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Secos & Molhados metafora, ambivaléncia e performance José Roberto Zan Doutor em Cisncias Socials pela Universidade Estadual de Campinas (Unica). Pro {estor do Departamento de Musica @ do Programa de Pés-araduarao om Musica da Unicamp. zan@iar-unicamp.br “Bate anigo a versio apa cin do teeta apresentnaa no VI Congresso da IASPAPLA, salzado om Havana ~ Cuba, cm 2007, 00 0 ttl “Seco Mothades: 0 navo sent oda encenayao da cacao" ‘Asradeg aoe anges Antonue ERatsel dos Santor © Adel (Carlo Machado pelos toques SCE, SEVERIANO, Jairo & HOMEM DE MELLO, Zuza, A cng no tompo: 83 anos de ‘sca Dasa. Sto Paulo Esitors 1998, 042 p. 91 Secos & Molhados: metéfora, ambivaléncia e performance* ‘Secos & Molhados: metaphor, ambivalence, and performance José Roberto Zan Este artigo traz algumas reflexdes This article brings some reflexions about sobre a produsto do grupo Secos & the production ofthe group Secos &/ Mo- Melhados, nos anos de 1973 e 1974, aos, ack nthe years of 1973 and 2974, catacierizada por formas peculiaves characterised by pecular enunciation de enunciagao da cangao. © objetivo forms ofthe song. The text's objective is do texto 6 compzeender os sentidos to understand she menlngs ofthe band's dasescolhasedaperfirmancedabanda choices and ther performances in a poli- pumcontexio politica cultural enarca- island cultural content marked by the ddo pela vigéncia do regime ditatorial, —_dictrctoval regi, the cultural industry pelo desenvolvimento da induistriacul- development andy a newmarket confine tural e portuma nova configuracodo ation of synelic goods in Bras mercado de bens simbélicos no Brasil patavmas-ciavermiisica populat;per- _xerwonps poplar music» performance formance; indsteia fonogrsfica, sc dustry. 9” Corria 0 ano de 1973 quando as emissoras de radio passaram a veicular mésicas de um grupo ainda desconhecido, que cairam imediata- mente no gosto do publico, Era 0 Secos & Molhados. Ao lado de sucessos memoraveis que marcaram aquele ano, como “Estacio Holy Estacio”, de Luiz Melodia, “Ouro de tolo”, de Raul Seixas ¢ “Folhas secas’, compo- sigao de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito interpretada por Elis Regina, trés gravacdes do novo conjunto ocuparam posigées de destaque nas paradas: “O vira”, de Joao Ricardo e Luhli, “Rosa de Hiroshima”, de Vinicius de Moraes e Gerson Conrad, e “Sangue latino”, de Joao Ricardoe Paulinho Mendonga. Essas canoes fazem parte do primeiro LP do grupo langacio pela gravadora Continental. Com um repertério que combina ele- mentos do pop rock, lirismo de baladas folk e letras que transitavam do tom alegre, debochado, brincalhao a critica social e politica, os novos artistas vencleram milhares de discos num curto espago de tempo, tornando-se tum dos maiores fenémenos comerciais da indiistria fonografica brasileira, ‘Suas apresentagdes ao vivo eram marcadas pelo forte apelo visual, com seus integrantes usando fantasias, maquiagens carregadas e gestualidade com tragos andrégenos, lembrando a chamada “estética gliter”, em voga no cenario da miisica pop internacional daqueles anos. Tudo isso, parecia chocar e, ao mesmo tempo, seduzir a plateia. As aparigdes nas emissoras ArtCultwra,Uberandia,v 15,0. 27,p. 7-27, jul ex 2013 de televisio desde o langamento do LP garantiam elevados indices de audiéncia, Especialmente as performances do vocalista Ney Matogros- so, com suas fantasias exéticas, mascaras, maquiagem pesada, tangas requebros exagerados, tudo isso somado ao seu timbre vocal de contra tenor com entoagao ao estilo das cantoras do rédio, construfam um clima de ambivaléncias e metéforas. A formagao do grupo se deu num contexto histérico marcado pela vvigéncia do regime ditatorial militar no pais na sua fase mais violenta (anos imediatamente posteriores & decretacdo do Ato Institucional no. 5); pelo recrudescimento da pratica da censura; por elevadas taxas de crescimento do produto interno bruto combinadas com a forte concentragao da renda € arrocho salarial; ¢ pelo desenvolvimento e racionalizagio da indiistria cultural, Nesse periodo, o ramo fonogrifico atraitt novos investimentos, © que resultou no aumento expressivo a produgao de miisica gravada? As ‘empresas se modernizaram e construiram grandes estiidios de gravagio com novos equipamentos, reduzindo a defasagem tecnolégica entre a produgao fonografica brasileira e a dos paises desenvolvidos. O avango da racionalizagao dos modos de gestao das indtistrias de bens simbélicos contribuiu para a superacio da fase marcada por certa artesanalidade que as caracterizara em décadas anteriores. Nesse cendrio, aprofundou-se a segmentacao do mercado de misica popular e tornaram-se mais eviden- tes os sinais de mundializagao da cultura, especialmente com 0 constimo crescente de fists intemacionais.* Nesses anos foi se fechando todo um ciclo de intensa participagio cultural e politica no Brasil que se delineou a partir do governo nacional desenvolvimentista do Juscelino Kubitshek e ganhou forga nos anos 60;um ciclo marcado por uma proficua producao artistica diferenciada e muitas ‘vezes conflituosa em diversos campos como musica, teatro, artes plasticas, cinema e literatura, colocando na ordem do dia questdes fundamentais das as ideias de modernizacao e revolucio brasileira. Sob o impac- to do recrudescimento do regime no final da década e de ressonancias de movimentos culturais e politicos que abalavam paises europeus e Estados Unidos, determinados segmentos da juventude brasileira passaram a se identificar com uma produgao simbélica e um estilo de vida associados & “contracultura”, colocando em pauta as temiticas do corpo, da sexualida- de, da psicandlise, das drogas e elegendo 0 rock como uma das formas de expressio. Esse género musical, que nos anos anteriores fora estigmatiza- do como simbolo do imperialismo cultural, se converteu em sinénimo de um novo comportamento, de uma maneira libertéria de encarar a propria condigao moderna.* Ao mesmo tempo, ganhava forca o culto & marginali- dade como forma de resisténcia ao autoritarismo politico e ao avanco da administracao da cultura, De certo modo, ser “marginal”, ou viver fora do sistema, era uma espécie de resposta ou uma “tomada de pos circunstancias impostas pelo regime ditatorial e por uma indistria cultural fortemente integrada que restringia os espagos para a intervengao cultural ea criagao artistica com perspectiva critica® Foi nesse contexto que, no inicio de 1971, 0 trio, ainda amador, formado por Joao Ricardo, Fred e Anténio Carlos (Pitoco), comegou a se apresentar na casa de espetaculos Kurtisso Negro, situada no Bixiga, tradicional bairro boémio do centro da cidade de Sao Paulo. O repertério mesclava sonoridades de géneros musicais regionais brasileiros e do pop ArtCuttura, Uberlancia, v 15, 27, p. 7-27, jul ter. 2013 ‘Ver ORTIZ Renato. Ameena tradgtobrasilre, Sao Paso Brasliense, 1988p. 133 ‘Ver VICENTE, Eduardo. Seg- mentagio ¢ consume: 2 pro lugio fonografica brasileira S1Se5199 incor Remar Ge Historia, Catare © Arte Uberti Ets 10 n16, spear 208, p10, “Ver HOLLANDA, Heloisa Buaegue, Impress de gent (CPC. vanguarda e desbunde ~ 1960) 70.Sa0 Paulos Brasiierse, 1981, p58. 2 Vee COELHO, Frederico. Es rsa sats mon els me pec: cultura margiral De Brae das decades de 1960 21970 Ria defanee:Cviiza- ‘Ho Beasera 200, p.216217, artigo AZ, Denise Pees. Ny Mat gros um cara meio estano Ro de ane io Frio Ea to 1982 p. 5 10 internacional, com arranjos compostos a partir de instrumentos como viola de 10 cordas, violao folk, gaita e bongs. Depois de alguns meses de relativo sucesso, Fred e Pitoco deixaram o grupo e Joao Ricardo convidou dois ou- ‘ros muisicos para recomporo trio: 0 violonista e compositor Gerson Conrad © 0 vocalista Ney de Souza Pereira, que ficou conhecido posteriormente como Ney Matogrosso. Joao Ricardo, jomalista, miisico e compositor, foi o lider intelectual do grupo. De origem portuguesa, imigrou para o Brasil ainda adolescente com 0 pai, 0 poeta e critico Jodo Apolinario, que foi obrigado a deixar seu pais por raz6es politicas. Portugal, nessa época (meados dos anos de 1960), vivia sob a ditadura salazarista, Joao Ricardo iniciou estudos musicais ainda em Portugal ¢ logo se interessou pelo folclore da sua terra, pelos Beatles e pela miisica pop norte-americana. Em Sto Paulo, ampliou seus conhecimentos no convivio com o vizinho e amigo Gerson Conrad. Como compositor, se dedicou principalmente a criacao de letras de canes com contetido social e a musicalizacao de poemas. Gerson Conrad comegou ase interessar por miisica ainda na infancia, quando iniciou seus estudos de violéo acompanhados pela audigio de bossa nova, jazz e pop reck. Instrumentista, compositor, arranjador e cantor. Quando comegou a compor, juntamente com Joao Ricardo, suas principais referéncias eram The Beatles e o quarteto norte-americano Crosby, Stills, Nash and Young, cuja sonoridade pode ser reconhecida em algumas com= osigdes e arranjos do Secos & Molhados. Para recompor o trio, Joo Ricardo procurava por um cantor de vor aguda para 0s arranjos vocais, Sua amiga, a cantora e compositora Helofsa Orosco Borges da Fonseca, Luhli, que também atuou na casa Kurtisso Ne- gro, Ihe apresentou Ney de Souza Pereira que conhecera no Rio de Janeiro. Ney, omais velho do grupo, ¢ filho de militar e natural de Campo Grande, estado de Mato Grosso do Sul. Nos anos 60, em Brasilia, tentou carreira de ator e cantou em coral, Mudou-se para o Rio de Janeiro onde fez algumas ontas em pecas de teatro e se dedicou ao artesanato, assumindo um es- tilo de vida hippie. Em 1971, mudou-se para So Paulo a convite de Luhli e Joao Ricardo para integrar 0 Secos & Molhados. Durante os meses de ensaio, garantiu a sobrevivéncia com artesanato e pequenas atuagées em pecas teatrais infantis e no musical A viagem, uma adaptagao de Os Lustadas dle Cam@es realizada por Carlos Queiroz Teles. Em dezembro de 1972, 0 _grupo comecou a se apresentar no palco da Casa de Badalacao e Tédio, do ‘Teatro Ruth Escobar, em Sao Paulo. Denise Pires Vaz fala das impresses que teve da aparigio do trive, especialmente, do cantor: “surgia [no paleo] uma figura estranha — corpo e rosto pintados de dourado e ostentando simbolos aparentemente excludentes: um enorme bigode e uma grinalda na cabega. A voz revelou-se outro susto: soava numa fronteira meio inde- finida e surpreendia pela limpicez. A danca cheia de saltos e contorcées, parecia liberar emogdes do inconsciente” * As fantasias, mascaras e maquiagens carregadas que Ney de Souza Pereira (que adotara o nome artistico de Ney Matogrosso) usava em suas apresentacdes, se tinham como finalidade preservar sua privacidade, a0 ‘mesmo tempo definiam e fixavam 0 estilo performatico do grupo, A temporada na Casa de Badalacao e Tédio teve enorme sucesso. O espago relativamente exiguo era insuficiente para um piiblico cada vez ‘maior que se aglomerava na porta de entrada a cada espeticulo. Estimulado ArtCultwra,Uberandia,v 15,0. 27,p. 7-27, jul ex 2013 pelas reacées da platéia, 0 grupo, emespecial Ney Matogrosso, se esmerava nas performances. Ao tomar conhecimento da grande repercussao desses eventos, a empresiriae atriz Ruth Escobar, proprietaria do espaco, foi as- sistit ao show e, se dizendo chocada, proibiti que os rapazes continuassem a se apresentar naquele local, alegando a presenga de loucos e drogados entre 05 frequentadores. © produtor e empresirio Moracy do Val, que jd acompanhava a trajet6ria do trio, procurou altemativas, promovendo apresentagdes em programas de televisio, clubes e em outros espagos da cidade, especialmente no prestigiado Teatro Aquarius Denire os eventos de lancamento e promogao do primeito LP,o grupo fez uma breve tumé no Teatro Itélia, no centro de Sao Paulo, com enorme sucesso. O depoimento do jomatista e critica Jodo Nunes nos d uma idéia do impacto que aquele espetaculo provocava no ptiblico: Eu era seminarista, com crise vocacional, de vt respeitoso semtinrio presbiteriano de Campinas, quando assist a um dos shows da historica temporada de duas sema- nas dos Secos & Molhados no Teatro Ititia, em Sto Paulo, Saira do casamento de um irmdo, em Sto Paulo, regado a cercejae ao incansivel rodar do disco do Secos & Molhados na vitrola, Na noite daquele sAtado, em vex de retornar ao seminar, como bem deveria fazer um bom seminarista mesmo em crise de vocagto-, rumei para o Teatro Ilia. Apliquei malo dinheiro dado por meu pat porque se fosse wm seminarista de bom comportamento compraria livros teolégicos ou o gastaria em causas mais nobres, mais rites e, claro, menos mundanas, Na minha meméria 0 paleo ea plata do Teatro Telia sto pequenos.O sufciente para ver Ney Matogresso rebolar feito cobra mal mataia muito porto de mim. E no papel de seminarsta presbiteriano, minha reago foi de incSmao, de espanto ede deshimibre. Isso foi em setembro. Em dezembro, abandonei o seminirio. Ea culpa deve ser ereditada ao S2cos& Mado, pois deseiou meus pensaments sos para deseos cesonesdennoniacos?” O album que surpreendeu 0 mercado fonografico Em maio de 1973, foram gravadas 13 cangées que compéem o LP Secos & Mothados, sob o patrocinio da gravadora Continental. 0 trabalho contou com a produgao de Moracy do Val, a direcio musical de Jodo Ricardo e diregdo artistica de Jalio Nagib. Os arranjos foram assinados pela propria banda, com excegao da faixa “Fala”, cuja tarefa coube ao miisico Zé Rodrix. 0 reforgo nos acompanhamentos coube a instrumentistas como Sérgio Rosadas nas flautas, John Flavin na guitarra e violdo de 12 cordas, Willi Verdaguer no baixo, Emilio Carreira a0 piano e Marcelo Frias na bateriae percussio, O produtor Moracy do Val, que dirigia um jomal da Continen- tale, portanto, tinha acesso a membros da diretoria da empresa, foi quem ‘encaminhow asnegociagdes para a produgao do disco, As gravagdes foram feitas no Estiidio PROVA, equipado com quatro canais, durante quinze dias, sem grandes interferéncias da equipe de produtores da empresa. A capa do LP, composta a partir da arte fotogritfica de Antonio Carlos Rodri- gues, com lay-out de Décio Duarte Ambrésio, mostra as cabecas dos quatro muisicos sobre bandejas dispostas numa mesa ao lado de paes, garrafas de bebida, cebola, grdos e lingitigas como se tudo estivesse preparado para ArtCuttura, Uberlancia, v 15, 27, p. 7-27, jul ter. 2013 ‘NUNES Joie. QuandooBeast se descobaia, 2003. Disponi- vel em cht reww.com ti iversoart 2008105 16imate- ‘nad S293L abt, Acosso ea jan 2006 Na capa do primeico LP apa recemas ores defoao Rica, Gerson Conrad, Ney Mato- igrosiee do tates Mazel Frias que fora convidado a 32 fntege an grup Poscoterspo depos ee abdicou do corte, sow 0 conju eo Secns de [olhacos emmaneeeram como " artigo "Vee RIBEIRO, Lucio @ SAN: (CHES Pedro Aleante “Sess nethoreapa dediscobreseta Deponiel em city tools fo. thacom bripantetememesmad shoraia sa aE ‘Acesso em 06-09-2005, Ver BAIANA. Ana Maria © SOUZA, Tenkde.O. pascal sistas. Jona Opn 37, Ro 2 Janeo: Erubia Lida 23:0 Jul de 1973 © MORELLL Ris, istriafmogréfcccumetudo antropologce. Campinas Ea fora da Unicamp, 1991 p. 78, Ver ANDRADE, Miso, Di ions masa! brasil Belo Honzonte/Braslia/Sto Paulo itor Itstain Ministco da (Galtsae usp 1983, p. 564 2 ‘um banquete antropofaigico*, O trabalho grafico cuidadoso e a riqueza de significacios da composigao fizeram com que mais tarde o jornal Fotha de 5. Paulo a elegesse como a melhor capa de LP de toda a histéria da musica popular brasileira? investimento na produgao do disco era parte da estratégia da gravadora, até entdo fortemente identificada com os segmentos regional e sertanejo, de atingir outras faixas de publico, especialmente a de jovens universitarios de classe média. Além do Secos, outros grupos e artistas individuais como O Tero, Novos Baianas, Walter Franco e 0 Pessoal do Ceara, portadores de repertérios que transitavam pelas cenas do rock e da MPB “progressiva’” (adljetivo usado pelo produtor Carlos Alberto Sion) figuravam na lista de novos contratados” Odisco foi langado.em agosto de 1973 no Teatro Aquarius, situadono mesmo bairro em que a banda se formou, e vendeu mais ce 300 mil copia ros primeiros 60 dias. Aparentemente a gravadora nao estava preparada para atendera uma demanda tao grande. As mile quinhentas cépiastiradas inicialmente se esgotaram em poucos clias. Com a avalanche de pedidos das lojas, a maior parte das prensas da fabrica foi ocupada exclusivamente para a reproducao do LP e muitos discos de outros artistas que estavam encalhadios nas prateleiras foram recolhidos e derreticios para suprirafalta de matéria prima. CoubeaMoracy do Vala organizagao doseventos de langamentodo disco, Na condigio de diretor do Teatro Aquarius, garantiu o espaco para os shows e, em seguida, promoveu a breve, porém memoravel temporada ‘no Teatro Italia. Ao mesmo tempo, agendou apresentacdes do grupo em so Seeos © Molhado: poesia tea © politica na musica popula brasleca Disertagéo {Mestrado em Letras) -UFF_ [iter 2007p. 305. 8 epilogo do LP Secos & Molhados, adquirindo significados mais amplos. Tal- vez oeu litico desta tiltima cangao nao se dirigisse apenas & pessoa amada, mas também ao puiblico ouvinte, aos criticos ou até mesmo aos censores. Turmé, crise ¢ 0 segundo album. Sob o efeito do sucesso do primeiro disco o grupo realizou uma sé rie de shows pelo interior paulista, em cidades mineiras, Brasilia e Recife. No final do ano, desembarcou no Rio de Janeiro para uma temporada no ‘Teatro Tereza Raquel, sittiado no bairro de Copacabana, sempre com casa cheia e fila de espera. Entusiasmado com o sucesso, o empresirio Moracy do Val organizou a historica apresentacdo do grupo no Maracanazinho em fevereiro de 1974, quando mais de 20 mil pessoas lotaram as depen- déncias do gindsio, deixando ainda uma multidao do lado de fora. Era 0 4pice da consagracio do grupo em territério brasileiro, o que motivou a programacao de lancamentos do disco no exterior, comecando por paises da América Latina. Os planos eram ambiciosos, prevendo ainda uma ma- ratona de apresentagies nos Estados Unidos, Europa e Japao. No entanto, no momento em que o grupo embarcava para o México, os primeiros de- sentendimentos em relagao a geréncia dos negécios e a divisdo dos lucros ‘comecavam a se manifestar entre seus integrantes. Apds duas semanas de shows e apresentagées num canal de TV na capital daquele pais, com grande sucesso e repercuss0es promissoras no mercado norte americano, © grupo retornou a Sio Paulo ¢ iniciou os preparativos e ensaios para a producio do segundo disco. ‘As gravagées desse esperado album foram feitas em junho de 1974 nos esttidios SONTMA, em Sao Paulo, sob a coordenacao de producao de Julio Nagib. Joao Ricardo definiu o repertério sem ouvir os demais integrantes, 0 ‘que contribuiu para acirrar a animosidade entre eles. O disco contém treze faixas, das quais seis so poomas musicados de Julio Cortazar, Fernando Pessoa, Oswald de Andrade e Jodo Apolinario. Algumas miisicas foram vvetadas pela censura, dentre elas, “Tem gente com fome”, versos do posta Solano Trindade com melodia de Joao Ricardo, 0 que obrigou o grupo ‘a compor as pressas outras cangdes para completar o album." A balada “Deliro.”, de Gerson Conrad e Paulinho Mendonga, tinica sem a partici- pacio autoral do lider, foi uma delas. A instrumentacio manteve padirdes similares aos do primeiro disco, com a atuagdo de mtisicos habilidosos em atranjos compactos, oscilando enite as baladas pop e 0 rock progressive. A capa repete, em certos aspectos, as caracteristicas conceituiais do primeiro disco. Produzida por Antonio Carlos Rodrigues, traz as fotos dos rostos maquiadios dos trésintegrantes do grupo sobre um fundo preto. Através da superposicao de imagens, cabecas parecem impressas sobre cestos de palha, ( disco foi bem produzido e a Continental elaborou um extenso plano de divulgagaoe marketing, inclufdo cartazes e filmes comerciais que seriam exibidos em salas de cinema das principais cidades brasileiras.* Porém, nao teve a receptividade esperada por parte do piiblico e nem da titica. Na opiniao de Ana Maria Baiana, num texto escrito logo apds 0 langamento, tratava-se de “um disco frio e distante da forga e de um certo encanto magico e ingénuo” do album de estreia. A autora destacou ainda a excessiva pretensio “literaria” ao se trazer para 0 campo da cangao os poemas de Julio Cortizar, Oswald de Andrade e Fernando Pessoa, além ArtCultwra,Uberandia,v 15,0. 27,p. 7-27, jul ex 2013 de certa “literatice” que caracterizava especialmente as letras de Paulinho Mendonga.* O crescente clima de discérdia entre 0s membros do grupo impediu que fossem cumpridos todos os compromissos previstos na ex- tensa agenda de eventos destinados & divulgacio e promosio montada pela gravadora, o que certamente prejudicou as vendas. ‘Antes de o trio anunciar a sua dissolucao no inicio de agosto, foram produzidos na TY Globo dois clips para o programa E Fantistico, com as cangoes “Flores astrais” e “Tercer mundo” .A primeira (2*. faixa do lado A) uma tipica balada pop de Jodo Ricardo e Joao Apolinario. O arranjo, a base de piano, guitarra elétrica, contrabaixo, flauta e bateria, integra-se ao canto em trés vozes, Na gravacao para a TV, Ney Matogrosso usa uma fantasia futurista feita pela escultora Mari Yoshimoto, composta por um cocar de metal prateado, luvas com dedos longos e pontiagudlos confeccionadas com ‘mesmo material, e um grande brasao cintilante fixado no centro do peito. Jodo Ricardo e Gerson Conrad, maquiacios e com fantasias mais discretas, atuam como coadjuvantes. © cenério é formado pela imagem ampliada da capa do LP, tendo ao fundo uma grande Ina dourada. Essa foi a cangao que se tornou mais conhecida e que impulsionou a vendagem do disco. A composigao “Tercer mundo”, a primeira faixa do album, é um poema de Julio Cortézar com melodia de Jodo Ricardo composta a partir de clichés da musica flamenca. Ney Matogrosso se apresenta com 0 cabelo preso por uma fita vermelha, formando um coque na altura da nuca, cose teletas longas, um grande brinco em forma de argola na orelha esquerda € braceletes de metal nos bragos. Sem mascara e penachos, usa apenas sobras escuras sobre os olhos e batom encarnado. O vestido preto, com amplo decote, deixa expostos os ombros e o peito peluco. Esses aderecos, somados a gestualidade ao estilo das divas do flamenco e ao set timbre vocal caracteristico, acentuam a ambivaléncia da performance. O grupo se desfez em seguicla. Joao Ricardo, que se manteve como detentor da marca Secos & Molhaclos, recriou o grupo varias vezes com outras formagées e gravou varios discos, obtendo relativo sucesso, porém numaescala muito menor & da fase anterior. Gerson Conrad também gra- vou um dlbum e passou a atuar discretamente como miisico, produtor e arquiteto. E Ney Matogrosso se projetou como um dos mais importantes intérpretes da mtisica popular brasileira Performance 1: poesia e cancio A produgao do Secos & Molhados se deu num momento em que a MPB (Miisica Popular brasileira), segmento musical que adquiriu identida- dee se consagrou a partir de meados dos 60, ocupava posicéo hegeménica no interior do sistema cultural entao vigente no pais. A legitimidade da sigla, que abarcava uma multiplicidade de géneros, estilos ¢ sonoridadies, fora conquistada em meio a lutas culturais associadas ao intenso debate estético ideoldgico que marcou aquele decénio, ‘A consagragao desse segmento representou o ponto alto de um lon- g0 processo de refinamento e intelectualizacao pelo qual passou a nossa musica popular desde os anos 30; processo que envolveu tanto mudangas 19s aspectos melédicos, harménicos e dos arranjos das composigoes — re- sultantes da incorporagao de padres advindos da miisica de concerto edo jaz, comoa intersegao entre cangdo e poesia erudita, Nesse periodo, uma ArtCuttura, Uberlancia, v 15, 27, p. 7-27, jul ter. 2013 % BAHIANA. Ana Maria. Un saltono van. orm! Opinio, D3 19 deage. 97s. ct p18 1° artigo Para a autora, 0 cate exit co da cngto se manifesta em eis nies: peimesramente, 0 plano fextut interno & obra fguando o cancionstacellete {utes vezes sobre o pepo proceso dacaagio recoerendo 30 uso de metaingnager in fevtetunidaden, prodine eto Tass procedimentos fomarar se mreantes eepecialmente otha Bosse Nova. O segundo dive é0 da cat contextual, {que ating a pleitide som a anslo engajada de oientasto ‘epecata © com a MPB. Ne=™ se caso, 3 obra e vos para (questdes ce pics © cuca com o itso, em ultina an Se amicilar are eda © transformar 2 sociedade. Ver NAVES, Santuza Cambraia, angio popular no Bras. Rio ance: Edtora Caizass0 Brasiewa 2010 "= TATIT, Luiz © século de congo, oti: Ate Eastoial, 2008, pV. ® NAPOLITANO, Marcos, MPB: Totem-Tabu da visa ‘sical rasa. RISERIO. ‘toca ea Anos 70: tat tins Sto Paulo DaminaraeTian Ctra 2005p. 125 SANT ANNA, Atteaso Re- mano de. Mdsice poputer € oder poi star, Pete polis Vanes. 1985, p. 268, 2 determinada parcela da miisica popular atingiu alto nivel de reflexividade, conquistando o status de “arte” no interior do sistema cultural. Foi o mo- mento da emergéncia da “cangdo critica”, como bem definiu Naves; uma ‘modalidade de cangio reflexiva que traduziu, num primeiro momento, 0 ideario nacional popular que marcou a cultura brasileira nos anos 60 e se converteu, apés 0 golpe civil militar de 1964, numa forma de resisténcia ao regime ditatorial. A Tropicilia ampliou o conceito de cangao, “descons- ‘truindo” em parte a suaestrutura formal que se consolidara especialmente a partir da Bossa Nova. Ao radicalizar o sentido critico desse produto ar- tistico, adotou, entre outras coisas, a estética do excesso, incorporando o ruido, 0 gesto, a performance, a vistalidade das capas dos discos tratados como objetos conceituais.” Sob o impacto da critica tropicalista, a MPB se abriu para multiplas “diogdes”."* De acordo com Napolitano, a miisica popular brasileira abrangia, nos anos 70, trés grandes “circuitos” que se delinearam no interior do campo musical: o que ainda mantinha linhas de continuidade do nacional popular, politicamente engajado e mantendo afinidades com o ideario de esquerda; 0 alternativo, herdeiro das incursdes vanguardistas e associa~ do a subculturas juvenis que emergiram especialmente no contexto pés AIS; , por fim, 0 "massificado”, representado por produgées fortemente orientadas pela logica da industria cultural.” De certo modo, 05 Secos & Molhados tangenciaram esses circuitos.Suas letras, por exemplo, guardam certa proximidade com a MPB notadamente quanto ao tratamento formal € ao contetido critico e engajacio de imimeras composigées. Porém, ha diferencas entre essa produgao e a dos compositores e intérpretes que se dedicaram a chamada cangio de protesto dos anos 60. No trabalho do trio, prevalecem tragos do que Romano de Sant’ Anna definiti como “uma poesia de tradigao simbélica”, isto é uma maneira de dizer certas coisas através doenvolvimento, do uso de metaforas,e nao de modo direto, contrastando com a agressividade, a estridéncia e o estilo épico/dramatico dos artistas engajados. Em muitas das composigdes observa-se certa liberdacle com que o grupo articula 0 conteiido participantee politizado das letras com 0 ‘ratamento musical muitas vezes brincalhao, aparentemente inocente ou até ‘mesmo infantil dado as cangoes. Nesse aspecto, ele parece se aproximar do segundo circuito apontado por Napolitano, associado as novas subculturas juvenis que emergiram no pais no periodo pés-tropicalista. Do ponto de vvista musical, como jé foi destacado, suas cangSes seguem certos padres das bandas de pop rock internacional com melodias delineadas a partir de ‘uma base harménica composta por sequéncias elementares e rotineiras de acordes sustentada por uma instrumentagao simples e caracteristica do repertirio desse segmento. ‘Outra peculiaridade da producio dos Secos & Molhados é a musi- calizago de poemas. Ao mesmo tempo em que se mostraram capazes de fazer cangdes com letras esteticamente bem elaboradas, criaram melodias para poemas de autores consagrados. Como ressaltou Affonso Romano de Sant’ Anna, eles vao “..resgatar textos literdrios de sua imobilidade livresca e trazé-los para o espetaculo vivo da série musical’ * © posta e critico reconhece, por exemplo, certa equivaléncia, quanto & qualidade literdria, entre a letra de “El Rey”, de Gerson Conrad e Joao Ricardo, e 0 poema “Prece adsmica” de Cassiano Ricardo, também musicado pelo grupo. esse modo, ao mesmo tempo em que promoveram orefinamento estético ArtCultwra,Uberandia,v 15,0. 27,p. 7-27, jul ex 2013 das suas letras, fazendo com que elas se aproximassem do status de obras literdrias, eles trouxeram os poemas para o campo da cangao midiatica, revestindo-os com o tratamento musical e outros aderegos inerentesa esse meio, preparando-os para a inserco num plano de circulagio e consumo simbslico muito mais amplo. Mas a articulacdo entre textos literdrios e cangao de massa, produtos artisticos que além de ocuparem posigies opostas e distantes na escala de valores do sistema cultural, sendo, portanto, destinados a modos distintos de recepgao, nem sempre se mostra eficaz. Ao ser apropriado pela perfor- ‘mance cancionistica 0 poema tende, em algumas situagées, a sofrer certo esvaziamento do seu significado semantico. Zumthor ressalta que com o impacto da vocatidade na entoacao da obra literdria “o efeito textual desa- pareceria e que todo lugar da obra se investiria dos efeitos performaticos, nao textuais”* Isso pode ter ocorrido com alguns poemas musicados que compéem o segundo album dos Secos & Mothados, motivando objecdes por parte da critica ‘A composigao “Tercer mundo” parece ser um desses casos. De fato, aletrandoé um poema, stricto sensu, mas uma frase retirada do livro Prose del obsercatorio, de Julio Cortézar, publicado em 1972, Trata-se de um texto concebido, dentre outras coisas, a partir das impressées do autor sobre as ruinas dos observatérios astronomicos das cidades de Jaipur e Delhi edificados por um sultao decadente da India do século XVIII fascinado por estrelas, e de um artigo cientifico publicado no jomal Le Monde que descreviao ciclo de vida e morte dasenguiasno seu eterno transito sazonal entre as profundezas das aguas tépidas do Atlantico Norte e 0s estudrios dos rios europeus. Numa narrativa fragmentada e imagética, definida do ponto de vista formal como prosa, mas repleta de recursos da linguagem postica, o escritor argentino constrdi um universo mitico que serve de base para uma aguda reflexao critica sobre o mundo atual. Estrelas,enguias, mar de sargacos, anel de Moebius convertem-se em metaforas de um plano pul- sante da realidade encoberto pelo manto de um cotidiano esquadrinhado, mensurado e classificado pela racionalidade técnico cientifica do Ocidente Em meio aum mosaico de imagens surrealistas, retratos da catastrofe con- temporinea, uma revolucao aguarda oseu momento. Certamente, ndo uma revolugdo nos padrées tradicionais concebidos pela ciéncia politica, mas um profundo movimento transformador cujo sujeito é 0 homem que “nao se aceita cotidiano”, que é capaz de fazer a “sua verdadeira revolucdo de dentro para fora e de fora para dentro”. A frase retirada dessa obra pelo Secos & Molhados e transformada em cangio traduz, de certo modo, essa ideia. “Ahi, no lejos,/las anguilas laten/su inmenso pulso,/su planetério giro,/todo espera el ingressofen una danza/que ninguna Isadora danz6/ nunca de este lado del mundo, tercer mundo global/del hombre sin orillas,/ chapoteador de histéria,/vispera de si mismo”. O trecho destacado faz referéncia ao “Terceiro mundo”, bloco geoe- condmico que, de acordo com novos critérios de regionalizagao do espago mundial definidos por cientistas sociais e economistas apés a segunda grande guerra, seria composto por paises subdesenvolvidos da América Latina, Africa e Asia, Cortizar nao parecia um entusiasta de classificagoes esse tipo, embora cultivasse simpatia e certa esperanca em relagdo a0 potencial libertador de movimentos que ocorriam nesses continentes, es ecialmente os conflitos do sudeste asiético e a revolucao cubana, De certo ArtCuttura, Uberlancia, v 15, 27, p. 7-27, jul ter. 2013 ®ZUMTHOR, Paul. Peyorman- creep lata. So Pals (Cosac Naty, 2007p. 17618, = CORTAZAR Jato. rosa do ert. Sto Pal: Pespec- tia 205, p. 9, = CORTAZAR Julio, Pros et beter, Barcelo Eito- spain 1972 ps7 068. Na teadugte deDavs Acruguce lor A rubionge aeons palptam sesimensoprl seu (310 planetinig tudo espera © ingresso uma danga gue Pe sama ladora jamais dango dest ado do mundo, teceio ‘und global do nonern se fronteies, chapinhador de hstona vespersdesimnesns™ CORTAZAR Tutio. 2005, op. hp 98. a artigo on bdo, p08, france abet Green Deggc sntune “Cavin fe folee, fv aao rade obras em Ie 963 Ton a come tena as penpesan © Seen acre de a fonder seano de Esra Stn pene oredr ‘eosaparrceumamelodn Tonpaliteseaeantpadoe de thine espana & compe aio seconverew nan da Seti regan supe Inver de Dati cf opt {apa prtguas om cas weiter Us de feta por Femando Barts greada Por angel Maia na RCA itor of outa decutonade Romea Nunes ft regia fn discos Odeon ven de Gia Lopes com otto “O frovador Ge Tots Es line sieve enome sucess ‘Xtanorn font de rosoe soci xcepomn opr Gp ccaunge sotarapuies Shoe! puns tho) ‘streets 3 dato com fore expose state (Eiders foram de dos essesaginayfofigamane topo de-Prads de ce Traine Ve Rote fe Rata, 962. Ano XIV, do dimer 681069 = Sobrescre aunt diVer ée"eninda canto questa uvite enbora numa tages (que s6 se dena dentiicae por Seas artcuagoes independen temente de eda compecensto, "Ecomoa solictagio semantica perdesenaignorinciado cod sotngusiics acmgio tomas urs miscneoseu sentido far Eo aqua dss signings nae texturas de uma sonoridade ‘fo indcsvel quanto resi tivel” VALVERDE. Moncie Mission encanto da ange Ie MATOS, Cauda Newa de TTRAVASSCS, Eizabeth e ME DEIROS,Femands Tencica de (ogs) Paleve canta enssios sobre poesia, musica # v02 Rio de lanes: 7 Letras, 2008, pas NestesegundoLP—dizajoce palsta-aspeetensbeciteriias @ existencas de foto Ricardo detamo reperorionura meio ‘ermosemsabor aia do aplo primario(ebem rock) e muito ‘quem do alcsce pretenisa, ‘Rencego dostetes de Pessoa Consaae e Oswald de Ansen ie (Belos, mas ate que ponto 2 modo, o escritor compartilhava da perspectiva que circulava entre intelec- tuais e ativistas de esquerda nos anos 60 segundo a qual as mobilizagies de forgas sociais que poderiam desestabilizar a nova ordem internacional abrir brechas para a eclosio de movimentos libertadares viriam dessa regido do planeta, identificada por alguns como 0 “elo fraco” do sistema de poder mundial. Porém, em seu livro, a expressao “terceiro mundo global” nao tem exatamente essa conotagio geopolitica, mas parece soar como metifora contra cultural de uma face invisivel da realidade; de um lugar mitico a partir do qual o homem fora da orciem, movido pelo desejo, poder rompera carapacado instituido e “bater contraamatéria rampante do fechado, de nagbes contra nagdes e blocos contra blocos’ 2 ‘Acesse fragmento da obra Prosa do observutério, Jodo Ricardo incorpo- rou uma melodia composta a partir dos acordes da cadéncia andaluza na tonalidade de mi menor (Em/D/C/B), com padroes estilizados da miisica flamenca. 0 arranjo, a base de trés viol6es ¢ castanholas, somado & gestu- alidade vocal caracteristica de Ney Matogrosso, acentua esses aspectos, mobilizandoelementos do imaginario construido e reproduzido no mbito da cultura de massa que atribui a latinidade, em especial a cultura hispa- nica, certas qualidades como exotismo, sensualidade e passionalidade. A entoacao peculiar do cantor reforca a autonomia da frase em relacio & totalidade da narrativa, ao mesmo tempo em que desloca e expande seus significados. O intérprete parecia acionar, voluntariamente ou nao, até mesmo certa memiéria radiofOnica ainda viva naqueles tempos. E possivel identificar alguns tragos das suas inflexdes vocais que lembram cantoras do radio como Angela Maria e, especialmente, Gilda Lopes na memord- vel gravasao de “O trovador de Toledo” de 1962. Em sua breve carreira, a cantora obteve enorme sucesso com essa cancao, definida como “valsa fantasia”, que falava das aventuras amorosas de um estranho personagem num cenirio sedutor e misterioso de algum lugar da Peninsula Ibérica. A melodia, também repleta de clichés da miisica espanhola, permitia que a cantora exibisse suas habilidades vocais, numa combinagao um tanto kitsch entre vocalizes, nos quais transitava com surpreendente naturalidade por ‘és oitavas, e uma entoagio sensual e impetuosa* Provavelmente, grande parte dos ouvintes se emocionava muito mais com a performance de Ney Matogrosso, com inflexdese timbre peculiaresque mobilizavam facetas do imaginario popular como os atributos da cultura hhispanica é fixadas pela cancdo massiva, do que com o contetido do texto de Cortizar. Até mesmo as dificuldades impostas pelo idioma espanhol compreensio clos versos do escritor argentino nao comprometeram 0 de- sempenho da composicdo como it, pois o ptiblico muitas vezes seemociona com uma cancio cuja letra em lingua estrangeita Ihe 6 incompreensivel Prevalecem, nesses casos, apenas 05 efeitos fonéticos da palavra cantada convertidasem “pura misica” A uma melodia simples eenvolvente como ade “Tercer mundo”, a adigéo de outra letra qualquer que abordasse o mesmo tema nao faria grande diferenga, A critica Ana Maria Bahiana, num texto escrito no calor da hora, faz um comentario sutil e perspicaz sobre isso. Ao mesmo tempo em que ressalta a beleza dos poemas de Fernando Pessoa, Oswald de Andrade e Cortézar, convertidos em cangdes desse album, pergunta até que ponto eles eram realmente necessarios. E possivel que nesses casos a escolha do trio (ou do lider Joao Ricar= do) reflita certo “esnobismo de massa”, expresso cunhada por Roberto ArtCultwra,Uberandia,v 15,0. 27,p. 7-27, jul ex 2013 Schwarz para se referir criticamente a determinados procedimentos dos tropicalistas como submeter tragos dos anacronismos inerentes a sociedade brasileira aos meios técnicos mais avangados, citar obras artisticas da esfera culta a partir de circuito massificado, deslocar fragmentos de tradigdes monumentalizadas para os fluxos da moda, tudo isso resultando numa construgdo alegérica de um Brasil absurdo, No contexto pés-golpe, em que se consolidava 0 processo de modernizagao conservadora, a produgio dos baianos mostrava-se ambigua, tendendo tanto para a critica aos impasses sécio politicos culturais do pais naquele periodo como para aintegrasao a0 mercado, Mas a producio dos Secos & Molhados parecia orientada por uma intengao estratégica, ainda que amadora, na busca de legitimidade no interior do campo artistico da época. Nomes de poetas consagrados como parceiros poderiam representar uma espécie de chancela para a conquista de reconhecimento no interior do sistema cultural no qual o circulo seleto de cancionistas da MPB ocupava posico hegeménica. Portanto, aquela ambiguidade atribuida por Schwarz aos tropicalistas nao se aplica a0 trio, mesmo porque as apropriagdes e citagdes de obras literdrias presentes no repertério do grupo parecem desprovidas de qualquer sentido parodis- ‘ico. Parece prevalecer, neste caso, a perspectiva da insergao no mercado de bens culturais. Performance 2: gestus Num texto pioneiro sobre estudos de miisica popular, escrito em meados dos anos 60,0 socidlogo Edgar Morin destaca o carter sineré- ticoda cangio cujas raizes remontam a manifestagoes culturais como a peca musical, 0 music-hall, 0 cabaret e praticas festivas diversas, Apontada pelo autor como 0 “mais cotidiano dos objetos de con- sumo” da sociedade moderna, a cangao, que integra as substancias musical e verbal com todasas suas derivacdes, configura-se como produto artistico dotado de uma linguagem multidimensional, Desse modo, “sua musica arrasta-se para a danca, sua letra para teatro, e 0 conjunto musica-letra é mais que danga-teatro, algo que tem realidade molecular’. A cangio, tal como a conhecemos hoje, se constituiu como narrativa midiatica ao longo do século XX de modo indissociével dos seus meios técnicos de produgdo e reprodugdo. No periodo em que o radio atuou como principal canal de circulagao de misica popular, a face sonora des- se produto artistico ganhou supremacia. Os intérpretes se preocupavam fandamentalmente com as ténicas de emissao das notas musicais, com a exploracio dos recursos dos esttidios, com o uso dos microfones etc. O piiblico fruia a visualidade nos programas de auditério ou ao lado dos seus aparelhos receptores através da imaginacao. Foi uma época, nos termos de Krausche, da “hegemonia do ouvido” em que a capacidade de controle da inckistria sobre a recepgao do produto musical pelo puiblico mostrava- se relativamente incipiente. Na tentativa de preencher as lacunas ainda presentes nessa relagio, a indtistria da cultura utilizou de outros recursos como as publicagées voltadas para o mundo da mitsica popular, suprindo com imagens os espacos vazios que as programagdes radiofonicas nao eram capazes de ocupar.* No Brasil. porexemplo, a famosa Revista do Radio dival= gava ndo sé imagens, mas historias da vida privada de cantores e cantoras ArtCuttura, Uberlancia, v 15, 27, p. 7-27, jul tex. 2013 snecessarios?) as leteas, em ‘special as de Paulinho Men~ ‘Sones, paca pe iterate” BABIANA. ana Maria, Um saito no vase Jomal Opa, 2.98. 19ag0. 1974 op ct p18 * Cf, SCHWARZ, Roberto, Cultura © polities 1961-1965 Iie SCHWARZ. Roberto, Pri de fii utroeextudoe, Ris de Tasca Pane Tena. 1978 p 76 MORIN, Elgar No se co race a cangdo, I: Linger Gr etura de masa: teleisto ® CE KRAUSCHE, Vater. Na pista da cangdo: primeizos Tras = Revista de Inet deates, Campinas: nstitua de ‘Artes da Unicamp ano 20-1, janabe. 1987, p77, 2 artigo

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