 LLITERATURA DE AUTORIA PEMININA.. {aca Osan Zalin : 327 CAPITULO 19 LLITERATURA DE AUTORIA DE MINORIAS BINICAS B SEXUASS.. . smn 397 (Célia Regina dos Santos e Vera Helena Gomes Wielewicki Parte VI LrreraTura & OUTRAS ARTES 385 (Clarice Zamonaro Cores CAPITULO 21 LLrvenaTura & CINEMA. Anelise Reich Corseuil 369 CAPITULO 22 LLITERATURA, IEUSTRAGAO I © LIVRO BUSTRADO venom . 379 Nilee M. Pereira inpicr REMISSiVO.. SopRE os avTORES.. 405 ‘Tuauas Rowse: / Locia Osana Zari (oncanizavonss) — 9 REFACIO “Teoria Literéria € disciplina que faz parte do curriculo de Letras, além, & claro, de integrar 0 horizonte de espectilagdes de alguns bons leitores. E o que estudar e sobre o que meditar sob esta rubrica esti bem longe de constituir unanimidade nacional, ‘Muito pelo contritio. [A pluralidade de enfoques que a disciplina Teoria Literéria recebe nas centenas de cursos de Leeras (430 cursos inscritos no Enade) que, pelo Brasil afora, formam professores ¢ pesquisadores é obviamente, desejével e muito positiva. Afinal, desde 0 decifnio do prestigio da Rerrica, em meados do século XVII, o estado da literatura vem se tornando cada vez mais plural, abrindo espago para olhares miltiplos ¢ nem sempre convergentes. Se & Retérica substituiu-se a Histéria Literéria, segue-se (ou soma-se?) a esta a Teoria da Literatura, “Alguns dos olhares que olham o literério investigam o estrato lingu(stico e discursivo do que se considera literavara, outros focalizam as relag6es da literatura coma hist6ria, outros ainda se debrugam sobre eventuais relacées entre o criador ¢ a obra criada. E ainda ba muitos e muitos outros, alguns inclusive, mais recentes, que privilegiam a figura lnumilde do leitor. ‘As diferentes perspectivas assumidas pelos estudos da literatura face a seu cbjeto nmuitas vezes coexistem e hoje em dia quasc sempre se sobrep6em. (O resultado é que uma histéria dos estudos literérios nfo'se representa como uma sucesso linear de pressupostos teéricos, de procedimentos metodolégicos ou de posigSeserfticas. As diversas perspectivas ~ ainda que conflitantes ~ interpenetram-se ¢ somam-se: quando nfo na contemporaneidade do momento de sua formulacio, muitas vezes no percurso de sua circulagfo e, com certeza, na cabeca © em trabalhos de professores e pesquisadores que, no brago 2 brago com o texto, valem-se de qualquer fragmento de teoria, procedimento metodol6gico ou perspectiva critica que os ailie adizerem alguna coisa relativamente ao texto que, por profissio, estudam, analisam, ensinam, criticam, Pois, jd se sabe, ariicar, ensinar, analsar owestidar uma texto 6, sobretudo, dizer alguma coisa sobre ele, Dizer ndo qualquer ‘coisa, mas certas coisas. Dafa importincia ¢ oportunidade deste Teoria literaria: abordagens histéricas e tendéncias contemporineas, assinado a muitas nvios, todas elas com experiéncia no ensino superior brasileiro. ‘Antes de mengulhar nas péginas que aqui se ocupam de diferentes aspectos ¢ quest6es da teoria litersria, vale a pena lembrar que a prépria organizagio do livro ~ como, de resto, ocorreria com qualquer livro aque tratasse dos mesmos asstuntos ~ jé cortesponde a uma determinada perspectiva face & literatura e 2 reflexiio sobre ela. Composta de varios médulos, esta obra tanto se oferece para uma leitura sequencial, pagina depois de pigina do primeiro ao tiltimo capitulo, quanto para leituras salteadas — um capftulo aqui ¢ outro ali ~ de acordo com os interesses de momento dos leitores. Seri mesmo possfvel esta leitura salteada? Com certeza sim, embora se reservern algumas recompensas para leitores que encomendam o cardépio na sequéncia sugerida pelo matte. O livro se abre de forma inteligente e instigante, anunciando a reflexao através da quel se formula a questo primordial: o que € literatura? Longe de qualquer dogmatismo, as paginas iniciais do capitulo Ido livro vio simultaneamente oferecendo e desconstruindo hipéteses que cercam definigées de literatura, Tiata-se de opcio sem dtivida arrojada, e que nfo tem como evitar polémicas com quem espera que estudos de teoria literdria se iniciem por uma definicio de seu objeto. Se oceandgrafos podem ter alguma certeza quanto ao objeto de seu estudo, e da mesma forma engenheiros mecinicos ou neurocirargides, esta certeza esté proscrita para o profssional da literasura. No caso dos estudos literirios e da definigSo de seu objeto, o proceso 6 mais relevante do que 0 produto, importando mais os passos pelos quais se constr6i uma ou outra definigio do que venha a ser 6 literério do que a definicao propriamente dita, Ou seja, sfo mais relevantes os procedimentos pelos quais se circunscreve um ow outro segmento da produgio verbal humana como Hiterério ou como nia tterdrio, do que o resultado do processo de construcéo ou de circunscriglo do que &¢ do que no é literatura ‘Esta primeira parte do livro~“O texto literdrio” ~é, pois, onde mais se abre o leque de perspectives oferecidlas aos leitores: o granum salis com que a porta de entrada do livro tempera as reflexdes que faz sobre o texto literfrio pode temperar também o que vern depois do capftulo de abertura, sendo isso zuma das recompensas da [eivura linear e sequencial da obra Prosseguindo na hipstese da feitura ordenada das duas primeiras partes da obra, registre-se que um tal processo satisfaz expectativas que parecem muito generalizadas: a de que primeiro se discute 0 que é literatura ou, melhor dizendo, o que é que toma literdrio um texto e s6 depois se estabelece coma trabalhar com 0 texto considerado literério. Pois ~ nunca é demais repetir ~ para os profissionais de literatura, © cardter literfrio de um texto é uma espécie de ponto de partida para o exercicio profissional que, embora possa encerrar-se pelo retorno ao texto, constitui sempre um discurso sobre o texto, por mais que se creia (ou se anuncie como) colado a ee. Enesta perspectiva que se pode entender que a segunda parte deste Teoria literdria: abordagens hist6ricas e tendéncias contemporaneas se detenha sobre o que chama de operadores de leitura, isto , discuta os componentes do texto que servem, por exemplo, para estabelecer tama das classificagbes bésicas com que traballizm os estuclos literdrios ao estabelecerem distingdes entre narrativa, poesia & drama. Ao percorrer estas trés partes iniciais, o leitor estard tendo uma oportunidade muito boa para meditar sobre a fecunda contradigio que aguarda todos os profissionais de literatura que a encaram, como algo mais do que uma disciplina escolar que dura um ou mais semestres da graduacdo de Letras A Teoria Literdria explica ou constitui o objeto do qual ela se anumncia uma teoria? Ou o explica eo constieui? Por um lado, pode-se pensar ~ e, efttivamente, muita gente pensa assim ~ que teoria literdtia € a disciplina responsivel por fimiliarizar o estudante com a metodologia necesséria para andlise dos textos que ele estada quando estuda qualquer das literaturas curriculares, da infantil 2 brasileira, da comparada & de lingua inglese. Encarada desta perspectiva, a teoria literdria transforma-se numa espécic de teenolagia literdria, Por outro lado, pode-se pensar —¢ outro tanto de gente esposa esta ideia — que teoria lterdria € uma espectilagdo gratuite sobre os cbjetos que sio chamados de literatura. Sem nenhum compromisso com, categorias analfticas ou com procedimentos técnicos, deste ponto de vista, a teoria literéria se constitui ‘um espaco reflexivo que tanto se ocupa das vrias concepe6es de literatura em vigéncia em diferentes momentos hist6ricos, como medita sobre a passagem de uma concepeéo a outra. WW TeORIA LITERARIA Borris Os quatro stlkimos segmentos de Teoria literaria: abordagens histéricas ¢ tendéncias contemporineas oferecem 20 leitor um panorama contemporinco de diferentes quest6es © perspectivas que balizam os estudos literrios. Se nem todas as geografias deste panorama falam com. Sotuque brasileiro, em vérios momentos do livro, o diglogo entabulado entre uma ou outra teoria © juma ou outta obra do cinone literdrio brasileiro articula as quest6es que levanta 2 um acervo (por hipétese) mais familiar para os leitores deste livro. ‘Alguns dos desdobramentos dos estudos literétios aqui discutidos ¢ includos na parte desta ‘obra que se ocupa da contemporaneidade (partes III IV) jé tém sta hist6ria: tanto o estruturalismo quanto a eritica sociol6gica ou a psicanalitica, por exemplo, jé se desenvolveram a ponto de gestarcm ¢ inspirarem suas préprias reformulagbes ou coatestagées. Talvez, por isso, esta rerceira e quarta partes sejam das que mais atengio exigem dos leitores, j& que resenhar teorias nifo € nunca tarefa neutra sempre se resenha a partir de unt ponto de vista, de um reperesrio ¢ para certs interlocutores O llivro se fecha com capftelos que ~ como fica bem em capftalos finais ~ apontam para fora do ‘campo estrito literério, retomando simultaneamente a questio trabalhada no capitulo de abertura Recobertos pelos tftulos "Literatura & estudos culturais” ¢ “Literatura &¢ outras artes”, seis capttulos investem — bem mais do que os anteriores — em perspectives interdisciplinares dos estudos liter‘rios. So vatios os centros universitirios de ponta, hoje, onde o estudo da literatura é parte do que se chama deesiudosculturas. A questao €polémica e pega fogo: transformara literatura em umamanifestagéo cultural, incluindo nela Cebolinha, Capitu, O Navio Nepreito, telenovelas globais e antincios de lingerie desagrada a muita gente, Para estes, esta perspectiva poe em xeque a epeificiade estética da literatura que, assim, se dissolveria no universo semovente de diferentes linguagens ¢ diferentes midias No avesso desta radical abertura do conceito de literatura, os tres capitulos finais do livro resgatam 2 identidade do litersrio, proponco uma contraposicio entre literatura ¢ outras artes, recuperando neste contraponto a especificidade da primeira. Aqui, 2 identidade da literatura enquanto linguagem specifica e altamente valorizada se constr6i c se afianga no diglogo que estabelece de igual para igual com outres linguagens ~ pintura, cinema e ilustrag6es, no caso ~ para as quais nossa cultura atribui vvalor artistico. Nesta contraposicio que encaminha o livro para seu encerramento nada mais adequado e justo do que o leitor repetir a pergunta que abre o livro: afinal, o que é literatura? Que ninguém se engane com a repetiglo: se a pergunta chave pode repetirse ao final do livro, cla se repete (¢ sc responde) de maneire diferente, porque formullada (¢ respondida) agora por umm Ieitor muito mais informado dos caminhos; atalhos e becos que espreitam quem viaja pelas movedigas sendas dos estudos literdrios. Viegem para a qual este livro é um bom companheiro. Marisa Lajolo UNicAMP ‘Tomas Bonnier / Locis Oraxa Zoum (oxcawizaponss) — 13 TRODUCAO ‘Mats UM MANUAL DB TEORIA LITERARIA?! Desde o tempo em que a ‘oratura” predominava como um vefculo de transmissio das hist6rias mifticas, no apenas nas sociedades indfgenas, afticanas e americanas, mas também nas comunidades “mais avangadas” epfpeias e gregns, as manifestag6es de critica surgiram como que inerentes 8 mente irrequieta e investigadora do homem, A materializagio da narragSo dos myifo’ antigos, antes caniados 20 redor da fogueira nas noites frias, agora através de letras, ou na “literatura”, instigou ainda mais o intelecto humano a elaborar teorias, criticas ¢ métodos para analisar seu produto estético. O gosto pela realizagio do belo, apoiess dos gregos, em suas virias manifestag6es, levout-o i formulagéo de conceitos bisicos para analisar o texto literario, para denunciar exchusGes estéticas ¢ recuperar 0 terreno perdido de expresses que integram a natureza humana B nesse contexto que podem ser vistas as obras de teoria literéria de Aristételes, Horicio ¢ Longinus, na Antigitidade clissica; de Bellay, Viperanus, Boileau-Despréaux, no Renascimento € no Neoclassicismo; e de Foster, Frye, Kayser, Aguiar e Silva, Brooke ¢ Eagleton, entre outros, na época contemporanea. Acrescentam-se também os maiiltiplos desafios ideolégicos, os quais, a partir dos anos 1960 até o presente, deram origem a novas manifestagées literdrias e modalidades de critica literéria, Presume-se que jé se passou 0 tempo em que a interpretagio de textos literdrios ¢ a teoria literdria eram vistas como esferas distantes uma da outra. A interpretagio de um texto, seja ele lirico, épico ou dramitico, muitas vezes passava 20 largo da teoria literSria, j6 que a primeira sc referia exclusivamente 2 “descobrir” 0 tema concebido pelo poietes, enquanto a filtima concentrava-se em generalizagSes que [jamais se encaixavamn nos textos espccificos. Nestes diltimos quarenta anos, vé-se a aproximagio entre ‘a teoria e a interpretagio dos textos. E consenso hoje que qualquer interpretagio deve envolver a teoria ‘0s conceitos a ela inerentes. Ademais, a teoria tornar-se-ia estérl se se furtasse dela a interpretagio do texto. Estamos convencidos de que, em todos os niveis de andlise, especialmente nos estudos literérios académicos, a teoria e a interpretacio sfo essencialmente conexos. Para o professor de Literatura, é um desafio apresentar 20 aluno de graduagio um grande niimero de textos teéricos seminais que alicercem a andlise dos textos submetidos a set aprego. De fato, os professores de Literatura ¢ Teoria da Literatura encontram-se, quase sempre, em situagdo pouco confortivel no momento de selecionar textos sobre teoria da literatura para serem trabalhados em sala de aula, com alunos de graduagio. Isso ocorre porque grande parte do material disponivel no mercado nfo é destinada 2 graduacio, mas a0 pesquisador, em geral iniciado. Thata-se de publicagSes que contemplam a teoria literdria a partir de suas fontes, mas que, efetivamente, no atingem 0 aluno; @ linguagem € lermética ¢ as discuss6es si eminentemente te6ricas, acarretando, nfo raro, 0 desinteresse do aluno cm relagio a matéria. Por outro lado, os manuais dispontveis abordam, em sua -smaioria, as tendéncias criticas tradicionais, sem contemplar as abordagens mais recentes. Essas, quase sempre, estio dispersas em textos de seus formuladores, geralmente estrangeiros. Foi visando colaborar para com o preenchimento dessa lacuna que nasceu 0 projeto deste manual, envolvendo diversos professores do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringé ¢ convidados de outras instituigSes, Em se tratando de um grupo consideravelmente grande, os capftulos acabaram por assumir configuracio bastante diversificada, tanto em relacfo & extensio quanto? linguagem, fe até mesmo 2 profundidade das discuss6es. Apesar dessa peculiaridade imposta pelo préprio caréter de coletanea que 0 livro possui, nosso objetivo foi disponibilizar para o professor ¢ para o aluno de graduacio reflexes acerca da literatura e das principais maneiras de lero texto lterério, desde as mais tadicionais até 2s mais recentes. Tomams 0 cuidado de tecer ess2s reflexées utilizando uma linguagem, na medida do pposstvel, acessivel ao iniciante; bem como de acompanihé-las de excmplos priticos de leitura,retirados da literatura em geral, com énfase em textos de autores brasleiros, © manual esté organizado em seis segmentos: 0 primeiro, “O texto literério", abriga um capftulo que resgata alguns conceitos de literatura disseminados em contextos diversos, visando refletir sobre as tendéncias contemporineas de se conceber as especificidades do texto literdrio; o segundo, “Operadores de leitura”, contém capftulos que discutem os elementos fimndamentais de andlise da narrativa, do texto poético ¢ dramético por meio de exemplos préticos de leitura; no terceito segmento, “Critica literéria contemporinea”, reunimos capftulos que versam sobre algumas das principais correntes criticas do século XX e da atualidade, objetivando esclarecer as implicagées que envolvem, as leituras realizadas a partir do ponto de vista de cada uma dessas tendéncias. Nosso objetivo € fazer com que, por meio da leitura desses ensaios, o académico tenha ideias claras, precisas ¢ suficientes sobre as crfticas Sociolégica, Feminist, Pés-colonial ¢ sobre o Formalismo Russo, Estruturalismo, Pés-estruturalismo, Desconstrugio, entre outros. Enquanto dedicamos, no quarto segmento, um, momento de reflexio acerca da Pés-modernismo, no quinto registramos capitulos que refletem acerca da literatura no ambito dos Estudos Culturais, com especial foco sobre a literatura de autoria feminina ¢ de minorias étnicas ¢ sexuzis. Por fim, no sexto segmento, reunimos capftulos que busca discutir as relagdes entre a literatura e outras artes, como o cinema, a pintura e a ilustragio. Por motives Sbvios, nesta obra, na qual € predominante a preocupagio de unir a teoria ¢ a pritica literSria, em nivel de graduacio, a énfise gira em tomno da teoria literfria contemportnea, Sem diivida, no se pode prescindir de analisar certos aspectos de critica litersria em voga no infcio do séaulo XX, como 0 Formalismo e 0 Naw Critics, Sobre essas abordagens baseiam-se vitias ouitras perspectivas mais recentes, como o Estruturalismo, o Pés-esiruturalismo e 0 Pés-modernismo, tomnando esses tiltimos menos difccis, de compreender e de assimilar. De fato, prima esta obra por uma politica de coexisténcia em que se refletem. abordagens antigas e novas,tradicionais ¢ atuais, consenstais ¢ polémicas. Precisamente € esse nexo que provoca no professor ¢ no aluno uma atitude de problematizacéo, nfo apenas dos aspectos e das perspectivas da teoria literdria, mas do proprio texto. Embora se pergunte ainda “O que significa esse poema?”, ou “Qual 6 o tema dessa natrativa?”, mais ainda enfatizam-se perguntas como “Esse texto significa isso para quem?”, ou “Por que esse texto pode ter esse signiticado?”, ou ainda “Quem quer que esse texto signifique isso?” Nesta terceira edicio, com varios capftulos ow acrescidos ou atualizados, os orgunizadores e 05 autores esperam que este manual ajude o aluno de graduacio a aprofiandar a problematizagio e que enfrente corajosamente as miiltiplas “tentativas de interpretacio”, Esperam ainda que se alargue mais o conceito de literatura do nosso aluno, dando-lbe uma visio mais critica da ficgio e da realidade. Os organizadores 16—TZORTA LITERARIA Parr I pexto literdrio AFINAL, O QUE E LITERATURA? Mirian Hisae Yaegashi Zappone Vera Helena Gomes Wielewicki ‘DEsENVOLVDMENTO HISTORICO-SEMANTICO DO TERMO LITERATURA Quando pensamos, leitores desse livro e, portanto, leitores j6 iniciados no caminho das letras, na pergunta O que éliteratura?, imediatamente vém 4 nossa mente nomes de obras arroladas hé muito tempo ‘como tal. Quem no pensa n’Os lusiades, de Cames, no Dona Castro, de Machado de Assis, nos versos de Goncalves Dias ou de Castro Alves, em Iracema, de José de Alencar, no Grande sertio: veredas, de Guimaries Rosa e em muitos outros, para ficar apenas na tradicéo litersria em lingua portuguesa? Esse processo mental de associacio entre a palavra literatura e esse rol especifico de textos parece- nos muito natural ¢ imediato, de forma que o prOprio conceito de literatura imiscui-se, mistura-se com a descrigio dese determinado conjunto de textos. E, assim, ficamos com a impressfo de falar de um objeto, a literatura, como um fato concreto, imediato, pronto e acabado, como se sempre tivesse sido assim. Essa associacSo 6 to ajustada, tio natural, que ninguém questiona 2 veracidade de ser 0 Dom Casmuno uma obra da literatura brasileira: a literatura € tanto Dem Carmurro quanto Dom Caasmurro €Viveratura. Comic comenta Williams (1979), ao falar desse processo de associagéo entre conceito e descrigio da literatura, “esse é um sistema de abstracio poderoso, por vezes proibitivo, no qual o conceito de ‘iterarura'€ ativamente ideol6gico” (WILLIAMS, 1979, p. 51). Eo aspecto ideolégico dessa associagio reside no fato de cle apagar ou encobrir para todos nés a ideia de que 0 conceito de literarara constraiu- se e constrdi-se através ce tum processo que € social histérico a0 mesmo tempo. Com isso queremos estabelecer que aquela relagio entre Dom Casmurra¢ literatura c literatura e Dom Casnsurro pode no ser io direta ou concreta quanto fiz supor a associagio que fizemos no primeiro parigrafo ao perguntar O que é literatura? Bem, sé nio se trata de uma relagio direta, mas de uma relagio que obscurece o préprio modo de construgio desse conceito, parece-nos que uma forma de deslindar os aspects sociais ¢ histéricos, que influfram ¢ influem sobre sua construgio, seria verificar como, afinal, 0 conceito veio a se desenvolver. Jsprowe & WinLawick! ‘Aiideia moderna de literatura, ou seja, como uma arte particular, diferenciada da mtisica, da pintura, da arquitetura, enfim como uma categoria espectfica de criagSo artistica que resulta num determinado conjunto de textos s6 veio a ser formulada a partir da segunda metade do século XVII e desenvolvida, de forma mais completa, no século XIX A palavra literatura, como informa Aguiar e Silva (1988), deriva da palavra latina literatura, que fora, por suaver, imitada do substantivo grego ypappciin (grammatike). Nas linguas europeias modernas, termos correlatos de literatura, do latim, aparecem em meados do século XV (aproximadamente 1450) NNo intervalo de tempo entre meados desse século e meados do século XVII, hé uma literature na lingua inglesa, ums littérature, em francés, uma letteratura, no italiano, e uma fratura em portugues. O uso desse termo nas diversas linguas estava, entretanto, muito longe de abarcar o cardter especializado com que 0 vemos hoje. Nesse intervalo de tempo, nfo se faria literatura, mas se tina literatura, ot seja, ela era mais um atributo de um individuo que era capaz de ler e que havia realizado leituras. Literatura relacionava-se A capacidade de ler e de, portanto, possuir conhecimento, erudigio ¢ ciéncia, Assim, literatura nfo designava uma produgio attistica. Hla abarcava tanto 0 conhecimento dos indivfduos sobre varios ramos do saber, da gramética 3 filosofia, da hist6ria 4 matemtica, quanto o amplo conjunto dos textos que propiciavam esse conhecimento, Come a partir do final do século XV a reproducdo de materiais escritos comegou a transferir-se das miios dos copistas para a oficina do impressor, o conhecimento ow a literatura passou a ser adquirida de forma mais especifica através de textos impressos e, obviamente, como o niimero das pessoas, capazes de ler era hastante restrito, a fiteratura era atvibuto de poucos. Logo, mesmo no sentido inicial de seu emprego, a saber, como uma condigio cultural (muito préximo ao conceito atual de letramento), a literatura especificava uma distingfo social particular, ligando-a, portanto, as classes privilegiadas. Para designar especificamente os textos de cardter imaginativo, enquanto criagio artfstica, eram utilizadas normalmente as palavras poesia, eloguéncia, verso ou. prosa: A palavra poesia assumiul, com, 0 ‘tempo e a partir do proprio desenvolvimento do termo literatura, uma especializagio: de “composig6es de cunho imaginativo", passow a se referir unicamente as composig6es metrificadss e, posteriormente, as composigdes metrficadas, escritas e impressas. Literatura, por sua vez, tornou-se uma categoria mais ampla e abrangente do que poesia (WILLIAMS, 1979, p. 52). Retornando, pois, a0 processo de especializacéo do termo literatura, foi no séoulo XVI que se registraram as primeiras mudangas do uso de literatura como “conhecimento”, “saber”, “erudicio” para ‘um uso diferente, agora relacionado & ideia de “gosto” ou “sensibilidade”, embore ainda permanegam, residuos do significado anterior. Os diciondrios ¢ enciclopédias, tio em voga nesse momento do Século das Luzes, ajudam a ilustrar essa passagem. O Dictonaire philosophique, de Voltaire (1694-1778), registra 2s dificuldades que cercavam aqueles que tentavam definir literatura nessa 6poca circunscrita a meados do século XVIM, até as tiltimas décadas desse século: Literatura; esta pulavea € um desses termos vagos tio fequentes em todas os Lingoas [| a literatura designa em tods a Europa iam conhecimento de obras de gosto, um veniz de Listéra, de poesia, de eloquéneia, de ertica [.-]. Chame-se bela literatura as obras que se interessam por objetoe que posstem beleza, como a poesia, a eloquéncia, 2 historia bem ‘cecrite, A simples critica, a polimatia, as diversas interprotagber dos sutores, os sentiments de alguns antigos fldsofos, a cronologia nfo sto bela literatura porque esas pesquisas so ses belera (VOLTAIRE, 1764 spud AGUIAR E SILVA, 1983, p45). © proprio autor do texto chama atencio para a filta de delineamerito mais preciso para 0 termo, quando o indica como um “termo vago”. Além disso, notamos certa ambiguidade na sua descrigéo, pois literatura ainda aparece como conhecimento, embora 0 autor a associe com 0 aspecto estético como se-vé em “bela literatura” ou mesmo em “objetos que possuem beleza”, Segundo Aguiar e Silva (1988), a partir das diltimas trés décadas do século XVIII e de forma crescente, o termo literatura vai incorporando o sentido de fendmeno estético e de produgio artfstica. 20-—-TEORIA LETERARIA —eGBarivar, o ques tirenaruaar Nessa mesma época, comegam a surgir as primeira literaturas nacionais, a partir da composigio das primeiras hisérias da lveratura ema diferentes pafses. A géncse dessas hist6rias da literature, bem anteriores 20 século XVII, pode ser encontrada em textos inicialmente de cardter bio-bibliogrético, ‘mas que jé tematizavam a vida de autores em forma de inventérios. Escarpis (1958) cita algumas delas: Vita di Dante Alighieri, feita por Boccacio, em 1358, out a Istriam majoris Britanniae sciptonum, hoc est Angliae, Cambriae, ac Scotiae, Catalogus, de John Bale, composta entre 1548 a 1559. Senco um processo ‘de condicionamento feito pelo proprio desenvolvimento das Iinguas nacionais, essas biografias passam ‘ase desenvolver e 2 adquirir uma consciéncia muito precisa de seu papel, a saber, a busca das fontes nacionais da literatura de cada pats. Assim, até o final do séculoXVILL, quase todas as nagbes jé possuem ‘uma hist6ria literdria, Na Inglaterra, enconteamos The History of Poetry from the Close ofthe Eleventh to the Commencement of the Bighicenth Century, de Thomas Warton, entre 1774 ¢ 1781, ¢ The Lives ofthe Poets, de Samuel Johnson, entre 1779 e 1781. Na Itilia, comega a ser publicada a Stora della letteratura italiana, de Girolamo Tiraboschi, em 1772; em Portugal, hé Memérias para a Hist6ria Literria de Portugal e seus dominios, dvididas em vires cantas, de 1774. Também no mundo oriental, observa-se a mesma tendéncia, de forma que, cm 1777, surge a primeira hist6ria da literatura japonesa, Kunitsyfimn!-Yonono-ato, de Kokei Ban (ESCARPIT, 1958, p. 1758-1762), ‘Vale ressaltar que as ideias de gosto, de beleza e de sensibilidade, através das quais se defendew 0 angumento estético da literatura, forain, sem dévida, 0 resultado da atividade de setores dominantes que exerceram a prOpria atividade do gosto como forma de disseminar seus valores. Esse gosto, exercido como algo objetivo, desempenhou, em termos de valores de classe, um papel suficientemente hegemdnico para que fosse accito, tanto pelos “amadores cultos” que 0 exerciam, quanto pelo péblico Ieitor que peulatinamente se ampliava. Williams (1979) chama atengio para o fato de esse “gosto”, ‘que passou a aquilatar como literdrios certos textos, possuir uma base caracteristicamente burguesa ce subjetiva, de forma que podia ser aplicado, sem reservas, tanto a textos como a vinhos: “Gosto em Jiteratura poderia ser confundido com ‘gosto’ em tudo 0 mais, mas, dentro dos termos de classe, as reagées literatura foram notavelmente integradas, com a relativa integracZo do pitblico leitor” (WILLIAMS, 1979, p. 54). Esse exercicio do gosto, inicialmente realizado pelos “ariadores cultos”, vai, a partir do séc. XIX, passando 20 dominio dla critica, que vai se transformar em uma nova disciplina praticada cada vez mais nos ambientes relacionados as acaciemias ¢ as universidades. ‘Uma segunda e importante modulagio no coneeito de literatura é aquela operada na associngio de literatura com obras “criativas” ou “imaginativas”, em oposicio aos textos de carfter objetivo ou aos da cigncia. Assim, para ser literatura no bastava que 0 texto Fosse bem escrito segundo 0 gosto burgués vigente, o que poderia incluir um texto de hist6ria ou de citncias, mas esse texto deveria sex, de algum modo, a expressio da criatividade humana. Tal passagem tem, sem dévide, certos correlatos hist6ricos ¢ socizis. Historicamente, essa especializagio do terme literatura corresponde 3 exigincia do desenvolvimento das ciéncias indutiva ¢ experimental e do desenvolvimento de novas técnicas no bojo da sociedade capitalista industrial Esse desenvolvimento torna mais clara e patente a diferenga entre os valores da moral ou da ciéncia 08 valores ertisticos e estéticos, “Assim, se constitufa uma das antinomias fundamentais da cultura ccidental nos dois tltimos séculos ~ a antinomia da chamada cultura humanfstica versus cultura cientifico-tecnolégica” (AGUIAR E SILVA, 1988, p. 10). Essa antinomia, por sua vez, condicionatia a separagio entre textos de cariter “imaginativo” e textos de caréter “cientifico ou moral”, Socialmente, a especializagio do vermo literatura, enquanto textos de carster “imaginativo” ou “criativo”, tem sua contrapartida nura fenémeno também correlato ao desenvolvimento da sociedade capitalista: a necessidade de desafiar as formas repressivas da nova ordem social através do argumento da ctiatividade humana, Assim, dar vazSo a textos criativos ow através dessa consciéncia imaginativa era uma forma de contrapor-se is novas formas de relagbes humanas marcadas pele ética da produgio, pela dissolucio da vide social em préticas exclusivamente marcadas pelo trabalho. Como se v6, 0 termo literatura passou por um complexo processo de especializagio, partindo de tum sentido inicial — as obras impressas que forneciam a seus leitores um atributo de possuidores Tuomas Bonnict / Locia Ozniea Zou (onoanvzaponts) — 21 Jappone 2 Wirtewicat de literatura — pasando a textos de “gosto” ¢ “sensibilidade” e, posteriormente, a textos de carter “jmaginativo” ou “criativo”. Ao chegar a esse nivel de especializacZo, o problema central em termos de conceituagdo da literatura passa a sero como valorizar os textos a partir desses critrios, ou seja, dando mais importincia& sua dimensio imaginativa ou estética. Nesse sentido, mais uma vez a critica, aquela mesma atividade construfda sobre uma base burguesa, ter papel preponderante ao julgar entre 0 “criativo” e 0 “estético”, sempre através de critérios seletivos: nem tudo o que é literatura imaginativa € “literature”, nem tudo o que € belo é imaginativo, o que atesta a imprecisio do termo ea dificuldade de acercar um objeto de estudo cuje propria configuracio & mével, em razio de seu carter histérico e social. Essas tentativas de definigSo da literatura, entretanto, continuam e, a partir da segunda metade do século XIX e inicio do século XX, ganham novo tom, pois busca-se definir literatura enquanto dado objetivo, concreto, observivel. Surgem, nesse momento, propostas de defini¢io da literatura como conjunto de textos portadores de caracteristicas que corresponderiam a sua literariedade, Nessas propostes, observa-se a ideia de que os textos literdrios teriam certas caracteristicas estruturais ou textuais muito peculiares, as quais os tornariam diferentes dos demais textos, considerados, portanto, nio-literarios. ‘Tiata-se de uma tentativa de trazer 2 discussio sobre o que literatura para um campo mais objetivo, utilizando métodos que se distanciavam da subjetividade que permeara a definigio do termo até entio. A defesa dessa especificidade abjetiva como marca dos textos lterdrios era feita com base em métodos e processos de andlise também objetivos. Essa concepeio objetiva de literatura disseminou-se fortemente nos estudos literérios nas primeiras d&cadas do século XX através do Formliomo Russo, do New Criticism e da Estittstica, ‘Um texto bastante conhecido de um autor formalista, Vitor Chklovski, ajuda a ilustrar como eles procuravam demonstrar que o cardter literério de um texto poderia ser observado em suas qualidades internas ou textuais. O proprio titulo do texto, “A arte como-procedimento”, de 1917, refere-se a0 fato de que 0 autor do texio literério criara certos procedimentos, certos modos de elaboracio textual que concederiam ao seu texto 0 cardter de litrariedade. Para os formalistas, 0 cardter estético de um texto seria resultado da utilizagéo de procedimentos desantomatizados de linguagem em oposigio utilizacfo de procedimentos comuns, jf automatizados no uso da linguagem cotidiana. Ao desautomatizar a linguagem, o autor de um texto 0 tornaria singular, especial e, portanto, artistico, ou seja, lterdrio. Assim, 0 caréter estético em literatura seria a soma de todos os procedimentos desautomatizados utilizados num texto: [..] chamaremos objeto estético, no sentido préprio da palavma, as objetos criados através de procedimentos particulares, cujo objetivo 6 essegurar para estes cbjetos uma percepgio estéica. [] ( objetiva da arte & dar 2 sensacio do objeto como visio e nfo como reconhecimento; © procedimento da ane € 0 procedimento da singularizasSo dos objetos¢ o procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar 2 difculdade ¢ a duragio da percepsio. (..] Em arte, a liberagio do objeto do automatismo perceptive se estbeleceu por diferentes meios (CHRLOVSKE, 1971, p. 41, 48). sta formalista parte da ideia, no que se assemelha a0 New Critésm e & Boil, de que os ios possuem tracos de linguagem ou de propriedades textuais, ou ama esstncia estética que os irmnana, tornando-os literérias em oposigio aos textos que no possuem tais tragos. Em razio de estudarem a literatura a partir dessas caracterfsticas textuais especfficas, tais correntes de estudo ficaram conhecidas como tertudlstas, Basicamente ¢ de forma suméria, podem ser consideradas como marcas textuais de literariedade: 1) a oposi¢&o da linguagem literéria’ linguagem comum, sendoa literatura uma forma textual que coloca em primeiro plano a propria linguagem, ou seja, bé énfase na fimgio poétics dessa linguagem, 2) a invegracio da linguagem como organizacio especial de palavras estrutaras que estabelecem relagées especificas entre si, potencializando 0 sentido dos textos; 3) a distingo entre o cariter referencial dos textos nio-literdtios ¢ o cardter ficcional dos textos literérios, ou seja, a literatura abarcaria textos que criam uma relacio especial com o mundo: uma relagio ficeional onde o mundo, os eventos € 08 seres evocados no 22—TeORIA LITERARIA precisam, necessariaments ser reais, mas criados ou imaginados; 4) os textos litersriosteriam um fim em si mesmos, pois, a0 colocat a prépria linguagem em primeiro plano, estariam operando o seu caréter estético, que ocasionaria, por sua vez, o prazer nos receptores desse texto. ‘Todas as caracterfsticas anteriormente apontadas podem ser facilmente observadas em muitos textos arrolados como literatura e, néo raramente, elas foram abstrafdas pelos te6ricos 2 partir do estudo.e da leitura de textos literfrios, como € 0 caso do préprio Chklovski (1971), anteriormente citado, que estuda as obras de Tolstoi (1828-1910) para dizer que uma das marcas da literatura € a desautomatizacio da linguagem, feita por meio de rauitos procedimentos, entre eles o de singularizacéo (criar uma percepcao particular do objeto, diferente do mero reconhecimento). Nio tardaram, entretanto, as reagbes 2 essa visio objetiva ou essencialista de literatura. Muitos autores comecam a questionar se, efetivamente, o que caracterizava a literatura eram certas “propriedades internas” dos textos. Assim, a partir da década de 60 do século XX, comegam a surgit -virias reagbesa esse ponto de vista, cujos argumentos centrais podem ser encontrados nas relacdes entre a literatura e seus leitores, jé que muitos autores observam que os fatores distintivos de literariedade, defendidos pelas correntes textualistas, nao eram exclusividade de textos liter4rios, podendo também ser encontrados em textos de natureza referencia. Assim, o ponto de discussfo sobre o que ¢ literatura desloca-se da esfera do texto e de suas “propriedades peculiares” e passa para aesfera do leitor, uma vez aque 0 texto 86 existiria a partir do ato de leitura dos leitores e o seu significado s6 emergiria através de ‘um ato interpretativo. ‘Na Franca, essa preocupacio com o estatuto do leitor ¢ com as formas de circulagdo dos textos aparece muito claramente cm Sociologia da literatura ¢ Histoire des Littératures: littératures francaises, connexes et marginales, textos nos quais'Escarpit, em 1958, propée o que chama de abordagem sociolégica da iteratura, Nela,o cariter literdrio define-se basicamente por meio da recepcao, das relagées estabelecidas entre autor/texto € 0 seu ptiblico e todos os meios de transmissfo que os ligam: “Todos os escrtores, no momento em que escrevem,tém presente um polio pare além defes, [proprios. Uma coisa nfo est inteiramente dita af que & dita = alguém: isto &, como vimios, © seniido do acto da publicagto. Mas podemos igualmente afimmar que uma coisa apenas pode ser dita a alguém (isto 6, publicada) se for dita por slguém, Os dois “alguémm” no tera, forgosaniente que coincidir. B mesmo raro que «al aconteca. Por ouras palavras, existe um _piblc-interloutor ne prépriaorgem de crag eréia (ESCARPTT, 1969, p. 165, rifos nosso). Ou ainda: “Todo 0 facto lterfrio pressupée excritores, livros « leitres ou, de mancire geral,cradares, obras ¢ um péblico. Constiai um circuito de trocar que, por meio de um sistema de transmissio extremamente complex, dizendo respeito a0 mesmo temipo 3 arte, 3 tecnologia 0 comércio, une individuos bem definidos (ESCARPIT, 1968, p. 9) Também articulando as leituras realizadas pelos leitores ao longo do tempo no que se pode chamar de histéria da leitura, Chartier (1997) propée, contemporaneamente, uma abordagem de literatura que leva em conta a figura do leitor. Para ele, « literatura nfo teria uma natureza caracteristica, propria, mas seria uma construgio de sentidos propostos para certos textos. A historicizacio seria um modo de desvendar os mecanismos de construcio do literério, entre os quais a leitura teria importincia preponderante: ‘Uma hist6ria da literatura ¢ ensdo uma histria das diferentes modalidades de apropriagio dos textos. Hla deve considerar que o “mundo do texto", usando as palavras de Ricoeur, & um mundo de “performances” cujos dispostives e regras possibilitam e restringem 2 producio do sentido (CHARTIER, 1997, p. 68) ‘Além da leitura, importa para Chartier (1997) a historicizagio do litersrio, ou seja, a verificagio de como acontecem 2s variagdes, no tempo e espaco, entre o que é considerado literétio ou nfo. Em ‘Twowas Howntet / Locia Osaxa Zou" (oncanrzanonss) — 23 arrows £ Wistawrer busca dessa historicizacio da literatura, ele propée o estudo de algumas categorias responstveis por construir a literariedade: Deconte dif a definigio de dominios de investigagées pariculares (0 que no quer diver propria a tl ow tl disciplina): asim, por exemplo, a variagio dos eritérios que definiran fa “lkterariedade” em diferentes perfodos, os dispositivos que consticufram os repertérios as obras candnicas; as marcas deitadse nas proprias obras pela “économie da escrita” em ‘que foram produzides (segundo as pocas ¢ 2s possveis coergGes exercidas pela institsigéo, pelo patrocinio on pelo mercado), ou, ainda, as categorias que construfram a “instinnigo Tierra” (como as nogies de “autor” de "obra", de “livro", de “escrta”, de “copyright” etc) (CHARTIER, 1997, p. 68.69) Em terras brasileiras, a nogdo de sistema Mterdrio, elaborada por Candido (1981), representa ‘uma abordagem semelhante, na qual o liserério aparece associado aos leitores ¢ onde a natureza social do literario é resgatada para a propria caracterizacio da literatura enquanto manifestacio cultural Apresentado inicialmente em A formagéo da literatura brasileira, de 1959, 0 conceito de sistema litetdrio 6, para Candido, um modelo explicativo do processo de formagio da literatura brasileira, n0 qual 0s elementos da trade autor-obra-piblico aparecem como fundamentais para e caracterizagio das condigdes em que a literatura poderia existir. Sem a articulagio desses trés elementos, haveria, segundo o ertico, apenas manifstagbes ltertrias: {.+] convéinprincipiar distinguindo manifestagSes liters, de literatura propriamente dita, consderada aqui um siema de obras ligadas por denominadores comons, que peraitem reconhecersnoias dominantes de ama fie. Estes denominadores so, afm das caracterfsticss diners (lingua, temas, imagens), cemos elementos de naureza sociale piquica, embora Titerariamente organizedos, que se manifesta historicamente«farem da literatura aspecto orginico da cvlzago, Ente cls se distingoers: a exsttncia de um conjunto de prodiores Titerfros, mais ou menos conseientes do seu papel; um conjunc de secepores,formando (os dftrenies tipos de pablico, ema os quais a obra nfo vive; um mecanisina transmissor (de modo gerl, uma linguagem traduzida em estilos), que liga uns a outros (CANDIDO, 4981, p. 23). Além de constituir argumento de sua tese sobre a formagéo da literatura brasileira, 0 conceito de sistema literério aparece em diversos outros textos de Candido, compondo uma srilha na qual se podem perceber outros detalhes sobre os elementos constituintes de seu sistema. Em O esertor ¢ 0 ptblico, de 1955, aparecem mais vistveis a nogio de circulagio literéria e o mecanismo de retroagio do sistema literério, quando o autor mostra a dupla influéncia das obras sobre os leitores e dos leitores sobre os autores e, consequentemente, sobre as obras: A literatura & pois, um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras ¢ sobre os Ieitores; es6 vive ne medida era que estes aviver decifrando- acctando-1, deformando-a. A oben nao & produto ix, nioo ante qualquer pblio; nem et & passive, homagéneo,registrando ‘uniformemente 0 sets efeito, Séo dois termos que atuam um sobre 6 outro, ¢ 208 quais se Junta o autor, termo inicial desse proceso de ular lterdra, para configurar a relidade da literatara atuando no tempo (CANDIDO, 1985b, p.74, grifos nossos). ‘Mais recentemente, as mesmas ideias reaparecem no texto Iniciagéo a literatura brasileira, publicado inicialmente em 1997: “Entendo por sistema o articulagéo das elementos que constituem 2 atividade lterria regular: faurres formando win conjunto virtual, ¢ vefculos que permitem seu relacionamenso, definindo tna vida iterdria: paeos,restritos ou amplos, capazcs de ler ou de ouviras obras, pemitindo corn iso que elas cicalem e atuems tradigio, que 6 0 reconhecimento de obras ¢ antores precedente, fimcionando como exemplo ou justificativa daquilo que se quer fazer, ‘mesmo que set para rejetar (CANDIDO, 1999, p. 18). 2 —TEORIA LITERARIA Baseadas num pressuposto sociol6gico, as ideias de Candido sobre literatura passam sempre pela relagéo que a literatura estabelece com a sociedade onde surge. Disso decorre 0 cardter coletivo da literatura, assim referido pelo zutor: ‘A literatura, porém, € coletiva, na medida em que requer uma certa comunbiio de meios expressivos” (CANDIDO, 19852, p. 139). Se literatura é comunicagio ¢ se cerige entre os espacos que unem autor-obra-paiblico, o conceito de sistema literério de Candido pode ser produtivo como explicagio teética do fancionamento ¢ construcéo da literatura. O conhecimento de como esses elementos se rclacionam dinamicamente no tempo pode ajudar a compreender os caminhos através dos quais a literatura vai se construindo ¢ se constituindo, enquanto expressio de uma sociedade. LLIVERATURA F RELAGOES DE PODER © panorama oferecido até aqui mostra como, 20 longo do tempo, construfram-se os sentidos do termo literatura e todos eles sio férteis exemaplos para se mostrar que a sua definigfo, como outras definig6es, ou estabelecimentos de “verdades”, & permeada pelo envolvimento do poder com o conhecimento. Néo s80, portanto, apenas caracterfsticas intrinsecas a um determinado texto que fazem com que ele soja literdrio o1 nfo, mas também o poder do conhecimento espectfico vai deserminar se aquele texto pode ser considerado literatura ou no e, em sendo literatura, se é “boa” ou “ruim” ‘Vamos discutit essa colocagio em outras palavras. Jé-vimos que aquilo que entendemos hoje por literatura, na sala de aula, nem sempre foi visto como literatura, Como aponta Eagleton (2001), na Inglaterra do século XVIIL, por exemplo, a literatura abrangia todo 0 conjunto de obras valorizadas pela sociedade, como filosofia, bist6ria, ensaios, cartas ¢ poemas. Duvidava-se que © romance, ainda emergente, pudesse vir a se tornar literatura, Os critérios que agrupavam textos literérios cram ideolégicos, selecionando escritos que expressassem os valores ¢ gostos de uma determinada sociedade. A arte da palavra que se fazia nas ruas, como baladas e romances populares, nfo pertencia 30 rol literétio. £ com aquilo que chamamos hoje de perfodo romfntico que as conceituagbes de literatura comecam a se desenvolver. Nesse petfodo, escrever sobre algo que nao existe, “imaginativo", passa a ser interessante. Entretanto, como aponta Eagleton, a escrita imaginativa entra em choque com 0 espirito revoluciondrio da época, jé que os regimes feudais estio sendo derrubados, na Franga e nos Estados Unidos, pela ascensfo da classe média, enquanto a Inglaterra vem tornar-se a primeira nacho industrial capitalista do mundo. A situagio social que se tem entio € de uma quase escravidéo da classe assalariada recém-formada, Com interminaveis horas de um trabalho massacrante e alienante, ea rejeicio de tudo aquilo que nfo pudesse ser transformado em mercadoria. A literatura romantica, aqui, tem um papel a cumprir: denunciar e transformar a sociedade. ‘Assim, como uma forma de resisténciz ao estado absolutista no século XVIII inglés, havia sido criado um espago de discussio litersria em clubes e cafés, bem como em jornais e periédicos, Em meados do século, entretanto, 0 crescimento do ntimero de leitores e do mercado jornalistico aumentou. as possibilidades de uma escrita profissional, propiciando o aparecimento da figura do “homem de letras". Um precursor do intelectual do século XIX, o homem de letras possuii um conhecimento ideolégico genérico, tornando-se capaz de discorrer sobre a cultura c a intelectualidade de sua época. Fazendo da escrita seu ganha-pio, ele procurava ajudar 0 piblico a entender as complexidades da ‘transformagio econdmica, social e religiosa (EAGLETON, 1991). ‘Axé © século XVII, 0 ptiblico leitor era claramente definido: havia 2 “sociedade polida”, intelectualizada e interessada, tanto pelas artes, quanto pela mantitengio de valores morais, © 08 incapazes de ler, dedicados ao trabalho bragal, com os quais a producde critica ¢ literéria nao precisava, ‘grosso modo, se preocupar. A partir daf, entretanto, vai surgindo ume classe de leitores insermediria, ‘Tuomas Bones / Locts Osawa Zauin (onaasizaponss) — 25 aprons = WigLEwicer ‘que io é mais formada de “pessoas influentes”, bem versadas nas discuss6es culturais e intelectuais, nem pelos analfabetos que nao conseguem ler coisa nenkuma, Essa nova classe de leitores €alfabetizada, mas no faz o mesmo sentido da leitura feita pelas “pessoas influentes” intelectualmente. Assim, 0 exttico literério dirige-se a um ptblico que, como ele, trabalha para viver, mas nfo esté inserido nas formas do diélogo inteleccualizado polido das elites. As questOes de classe forgosamente passam a fazer parte das preocupacées do homem de letras. Ao mesmo tempo em que essa nova classe de leitores burgueses ¢ fortalecida, com suas novas necessidades, 0 conhecimento especializado vai se definindo, tornando o trabalho do homem de lemmas extremamente complicado. A finco humanista desenvolvida por ele de forma “amadoristica”, ingenuamente nfo-profissional, com sua confianga na responsabilidade ética, na autonomia individual ena livre transcendéncia do eu, como afirma Eagleton (1991), perde terreno para o conhecimento especializado e para um gosto piblico determinado pelo mercado. Assim, o sibio decide afastar-se da esfera social, buscando ambientes menos “contaminados” para sua busca pela verdade. E dessa forma que a universidade passa a abrigar as discuss6es literdrias. ‘A institnigSo da literatura inglesa como tema académico deu-se para buscar a satisfagio de algumas finalidades ideol6gicas. Primeiramente, o estudo do “inglés” destinava-se a “pacificar ¢ incorporar 0 proletariado, gerar uma sociedade complacente entre as classes sociais e construir uma herange cultural nacional que servisse para fortalecer a hegemonia da classe dominante num perfodo de instabilidade social” (EAGLETON, 1991, p. 57). A indagacio transcendental decorrente desse projeto justifica a fangio alienadora atribuida, por vezes, & literatura, Além disso, a universidade veio profissionalizar (08 estudos literérios. A academizacio da critica deu a0 homem de letras uma base institucional ¢ uma cestrutura profissional, mas 0 separou da esfera ptiblica. Para Eagleton (1991), a crftica literdria alcangou sua seguranca cometendo um suicfdio politico: seu momento de institucionalizagio académica é seu desaparecimento como forca socialmente ativa, Suas preocupagées com as “letras” ou com a “vida” raramente saem dos limites universitérios. E dessa forma de discussio literdria, institucionalizada nas universidades inglesas, que a critica literéria atual deriva. E a academia, com suas pesquisas, estudos e publicagses, além de discuss6es em sala de aula, ¢ trabalhos jornalisticos de criticos que passaram pelas universidades, que acaba determinando, hoje em dia, o que € literatura, o que é literatura boa ou ruim, ¢ come ela deve ser lida, Entretanto, pode-se questionar até que ponto as discussGes académicas sobre literatura chegam 20 iblico leitor. Quem se importa, além de professores universitérios e seus alunos, se o personagem & plano ou redondo, se a narrativa é homo ou heterodiegética, qual seria uma leitura psicanaltica de um conto ou desconstrutivista de um poerna? Bm qué essa leitura literdria “profissionalizada” contribui para a sociedade? ‘Vamos procurar discutira importincia da leitura literéria académica lembrando a questio do poder. ‘A resposta para nosso questionamento, se a leitura académica importa ot nZo para o ptblico leitor de ‘uma forma geral, vamos deixar para o final. Jé vimos que a universidade, hoje em dia, tem um papel fundamental na definigio daquilo que € ou nio considerado literatura, daquilo que é “boa” literatura, e como deve ser lida, A comunidade académica, portanto, tem o poder de definir literature pela posiga0 que essa comunidade ocupa na sociedade, jé que o conhecimento especializado ¢ altamente valorizado. Se a universidade ¢, por extensio, a escola de um modo geral, diz que determinado texto 6 literdrio ¢ de bom nivel, entende-se que seja assim. O problema, entretanto, nio reside tanto nas escolhas feitas e nas exclusées delas decorrentes. A cattica literfria refiagiou-se nas universidades para buscar 2 verdade de forma nio polufda pelos problemas sociais, Mas, 0 que 6 a verdade? Nao seria 2 verdade uma questio de escotha, condenando ‘outras “verdades” ao esquecimento, mais do que a expressio de uma esséncia imutfvel? Foucault (1996) afirma que a verdade nada mais 6 do que uma construcéo do discurso, mudando de acordo com variagdes culturais ¢ ideolégicas, em diversos momentos da hist6ria. Discurso, conhecimento e poder esto entrelacacos, Existem, portanto, condigées para a producio do discurso que envolvem relagdes de poder, gerando conhecimento ¢ controlando o acesso a ele, © autor fala de uma série de procedimentos que contribuem para a produgio e controle dos discursos, ow seja, para a producto 26—TBORTA LITERARIA ¢ controle da “verdade”. Vamos ficar com apenas dois: 2 oposicao enite 0 verdadeiro 0 falso € as disciptinas. A divisio entre verdadeiro ¢ falso, segundo Foucault (1996), é historicamente constitufda, jé que aquilo considerado hoje como verdade nem sempre o foi. Para 08 poetas gregos do século VI a.C., por exemplo, o discurso verdadeiro era aquele que inspirava medo e terror. Aquilo que era dito era considerado realidade, o discurso fazia acontecer, trangando-se junto com 0 tecido do destino. Se saltamos pare a virada do século XVI, em especial na Inglaterra, a verdade passe a ter @ obrigacio de ser observada, medida eclassificada. O objeto aser conhecido deve ser visivel, verificével, comprovivel. Um nivel técnico de saber € necessério, o conhecimento precisa ser empregado para ser verificivel e til. B ssa forma de verdade que conhecemos até hoje. O verdadeiro, agora, é 0 cientffico, o comprovivel, © palpdvel. O desejo de que a verdade seja alcangada move a busca cientfica ¢ esté sujeito a um respaldo institucional. Ele € renovado ¢ reforcado por prétices, como a pedagogia, por exemplo, ¢ por sistemas de livros, publicagées, bibliotecas, sociedades letradas e laboratérios. A verdade também é renovada pela maneira como o conhecimento € distributdo e atribufdo em uma sociedade, Assim, a verdade 6 estabelecida por grupos detentores do poder do conhecimento ¢ no representa uma esséncia imurdvel. ‘As proprias descobertas cientificas sio revistas e reelaboradas, ¢ aquilo que & considerado verdadeiro ‘em certo momento € por certo grupo de pessoas poders ser desacreditado no futuro, A mesma coisa se dé com a definigio e a valoracio da literatura, Textos considerados nao-literdtios no passado so estudados como literatura hoje, ¢ autores “menores”, ou que produzem géneros menos respeitados, podem vir a set valorizados pela academia. As disciplinas constituem o outro princfpio regulador da verdade nos discursos a ser considerado aqui. Para Foucault (1996), as disciplinas so relativas © méveis ¢ permitem uma construgéo, mas densro de certas fronteiras. A disciplina nfo € a soma de ‘tudo que pode ser dito sobre algo, nem o conjunto de tudo que pode ser accito sobre um mesmo dado em virtude de algum principio de coeréncia ou sistematicidade. As disciplinas sio feitas de erros ¢ -verdades, sendo aqueles indissociveis destas. Para que uma proposigio pertenga a uma disciplina, cla deve ser capaz de ser inscrita em certo horizonte te6rico. Dessa forma, cada disciplina reconhece seus princfpios verdadeiros e falsos, mas deixa além de suas margens os “monstros” do conhecimento nfo reconhecido. Foucault (1996) afirma que uma proposigio deve preencher requisitos pesados para estar inserida no agrupamento de uma disciplina. Diferentemente de ser falsa ou verdadcira, 2 proposicio deve estar “inserida no verdadeiro” de uma disciplina. Para que um texto seja ou no literério, portato, no é necessirio simplesmente que seus elementos constitativos sejam literérios, mas que aqueles elementos que fario dele um texto literdrio estejam dentro dos padrées “considerados literirios” pelas disciplinas envolvidas. Em outras palavras, seré literatura, em um determinado momento histérico, aquilo que a teoria e a critica literdtias, além do mercado editorial, decidirem como literatura. Dentro dessa linha de raciocfinio, podemos entender a seguinte definigio de liveratura: A literatura, poderfamos corciui, um ato de fala ou evento textual que suscita certostipos de atengio, Contrasta com outros tipos de atos de fla, tai como dar informagio, fazer pergumtas fe fazer promessas, Ne mafor parte do tempo, o que leva os litores a trata algo como literatura que eles a encoatram num contexto que # identifica como literatars: num livo de poemas ‘ou numa sep30 de sama revista, biblioteca on livraria (CULLER, 1999, p.34), Culler (1999) chama a atengio para elementos que seriam diferenciadores do texto literério, que fariam com que a fala cotidiana nfo fosse considerada literatura. A literatura mereceria uma atengio especial de seus leitores. O seu carster ficcional, por exemplo, possibilita que os leitores tenham uma relagio diferente com o mundo. Quando lemos um texto literdrio, sabemos que estamos em comtato com um evento linguistic que projeta um mundo ficcional que inchui falante, atores, acontecimentos ¢ um piiblico implicito, Sabemos que ndo somos chamados a responder a um texto literério como serfamos a tim texto histérico ow cientifico, por exemplo, Entretanto, as fronteiras entre a hist6ria ¢ a ficcio, ou entre a iccio e acitncia, nfo sio tio rigidas assim. O cariter cientifico ¢ hist6rico de Os erties, de Euclides da Cunha, nfo pode ser desprezado. Os Sermtes, do Padre Ant6nio Vieira, hoje estudados sais por seu valor literério, foram escritos com fins doutrinérios. Ao mesmo tempo, a histéria politica ‘Tuomas Bonn / Locta Osawa Zoun (onaanszaponss) ~= 27

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