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VETOR _|_EDITORA PSICO-PEDAGOGICA | A ESCUTA E A FALA EM PSICOTERAPIA UMA PROPOSTA FENOMENOLOGICO-EXISTENCIAL Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo A Escuta e a Fala em Psicoterapia Uma Proposta Fenomenologico-Existencial VE EDITORA PSICO-PEDAGOGICA LTDA. RUA CUBATAO, 48 CEP 04013.000 SP FAX (Qhoe11) 283-5922/F ONES 283-5225/283-0336 hitp:/www.vetor-editora.com.br E-mail: vetor@virtual-net.corn.br Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagaio (CIP) (C4mara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Feijoo, Ana Maria Lopez Calvo de Aescutae a fala em psicoterapia : uma proposta fenomenoldgico-existencial / Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo. -- Sao Paulo : Vetor, 2000. Bibliografia. 1. Existencialismo 2. Fenomenologia existencial 3. Psicologia clinica 4. Psicoterapeuta e paciente 5. Psicoterapia I. Titulo. 00-4672 CDD-150.195 indices para catdlogo sistematico: 1. Cliente-psicoterapeuta : Relagiio clinica : Psicologia 150.195 2. Psicoterapeuta-cliente : Relagao clinica : Psicologia 150.195 ISBN 85-87516-29-9 Paginagio: Peter Fritz Strotbek Copyright © 2000 - Vetor Editora Psico-Pedagdégica Ltda. E proibida a reproducao total ou parcial desta publicagio, por qualquer meio existente e para qualquer finalidade, sem autoriza- cio por escrito dos editores, inclusive por sistema informatizado. HOMENAGEM POSTUMA Aos meus pais e a meu filho que, ao partirem desta vida e me deixarem com tanta saudade, permitiram que eu me reconhecesse da forma mais prépria como um ser-para-a-morte. Certa de que um dia também partirei. lis proprias de que um dispGe. O fato de esquecer qualquer , que muito tenha contribuido para que eu pudesse realizar ibalho, seria estar em débito. Seria no realizar o que é prio em mim, nao manifestando a profunda gratidao com jueles que, de forma direta ou indireta, sabendo ou nao, este trabalho uma realizacio. meus mestres que me foram de grande valia e com quem estarei em débito. radeco, também, aos alunos e supervisionandos pela pacién- r | que acompanhavam minhas reflexes acerca do temaem ), bem como pelos seus estudos de casos supervisionados, e longas conversas, sem nunca exigirem que fosse dife- ais: participando de forma carinhosa e afetiva da minha Apresentacao Vem ocorrendo nos tiltimos anos, uma forte preocupacao no ampo da psicologia clinica, no sentido de rever os conceitos 6ricos e as praticas clinicas, visando uma maior adequagao as necessidades do homem na atualidade. - Profissionais, em busca de uma compreensio mais aprofun- dada do fendmeno cientifico, tecnolégico e social que nos sur- preende a cada dia, procuram cada vez mais cursos de pés-gra- luac&o contribuindo, com dissertagdes de mestrado e teses de loutorado, para ampliar os campos teéricos das mais variadas ibordagens. Especificamente, os interesses se voltam para as tentativas de inalisar idéias, conceitos e praticas que revelem uma possibilida- le de abertura para o novo entendimento do mundo, do homeme do homem no mundo. Por outro lado, adeptos de teorias que no jassado —e num presente muito préximo —haviam ficado na som- a, pelas mais diversas razes, encontram espaco agora para di- gar estas idéias e oferecer novos métodos de andlise e novas nodalidades de pratica clinica. Este livro, fruto da reflextio de Ana Maria e expressiio do seu mpenho na difusdo de pensadores como Edmund Husserl, Séren Kierkegaard e Martin Heidegger na psicologia clinica, foi inicial- nente sua tese de doutorado defendida no curso de Pés-Gradua- jo em Psicologia do Instituto de Psicologia da UFRJ. Pela quali- ide da discussao das idéias dos pensadores, pela clareza com que. ‘plicita a fenomenologia, nao como alguém que intelectualmente a sobre, mas como alguém que experiencfa sua fala, alguém que ‘ANA MaRIA LOPEZ CALVO FeU00 - 9. realmente sabe o que fala e por isso pode contribuir para 0 conhe- cimento, a banca examinadora recomendou a publicagao. A primeira parte do estudo reserva-se 4 explanagio tedrica que fundamenta a proposta clinica. Aqui, Ana Maria faz uma im- portante contribuicio para clarificar a fenomenologia e a andlise existencial, alertando para o fato de que sao diversas as nogdes de fenomenologia, de existencialismo, de ser, de ente, de homem, de existéncia, onde se problematizam a existéncia que a realidade humana tem como destino. A autora faz uma fina discriminagao para evitar que generalizag6es superficiais obscuregam os verda- deiros sentidos destas nogSes nos pensamentos singulares de Husserl, Kierkegaard e Heidegger. Enquanto discute as relagdes entre esses pensadores, desta- cando-se a oposicio A objetivacao do homem, apresenta também os pontos de ruptura, como por exemplo a recusa de Heidegger em seguir 0 idealismo fenomenoldégico de Husserl, ou o pensa- mento teolégico de Kierkegaard. Ana Maria socorreu-se de invulgar bibliografia para explicitar e discutir a transposigdo de pensamentos filosficos (se € que os autores aceitariam esta denominagao) para a psicologia, em espe- cial a psicologia clinica. E foi a partir destas leituras que ela tor- nou possivel extrair os varios sentidos da hermenéutica, enquanto explicitagao do ser do Dasein e daf derivado para metodologia, na modalidade de processo de compreensio que precede a inter- pretag&o, como também aprofundar 0 método de investigagao fenomenoldgico, nos seus aspectos caracteristicos de apreensaio e compreensio do sentido peculiar de expressio do ser, oculto na aparéncia manifesta. Enfim, a articulaco entre fenomenologia, como filosofia e mé- todo, e existencialismo, como filosofia e método, com a psicolo- gia clinica torna-se uma tentativa de extrema dificuldade que Ana Maria conseguiu realizar com elegancia, seguranga e inteligéncia. LO - A Escua ea FaLA em Psicorenaria O caso clinico apresentado ilustra com toda a clareza a com- lexidade deste processo de relagao cliente-psicoterapeuta, uma odugao miitua, onde a fala e a escuta assumem papel funda- tal para a mobilizagao da reflexdo do si proprio do cliente. juda o leitor a sintetizar e integrar todo 0 conhecimento que o recede nos capitulos tedricos, sem o que a proposta psicotera- tt itica perde sentido. importante salientar que 0 caso discutido nao é um modelo nico, tampouco a operacionalizagao do processo. O que esta m jogo nao € nem a técnica, nem a arte, mas um saber apto a igendrar, a organizar, a orientar, a produzir novos sentidos para fatos, através da estimulagao da reflexdo. E na linguagem que er se revela, desde que a escuta possa abrir-se 4 experiéncia da _ Sem dtivida a tese de Ana Maria trouxe uma importante con- {ribuigao ao campo da psicoterapia. Desafia, instiga, faz pensar, stimula o debate, e s6 por isso justifica sua publicacao, mas além isso conduz o leitor a uma prazerosa viagem pelo mundo da isténcia. Elida Sigelmann Psicéloga, Prof* Dr* no Instituto de Psicologia da UFRJ ‘ANA Maria Lopez CaLvo Feuoo - 14. Capitulo 1: O Método Fenomenolégico e 0 Desvelamento do Ser . 33) 1.1. A proposta de uma fenomenologia em Husserl . 34 12. Heidegger: a fenomenologia, a hermenéutica e a questao da técnica ~ oe Capitulo 2: A Filosofia Existencial e a Analitica da Existéncia 2.1. As contribuigdes de Séren Kierkegaard «0.0... 54 1.1. O desespéro humano . 65 2.1.2. O conceito de angtistia: posigdes psicoldgicas de liberdade ... . 66 2.1.3. Meu Ponto de Vista: ilusao e transparéncia de si mesmo .... < alll 2.2. As contribuigdes de Martin Heidegger .. iB) .2.1, Ser e Tempo: uma analitica da existéncia 74 2.2.2. Sere Tempo: a temporalidade das estruturas ; ontolégicas da pre-senga ... 87 Capitulo 3: Uma Proposta de Psicoterapia Fenomenolégico-Existencial oi; 3.1. O pensamento de Heidegger e a psicoterapia 99 1.1. O desvelamento do ser e a psicoterapia 99 ‘ANA Maria Lopez Catvo Feuoo - 13 ' 3.1.2. A ontologia de Heidegger e os fundamentos de uma proposta em psicoterapia 105 3.2. As reflexGes de Kierkegaard e a psicoterapia . 112 3.2.1. A constituigao do eu: movimento e quedz - 3 3.2.2. A angiistia e as posigées psicolégicas de liberdade .... 115 3.2.3. A psicoterapia e os principios de uma relagiio de ajuda... . 1S . 119 Capitulo 4: Metodologia 4.1. Ométodo fenomenolégico 119 4.1.1. A andlise fenomenoldgica .... .. 120 4.2. Estudo de caso... .. 139 Discussao.. Conclusao ... . 177 Referéncias Bibliograficas .. .. 183 Apéndice . 189 Resumo .... ve 195 14 - A Escuta € a FaLa em PsicoTeRAria Introducao As amarras das instituigées, 0 aprisionamento aos conceitos, 0 compromisso com um determinado modo de pensar. De tudo isto, clamo por me libertar, Falta-me ainda coragem de ousar. A angtistia, no entanto, inquieta-me Para que eu possa pelo menos tentar. Em psicologia e, principalmente, em psicoterapia, discute-se 0 _ processo de escuta e fala de forma um tanto quanto arbitraria ou _ através de formulagées tedricas, cujas relagdes deterministicas, assim como as teorias fundamentadas no positivismo, tentam ex- plicar como se da este fendmeno. Embora teoricamente se discu- ta muito, na pratica, sabe-se pouco sobre 0 que acontece neste processo. Na tentativa de esclarecé-lo, nomeiam-se os psicotera- peutas de magos (Bandler e Grinder,1975), quando atingem se- guidos “sucessos” em suas atuagGes. Fala-se também da “magia” _ da psicoterapia. Por outro lado, a tentativa de descrigao do processo de psico- _ terapia torna-se uma dificuldade, dada a abrangéncia deste tema. Defini-la, implica um risco de operacionalizd-la e, desta forma, reduzir o seu significado, a ponto de nao se estar dizendo 0 que _ realmente ocorre nesse processo. Sabe-se que a psicoterapia con- siste em uma relagiio de produciio mtitua, na co-presenga ‘clien- te-psicoterapeuta’. Neste contexto, o interesse dirige-se para uma proposta de mobilizacgao e até mesmo de mudanga por uma das partes, o dito ‘cliente’. A outra parte, o ‘psicoterapeuta’, fica ‘ANA Maria Lopez Cavo Fevoo - 15 implicada na situagao de ampliar a sua compreensdo acerca da existéncia do outro. No processo psicoterapéutico, a relag&o caracteriza-se como o elemento fundamental para que a proposta de psicoterapia seja levada a cabo. O psicoterapeuta, através de uma reflexio dos pressupostos da psicologia, atuara com a sua escuta a partir da fala do cliente. Neste aspecto, o profissional de psicologia vai proceder de modo a facilitar o emergir dos conflitos daquele que busca uma apro- priagio de si mesmo. Desvelados tais conflitos, a partir da fala do cliente, o psicoterapeuta — através de suas articulagdes estruturadas na sua linguagem — mobilizara no cliente « 0 de si proprio, através da fala terapéutica. eae A aciio psicoterapéutica, na perspectiva aqui proposta, s6 sera possfvel se, na relagio psicoterapeuta-cliente, o vinculo e a con- fianca mtitua forem estabelecidos. A psicoterapia, com base no método fenomenolégico e tendo como fundamento os princfpios existenciais, caracteriza-se pela crenga de que a liberdade deve ser assumida como possibilidade intima, para que 0 processo psi- coterapico ocorr ocorra de fato. A limitagaio das possibilidades, seja pela morte, seja pela escolha, na dialética do real e do possivel, da-se através do enfrentamento do paradoxo da existéncia huma- na. A solidio, sempre presente na existéncia, a angtistia e o te- mor, enquanto condigdes de abertura pars © mundo, sao contin- géncias-das_quais nao se pode escapar. Neste aspecto, to, cabe ao psicoterapeuta reconhecer a inautenticidade, a impessoalidade e © esquecimento da possibilidade do cliente, como também seu poder-ser mais préprio e pessoal na revelagio de suas experién- cias para que, entdo, possa atuar como tal no espago psicotera- péutico com o outro. 16 - A Escuta A FaLA em PSICOTERAPIA A escuta e a fala em psicoterapia Heidegger (1990) chega a afirmar que o homem nao seria ho- mem se nao falasse. Afirma ainda que 0 ser do homem reside na ; fala. Ponty (1990) diz que o ) percebido nao se da em si mesmo, _ mas em contexto relacional, e que o sentido nao é encontrado nos Signos, mas entre os signos, emergindo na multiplicidade dos atos 's, dentre muitos autores, reconhecem a impor- tancia do discurso para se chegar 4 compreensao ou a constitui- ¢ao do ser. Autores reconhecidos, como Milton Erickson e Jaspers, den- tre outros, chegam a afirmar que é através da comunicacao, estabelecida na relacao entre 0 psicoterapeuta e 0 cliente, que as psicoterapias se desenrolam. Sabe-se também que aquilo que o psicoterapeuta articula na sua linguagem é fundamental para a repercussio do processo terapéutico. Milton Erickson (Zeig, 1985), neurologista america- no, ao atuar terapeuticamente através da hipnose, acreditava que a fala do psicoterapeuta era o elemento fundamental para mudan- ¢a do cliente. Jaspers (1987) sustenta que, na averiguagio de uma psicopa- tologia, o médico deve atentar para as modificagées ocorridas na comunicagao do individuo. Diz ainda que, nos processos psi- _ copatolégicos, a comunicagio se complica, afetando o sentido do comunicar-se nos aspectos afetivos, intelectuais e até mes- mo na pr6pria lingiifstica. A partir destas observagées, conclui _ que as formas de comunicacio com o outro devem ser detalha- damente observadas, tanto nas express6es cotidianas como nas existenciais. Ao descrever a psicoterapia como um processo que se constitui em uma relagio dialogal, fundada no discurso do psicoterapeuta e do cliente, torna-se imprescindivel refletir acerca do contexto ANA MARIA LOPEZ Catvo Feu00 - 17 no qual fala e escuta se articulam. Conhecendo-se esta articula- cao, pode-se pensar, com mais subsfdios, sobre esta relagao ¢ este processo. O psicdlogo. no lugar da escuta, na compreensao do relato daquele que, muitas vezes tomado de angiistia, vai ao seu encontro, pode apreender os pontos de 2m_ou de estagna- gao, do, facilitando 0 ° discurso doc do que.os.aspec- jam. Este emergir na fala do cliente, ao se deixar afetar pela fala do terapeuta, pode proporcionar o desvela- mento, mantendo a questao pela angtistia. Desta forma, pela re- flexdio do si mesmo, 0 cliente pode descobrir-se em liberdade na escolha de suas possibilidades. As psicologias cientificas Os paradigmas classicos do método cientifico foram fortemente influenciados pelas idéias de Galileu, pela filosofia de Descartes, pela metodologia cientffica de Bacon e por Newton, com sua teo- ria matematica. Este modelo de pensamento dominou todo o pensamento ocidental durante quase trés séculos: de meados do século XVIII até o final do século XIX. René Descartes postula que o mundo material deve ser descri- to com absoluta objetividade e, para tanto, 0 observador tem de se isolar do seu objeto de estudo. Isaac Newton afirma que o universo se estrutura pela topologia do continuo e, a partir disto, cria um modelo matematico: a equagio diferencial que explica todos os fenédmenos da natureza, extraindo daf todos os princi- pios da mecnica classica. Com uma postura reducionista, formu- la que o complexo pode ser explicado, conhecendo-se as partes elementares que constituem 0 todo, bem como os mecanismos através dos quais as partes interagem. Neste modelo, portanto, 0 mundo possui a topologia do continuo, a atitude do cientista € neutra, a compreensio dos fatos se da pela explicagao dos meca- nismos e pela fragmentagaio do todo em suas partes. 118 - A Escurn € & Fata em Psicorenaria O modelo da realidade, na mecanica de Newton, segue os se- guintes principios: espago e tempo absolutos, causalidade e determinismo e o primado da matéria. O espago é tridimensional, absoluto, constante e em repouso. Tem a topologia dos sélidos e existe como referencial de todos os elementos do universo, que estdo posicionados neste universo independentemente do obser- vador. O tempo tem a topologia da reta, é absoluto, aut6nomo e independente. Apresenta-se como um fluxo continuo e imutavel, vem do passado para o presente, em diregdo ao futuro. Existe um relégio universal que marca todos os instantes do universo inde- pendente do observador. As leis do universo pertencem a uma causalidade mecanicista: dadas as condigées iniciais de um siste- ma, a sua evolugao estaré completamente determinada no passa- do, presente e futuro. A energia propulsora do movimento dos objetos é constante e deterministica; muda a forma, mas preserva a quantidade. As leis e a preservagao da energia garantem as rela- ges deterministicas, segundo uma concepgio linear e unidirecio- nal da causalidade. A matéria é considerada a base de toda e qual- quer existéncia, que tem como propriedade a invariancia. Postula um universo de matéria sdlida, composta de dtomos, particulas pequenas e indestrutiveis que constituem os blocos formados da mesma substincia. A imagem do universo pode ser comparada a de um grande reldgio gigantesco, inteiramente deterministico. As particulas movem-se de acordo com leis eternas e invaridveis. Os eyentos ¢ processos do mundo material consistem em cadeias de causas e efeitos interdependentes. Tudo isto se da a partir de um _ Deus construtor. Este modelo mecanicista dominou todo o pensamento cientifi- co por um longo perfodo de tempo. As outras ciéncias aceitaram acrenga de que este método cientffico era uma abordagem valida para todo e qualquer tipo de conhecimento. Descrevia correta- mente a realidade e os estudiosos adotaram tal descrigdo da reali- _ dade como modelo para seus objetos de estudo. ANA MARIA LoPEz CaLvo FEW00 - 19 A Psicologia, por sua vez, tenta tornar-se uma disciplina cien- tifica. Esforga-se no sentido de adaptar seu objeto de estudo aos principios da mecAnica classica. Tal adaptagaio € denominada por Capra (1982) de psicologia newtoniana e enquadra neste sistema tanto a psicandlise quanto o behaviorismo. Na psicanilise, principalmente na primeira t6pica de Freud, os princfpios mecanicistas so considerados ¢ norteiam toda uma teoria explicativa do psiquismo humano. Pode-se afirmar que esta foi uma das grandes fa¢anhas de Freud: enquadrar todos os fatos psicoldgicos (tais como ansiedade, culpa e personalidade) na es- trutura das ciéncias naturais que predominavam na época em que surgiu a psicandlise. Em 0 “Resumo das obras completas de Freud,” pode-se perceber como ele proprio assume 0 compromisso com a ciéncia, em seu “Projeto de uma psicologia cientifica”: “A intengio é fornecer uma psicologia como ciéncia natural, isto €, representar os pro- cessos psiquicos como estados, quantitativamen- te determinados, de partfculas materiais passiveis de especificagbes”. (1985, p.117) Se assim nao fossem construfdas, a obra de Freud e sua pratica, provavelmente, nao teriam a divulgagio eo respeito que mantém até os dias atuais. Freud, portanto, conseguiu traduzir a psicandlise em termos objetivos, respeitando os principios da ciéncia daquela época, quais sejam: 0 determinismo e a conservagdo de energia — que é a energia sexual. De acordo com a psicanilise, 0 primeiro perfodo de vida do individuo, que vai do nascimento até 0s seis anos de idade, é a fonte de todos os sintomas que se manifestam na vida adulta, constituindo-se como 0 momento mais importante no desenvolvimento psiquico do homem. Em o “Resumo das Obras Completas”, podem-se verificar algumas passagens que revelam o respeito ao determinismo (1892, p. 107): “A neurose de angtistia é, em parte, conseqiiéncia da inibig&o da fungao sexual”. 20 - A Escura € a Fata em Psicoreraria oO tempo € considerado como absoluto e linear. B o passado que determina o presente. Diz Nuttin: “Pesquisa de impressées e experiéncias traumaticas colocou Freud na pista de recordagées ¢ de conflitos que provinham de um passado, cada vez mais recuado na vida do sujeito”. (1972, p.59) Freud considera 0 espago como o lugar onde ocorre a dinami- cado psiquismo, inconsciéncia e consciéicia. Freud fala em sua primeira t6pica (1895) que existem os neurénios psiquicos. Quanto A matéria, Freud refere-se as “particulas materiais” como estados quantitativamente determinados: id, ego, superego, atuando de acordo com mecanismos. Seus movimentos depen- dem da libido. ‘ A objetividade, tio enfatizada por Descartes, € considerada inclusive na pratica do psicanalista, para garantir a neutralidade. No “Resumo das.Obras Completas de Freud”, em “Recomenda- gOes aos Médicos” que exercem a psicanilise, tem-se: “O médico deve ser opaco a seus pacientes... ele nunca deve envolver seus sentimentos” (/d., p.181). A partir deste modelo psicanalitico, tem- se toda uma proposta psicoterapéutica nos termos da ciéncia. O behaviorismo constitui 0 sistema psicolégico que mais se adequa ao método experimental. Consegue com tal proeza con- quistar 0 status de ciéncia, que resgata todos os princfpios da mecAnica classica e enquadra os aspectos psicolégicos neste mo- delo de realidade. Skinner chega a afirmar acerca das técnicas comportamentais que: “Possuem um status fisico para o qual as técnicas usuais da ciéncia sao adequadas e per- mitem uma explicagio do comportamento nos moldes da de outros objetos explicados pelas res- pectivas cigncias”. (1985, p.42) ANA MaRIA LOPEZ CaLvo FEuo0 - 24 De Pavlov a Skinner, os principios da ciéncia sao mantidos servem de modelo para a ciéncia do comportamento. Pavlov criou um sistema neurocomportamental e definiu a psicologia como objetiva e comportamental. Parte do pressuposto que as atividades do organismo determinam a natureza do sistema ner- voso. Tanto Watson quanto Skinner acreditam que todo comporta- mento humano é aprendido através do processo denominado condicionamento, seguindo os seguintes principios: reforgo, ex- tingio experimental, recuperagdo espontinea, generalizagao e discriminagao. FE a relacdo causal entre estimulo e resposta ou a quantidade de reforgo que vai determinar a qualidade da resposta. As causas determinantes do fendmeno psfquico estéo no mundo externo. Neste aspecto, afirma Skinner (1985, p.42): “As varidveis exter- nas, do qual o comportamento € funcao, dao margem ao que pode ser chamado de andlise causal ou funcional”. O espaco reduz-se ao complexo sistema nervoso, que se mo- difica a partir das situagdes provenientes do meio. Ea matriz de todos os condicionamentos do individuo; o tempo atua como con- tingéncia reforcadora. Com 0 fluir do tempo, os condicionamen- tos se efetuam, inclusive a manipulagio do tempo visa a influen- ciar a forga da aprendizagem no organismo. Skinner afirma que o comportamento € fungio de sua histéria ambiental. A forca que impulsiona a ago é sempre externa. O individuo é vitima passiva do meio, s6 é modificado por ele, nunca o modifica (Ud., p.41): “As causas do comportamento sao as condigdes ex- ternas das quais o comportamento é fungao”. A matéria é o com- portamento, que se movimenta de acordo com as contingencias ambientais. A este respeito, afirma Skinner (Id., p42). “(..) final- mente ser preciso buscar forgas que operam sobre 0 organismo agindo de fora”. 22 - A Escura € & FaLA em PsicoTeRaria A objetividade é garantida pelo controle das condigdes em que ocorre a relagio sujeito e objeto. A complexidade do comporta- mento humano nao constitui um problema: basta conhecer os mecanismos dos seres mais simples e generalizd-los para os mais complexos. As leis do comportamento derivam-se das relagdes de causa e efeito que ocorrem no comportamento, leis cientificas _ que esbocam o mecanismo de funcionamento de um sistema. A partir daf, surge uma psicoterapia denominada comportamental, _ pautada nos resultados. O homem deve produzir tudo de que seus _ recursos humanos dispdem. _ Apsicologia: do 6ntico ao ontolégico A proposta deste trabalho nao consiste em posicionar a psico- logia em uma perspectiva de uma ciéncia éntica. Se assim fosse, nao haveria a necessidade de recorrer a filosofia nem a ontologia, pois a psicologia dispée de estruturas tedricas suficientes que se desenrolam onticamente. A intengdo nesta proposta é manter-se _ afastado de uma perspectiva que recaia em questdes como subje- tividade, objetividade, matematizagao. Recair af consistiriaem uma replicagao. Por acreditar que a luz do 6ntico nao € possivel a visaio do ser do homem, faz-se, entdo, uma proposta em psicote- rapia conduzida por uma reflexio ontolégica. Alerta-se para a atengao que uma dada ciéncia deve manter na fundagio de seus conceitos, retomando-se Heidegger que, em “Ser e tempo”, _ afirma (1989, p.37): “A questio do ser visa as condigdes de pos- sibilidade das préprias ontologias que antecedem e fundam as ciéncias nticas.” Investigar uma proposta psicoterapéutica em uma perspectiva concreta sob uma fundamentacio ontolégica requer 0 exercicio _ do método fenomenolégico, através da hermenéutica, como modo através do qual se possa ter algum acesso ao sentido do existir em ma existéncia particular. ANA Mania Lopez CaLvo Feuoo - 23 As contribuigées da filosofia da existéncia A op¢io pela filosofia, nesta proposta de articulagao psicote- rapéutica, deve-se ao fato de se acreditar que os principios metodoldgicos positivistas, presentes na ciéncia classica, mostram- se insuficientes para abarcar a totalidade da existéncia humana. Por este mesmo motivo, Kierkegaard abandona a filosofia de Hegel, acreditando que este pensamento aprisionava-se ao ideal, Arazio e ao sistemae que a existéncia jamais poderia ser abarcada como tal. Mournier, filésofo existencialista, assim define o exis- tencialismo: “Em termos gerais, poderfamos carac- terizar este pensamento como uma reagio da filo- sofia do homem contra 0 excesso da filosofia das idéias e das coisas.” (1973, p.13) Ainda a este respeito, diz Heidegger no seminario datado de 09/07/64, em Zollikon: “Nao se pode vislumbrar o ser pela ¢ cia. O ser exige uma identificagao propria. Ele nio depende da vontade do homem e nao pode ser estu- dado por uma ciéncia. Como seres humanos s6 Po- demos existir na base dessa diferenciagao. Para vis- lumbrar o ser, s6 serve a propria disposigao a per- cepciio. Ocupar-se desta percepgdio é uma ativida- de privilegiada do homem, Significa uma mudanga de perspectiva. Isto nao significa o abandono da ciéncia, mas ao contrério, chegar a uma aco refle- tida, conhecedora com a ciéncia e verdadeiramente meditar sobre seus limites.” (1987, p.25) Abandonando-se 0 método positivista e a nogiio de caus: de, adota-se 0 método fenomenoldgico, que visa angar 0 fe- némeno em sua tofalidade, para compreender a sua e: éncia, Ou seja, apreender aquilo sem o qual o fenémeno passa a inexistir. 24 - A Escuta € & FALA eM PsicoTERAPIA A filosofia existencial postula a liberdade humana como sendo © ponto de partida para a constituigio do eu, tomada na acepgao de Kierkegaard. Desta forma, da lugar a uma proposta indeterminista e existencialista, em que o homem é visto como totalidade. Cabe aqui a énfase na incerteza, na totalidade milti- pla, nos paradoxos, na fluidez que vai ao encontro das reflex6es de Kierkegaard em sua critica 4 utilizacdo de sistemas para abar- car a existéncia humana. Este afirma na introdugio de “Temor e tremor” (1990, s/p.): “Sistema e fechado so idénticas coisas tio afastadas quanto possfvel da existéncia e da vida. Porque a exis- téncia é por exceléncia o aberto.” Kierkegaard, em “O conceito de angiistia”, “O desespero hu- “mano” e “Mi punto de vista”, desenvolve temas relacionados As SituagGes limites do homem, tais como desespero, liberdade, acao, ngtistia, entre outros. Pressupde-se que estas formulagdes vaio onstituir as tematicas da existéncia humana nas reflexdes do psi- Ologo existencial sobre o ser da existéncia. Heidegger, em uma perspectiva ontolégica, vai tomar as re- exoes de Kierkegaard, que antecipa a tematica do ser, proble- atizada filosoficamente, acerca da angiistia, como posic’o psi- l6gica da liberdade, sobre a nao-liberdade, sobre o cardter oral do ser, ainda acerca da existéncia como fluit. Heidegger rte da estrutura da pre-senga na sia constituigao ontoldgica, im de nao tomar o ser como ente. Consideraa pre-senga como nte que cada um 6, possuindo em seu ser a possibilidade de stionar. aseinsanalise ode-se questionar o porqué de nao se recorrer 4 andlise exis- ial de Binswanger ou a de Bass, ja que estes dois psiquiatras buscar no pensamento de Heidegger os fundamentos de as clini ANA MARIA Lopez CALVO FEl00 - 25, Binswanger busca a ontologia de Heidegger por nao estar de acordo com o determinismo e a causalidade, bem como com as suposigées de forgas ocultas determinantes do comportamento. _=qyParte para uma andlise da pre-senga, considerando as estruturas existenciais de espacialidade, temporalidade, corporalidade, ser- com, humor e 0 ser-para-a-morte. Nestes aspectos, se apropria das reflexes de Heidegger. Por outro lado, continuou ligado & psicandlise nas suas consideragées psicodindmicas. E, ao ea do amor como um originario, mais fundante que 0 “cuidado”, recai em uma perspectiva 6ntica, como afirma Heidegger (1987) em correspondéncia a Medard Boss, datada de trinta de novem- bro de 1965: “A Daseinsanilise de Binswanger de acordo com seu cardter fundamental é uma interpretacao Ontica, isto é, uma interpretagdo existencial do respectivo dasein factual.” Medard Boss prop6e a Daseinsandlise como proposta psico-/ terapéutica em que os fendmenos do existir possam mostrar-s a partir de si mesmos, afastando-se de um psicologismo. Por | outro lado, caracteriza-se ainda por discutir a diferenga entre 0 | pensamento de Freud e de Heidegger e, na sua pratica psico- \ terapéutica, manter alguns ensinamentos psicanaliticos. Admite | o diva, as associacées livres e, também, a transferéncia (MAY, 1987). Ao mesmo tempo em que faz uma critica severa aos conceitos psicanaliticos, redefine-os em uma perspecaNa exi stencial. Assim © faz, por exemplo, com relagio A transferéncia. Em Freud, ° neurético transfere a relacdo e os sentimentos que dirigiam-se a seu pai ou sua mie para seu marido ou sua mulher, Tespectiva- mente, ou, ainda, para seu analista. Aqui os sentimentos e: 7 reprimidos inconscientemente. Para Boss, a pessoa se encontra limitada e restrita em suas possibilidades. Portanto, percebe 0 analista ou a mulher com a mesma limitagaio com que olhava seu pai ou sua mie. Nao dispondo de novas possibilidades de relagao, mantém 0 mesmo padrao de sua infancia. 26 - A Escurs € a FALA Em PsicoTERAria O mesmo ocorre com 0 conceito de resisténcia que, em Freud, € definido como tudo que, nos atos e palavras do analisando, se Opde ao acesso deste ao seu inconsciente. Freud concebeu a Fepressio em funcao da moralidade burguesa, como a necessi- dade do cliente em manter uma imagem aceitavel de si mesmo e, por conseguinte, reprimir os pensamentos, desejos e outras formas de expresso, inaceitaveis dentro de um cddigo moral burgués. Boss, a partir da perspectiva psicanalitica, diz que a resisténcia consiste na reagdo de acao ou repulsa do cliente frente as suas Possibilidades, Interessa investigar o que impede o cliente frente as suas possibilidades. Para que ocorraa repressao, primeiramen- te, o individuo tem que aceitar ou rejeitar, isto é, dispor de sua liberdade para decidir. A repressaio implica na perda da conscién- »— cia da liberdade. Reprimir ou negar a liberdade sup6e possibilida- des. A repressao é uma forma livre de utilizar as possibilidades. _ Sendo assim, reprimir e nao reprimir sto duas possibilidades. Euma op¢ao livre frente a outras alternativas. Resist@ncia consti- tui-se no excesso da tendéncia do individuo a refugiar-se no Mitwelt, refugiar-se na humanidade abstrata, no anonimato, renunciar as suas possibilidades peculiares, tinicas e originais, cair no “conformismo social”. Boss se importa com a estrutura da existéncia humana. Freud, com 0 inconsciente. Ambos tentam tirar a psicologia do reino carismatico e aleatério e aceit4-la como campo de exploracio e _compreensao e, assim, constitui-la em uma disciplina que, até certo _ ponto, pode ser ensinada. Recorrer a Boss ou a Binswanger implicaria em ater-se a dis- Cuss6es tendo ainda como referencial a psicandlise. A busca, en- tao, engendrou-se em uma saida epistémica e ontolégica indo até seus fundamentos: as reflexdes de Kierkegaard e 0 pensamento de Heidegger. ‘ANA MaRta LOPEZ CALVO FEUO0 - 27 Apsicoterapia fenomenolégico-existencial: proposta A proposta de psicoterapia desenvolveu-se a partir dos pres- supostos da filosofia da existéncia, do modo fenomenoldgico de investigacao do ser, dos aspectos da comunicagiio envolvidos na psicoterapia e das articulagGes da filosofia com a psicologia. Mournier (1973) lembra a énfase dada por Heidegger a dife- renga entre sua ontologia,e a filosofia existencialista de Kierkegaard. Este referia-se A existéncia singular, defendendo a transparéncia do homem para si mesmo. Heidegger defendia a i alcangar o sentido do ser em geral, mesmo partindo da experié! do existente humano. Este filésofo defende, ainda, que o existente ndo tem ser a conhecer frente a si mesmo. A pre- senga, por se constituir na duplicidade ser (0 geral) e ente (o con- creto), conhece o ser em seu proprio ser. Ao mesmo tempo, vai se afirmando nas suas possibilidades concretas. Fala de uma verdade universal, contrapondo-se a Kierkegaard, na medida em que a estrutura de todas as pre-sengas € idéntica. Kierkegaard opée-se a objetivagio do homem da mesma for- ma que Heidegger. Por outro lado, a énfase de suas reflexes vai permanecer no homem como singularidade, importando.a sua verdade construida no ato istir. Reporta-se possibili- dade do homem conhecer-se a si mesmo, desembaragando-se dos “lacos da ilusio”. Sair da ilusdo de se acreditar ser o que na realidade nao se é constitui-se como transparéncia, através da interioridade, processo do despertar do homem, assumindo-se na responsabilidade de ser aquilo que 6. Segundo Kierkegaard, o “eu” se constitui pelo movimento do existir ¢, para ele, a au- séncia de movimento constitui-se na “perda do eu”. Este filso- fo acredita que 0 escritor astuto e 0 psicdlogo afastado de uma perspectiva fisiolégica podem ajudar a arrancar 0 homem dos lagos da ilusao e, portanto, restabelecer 0 movimento que cons- titui 0 eu. 28 - A Escurs € a Fata em PSICOTERAPIA A Proposta Psicoterapéutica aqui desenvolvida pautou-se na hermenéutica filoséfica para fundamentar 0 discurso terapéutico. uma vez que 0 sentido deve ser buscado sem altera-lo, A teeniea, como techne, € usada como modo de desvelamento. A funda. mentagdo desta Perspectiva partiu da estrutura da prowengel tal como elucidada por Heidegger acerca da diferenga entre ser e ente, a relacaio com o ser € 0 nao-ser, 0 jogo de velar-se e desve- _ lar-se, que guarda e esconde a diferenga entre o ser e 0 ente. Em Kierkegaard, buscou-se a possibilidade de se atuar na psi- Coterapia a partir da singularidade, do conhecer-se a si mesmo e do poder relacionar-se consigo mesmo pela interioridade. A pro- posta de que se deve ajudar 0 homem a alcangar a tianéncia de si mesmo também foi considerada. , Uma proposta psicoterapéutica pautada nas reflexdes de Kierkegaard © na perspectiva de Heidegger implica em buscar as [possibi dades existenciais articuladas estruturalmente no ser da existéncia. Vale ressaltar alguns dos aspectos em comum entre estes dois filésofos, aspectos estes fundamentais em psicoterapia. O universo do imediato ~ que se caracteriza pela imposig&o dos USOs € costumes os quais, por se darem de forma imediata e irre- Hletida, levam o homema se perder de si mesmo (em Kierkegaard) € retomado por Heidegger como a perda no mundo do das man. Kierkegaard refere-se ao conhecimento que se perde no Imaginario como sendo monstruoso e insensivel enquanto B leidegger fala do modo de pre-ocupagao na indiferenga. O reco- nhecimento da morte, em Kierkegaard, constitui-se no movimen- 10 do eterno e do temporal, em que refugiar-se no eterno, aban- donando a temporalidade consiste na perda do eu. Heidegger I Here-se a tal antecipagdo como cuidado, em que o homem nha liberdade para se constituir como proprio. Acteditando-se em que as expressdes de inautenticidade u enticidade saio reveladas no discurso do cliente, o desenrolar icolerapéutico foi descrito considerando tais expressées, bem ‘ANA Maria Lopez Catvo Fevoo - 29 como a forma de ‘cuidar’ do homem que dessa forma se expres- sa. Pretendeu-se também facilitar a discussd0 dos processos im- plicados na psicoterapia, a fim de desvelar o que é articulado nas “falas” e nas “escutas”, em psicoterapia. A psicologia, com fun- damento na fenomenologia e no existencialismo, afirma que ao psicoterapeuta cabe a tarefa de trazer 4 tona a expressio inauténtica e auténtica do cliente, mobilizando-o de forma a possibilitar o reconhecer-se — bem como, uma vez langado em sua liberdade e sua responsabilidade, escolher suas possibilidades. A metodologia Neste trabalho, pretendeu-se explorar, metodologicamente, os aspectos envolvidos no discurso psicoterapéutico, dentro de um espaco privado em uma relacdo diddica. Parte-se de uma investi- gacdo empirico-fenomenolégica em psicoterapia e descreve-se a forma como ocorre. Deste modo, pensa-se na possibilidade de que os fundamentos subjacentes neste processo possam ser des- velados. O objetivo fundamental consiste em explicitar 0 processo psi- coterapéutico nas psicoterapias com base no método fenome- noldgico, partindo de pressupostos existenciais e, ainda: 1 - a partir do conhecimento do fundamento do processo de escuta e fala, articular aquilo que, na fala do cliente, revela sua dificulda- de ¢ aquilo que, na fala do psicoterapeuta, mobiliza as possibili- dades de transformagao, que jazem nos seus possiveis; 2 - des- crever as diferentes falas do psicoterapeuta, pretendendo man- ter a questao trazida pelo cliente, a fim de evitar que a angistia se dissolva, em uma mera ocupagaio com o intramundano; 3 - descrever as quest6es conflitivas que aparecem no discurso do cliente, a que denominar-se-do “a fala do cliente”; 4 - elabo- rar uma proposta de psicoterapia fundada na fenomenologia e na filosofia da existéncia. 30 -A Escuta eA Fata Em PSICoTERAPIA Pretende-se, desta forma, trazer contribuigdes A psicologia a artir da filosofia de Kierkegaard e de Heidegger e introduzir a nomenologia como método de investigagao em psicoterapia. Quanto ao aspecto pragmiatico, acredita-se que se possa colabo- ‘ar com a pratica da psicoterapia, bem como com os seus ensina- Mentos, através de uma tentativa de explicitaciio do processo de psicoterapia. | strutura do trabalho Em primeiro lugar, o método fenomenoldgico foi examinado como uma possibilidade de atuacao em psicoterapia. Depois, atra- és do pensamento de Heidegger, buscou-se, em uma perspectiva ontoldgica, o caminho de acesso A pre-senga, em suas estruturas ontoldgicas essenciais. Procuraram-se as reflexdes ontoldgicas acerca da fala e da escuta, nas quais Heidegger (1990) enfatiza que a palavra fala_a revelia e, ao falar, mostra o seu sentido. A partir daf, tentou-se fundar a psicoterapia da escuta e da fala, visando a alcangar o ente na sua cotidianidade e, assim, tomar a _ linguagem como reveladora da articulagao dos sentimentos e da interpretagio frente a relaciio do ser com o mundo. A terceira parte deste trabalho consistiu em uma proposta psicoterapéutica, _articulando as reflexdes de Kierkegaard com a hermenéutica de Heidegger, tendo como fundamento a sua ontologia. A metodologia de pesquisa consistiu no método fenomenolé- gico de investigacdo e em um estudo de caso clinico. Desta for- _ ma, foram, primeiramente, elucidadas as unidades de significados presentes no processo de escuta e fala. Depois, tais unidades / foram demonstradas na articulagao da escuta e da fala, tendo como plataforma a hermenéutica do sentido, com a pretensiio de viabilizar um percurso psicoterapéutico com base na fenomeno- logiae na filosofia da existéncia. ‘ANA MaRIA LoPEz CALVO FEUOO - 3. Capitulo | O Método Fenomenolégico e o Desvelamento do Ser Quando se pretende articular a praxis da psicologia, faz-se cessario um método que garanta o desenvolvimento tedrico e metodolégico. A proposta de uma psicologia fenomenolégico- istencial pode ser alvo de critica ao se ater apenas as reflexdes existéncia, que bem cabem A filosofia. A psicologia, quando ssume a postura fenomenolégica, pretende se afastar das psico- logias ditas cientificas sem, no entanto, perder a possibilidade de lar Como uma praxis. Ao se tomar a psicologia do ponto de vista explicativo, consi- periéncia se verifica e nao expor a légica da estrutura; por deixar transparecer na descricdo da experiéncia suas estrutu- e nado deduzir o aparente por aquilo que nao se mostra. ssumir a praxis da psicologia a partir da metodologia feno- c I6gica, implica em deixar para tras qualquer tentativa de tdar o fendmeno da existéncia humana do ponto de vista licativo ou interpretativo-psicanalitico, pois acredita-se que — mos de existéncia — pode-se apenas compreender o seu ANA MaRiA Lopez CALVO FEUG0 - 33, fluir no tempo e, desta forma, tentar desvelar o sentido do ser da existéncia. Tal desvelamento nao implica em investigar o psiquismo em suas propriedades e funcionamento, mas deixar que 0 sentido do ente se mostre por si mesmo. 1..4.- A Proposta de Uma Fenomenologia em Husserl Desde a primeira fase de sua obra, Husserl, mantendo o pro- pésito de Descartes, busca uma fundamentagao radical para a filosofia, bem como para todas as ciéncias. Desenvolve sua obra “Philosofie der Arithmetik’ , na qual reflete sobre a matematica e a légica. Ao buscar os fundamentos da légica e da matemiatica, depara-se com o empirismo de John Stuart Mili e de Wilhelm Wundt, que pressupde as certezas fundadas sobre a evidéncia, aderindo ao psicologismo. Com este ponto de vista, defende a tese de que os princfpios da légica e da matematica tém seus fundamentos nas leis psicolégicas. Os logicistas, no entanto, de- fendem o ponto de vista de que o principio gerador de todo o pensar reside nas leis da logica (HUSSERL, 1958). Husserl nao tarda a concluir, em “Investigagdes Légicas”, que a tentativa de sistematizar 0 conhecimento — seja pelas proprias coisas ou pelas leis do pensar — caem em “contra senso”. Refuta tanto o psicologismo quanto o logicismo, afirmando que estas duas formas de lidar com 0 conhecimento implicam apenas em um deslocamento. No psicologismo, o problema do conhecimen- to se desloca para a evidéncia dos fatos naturais. No logicismo, 0 deslocamento se dé para as possibilidades de efetuagao. Propée, entio, a fenomenologia, afirmando que s6 é possivel chegar ao fendmeno como ele se apresenta e no através de sistemas de verdades e suas premissas ou hipdteses, tomadas como ponto de partida. Parte da redugdo fenomenolégica como forma de ndo permitir o deslocamento e, assim, fazer do conhecimento um dado evidente em si mesmo. Publica, nesta perspectiva, “Logische BAA Escum & A FALA eM PsicoTenaria _ descrigao da experiéncia as su: Untersuchungen’, c identifica a fenomenologia como uma psico- logia descritiva, afastando-se tanto da perspectiva idealista como da realista. Busca encontrar esséncias fundadas sobre a evidéncia, edificagao de uma fenomenologia propriamente dita (Op. Cit.). Em seus tiltimos pensamentos, “A crise das ciéncias européias”, esta presente “a idéia de que tanto a ciéncia quanto a filosofia encontram-se em constante modificac4o, devido ao carater situa- cional do homem.” Neste aspecto, diz Capalbo: “Husserl tentaré mostrar, portanto, de um lado que a reflexao é reveladora das influén- cias do meio, que todo pensamento esta mergu- Ihado na experiéncia vivencial, no fluxo tempo- ral, serd assim um pensamento e uma consciéncia hist6ricos. Por outro lado, Husserl quer mostrar a importancia de colocar entre parénteses esse vivencial, esse conjunto de informagées, que es- to implicados na nossa experiéncia existencial, para ver melhor, nao as realidades experimenta- das, mas sim o cardter de serem experimentadas. Em outras palavras, Husserl quer liberar 0 nosso olhar para a anélise do vivido, que nao pode ser definido, mas apenas descrito.” (1983, p. 38) Em toda sua obra, Husserl pretende elaborar uma fenomeno- _ logia enquanto método, uma atitude perante 0 ato de conhecer. Pretende mostrar, no lugar de demonstrar ou apontar, os aspec- tos positivos; explicitar as estruturas vistas na experiéncia e no expor a ldgica da estrutura ou realizar experimentos comproba- _ torios de uma dada situagao hipotetizada; deixar transparecer na estruturas universais ao invés de _ Se a uma perspectiva do olhar. Com rigor, porém sem a pretensao de exatidao, propde a fenomenologia, definindo-a como uma ANA Maria Lopez Catvo Feuoo - 35 A fenomenologia como filosofia em “A Idéia da Fenomenologia” renuncia as discuss6es estéreis sobre a origem do conhecimento e prope uma doutrina universal das esséncias, em que se integra aciéncia da esséncia do conhecimento. Nesta perspectiva, aban- dona a cis&o sujeito e objeto, substituindo a questao do objeto pelo noema que, no sentido atribuido pelos gregos, referia-se a qualquer e todo objeto que se coloca para a reflexao do homem, ja que os objetos da ciéncia se constituem em uma tentativa hu- mana de responder e resolver quest6es da vida cotidiana. Assim, a fenomenologia nao reduz os objetos a si préprios, como fize- ram 0s positivistas. Na fenomenologia, sujeitos e objetos correlatos caracterizam a consciéncia intencional. Toda a consciéncia, por sua vez, é consciéncia de alguma coisa, o que caracteriza a intencionalidade da consciéncia. Neste aspecto, a vivéncia enquan- to fendmeno é conhecida diretamente, e nao por intermediérios, sejam elas as sensages registradas na psique por meios externos, sejam as deformacées provocadas por um mundo interno desco- nhecido. Acerca deste tema, afirma Capalbo: “O ser em si no se esconde atrds das aparéncias ou do fenédmeno, mas a percep¢ao do real s6 pode ser apreendida em perspectiva, em perfis. E a finitude irremediavel da percepgao. E aesséncia do percebido nao pode ser objeto de exploragiio exaustiva, mas sim de desvelar-se pro- gressivamente e de ser apreendido em perspecti- va.” (Op. cit., p.15) Assumir a praxis da psicologia a partir da metodologia feno- menoldégica implica em deixar para tras qualquer tentativa de abor- dar o fendmeno da vivéncia humana, do ponto de vista explicativo ou interpretativo-psicanalitico pois, em termos de existéncia, pode- se apenas compreender o seu fluir no tempo. 3G - A Escuta & « FALA en Psicorerapia 2. Heidegger: A Fenomenologia, a ermenéutica e a Questao Técnica O fendmeno que se mostra em si mesmo também se mostra como algo que nao é. O método fenomenolégico vai buscar o entido do ser na forma em que este se dé diretamente e ime- liatamente, ao seu modo. Ao afunilamento metodoldgico rea- zado por Heidegger nas suas investigagdes vai denominar-se lermenéutica, pela qual se vai desvelar o ser. A técnica, no entido grego, cabe também o deixar que o ser transparega ao eu modo. -2.1, A Fenomenologia Heidegger dedica a Husser] a sua obra “Ser e tempo” de 1927. lustifica este fato por ter encontrado na fenomenologia de Husser! 0 caminho da investigagiio do ser. Diz, ainda, que foiem 1907, a partir fa obra de Franz Brentano ~“A mtiltipla significagao do existente segundo Aristételes”, de 1862 — que entrou em contato com os ques- lionamentos acerca do ser. Ao juntar estas duas propostas, assume a atitude fenomenolégica frente A tematica do ser. Em seu arti igo “Meu caminho na fenomenologia”, referindo-se ao semindrio com Husserl ‘sobre as “Investigagdes légicas”, afirma: “Ali € onde eu me encontraria — levado primeiro mais por um pressentimento do que por uma inteligéncia fundada da coisa — do tinico essencial, a saber, que 0 executado em relacao com a fenomenologia dos atos da consciéncia como 0 dar-se a ver os fendmenos a si mesmos € 0 que vem sendo pensado por Aristételes e em todo o pensamento e€ a existéncia dos gregos como alethéia, como 0 desocultamento daquilo que faz ato de presenga, como seu mostrar-se.” (Heidegger, 1999, p.100) ‘ANA MarIA LOPEZ CALVO FEU00- 37 Acreditando que as investigagdes fenomenoldgicas haviam encontrado uma nova forma de sustentar o pensamento, propde 0 método fenomenolégico como o modo pelo qual procedera a investigagao do ser: i “A expressio ‘fenomenologia’ diz, antes de tudo, um conceito de método. Nao caracteriza a qiiididade real dos objetos de in- vestigacao filos6fica, mas 0 seu modo, como eles 0 sio.” (Heidegger, 1989, p.57) E esta vai ser a forma como este filésofo conduzira a andlise do existir na sua obra “Ser e tempo”, deixando que aquilo que se mostra 0 faga de seu modo préprio, a partir de si mesmo. Ao defender a fenomenologia de Husserl, tece os mesmos argumen- tos anteriormente defendidos por Husserl em “Investigagdes Légicas”, afirmando: “A palavra fenomenologia exprime uma maxima que se pode formular na expressao ‘as coisas em si mesmas!’ — por oposig¢io as cons- trugdes soltas no ar, 4s descobertas acidentai admissao de conceitos sé aparentemente verifi- cados, por oposigio as pseudoquestdes que se apresentam, muitas vezes, como problemas ao longo de muitas geragées.” (Id., p. 57) Em Heidegger, 0 método fenomenoldgico consistird na busca do sentido das coisas, para realizar uma analitica da existenciali- dade. E € 0 modo de ser do humano que funda as coisas, dando- Ihes sentido. E através do método que se vai buscar esse sentido do ser, naquilo que se da direta e imediatamente. O fendmeno é 0 que se mostra a si mesmo; a maneira do ente, portanto, o fendme- no transparece, mostrando-se em si mesmo. De uma forma ou de outra, o ser mostra-se, seja de forma velada, encoberta ou desfi- gurada. A atitude fenomenoldgica dara caminho na descoberta do sentido do ser. 38 - A Escura € 4 FaLA em PsicoreraPia O fendmeno nao perceptivel, na perspectiva de Heidegger, nao _ pode ser apreendido através de conceitos ou teorias. Assim sendo, 0 que se apreende é uma representagaio. O fendmeno se mostra a si mesmo, através dele prdprio. Através do princfpio da transparéncia, parte-se do pressuposto que o sentido se mostra. Heidegger afirma, ainda, que o fendmeno se define como aquilo que se revela, 0 que se mostra em si mesmo, a totalidade de tudo. O que os gregos antigos denominavam de ente: “Ora, 0 ente pode se mostrar por si mesmo, de varias maneiras, segundo sua via de acesso. Ha até a possibilidade de 0 ente se mos- trar como aquilo que, em si mesmo, ele nao é. Neste modo de mostrar-se, 0 ente “se faz ver as- sim como”. Chamamos de aparecer, parecer e aparéncia a.esse modo de mostrar-se.” (/d., p.58) Embora o fendmeno se mostre diretamente como sendo isto ou aquilo, mostra-se também assim como, o que significa dizer que se mostra como algo que nao é. Neste caso, o sentido nao é 0 que aparece ou o que se manifesta. Deve-se partir daf para desve- lar o ser, ou seja, do que aparece ou se manifesta, porém, sem ai ficar situado. No modo da aparéncia, 0 fendmeno nao é 0 que aparece, nem 0 que parece. Neste modo de explicitacao, o fendmeno se mostra como se fosse € 0 ente se mostra como aquilo que nao é. Aparece como sendo, mas nao é. No modo da manifestagao, 0 fendmeno se mostra nao em si mesmo, mas anuncia algo que em si nao se revela. Manifestar-se € anunciar-se mediante algo que se mostra, o que significa no se mostrar. O grande risco consiste em que 0 ser dos entes, ao mostrar-se de forma encoberta, pode encobrir-se tao profundamente a ponto de que acabe por ser esquecido. Na maioria das vezes, o ser se ANA Marta Lopez CaLvo FEUo0 - 39

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