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61097202" 29:48 Transistria, vansistor: as maquinas e as musas — Outros Crilcos 15 DE FEVEREIRO DE 2019 / BERNARDO OLIVEIRA TRANSISTORIA, TRANSISTOR: AS MAQUINAS E AS MUSAS por Bernardo Oliveira e Fred Coelho. Por iniciativa de Mario de Andrade, entao diretor do Departamento de Cultura da cidade de Sao Paulo, a Missio de Pesquisas Folcléricas percorreu o Norte e 0 Nordeste do Brasil durante o ano de 1938. Em busca de registros de manifestagdes culturais, particularmente de danca e musica, trouxeram na bagagem gravagdes em Audio e imagens dos estados de Pernambuco, Paraiba, Maranhio, Para e Minas Gerais. Entre os registros mais interessantes, é possivel citar o caso dos “carregadores de piano” do Recife, grupos com cerca de oito homens que trabalhavam no porto e carregavam os pianos que chegavam da Europa para as casas particulares. No caminho, cantavam para ritmar 0 passo, entoando temas motivacionais com titulos como “Vamos nessa meus amigos”, “O coati ta no pau” e “Meu barco é veleiro”. O fendmeno é andlogo aos vissungos e aos work songs norte-americanos, mas destaca-se pelo modo singular com que os cantores jogam com dinamicas de pergunta-e-resposta, semelhantes ao coco de roda. hitpsdoutosertices.comtransstoria ransistor-ae-maquinas-2-a8-musas! an eoar02% 23:48 Transistéra, vansistr as mBquinas ¢ as musas Outros Crilcos Misica-acontecimento devido ao registro flagrante, mas também miisica- empoeirada, coberta por uma fina camada de ambiéncias e ruidos, captada por um antigo gravador MR6 DE, microfones e amplificadores, em sua maioria produzidos pela empresa norte-americana Presto Recording Corporation. Muitas perguntas surgem entio: essa musica pode ser considerada independentemente do fenémeno e do registro, “género” ou “estilo”? Desde o momento em que foi registrada, ela nao permanece atrelada, nao sé ao momento, como também As condigdes técnicas e experienciais do seu registro — incluindo 0 contexto e a presenga do gravador e dos técnicos? A pratica do registro participa da afirmagao do fenémeno no tempo presente, uma vez que permite, com suas lentes, que ele chegue até nés? Chiados e desequilibrios passam a fazer parte do fenémeno ou se resumem a um efeito colateral inconveniente? Capta o acontecimento de forma absoluta ou possibilita seus desdobramentos virtuais a cada nova audigao? Ff possivel ainda detectar relagdes de causalidade entre o fonograma impresso e o proprio acontecimento? A cangio no Brasil desempenha um papel central na produgao de subjetividades e nos modos de narrar a histéria. A musica brasileira é concebida e desenvolvida luz da cangio e seus desdobramentos pré icos — a festa, o carnaval, o ato social, as mensagens subliminares, a conversa da malandragem, a estratificagao social, 0 amor, a flor e o espinho. A histéria da cangdo oferece um eixo para nossas narrativas de origem e para nossas narrativas tragicas. Ela manifesta uma certa concepeao de evolugao (“a linha evolutiva”), demarca os periodos de ouro e de crise (a Era do Radio, a Era da Bossa, a Era dos Festivais), e, finalmente, compartilhando seu espago com outras modalidades sonoras, a cangio se torna indicio de uma suposta decadéncia, anunciada através de diagnésticos apocalipticos (“o fim da cangao”, “o fim da cultura”). Decerto, nao se trata de decadéncia, muito menos de involug&o, mas talvez de uma indisposigéio metodolégica, um modo especifico de se perceber os fenémenos sécio-sonoros. “Imaginem que a histdria da musica brasileira nao comegou com a beleza sublime da cangao popular. Que, virando tudo de cabeca hitpsdoutosertices.comtransstoria ransistor-ae-maquinas-2-a8-musas! ane 61097202" 29:48 Transistria, vansistor: as maquinas e as musas — Outros Crilcos pra baixo, nao foram suas vozes que viraram musas.” Imaginem que a histéria da misica brasileira nfio comegou com a beleza sublime da cangao popular. Que, virando tudo de cabega pra baixo, nao foram suas vozes que viraram musas. Imaginem que essa histéria comega quando alguém grava essa cangfio para que ela possa ser reproduzida para todos. Uma histéria que privilegia a técnica da gravagho, o fendmeno maquinico da misica — a captagio do som — tornando-se uma espécie de centro gravitacional das narrativas sobre a cangio e sobre a misica brasileira em geral. Nessa contra factualidade, temos momentos importantes, quig4 origens fundadoras. Podemos escolher, como marco zero dessa histéria da maquina na misica, a chegada ao Brasil de Frederico Figner, um tcheco que, apés um periodo em Nova lorque, desembarea em Belém do Para no longinquo ano de 1891. Figner traz ao pais a novidade inventada por Thomas Edisoi aparelho que jé estava bem préximo do que viria a ser 0 fonégrafo. Rodou boa parte do pais, principalmente no Norte e no Nordeste, registrando as vozes das pessoas e as fazendo ouvi-las em reprodug&o mecanica pela primeira vez. Ao chegar ao Rio de Janeiro, capital da recém-fundada Republica, ansiosa de tecnologia e modernidade, ele abre sua famosa Casa Edison, na rua Uruguaiana. Logo depois, com 0 advento das “bolachas” (discos de cera), Figner mudou sua tecnologia e ampliou os planos. Tornou-se 0 responsdvel por importar novas maquinas, equipamentos de gravagio e reprodugo, abrindo um estudio e uma nova loja na rua do Ouvidor. A partir de ent&o, em 1902, passou a langar os primeiros discos brasileiros (e 0 selo Odeon). Baiano, cantor popular do periodo, gravou “Isto & bom”, e a cangio popular deu o seu primeiro passo para dominar todas as narrativas sobre a musica brasileira. um O conjunto da composis&o cancional contemporanea impée ao critico a adogao de outras perspectivas de abordagem e compreensao do que aquelas disponiveis até entao. Os modelos musicais com os quais se trabalha a histéria da musica no Brasil excluem uma pesquisa de modos técnicos, pesquisa de timbres (fontes sonoras) e de alturas (frequéncias), para se concentrar na poesia, na triade melodia-harmonia- ritmo e, eventualmente, na questo da performance. Diante da multiplicagio de tendéncias que se desdobram para além das fronteiras nacionais, percebe-se imediatamente a impossibilidade de uma sistematizagao mais rigida, orientada por critérios habituais, como os que balizam a pesquisa musical no Brasil: 0 formalismo (misica como expressio da forma), o essencialismo (mitsica como expresso de uma esséncia), a historia antiquaria (0 folclore), a historia monumental (a bossa hitpsdoutosertices.comtransstoria ransistor-ae-maquinas-2-a8-musas! ane ‘eor202s 2348 Transit, ansistor: as mdquinase as muses Ouvos Crteos nova, a jovem guarda, o tropicalismo), a manutengio da “identidade cultural” (e dos valores identitarios), isto é, a relag&o da cultura com a dimensao do popular e do nacional. Sobre a cangfio, pode-se detectar duas abordagens da cangao: uma culturalista (0 Wisnik de O Som e o Sentido); a outra formal ou verbivoco-literaria (Tatit, Zumthor, “performance”, “vocalidade” dicgfio). Em ambos os casos 0 que se exprime no ato da performance ¢ a dicgdo do compositor, produgao intermediaria entre a esséncia formal (a forma cancional) e a expressao efetiva da performance. Isto é, a expresso da performance é efeito de uma causa, a forma da cangio, a forma da interpretago. A cangdo brasileira esta presa a uma causalidade formalista, que encontra sua possibilidade de existéncia como efeito de uma esséncia. “A inclusao do ruido, das longas duragoes, a valorizagao da ambiéncia, inscrevem outras dinamicas expressivas no corpo cancional brasileiro.” As categorias elaboradas por Li eficdcia na andlise cancional pode vir a reivindicar a introdug&o de outros elementos. A cang&io contempordnea nao se resume a uma resultante inscrita em um sistema de coordenadas bidimensional, formado tinica e exclusivamente sobre a Tatit nao se tornaram obsoletas, mas sua tessitura (altura) e 0 andamento (duragiio). Hoje, talvez seja preciso encarar que a cangio se faz também na performance, na instrumentagiio, nos modos de apresentagao e gravac&o, valorizando também a intensidade (volume) e o timbre (fonte sonora), néo como aderegos, mas como elementos constitutivos. Isso porque, adequadas sobre a cangao como habito e epicentro da cultura nacional, as nogées de forma e conteiido, como formas aprioristicas da analise musical, se inscreveram imediatamente no corpus cancional brasileiro, permitindo isolar a cangaio da performance. Porém, para alguns compositores do século XX e XXI, a esséncia, formal nfo pode ser exposta sem que se traga a experiéncia e a performance para 0 epicentro constituinte da cangio: é através da aparéncia e da transparéncia que boa parte desses autores irdo se exprimir. Se faz necessario pensar a cangao em hitpsdoutosertices.comtransstoria ransistor-ae-maquinas-2-a8-musas! ana eoar02% 23:48 Transistéra, vansistr as mBquinas ¢ as musas Outros Crilcos conformidade com a escolha da instrumentagao e a performance, buscando nao sé identificar as escolhas timbristicas na interpretag&o vocal, como também nas opgées instrumentais, nos arranjos e no modo da apresentagio. A inclusao do ruido, das longas duragées, a valorizagéio da ambiéncia, inscrevem outras dinamicas expressivas no corpo cancional brasileiro. A cangfo se torna um objeto integrado nao mais a um “acompanhamento” ou a uma “linha evolutiva”, mas adapta-se a miltiplas ecologias sonoras. Neste contexto, qual seria o estatuto das pesquisas conectadas 4 manipulagao de alturas e timbres, de invengdes técnicas e ambiéncias? Seré que o tinico elemento na misica brasileira é a cang&o consonante, as dissonancias administraveis, os instrumentais como acompanhamento e a gravacio limitada ao registro do momento? Ou a percepeao de certas praticas e procedimentos afirmam uma histéria apécrifa: a histéria do som na misica brasileira? E por este caminho que pretendemos ventilar a hipétese de uma determinada histéria da musica no Brasil, uma histéria experimental sobre uma forma experimental de se conceber e produzir muisica, ressaltando as pesquisas, o jogo de erro-e-acerto e os modos de criar sons presentes em toda misica. Histéria, portanto, elaborada a partir de praticas e questées acerca do som e seus desdobramentos técnicos, tecnologicos e inventivos. “Se a nossa historia fosse também a do Som como referéncia, e nao somente ada voz e da canc¢ao, saberiamos tudo sobre Fred Figner.” Se a nossa histéria fosse também a do Som como referéncia, e nao somente a da voz e da cangao, saberiamos tudo sobre Fred Figner. Saberiamos provavelmente 0 nome do técnico da gravacao da musica interpretada por Baiano. Teriamos certamente um relato heroico desse momento de precariedade e superacio na primeira gravacao brasileira. Um relato com o mesmo heroismo contido nas festas de Copacabana e Ipanema, o mito de fundagio da Bossa Nova; ou na historia sobre © dia em que Joao Gilberto bateu na porta dos Novos Baianos em um apartamento na rua Conde de Iraja. Sabemos, porém, que isso n&o ocorre. Ninguém sabe 0 nome do nossos primeiros técnicos, raramente sabemos seus nomes ao longo do tempo. hitpsdoutosertices.comtransstoria ransistor-ae-maquinas-2-a8-musas! en2 ‘eor202s 2348 “Transstéi,tansisor 9s maquinas as musas ~ Outros Crtieos Quem operava as maquinas, nao estava ao lado de quem usufruia do seu funcionamento — isto é, os cantores e instrumentistas que eram gravados. Jacob do Bandolim, por exemplo, era fascinado pela tecnologia e se inteirava constantemente do universo de equipamentos e efeitos, chegando a utilizar-se de fotografias ¢ microfilmes para facilitar a transcrig&o e armazenamento de partituras. Em 1959, durante as gravagdes de uma série de faixas para a Radio MEC (relangado em1996 com o titulo Choros, valsas, tangos e polcas), Jacob toca um instrumento que ele préprio inventou, o Vibraplex, espécie de guitarra elétrica que explorava as reverberagdes de um violdo tenor. Com isso, evidenciava uma pesquisa por outras formas de tocar, de compor e de “timbrar” instrumentos do choro. Outros tépicos dessa histéria do som seriam constituidos por um estudo acerca das relagdes entre técnica, registro e invengao, tanto nas expedicdes organizadas por Mario de Andrade nos anos 30, como na caixa Musica do Brasil, organizada na primeira década do século XXI por Hermano Vianna e Beto Vilares. Seria preciso também langar luz sobre as escolas de musica dos anos 60, coordenadas por grandes experimentadores — entre elas a UNB, com Claudio Santoro, Rogério e Régis Duprat, Damiano Cozzela e Décio Pignatari e a UFBA, com Hans-Joachim Koellreutter e Ernst Widmer; resgatar as experiéncias com frequéncias e siléncio de Walter Smetak; prestar ateng&o ao “Hertzé” e demais instrumentos inventados por ‘Tom Zé; estudar a tamba, o chocalho d’agua e outros instrumentos inventados por Pedro Sorongo; Joao Gilberto como noise musician; no esquecer a voz e o violéo de Nelson Cavaquinho, que ainda aguardam um estudo aprofundado devido a sua extrema originalidade; reconhecer os achados timbristicos do Grupo Fundo de Quintal e dos sambistas do Cacique de Ramos; nao ignorar 0 modo peculiar com que o funk carioca faz uso dos equipamentos de produgao, desde os sintetizadores e drum machines dos 80 aos MPCs e softwares da atualidade. Longa e variada, a lista de tépicos a serem levantados por uma histéria do som na musica brasileira atravessa todo o século XX. “O que esta em jogo é justamente a possibilidade de outras bases sonoras ampliarem o vocabulario hitpsdoutosertices.comtransstoria ransistor-ae-maquinas-2-a8-musas! en2 61097202" 29:48 Transistria, vansistor: as maquinas e as musas — Outros Crilcos dessa musica local e, principalmente, tornarem-se parte ativa de uma massa critica sobre nossa historia musical.” Nao se trata de negar em absoluto a cang&o popular, muito menos de criar uma espécie de divisdo entre consumidores de misica “brasileira” e “musica gringa”. O que esta em jogo é justamente a possibilidade de outras bases sonoras ampliarem o vocabulario dessa musica local e, principalmente, tornarem-se parte ativa de uma massa critica sobre nossa histéria musical. Os resultados praticos, alids, estfio cada vez mais no prato do dia, como os trabalhos recentes de cantores e cantoras que, mesmo aliados ao viés pop da cangao brasileira, incorporam o ruido e o grave, a dissonancia e a maquina como elementos vitais e autorais em suas criacées. Se a historia é o registro testemunhal do passado em suas variadas formas, métodos e expressées, evocamos aqui uma “transistéria”, constituida por observagées acerca do movimento e dos materiais invisiveis. Ndo os deuses, nem os mitos, nem as musas, nem as crengas e valores, mas as forgas do silicio, da termodinamica e do eletromagnetismo, as forcas do acetato, do som, do radio, da imagem, do pixel. Nem uma fenomenologia (pois nao operamos com “sujeitos” auténomos e monddicos), nem uma nova semiética (pois o signo esta inserido no devir do mundo, e nao 0 oposto). Algo ainda mais problematico do que uma “historia do tempo presente”. Uma “transistéria” é uma histéria do transistor como meio de comunicar o incomunicavel — nao porque é inefavel, mas porque é pura poténcia transdutiva e inocéncia aleatéria. Uma transistoria é uma historia do vir-a-ser, das forgas, das ondas, das energias, nos quais estamos inseridos, e das relagdes de poder e temporalidades que elas geram. Tempos multilineares, multidirecionais. O tempo das subjetividades, das escutas particulares, da abertura para a interpretagio e para deixar-se afetar por algo além (¢ ao lado) da cangiio assobiavel. hitpsdoutosertices.comtransstoria ransistor-ae-maquinas-2-a8-musas! m2 61097202" 29:48 Transistria, vansistor: as maquinas e as musas — Outros Crilcos “O que se evoca, portanto, 6 uma ‘transistoria’ da musica no Brasil que nao separe o ‘folclore’ de musica urbana” © que se evoca, portanto, é uma “transistéria” da miisica no Brasil que nfo separe 0 “folclore” de misica urbana, que descarte categorias pautadas na produg&o dos grandes consensos, que nfo minimize a expressfio sonora como dado fundamental da apresentagio, que evitaria desprezar formas de gravagio, efeitos, experiéncias e demais possibilidades associadas ao som. Uma histéria que considere o problema da cang&o em paridade com o “acompanhamento” (0 arranjo), com a pesquisa de timbre e altura, com as condigdes sonoras, com a criatividade dos técnicos. Em sum liberar agenciamentos sufocados ou nao explicitados, recompor as redes da miisica e do som no Brasil. Essa transistéria nao elegeria estratos exclusivos de invengao (0 modernismo, a bossa, o tropicalismo), reconhecendo a inveng&o em todas as matérias sonoras desenvolvidas em mbito nacional e entre as fronteiras reais e imaginarias. Quem sabe assim, em um futuro ndo muito distante, novas geragdes considerem Figner e os pioneiros da gravagio no Brasil tao importantes quantos as vozes eternas de nossos cantores. Publicado originalmente na revista Outros Criticos #10 — versio da revista on-line | versio da revista impressa Texto revisado e ampliado, publicado originalmente no blogue e catélogo do Festival Novas Frequéncias. Imagem de capa do site: Gilvan Barreto Compartithe ovo Curtir isso: Carregando... hitpsdoutosertices.comtransstoria ransistor-ae-maquinas-2-a8-musas! ane

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