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ha eee a a ee Te ee Se CU ae OTe ee te eae ee ha reformulagao tedrica e prética do movimento social negro contempordneo. Celebrada em vida no Brasil e no exterior, deixou wm importante legado: textos e depo doe CLO cece ee ‘res negros que lutam por justiga social e pela igualdade de raga, sexo ¢ género. Primeira biografia de Lélia, este livro acompanha sua trajetéria da inffincia humilde até # consagracio no meio politico e cultural, trazendo ain- daum levantamento de sua obra, Esta obra faz parte da Colegio Retratos do Brasil ACC an een cee ef tre € doutora em Sociologia/Estudos Urbanos pela Michigan State University (EUA) e pesquisadora dos movimentos so. Giais e da didspora africana no Brasil ¢ no mundo. O objeti SCE Oar eee ea ee ee tais da cultura, da politica e da militancia negra. Outros volumes: Abdias Nascimento + Nei Lopes + Sueli Cart Agradecimentos Os autores agradecem aos funcionéiios e dirigentes das insti- tuigdes piiblicas e privadas nas quais puderam levantar fontes ‘¢ consultar documentos imprescindiveis & realizacdo deste trabalho: Arquivo Ptiblico do Estado do Rio de Janeiro/Depar- tamento de Ordem Politica e Social (Dops), Biblioteca Nacio- hal, Biblioteca Florestan Fernandes-USP, Arquivo Nacional, Arquivo do Estado de Sao Paulo, Acervo Audiovisual da Uni- versidade do Estado do Rio de Janeiro, Centro de Estudos Alro- Asidticos da Universidade Candido Mendes e biblioteca do Ge- Jods ~ Instituto da Mulher Negra, Também a todos os que olaboraram nas etapas de entrevista, levantamento/coleta de dudos e acompanhamento durante a producéio do texto, Agra- docem aos amigos cariocas ~ Rodrigo Reduzino ¢ Joilson San- una, Vanusa e Hellen Barcelos ~ pela hospedagem e abrigo no {nicio e no final da pesquisa no Rio de Janeiro e ainda a Juliana Jrdel, Clécia Santana e Diogo Margal Cirqueira, fandamentais jo apoio em Goidinia e na leitura de trechos do livro. A Luciana Pereira e Igor Alencar, pela transcrigio das entrevistas, sendo que a primeira também leu e comentou cuidadosamente tre- cchos dos originais. A Cinthia Marques do Santos e José Paulo feixeira, pela contribuigao no ordenamento de parte do mate~ rial. Aos entrevistados que conheceram Lélia Gonzalez em momentos distintos de sua trajetdria e indicaram ou cederam outras fontes de pesquisa: em Sio Paulo, Rafael Pinto e Milton Barbosa no Rio, Ana Maria Felippe, Benedita da Silva, Elizabeth Viana, Hilton Cobra, Helena ‘Theodoro, Janudrio Garcia e Rose Marie Muraro. A Eliane Almeida, também no Rio, ea Rubens Rufino, em Brasilia, ambos sobrinhos de Lélia Gonzalez, por terem colaborado com este projeto. A Carlos Moore, que nos autorizon a.utilizar suas entrevistas com a biografada. A Nelson Inocéncio, em Brasilia, pelo fornecimento de material impres- so sobre Lélia Gonzalez, e a Schuma Schumaher, no Rio, por disponibilizar documentos relativos ao Movimento Negro Uni- ficado e ao Conselho Nacional dos Dieitos da Muller. A Carlos Alberto Medeiros e Paulo Roberto (Paulinho Boca), pelos di logos referentes & Lélia Gonzalez. ¢ outros intelectuais e ativi tas negros dos anos 1970 ¢ 1980. Pela disposi¢ao em colaborar conosco, nossos agradecimentos a Liz Ferreira (MA), Bairros (BA), Shawna Davis (BUA), Zezé Motta, jurema Werneck, Liicia Xavier e Amauri Mendes Pereira (Rl). Por fim, a Math Gato de Jesus, pela companhia e solidartedace durante a pes quisa e pelos comentarios criticos e sugesties valiosas. INTRODUGAO PARTE I + ANTES DE SE TORNAR LELIA GONZALEZ A PEQUENA LELIA A JOVEM LELIA ESTUDA E SE DESLOCA DO "LUGAR DE NEGRO” AQUELA PRETINHA LEGAL: A ESTUDANTE, ‘QUE SE COMPORTA E SE DESTACA LPLIA DE ALMEIDA: PROFESSORA, TRADUTORA BLADY PARTE II » LELIA GONZALEZ COM NOME SOBRENOME WHANSANDO A CABEGA: CULTURA, PSICANALISE BLINGUAGEM A mulher que falava pretgués + 72 DENEGROS EM MOVIMENTO AO MOVIMENTO NEGRO CONTEMPORANEO. - ” Os protestos negros + 85 MULHER NEGRA FORA DO LUGAR 95, Movimento feminista: articulagao, trocas e confrontos + 101 ‘Aexperiéncia do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher + 105 CORRENTES POLITICAS, PARTIDOS E VONTADE DE REPRESENTAGAO - us AMEFRICANA: DESLOCAMENTOS E HORIZONTES DE UMA MULHER NEGRA NA DIASPORA 127 Conscigneiade uma amefricana + 144 PARTE III + DEPOIS DE LELIA GONZALEZ MOVIMENTANDO-SE COM LILIA GONZALEZ BIBLIOGRAFIA ss APENDICE - LELIA DE ALMEIDA GONZALEZ FORMAGAO, ATUAGAO E PUBLICAGOES Introdugao Jim 1986, nas primeiras eleigies pés-ditadura militar ~ que ha- vin governado o Brasil de 1964 até 1985 -, Lélia Gonzalez, inte- Joctual, militante ¢ feminista negra e candidata a deputada fstudual pelo Partido Democratico Trabalhista (PDT), aos 51 Jos, apresentava-se & sociedade com o seguinte panfleto: Quem é Lélia Gonzaler? Peniitima de uma familia de dezoito irmaos, mae in dia e pai negro, ferrovidrio. sraduagio em Histériae Filo- sofia; pés-graduagéo em Comumicagdo ¢ Antropologia: ‘itsos livres em Sociologia e Psicandlise Militante do Movimento Negro, Fundadora do Movi- mento Negro Unificado. Vice-Presidente Cultural do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (LPCN). 4, Membro do Conselho Diretor do Memorial Zumbi. Militante da luta contra a discriminago da mulher, Primeira mulher negra eleita uma das “Mutheres do Ang’ pelo Conselho Nacional de Mulheres do Brasil, em 1981 ‘Membro do Conseho Nacional dos Direitos da Mulhet, Primeira mulher negra a sair do pas para divulyar a ver- dadeira situagio ca mulher negra brasileira. Vice-Presi- dente do I? e do 2*Seminario da ONU sobre a"“Mulhereo ‘aparthe'd” (Montrea-Canadié e Helsinque-Finkindia, 198) Representante brasileira do Férum da Meia Década da Malher (Copenhague-Dinamarca, 1980). Convidada es- pecial da ONU para a conferéncia sobre “Sangies" contra a Aica do Sul (Paris-Franga, 1981), Representante brasi leira no Semindrio “Um outro desenvolvimento com as mulheres” (Dacar-Seregal, 1982). Representante brasil ano Férum de Encerramento da. Década da Mulher (Nair6bi-Quénia, 1985), Autora de artigos (no Brasil e no exterior) livros sobte as condigdes de exploragio ¢ opressio do negro e da mulher 1. Membro do Conselho Diretor da Sociedade Intemacional para o Desenvolvimento (SID), com sexie em Rome. Professora com longa experiéncia de trabalho em esco- las, colégios e universidades; atualmente,é professora de Cultura Popular Brasileira e de Proxemia da Ponti cla Universidade Catélica do Rio de Janeiro (PUC-R)). Alex Rattse Flavia Rios 1 élia foi eleita como suplente, e muito do que se conhece @ seu respeito esté sintetizado nos pontos mencionados. Naselda em 1935 em Belo Horizonte e falecida em 1994 no Rio de Janeiro, Létia de Almeida Gonzalez. foi uma figura extre- mamente importante para o debate sobre as quiésties de raga, iwinero e classe. Antes de mais nada, ¢ preciso dizer que escrever a biogratia de Lilia Gonzalez nio é fazer 0 “resgate de uma pessoa negra que tomou conhecida no Brasil € no exterior. & bem mais que isso, pols essa intelectual ativista faz parte de um esforgo coletivo de logitimagio intelectual protagonizado pelo movimento negro & foninista no processo de redemocratizago do Brasil. Estamos ‘jontes, no entanto,de quecontar a histéria de uma pessoa negr ‘oypoeificamente de uma mulher, nos coloca na delicada posigio ide, tomando emprestadas as palavras de Jorge Luis Borges, “ava- aro perimetro dos vaziose das lacunas’ Lilla Gonzalez é verbete do Diciondrio de mulheres do Bra- ul: ds Bnciclopédia da didspora afficana e da Enciclopédia B ‘urta africana. Alguns de seus artigos sfo citados em trabalhos Sonlemporineos escritos em portugués, inglés, espanhol fHwnods, 08 quais abordam as relag aise de género. Des- MA/anO de 1999, como veremos, vasto material tem sida pro- ‘iieidlo sobre as ideias e a vida dessa ativista. Lilla é hoje reconhecida e reverenciada de varias maneiras: ‘HHoMe de um colégio estadual no bairro de Ramos (Rio de J SiO), de tim Centro de Referéncia Negra (Goidr {iyi Educacional (Aracaju). Nas ma jo Donato, sua figura virou grafite para a fachada de 0 de cultura voltado para mulheres (Guarulhos). Por Goweauee » duas vezes 0 bloco afro llé Aiyé a homenageou no carnaval baiano: em 1997, inserindo-a no tema “Pérolas Negras do Sa- ber’, e, no ano seguinte, com o tema "Candaces’. A peca Can: daces ~ A reconstrugéo do fogo, inspirada em suas reflexées, com texto e diregdo de Marcio Meirelles e realizagiio da Cia. dos Comuns, foi apresentacla em 2003, no Rio de Janeiro, nos teatros Glducio Gil e Carlos Gomes, Em 2000, a Associagdo Na- cional dos Docentes de Instituigdes do Ensino Superior (An- des) criow uma premiagio nacional em distintas dreas, sendo ‘que 0 prémio para ensaios sobre educagao e 0 negro brasileira levava 0 nome de Lélia Gonz io Paulo, a biblioteca] do Geledés ~ Instituto da Mulher Negra também receberia se nome em 2002, Lélia Gonzalez. tem sido lembrada em circuitos politico de mulheres e do feminismo. Ainda em 1994, a Revista Es tudos Feministas republicou trechos de uma entrevista sua dando-the novo titulo: Lélia fala de Lélia. és anos depois, fo realizada a Jornada Lélia Gonzalez, em Sao Lufs do Maranhio com participagao de mulheres negras femini além da presenga de Angela Davis, um dos maiores iconé uta negra norte-americana em favor dos direitos civis. E 2003, a Revista Eparrei, da Casa de Cultura da Mulher Negr de Santos, publicou matéria intitalada "Imagens de Lélia Got zalez”. No ano seguinte, aos dez anos de sua morte, a Funds ‘sao Cultural Palmares organizou, no Rio de Janeiro, a Semani Lélia Gonzalez, lez, Em Parcela sigh icativa da trajetéria e da produgio de Ll além de material escrito a seu respeito, est abrigada na or nizacdio nao governamental Meméria Lélia Gonzalez e dis “ Alex Ratts¢ Flavia Rios nibilizada no size wwwleliagonzalezorgbr, tendo sido coleta: da e organizada pela fildsofa Ana Maria Felipe, que foi sua ‘luna e amiga. Além do referido material, alguns trabalhos foram funda- mentais para a elaborago desta biografia. Nesse sentido, des- lucamos o artigo “Lembrando Lélia Gonzalez”, da socidloga Luiza Bairros (1999), ¢ as dissertagdes Enegrecendo o feminis. ‘mo ou jeminilizando a raga: narrativas de libertagdo em Angela Davis ¢ Létia Gonzalez (2005), da historiadora Raquel de An- nude Barreto, ¢ Relagées raciais,género e movimentos sociais: 0 pensamento de Lélia Gonzales (1970-1990), da cientista social Hizabeth do Espirito Santo Viana, conclufda em 2006. ‘Alem de apresentarem uma linguagem grandiloquente (pa- (i elogiar ou detrair o biografado), muitas obras também cos- lumam retratar certas personalidades como pessoas desde uito cedo predestinadas a ser 0 que se tornaram. Com Lélia Gonzalez nao corremos este risco, pois, ainda que sua vida te~ ‘nha seguido um curso de excegao para uma pessoa negra po- ne, sua trajetéria até os 40 anos ainda ndo indicava claramen- te, feminista, figura pablica nacional e internacional quieela se tornaria, Op autores deste livro no conheceram pessoalmente a iogralada; o contato foi apenas com o trabalho da intelectual ‘otivista. Cada um, na sua vida académica e militante, foi des- ‘olwindo os textos de Lélia Gonzalez, participando ou organi- ganilo eventos em que seu pensamento era discutido. Assim, {88 Porquisias e nos encontros, percebemos que havia um pti- Wlleo imenso desejoso de conhecera vida e a produgao intelec- ‘Hiab de Lélia Gonzalez. WIA Gomzntez Neste livro, a biografada aparece em parte por ela mesma, nas citagdes de seus textos, e também por meio de pessoas que foram entrevistadas ou cujos artigos e livros consultamos, Nas suas falas piblicas, algumas convertidas em artigos, suas memérias, opinides e emogdes aparecem com frequéncia, As- a fol uma das fontes fundamentais para a elaboragao desta biogratia. Hé dificuldades especificas de levantar a trajet6ria de pes- soas piiblicas que nao pertencem a circuitos hegeménicos de poder. Em geral, seu espdlio se perde ou fica disperso com amigos e/ou parentes, sendo de dificil acesso para pesquisa dores. & o que costuma acontecer com intelectuais negros brasileiros. F foi o que aconteceu com Lélia Gonzalez no que diz respeito a documentos pessoais, originais de suas publica- ‘g6es, fotografias ete. O livro foi dividido em partes e subdividido em capitulos, A primeira parte, "Antes de se tornar Lélia Gonzalez”, com preende infiincia, adolescéncia, juventude e vida adulta da biografada, de estudante a professora, antes de se tornar mi litante negra e feminista. A segunda parte, “Lélia Gonzale com nome ¢ sobrenome’, segue uma organizacéo tematic abrangendo o periodo inicial do seu ativismo (politico, ne. g70 e feminista) e sua atividade docente, politica ¢ intelee tual, de meados da década de 1970 até 1991. A seguinte, “Depois de Lélia Gonzalez”, que aborda os anos que ante deram sua morte, em 1994, compreende os significados di sua perda e a importincia de seu legado para o Brasil, p ‘o mundo e para os estudos de raga, género e classe. Ao final, 6 apéndice “Lélia de Almeida Gonzalez ~ Form: 16 Alex Ratts¢ Flavia Rios © publicagdes" condensa a trajetéria educacional, as ativi dades docentes, culturais e politicas e os escritos da biogt fada, PARTE I oe ANTES DE SE TORNAR LELIA GONZALEZ 1. A pequena Lélia Lilia Gonzalez utilizou a seguinte declaragao para JA Niais uma de suas apresentacdes puiblicas: “A barra Hi Nou uma mulher nascida de fam‘lia pobre. Mew hegro, Minha me, uma india analfubeta, Ti filhos, ¢ eu sou a décima sétima’ p lla do més de fevereiro de 1935, uma menina dntsada no cartério da jovem cidade de Belo Jilin de Aimeida, pentitima dos dezoito dla Serafim de Almeida e Acécio Joaquim de iil, que a teve aos 36 anos de idade, era iow dle ascendéncia indigena. Seu Acé- Horizonte, uma cidade planejada, 120 mil habitantes, Na antiga regionali- is portencia d regidio Este (ou Leste), ‘le Heryipe, Bahia, Espirito Santo e Rio de No que diz respeito & mae de Lélia Gonzalez, sou atestada| de dbito informa que eta nasceu por volta de 1889, no Espirito Santo. Era filha de José Serafim dos Anjos ¢ Deolinda Serafi dos Anjos. Infelizmente, no conseguimos determinar a etnia de don: Urcinda, Porém, os grupos indigenas identificados naqueld €poca eram os tupiniquins, no Espirito Santo, e os maxacalis d os krenaks, em Minas Gerais, povos que, desde o inicio do sécus 'OXX, entraram em contflito com os construtores das estrada de ferro que ligavam Minas, Bahia e Espirito Santo, So consi rados remanescentes dos chamados botocudos ou aimorés povoaram o imagindrig que, com @ imagem de “indios bravos” colonial do leste do pais. Naquele perfodo, o Estado brasileito preocupou-se ent ‘quantificar as pessoas que tinham ou nao condigdes de fala Portugués corretamente, Fez.também o registro daqueles q falavam “o Guarani e outras lingnas aborigines” (IBGE, 1940 P. 13), Amie de Léliae seus antepassados indigonas prov mente se enquadravam nessa categoria Ao mesmo tempo que valorizava a presenga de imigrant da Europa ocidental ~ parte do processo de branqueamentt da sociedade brasileira -, 0 Fstado, durante a Era Vargas! tou politicas de nacionalizagdo que se estendiam do camp educacional para a vida priblica, Uma delas foi a proibigdo d Mnguas estrangeiras on “aborigines” tanto nas escolas quant em locais piiblicos. De modo geral, esse era o quadro da dive + Compreende as fases democriticas dtatonas em que Geto Varga 'ninterruptamente presidente do pats (1930-1945), a Alex Rattse Flavia Rios Hidade étnica e linguistica: imigrantes estudando em escolas lemils ou ouvindo programas de rédio em dialeto italiano, ‘hasileiros dialogando em linguas ind/genas ow afto-brasile fi além das mais variadas formas de comunicagio utiliza dav em c Na década de 1930, a empregada doméstica negra era trata- ‘income mucama (antiga escrava doméstica). Nessa situagao idravam-se as cozinheiras, as lavadeiras e as amas de lei- {i Him 1935, embora as mulheres tivessem acabado de con- fiulstar 0 diteito ao voto, seu acesso a escola e ao mercado de Wabalho ainda exa muito precério. O voto feminino foi uma Aohquista lenta, mas progressiva, que veio de campanhas da jiinida metade do século XIX e ganhou forga no eulo AiG enio, as mulheres eram predominantemente figuras HliVidl privada, e esta é.a imagem que se tem de dona Urcinda Hof de Aimeida, Sobre as condigées de estudo e de traba- Hip tis iemais mais velhas de Lélia, o /pouco que se sabe vem de ages dadas pela propria: enas ru iodo sé uinte trabalhavam, passava da escola priméria, mesmo porque o deol6gico internalizado pela familia era esse Bilisdava-se até a escola priméria e, depois, todo mundo HA batatha |.) pra ajudar a sustentar o resto da familia Ho meu caso, o que aconteceu foi que, [por ser] uma Hltinas.« peniiltima da familia, tendo como compa- lio# de infancia os meus préprios sobrinhos [..] a visio His pais com relagdo a mim jé foi uma visio de Hacontece que nessa familia tod: eta, Draticamente. Entdo, eu tive oportunidade de estudar, fiz jardim de infancia ainda em Belo Horizonte lu, (Pereira ¢ Hollanda, 1980, 202) As barreiras de classe, de raga e de género foram duras pat toda a familia, Létia, no entanto, pode frequentar o jardim d inflincia. Naquele tempo, isso era quase uma excegio pa humanas puras. £ por abuso que fol introduzido este ter- cyclic ind eos mo no vocabulrio cientifico atual. sinha, uma irma dava um sapatinho, outra dava uma mei- 4. Grif da autora 5, Todos os grifos so dos autores. Alec Rattse Flavia Rios. HE tea conzacee nha € outra fazia 0 uniforme ete. [..] Estudei com muita dificuldade. Os livros erum emprestados pelas colegas [.] et ia estudar nas casas das colegns. Enfim, até chegar na Universidade. (Apud Viana, 2006, p. 48) ‘Ana Maria Felipe (2009, p. 8), amiga de Léa e sua ex-aluna, indica um dos trajetos que a jovern estudante negra precisou Percorrer muitas vezes entre o subiirbio e o centro da cidade: Pela lox io da residéncia, se percebe que Lélia via- jou muito no trem suburbano da Central do Brasil junto com 0 “povao" (como ditia), principalmente quando es- tudou no Colégio Estadual Orsina da Fonseca (ao lado do terminal da Central do Brasil, no centro da cidade) e no Colégio Pedro II (na avenida Marechal Floriano, também réxima & Central do Brasil) Em se tratando de uma cidade segregada, pessoas de classe média reservavam para si passeios nas paisagens cariocas ¢leitas como belas. Além da Lagoa Rodrigo de Freitas ¢ das Praias ~ Flamengo, Botafogo, Ipanema. Copacabana e Leblon ~ um panfleto de uma companhia estrangeira de distribuigdo de combustivel sugeria um trajeto pelo Circuito da Gavea, que inclufa a “Pedra Dois Irmaos' e o Jockey Clube. Ldlia ndo chegou a mencionar se conviveu com tais pessoas esses ambientes. Sabemos, no entanto, que nessa época ela estava comegando a sair dos lugares sociais predestinados & Populagao negra, que ela chamaria de “lugar de negro’ Alex Rate Flavia Rios 3. Aquela pretinha legal: a estudante que se comporta e se destaca Para a classe média, a década de 1950, com o fim da Segun- da Guerra ea transformagao dos Estados Unidos em poténcia. mundial ~ 0 que, alids, acabaria influenciando o comporta: mento € 0 consumo -, ficou registrada na meméria como 0 perfodo dos “anos dourados’, A partir de 1950, ano em que o estédio do Maracana foi inaugurado, o Rio de Janeiro se tornou sindnimo de Brasil. {utebol foi transformado em esporte nacional, e em 1958 0 pais, enfim, ganhou a Copa do Mundo da Suiga. No que se refere & miisica, especialmente, havia uma es écie de intercdmbio (ainda que desigual) entre os sambistas ~ que desciam 0 morro durante 0 carnaval e para gravar dis- os em estiidio ~ e os jovens artistas “da cidade” ~ que su- biam 0 morro querendo se tornar sambistas. Em paralelo, entre os apartamentos da Zona Sul iniciou-se uma movi- mentacdo musical que daria origem & bossa-nova - em que se podem destacar artistas negros como Leni Andzade e Johnny Alf, que comegavam a tocar no ridio e a ganhar 0 ‘coragiio dos brasileiros, Adolescente e jovem nesse periodo ~ e convivendo com co- legas da classe média -, quais teriam sido as formas de lazer e de entretenimento de Lélia? Que locais ela frequentava? Que tipo de misica gostava de ouvir? Suas entrevistas nos transmitem a imagem de uma moga timida, reprimida, que, de certo modo, se contrapés ao catoli cismo familiar, mas acabou se afastando da comunidade ne- gra. Ao ser questionada sobre o seu relacionamento com 0 ‘movimento negro, Lélia respondeu: Meu relacionamento era sempre uma coisa estranha. Quanto mais vocé se distancia de sua comunidade em termos ideolégicos, mais inseguro vocé fica e mais vocé internaliza a questao da ideologia do branqueamento. Voc® termina criando mecanismos pra vocé se segurar, houve, por exemplo, uma fase que eu fiquei profunda- ‘mente espiritualista. Era uma forma de rejeitar meu pré- prio corpo. Fssa questo do branqueamento bateu muito forte em mim e eu sei que bate forte em muitos negros também. (0 Pasguim, 1986, p.9) Em outro momento, ao ser indagada ~ de modo um tanto im- proprio ~ sobre seus relacionamentos afetivos, ela respondeu que foram poucos, contextualizando-os: ‘Meu primeiro namorado era negro, morava no subiir- bio; eu também tive um namorado branco, Mais tarde & ae Alex Rats e Flavia Rios que fui namorar de verdad, eu sempre fui muito témida e eraaltamente reprimida, Ao mesmo tempo, en tinha uma responsabilidade, a minha mae me sacou muito cedo, foi nessa época que resolv fica espirita, eu nao aceitava essa histéria de padre ficar mandando na gente. Eu era muito catélica e fui fazer confissio, mas eu me rebelei contra isso e virei espirita, e minha mae era catélica fervorosa e niio aceitava de jeito nenhum, e eu resistia violentamen- te, A barra ld em casa sé era aliviada pelo meu irmao. (0 Pasquim, 1986, p.9) ‘Ao que parece, a timidez da jovem negra néo era somente uma questo de comportamento, sem ligagdo com o tema da raga e © contexto social. Tinha muito que ver com uma longa trajets- ria pessoal que marcava seu trinsito entre os espagos familiar, escolar e piiblico. Morando no subiirbio, estudando de forma ‘aplicada’, cla se afastaria da trajetéria de muitas jovens negras e pobres, No entanto, de vez, em quando, seu comportamento recatado - ou mesmo reprimido ~ era permeado por momen tos em que ela se destacava das coleyas. Subre a recusa dos valores religiosos de sua mae e de um erescimento pessoal que a levaria longe, Lélia comentou: Um dia minha mae chegou pra mim e perguntou o que eu estava estudando: eiéncias, biologia, reprodugao. Af ela olhou pra mim e entao saiu, depois deu uma volta e disse: “De hoje em diante eu ndo tomo mais conta de voc. néo’. Ela me deu uma responsabilidade sobre mim mesma e isso refletiu em termos do meu erescimento intelectual: por ‘outro lado, do ponte de vista afctiva, entrou uaa interion- zagiio do racismo, ew nilo queria saber de homem perto de ‘mim. Todos os meus colegas no colégio e na faculdade eram somente coleyas, nada além disso, (0 Pasquim, 1986, p.9) Nesse periodo, Létia investiu na formagaio académica: concluitt bbacharelado e licenciatura em Histéria e Geografia em 1958, Por volta dos 28 anos. na recém-criada Universidade Estadual da Guanabara (atual Universidade do Estado do Rio de Janci- ro). Em 1962, concluiu, na mesma instituigéo, o curso de Filo- sofia ‘Quando completow.a segunda graduagéo, Léia estava com 27 anose aindaera solteira, o que a fazia destoar das mogas da época. Isso talvez indique um momento especifico de percep: cdo das barreiras de classe, raca e ginere: de um lado estava a Jovem que se conformava aos padries; de outro, a que recusava um roteiro tragado. Na observagao de Bassanezi (2006, p. 609), ser mic esposa e dona de casa era considerado 0 destino natural das mulheres. Na ideologia dos Anos Dourados. ‘maternidtade, casamento e dedicagio ao lar faziam parte daesséncia ferinina: sem histéria, sem possibilidades de contestago. Conforme Lélia completava sua trajetdria edlucacional, ia se enquadrando num contingente restrito de pessoas negras escolarizadas. Para compreender melhor esse quadso, reto- memos algumas informagdes estatisticas e consideragies sociolégicas. o Alex Rattse Hava Rios Com base nos censos de 1940 € 1950, 0 sociélogo Carlos Hasenbalg (2005. p. 193) demonstra como se estreitavat 0 “gar gale" das oportunidades educacionais para nio brancos. “Em 1950, os brancos ~ representando 63,5% da populagao total ~ detinham 97% dos diplomas universitérios, 94% dos secundé tos e 84% dos diplomas da escola primaia” Esse cendrio néo traduzia somente uma situagio de desi- ualdade racial:o sistema educacional era muito discrepante entre negros ¢ brancos, isso resultava na dificuldade de aces- so da populagiio negra & escolaridade e & ascensio social, Tal “pressio’ nio vinha apenas dos proprios familiares e vizinhos, ‘mas também de Onus acumulado com a discriminagao racial e dle ginero. A sociedade da época nio estimulava as mulheres a cursar 0 ensino superior. Fazia 0 mesmo com as pessoas ne- gras, mals ainda com as mulheres negras. Ao se inserir em uma paisagem na qual a cor da pele ia clareando & medida que se passava do espago escolar para 0 démico, Lélia experimentava também as exigtncias dese enquadrar no que se referia ao comportamento. Sobre sua passagem de estudante a professors, Lélia dizz Na faculdade eu jd era uma pessoa de cuca, ji perteita- mente embranquecida, dentro do sistema. Eu fiz Filosofia e Hist6ria.£ a partir da comecaram as contradigies. Voc en- quanto mulher ¢ enquanto negra sofre evidentemente um processodediscriminagio muito maior E claro que, enquan- to estudante muito popular na escola, como uma pessoa le- al, aquela pretinha legal, muito inteigente, os professores sgpstavam, esses baratos todos... (Gonzalez, 1979, p. 202-8) WE teua coven Para a coletividade negra de origem, especialmente a fa- miliar, “embora a fungio de professor nos rendesse status € respeito, ser ‘demasiado erudito' e intelectual significava que corriamos o risco de ser encarados como esquisitos, es tranhos ¢ talvez mesmo loncos” (hooks, 1995, p. 465), Para bell hooks, esse aprendizado ocorreu desde crianga, quando sabia a importincia de ser “inteligente’, mas nao “inteligen te demais", porque “ser demasiado inteligente era sindnimo de intelectualidade, e isso era motivo de preocupacio. so- bretudo se se tratasse de uma mulher” (idem). Sabemos que, esse ponto, Lélia se distanciou da mae e dos irmaos. No entanto, como veremos. ela permaneceu, de alguma mane Fa, proxima deles. ‘No que se diz respeito & normatizagio do corpo e da com- Portamento das estudantes (e também dos mestres), Guacira Lopes Louro (2006, p. 461) observa que isso ocorria por meio de uma série de dispositivos, a exemplo de exames piiblicos, Premiagées, solenidades, normas de obediéncia a superiores, regras de pontualidade, assiduidade, regularidade e ordem: “Construfa-se uma estética e uma ética. Uniformes sbrios. avessos a moda, escondiam os corpos das jovens, tornando-o« praticamente assexiados, ¢ combinavam com aexigéncia de ‘uma postura disereta e digna’. Ebem provavel que Lélia, como estudante, percebesse ape ‘nas em parte os elementos dessa construcio pessoal ¢ corpd- ‘ea. Ela certamente viveu a continuidade desse processo a0 se transformar em professora, profissional que deveria ter uma postura exemplar: a Alex Rattse Flavia Rios (O mesmo valia para as professoras: como modelos das ‘estudantes, as mestras deveriam também se trajar de modo discreto esevero, manter maneiras recatadase silenciar so- bre sua vida pessoal. Ensinava-se um modo adequado de se comportar de falar, de escrever, de argumenta. Apren- iam-se 0s gestos ¢ olhures modestos e decentes, as formas spropriadas de caminhar e de sentar. Todo um investimen: to politico era realizado sobre 0 corpo das estudantes ¢ mestras. Através de mitiplos dispositives e priticas ia se criando um jeito de professora. Aescola era, entio, de mui- tos modos incorporada ou corporificada pelas meninas ¢ mulheres ~ embora nem sempre na dirego apontada pelos ‘ais, j que essas ovens também constitufam ts resisténcias na subversio dos regulamentos. na transfor- magio das priticas. (Louro, 2006, p.461) discursos of De qualquer maneira, pode-se dizer que essa foi uma experién- cia vivida intensamente pela jovem Léa de Almeida. Tendo ‘em mente o horizonte racial da sociedade brasileira, ela, em consoniincia com outros autores, chamari esse proceszo de “embranquecimento’ ou “branqueamento’ Muitos intelectuais negros brasileiros discutiram 0 quese- ria tal proceso. Abdias Nascimento, em Genoeidio do negro brasileiro (1978), compara-o as nogdes de assimilagio e acul- turaciio, ¢ lista elementos que o compdem: a auiséncia da me- méria e da histéria da Africa e de referéncias adequadas a0 aftieano ¢ ao negro no sistema educacional, ineluindo « uni- versidade: a “estética da brancura’, ou seja, a predilegao pelo modelo branco de beleza, arte e cultura e a concomitante rejel- WB stun cowener a ‘so no que se refere ao africano e ao negro; @ insisténcia na interpretagio das relagdes raciais brasileiras como harméni- cas e Sem espaco para a expressio politica e cultural negra: a reproduciio de esteredtipos raciais (e sexistas):e.por fim. o de sejo de ser o Outro: branco, europeu, colonizador, ocidental. Nenhuma experiéncia pessoa! ou social é vivida numa via de mao tinica. Ao mesmo tempo que Lélia, na maturidade, re- Pensava o proceso de brangueamento vivido na juventude, também é possivel perceber que ela experimentou uma critica Seu comportamento e a sua postura sociale racial. Ao adentrara “torre de marfim’ que era a universidade bra: sileira ~ pensada “por” e“para’ as elites -.a moga negra deveria s¢ moldar ainda mais. Entretanto, ndo foi bem isso que acon: teceu com Lélia. Ela cursou duas graduagées que. posterior: mente, foram retomadas em suas atividades de intelectual e ativista, Tornou-se fluente em francés ¢ também estudou in ales e espanhol. Foi uma fase de contradigdes, Nessa trajetria ‘académica, Lélia distanciou-se cada vez mais da realidade das mulheres negras de sua faixa etiria e origem social. De um lado, ela era timida e reprimida. mas. de outro, uma estudante que se destacava. Indicagdes, portanto, de que “aquela pret ‘nha legal” ndo pararia por alisiria bem mais longe. Na segunda metade dos anos 1950, no governo de no Kubitschek, Brasilia foi construida. Em 1960, ocorreu a transferéncia da capital do pais. A cidade do Rio de Janeiro, que continuava crescendo ~ especialmente com a migragio de nordestinos ~. de 1960 até 1974 foi transformada em Ks. tado da Guanabara, um dos raros casos de cidade-Estado no século XX. “a Alex Rattse Havia Rios % Quando Lélia conchiit sua formagdo em Filosofia, o presi- dente era o gaticho, trabalhista e popalista Joio Goulart. Uma verdadeira “agitagio social”, para usar termos da época, mar- cava um periodo em que se destacam as chamadas “reformas de base": educacional (combate ao analfabetismo, reform uni- versitiria segundo 0s auspicios de Darcy Ribeiro, Ministro da Educagio. e ampliagio do Método Paulo Freire), agréria e ur- bana, entre outras. 4, Lélia de Almeida: professora, tradutora e lady Acestudante Lslia foi também se profissionalizando como pro- sora. Em seu curriculo, consta vasta atividade docente (Via- 2006, p.546): + Colégio Piedade (1962) * Colégios Andrews (1963) + Colégio Santo Indcio (1968) # Colégio de Aplicagio da Universidade Estadual da Guana- bara (1963) + Instituto de Educagaio e Centro de Estudo de Pessoal do Exér ‘ito Brasileiro, no Forte de Duque de Caxias (1967-1958) Asdisciplinas que Lélia lecionava eram: filosofia, histéria da edueagiio ¢ histéria moderna e contemporiinea. Logo apés « segunda graduagdo, ela comega a trabalhar como profes- sora universitdria, dando aulas em instituigdes piblicas ¢ privadas: A carreira docente de Lélia comegou no ensino supe- rior, precisamente em 1963, nas Faculdades de Filosofia de Campo Grande (Feuc) e Filosofia, Ciéncias e Letras da UEG, mas sua atuago ganhou maior destaque na Univer- sidade Gama Filho e nas Faculdades Integradas Estéclo de $4, na qual exereeria as fungdes de coordenadora do Departamento de Estudos e Pesquisas do Centro Cultural (1973-1974), vice-diretora da Faculdade de Comunicacao (1973-1974) e diretora ce Departamento de Comunicagio (1974-1975). (Viana, 2006, p. 54) da, peruca lisa e penteada para tris, aparece no retrato usando um vestido claro, na altura do joelho, decote discreto. Na mio esquerda, bolsa e luvas. Nos pés, sapato de salto médio, Suas alunas vestem blusas de mangas curtas e saias também na al- tura do joelho. Quase todas as jovens estudantes, brancas ou egras, estas tltimas em minoria, apresentam-se com perucas ou penteados lisos ou alisados. Sobre essa atividade de educadora, Ana Felippe (2009, p. 8) escreveu: Pela inteligéncia e conhecimento que demonstrava hha argumentago e por sua capacidade de comunicar ¢ instigar alunos ¢ alunas a reflexdio, a professora negra foi ‘muito bem recebida em escolas confesstonais, tendo sido, também, professora convidada no Centro de Estudos de Pessoal do Exército Brasileiro por alguns anos, Consultando entrevistas éa prépria Lélia, podemos coneluir que sua aceitacdo em escolas religiosas ou militares se dava pela mescla entre a estudante/professara que se conformava 08 padrdes de comportamento e, a0 mesmo tempo, aquela que se sobressaia nos estudos, reflexdes e argumentagées, Em uma das fotos do acervo pessoal de Ana Felippe, relati- vai sua formatura no Colégio Estadual Professor Clovis Mon- teiro, no subtirbio de Manguinhos, a professora Lélia de Almei Fonte: Acervo pessoal de Ana Feippe. No jogo das relagdes raciais brasileiras,a textura do cabelo um indicador do pertencimento etnorracial. Nesse sentido, no processo de desquilificacio social de pessoas negras, existe ccerta pressio sobre mulheres e homens para que “controlem’ os cabelos crespos e/ou volumosos. Com Lélia nfo foi diferente: “ Alex Ratts ¢ Flavia Rios. BE tea conzauez © cara dé um jeito assim... passa umn creme rinse, fica mais claro, di uma esticada no cabelo, tudo bem_.E-eu nao quero dizer que eu niio passei por isso, porque eu usava peruca, esticava 0 cabelo, gostava de andar vestida como ‘uma lady. (Pereira e Hollanda. 1979, p. 203) ‘Ocabelo ~ com outros elementos, comoo vestudrio - compoe «4 corporeidade pessoal em suas miltiplas leituras no espaco piiblico e privado, Nesse sentido, apesar da divulgacao, nos ‘anos 1960, de penteados afro ou black power, especialmente se- guindo uma moda americana, muitas mulheres negras usaram ‘0s mesmos artificios para que o cabelo, “sinal mais tangfvel da ‘sua ferninilidade” (Perrot, 1998, p. 138), ficasse ou parecesse liso, no maximo com algumas ondulagdes. As garotas-propaganda que apareceram na televisdo nos anos 1950, por exemplo, eram bbrancas ¢ usavam penteados e vestidos “comportados’. Se o corpo da mulher negra é puiblico, como Lélia Gonzalez diria anos depois, o que esperar da professora negra que esté na escola e, especialmente, na sala de aula, diante dos olhares de gestores, colegas e estudantes? Além ée lecionar filosofia, Lélia estava fazendo incursies pela rea da comunicagio. Assim, abri outros campos de tra- balho. Entre 1966 e 1970, traduzin do francés para o portugués tts livtos que foram utilizados em cursos de flosofia em todo © pais, conforme enumera Viana (2006, p. 51): Curso moderno de filosofia 1966). Compéndio moderno de flosofia (1968) His ‘éria dos fldsofosiustrada pelos textos (1970), Aatividade de tradutora indica sua fluéneis na lingua fran- cesa.e também chama atengio para o seu interesse ern floso: 80 Ales Rats ¢ Flavia Rios fia. Ainda que ela tenha dado continuidade a um processo de afastamento de esferas populares e negras, mais uma vez @ professora se destacou entre seus pares. nao somente portra- duzir livros que seriam reeditados e permaneceriam em caté- Jogo durante muitos anos. ‘Um detalhe importante é que tudo isso ocorret nos primei- ros tempos da ditadura militar. O golpe de 1° de abril de 1964, que na época foi proctamado como “Revolugaa de 31 de Mar- 07, teve, segundo Almeida e Weis (2007), uma primeira fase, que drow até 1968, Nesse periodo, apds uma perseguigiio ini- cial a liderangas politicas. houve relativa liberdade de movi- mento pans os opositores do regime. Para o segmento resistente de classe média, foi criado “um circuito denso e ativo, que in- cluia a atuagdo na imprensa, na érea cultural, especialmente emteatro e miisica, nasescolas e universidades” (idem, p.328-9). Vale lembrar que foi nessa época que Létia ministrou aulas no Centro de Estudo de Pessoal do Exército Brasileiro. no Forte de Duque de Caxias. Outras mudangas significativas também ocorreram na vida privada e piiblica de Lelia nesse perioda. Ela se casou com Luiz Carlos Gonzalez, colegs de faculdade de origem espanhola também formado em Filosofia pela Universidade do Estado da Guanabara. Nesse instante, ela parece se tornar uma sintese do ‘projeto oficial” do Brasil das trés ragas: pai negro, mike in- dia, marido branco, Contudo, nao é dessa forma que ela se co- Jocard maisa frente, A polarizagéo das relagées raciais no Brasil entre negros ¢ brancos aparece nitida em sua narrativa do casamento diante da oposigao da familia de Luiz. Carlos: MB veuis cowzavez Mas quando chegou a hora de casar, eu fai me easar com um cara branco. Pronto, dai aquilo que estava repri- mido, todo um processo de internalizagio de um discur- s0 da “democracia racial” veio tona, e foi um contato direto com uma realidade muito dura. A familia do meu marido achaya que 0 nosso regime matrimonial era. como eu chamo, de “concubinagem”, porque mulher ne- gra nio se casa legalmente com homem branco; é uma ‘mistura de concubinato com sacanagem, em iitima ins: tncta. Quando eles descobriram que estévamos legal mente casados, ai veio 0 pau violento em cima de mim: claro que eu me transforme! numa “prostituta’. numa “negra suja"e coisas desse nivel_. Mas meu marido foi um cara muito legal, sacou todo 0 procesto de discriminagdo da familia dele ficamos juntos até sua morte. (Pereira € Hollanda, 1979, p.203) A familia de Luiz Carlos provavelmente esperava que ele se casasse com uma jovem de seu status social. Apesar da apa rente liberdade dos homens, especialmente os brancos de classe média (Bassanezi, 2006), a eles também eram impos- tas fronteiras para a formalizacdo de suas relagdes pessoais eafetivas, Segundo Lélia, foi o marido que, interessado em questies politicas, a despertoa para um mundo do qual ela vivia afasta- da. Ele, no entanto, teve descompassos pessoais e cometeu suicidio, 0 confronto com a familia de Luiz, Carlos ea morte deste marcaram a vida de Lélia, que decidiu manter 0 sobreno: me domarido: ” Alex Hats lavia Ros: Liz Carlos fol muito importante na minha vida |..) ele rompeu com a familia, ficou do meu lado e comegoui 8 questionar a minha falta de identidade comigo mesma. Isso di [.]. por isso eu tenho orgutho de trazer 6 nome dele. Fu nunca troquet o meu nome, podia estar com 0 ‘meu nome de solteira, Létia de Almeida, mas ¢ uma home- ‘ager que ex presto. esse homem branco tivo sofrido ‘essa pessoa demonstrou uma solidariedade extraordindria {J ¢ foi a primeira pessoa a me questionar com relacio ‘80 meu préprio branqueamento. (Depoimento extraido de Projeto Perfil ~ sia Gonzales) Pode-se dizer que Lélia experimentou uma relativa ascen- io social, que ainda nio se refletia em agio politica. Mas ela conheceria, aos poucos. um proceso mais radical de trans- formacdo pessoal. A incluso do sobrenome Gonzalez, que pstituiria definitivamente o Almeida, fez parte dessa trans- formagiio de Lélia e de sua figura priblica. Ainda na década de 1960, Lélia teve outra perda em sua Vida pessoal:em 1967 faleceu sua mie. mulher que ela. tempos depois, relembrou com carinho: Mas enfim: voltei is origens, busquei as minhas raivese Passel « perceber, por exemplo, o papel importantissimo que minha mie teve na minha formacéo, Embora india e ‘analfabeta, ela tinha uma sacagio incrivel a respeito da eal dade em que née viviamos e, sobretucio. em termos de rea- lidade politica, E me parece muito importante eu chamar a tengo para essa figura, a figura de minha mae, porque era MG Leu conzatez uma figura do povo, uma mulher lutadora, uma mulher in- teligente, com tima capacidade muito grande de percepy:io ‘das coisas e que passou isso para mim...que a gente nio pode estar distanciado desse povo que esti ai, eno a gen- te eal numa espécie de abstracionismo muito grande. fica- ‘mos fazendo altas teorias, ficamos falando de abstracées.. Enquanto 0 povo esté numa outra, esté vendo a realidade de uma outra forma. (Pereira e Hollanda, 1979, p.203) Depois de duas perdas pessoais significativas, a professora se seriu em circuitos sociais e politicos. por meio de reunides feitas em sua casa on na de professores, como na de Lincoln Penna, Na segunda fase da ditadura militar, quando se acirra- Fam as perseguigdes a potenciais opositores do regime, 0 ar- quivos do Departamento de Ordem e Politica Social (Dops) registram, conforme Barreto (2005, p. 24), as seguintes ativida- des “politicas” de Lélia: As informagies sobre Ldlia aparecem pela primeira vez ‘nos fichdrios do Dops em 1972, quando era professora de flosofia na Universidade Gama Filho. Nessa ocasiio, fol solicitada a averiguagio sobre seu possivel envalvimento ‘no “recrutamento de adeptas A douitrina mareista na cita da universidade. No entanto, nada foi comprovado apés a investigagio. Com base nos depoimentos recolhidos para {6 Lincols de Abreu Penna, riltante comunisa, fo presente do Ditoeio Contraldos Esudantesda UGE e naquela stg no ano de 1968. Hoje. &pofenice titular do Programa de Ps Gradaago em Histra do Brasil da Universidade Salgado do Olivia s Ales Rats ¢ Flavia Rios 4 pesquisa, pressuponho que o reerutamento teria alguma relagio com a pritica de reuniées na casa de Lélia para discussie filoséticas. ‘Ao que Viana (2006, p. 55) acrescenta: Devido a sua atuagio intelectual, Lélia, em 1972. ja chamava atengiio dos érgios de seguranca. pois estaria, segundo informagiies, “desenvolvendo trabalho de massa na UGR, buscando recrutamento de adeptos & doutrina marxiata jantamente com o Professor Lincoln Penna’? Para utilizar os termos da época, 0 estudante e professor era um agitador. ao passo que Lélia de Almeida, aos 37 anos, esta- va comegando seu processo de insurgtncia. Ao escolher o sobrenome Gonzalez. como marca de seu in- g7esso numa nova concepeio de mundo, no qual o racismo se tornou um componente fundamental para seu autoconheci- mento e sua compreensio da realidade, a professora nos mos- tra 06 eaminhos doloridos que fizeram Lélia de Almeida, “a pretinha legal ¢ a Jady”, sair de cena para dar espago a intelec- tual ativista. ‘om base no seguinte documento consutaco pela autora: Prontudrion, 19930, setor "COMUNISMO’, pasta 112.210 MB scun conzatez PARTE Il up LELIA GONZALEZ COM NOME E SOBRENOME 5. Transando a cabega: cultura, psicandlise elinguagem 0 confronto com a familia de Luiz. Carlos Gonzalez e, posterior- ‘mente, o seu suicidio, deflagraram em Lélia, segundo ela mes- ‘ma, um franco proceso de busca e reconstrugdio pessoal iden- Utdria. No final dos anos 1960, ela se casou novamente, dessa vez.com Vicente Marota, definido por ela como “mulatc': Depois dessa experitneta traumética que eu tivecom 4 familia do Luiz. Carlos e com 0 sew suicidio, houve o ‘meu segundo casamento, Eu me casei com um rmulato Pai branco e mie negra ~,como se dizna Bahia, um tinta fraca. Ele tinha uma ideologia de classe, néo gostava de breto..ndsficamos juntos durante cinco anos, eta engra- ado, porque, enquanto eu estava em busca de mim mes- ‘ma, ele procurava fugir de si proprio, apesarde a gente se {gostar muito, arelagdo da gente ndo estava combinando, Agente se separow e minha cabeca dangou, afinal eu fui asada com um cara branco, de origem espanhola, que ddava todo apoio questo racial, e quando eu caso.com lum cara de origem negra, ele néo tem essa solidariedade, le disfaryava esse lado. Eu fui parar no psicanalista. (O. Pasquim, 1986, p. 10) LLélia interpretoa as atitudes do segundo marido por meio de marcadores corpéreos que indicam pertencimento racial, a ‘exemplo do cabelo alisado, componente que seria importante na sua reconstrugao pessoak Depois veio o segundo casamento, com um mulato que hoje é branco, transou uma esticada nos cabelos etc. ¢ tal . 6 visto como um cara branco. Hoje tode mundo olha para cle... porque a percepgio da questio da ascendén- cia racial €altamente disfargada, né? (Pereira e Hollanda, 1979, p.203) Em 1979, sendo a tinica pessoa negra entrevistada para o livro Patruthas ideoldgicas, que continha depoimentos de artistas, intelectuais e militantes, Lélia rememorou e ‘conjugou sua bus- cadapsicandlise e da culturanegra, especialmente do candom- bié. Isso aconteceu apés sua “tomada de consciéncia” racial ¢ de géneroe dianite da critica aos circuitos que pertencia: Tive que parar num analista, fazer anilise etc. tal. © @ andlise neste sentido me ajudou muito. A partir dat ful transar meu povo mesmo, ou seja, fal transar candomblé, ‘macumba, esas colsas que eu achava que eram primiti- vas, Manifestades culturais que eu, afinal de contas, com Alec Rattse Flavia Rios ‘uma formacio em filosofia, transindo uma forma cultural ‘ocidental to sofisticada, claro que no podia olhar como coisas importantes. Mas enfim, voltei as origens, busquei asminhas raizes[..(idem) Nesse momento de su que te tornaria mais uma de suas dreas de formagio: Meu lance na psicanilise foi muito interessante, a pst candlise me chamou a atengdo para meus préprios meca: nismos de racionalizagio, de esquecimento, de recalea- mento etc. Foi inclusive a psicandlise que me ajudou neste processo de descobrimento da minha negritude. {_] Come- cel fazendo anélise com Carlos Byington, que é jungiano {sic}. (0 Pasquim, 1986, p. 10) sim como Lélia Gonzalez entre 1973 e 1975, ‘A busca pessoal de Lélia e seu encontro com psicanalistas ‘acabaram ecoando na abordagem sobre a cultura feita por es ‘ses profissionais ao se voltarem para expressdes como umban- da, samba e carnaval, como aponta Betty Milan em entrevista, WB euia conzaixz trajetéria, como ela prépria reiterou em entrevistas e artigos. Lélia aproximou-se da psicanilise. Em 1975, junto com Magno Machado Dias (mais conhecido como MD Magno) e Betty Milan, diseipulos ¢ anslisandos do Psicanalista francés Jacques Lacan, ela participou da Fundagdio Coligio Freudiano do Rio de Janeiro, que viria a ser um dos Principals centros de propagacdio do pensamento psicanalitico em sua vertente lacaniana no pafs. MD Magno foi professor das Faculdades Integradas Estécio de Sa entre 1971 e 1975, as- Quando indagada se a teoria lacaniana havia sido reinvent ‘no Brasil, ela respondeu Partindo do trabalho desses psicanalistas, especialmente do livro Améfrica ladina, de MD Magno, Lélia formulou a ideia dg uma América afficana ou Amefricana (Gonzalez, 1983: 1988), bbaseada na concepio de que uma das singularidades do cone tinente residia, em grande parte, na participagao africana na sua formago cultural e social ~ ¢ nio na reiterada evocago Nilo diria que a teoria foi reinventada, ¢ sim que tive: ‘mos de reinventar a pritica dos analistas, a prttica senso lato, para nio ficarmos marginalizados. O recurso a im= Prensa, no fim da década de 1970, ¢ um exemplo disso, Outro exemplo é 0 trabalho de pesquisa dos analistas nos ‘cultos umbandisticos ou nas escolas de samba. Além de traduzir e ensinar Lacan, nés nos aliamos do nosso co- ‘nhecimento psicanalitico © da nossa escuta pars saber ‘qual era a especificidade da cultura brasileira, 0 que a di- ferenciava da cultura europeia ¢ das outras culturas lati- de uma latinidade. Na segunda metade dos anos 1970, Lélia mergulhou nesse Processo de discussio e elaborasio pessoal ¢ intelectual, seme pre baseada em Lacan. Um dos canceitos abordados por ela fo (ode nomeagiio do sujeito ~ quando se usam determinados ter~ ‘8 Disponivel en: . Acesso emt: 24 jan. 2010 Aes Ratts¢ Flavia Bios i para identificar os individuos, Vejamos um exemplo, dado ‘Alia, a wespeito de mulheres negras oriundas das classes, es que conseguiram ascender socialmente: Neste sentido, vale apontar para um tipo de expe comum. Refiro-me aos vendedores que bate & porta da minha casa \do abo, perguntam gontilmente: “A m: - Sempre Ihes respondo aque & madame salu €, mais uma vez, constato como so- hos vistas pelo “cordial” brasileiro. Outro tipo de pergun- Ju que se costuma fazer, mas af em lugares piblicos *Voct trabalha na televisio?” ou “Voc’ é artista?” E a gen- te sabe o que significa esse “trabatho’ ¢ essa “arte”, (Gon: flex. 1983, p. 228) Héncin mm ijn meados da década de 1970, Lélia Gonzalez se aproximou ilo candomblé. Por meio de seus textos, no inicio dos anos 1980, a encontramos inteirada (e inteirando-se) da cosmologia da religido dos orixés. Vejamos o que ela diz no preficio a0 fivro de poemas de Abdias Nascimento, Axés do sangue ¢ da foperanca (ortkish De Bx a Oxali, em terras africanas ou da didspora, 0s orikis/poemas se seguem. cumprindo os procedimentos do ritual nag6/bantu. Em linguagem ocidental, dirfamos que este 60 modo de estrutucagio do liv. [| No xiré de sua vida, nosso griot canta muitos outros kis, dangando-os ao ritmo do opanijé do ijexé, do alujs, do adarrum e tantos outros, ao passar por terras miticas WB ttn consater C/ow reais, Deles aqui nao fale para nao ser repetitiva on Por efeitos de minha prépria timitagdo. (Gonzalez, 1983p, p79) 0 candomblé se tornow uma referéncia pottics e imagética para Lélia Gonzales, presente aqui e acolé nos seus textos, in-

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