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———— ox ie r ESTA OBRA BENEPICIOU DO PROGRAM 1a Cultura Francés e Europeus OUVRAGE PUDLIE AVEC LE SOUTIEN DU PROGRAMME D'AIDE ALA TRADUCTION ET A I Centee National du Inst et Buropéennes Para Fabien Eboussi Boulaga, Jean-Francois Bayart Peter L. Geschiere ‘riruzo omsarat Pol navisko L Baptista Coelho contengho oRAricé Fi pacINAGhO Rita ramxsssio Guide omsnigHt © 2016 fiditions de La Découverte, Paris | wwwalfaiataria.ong ‘o sory Antigona | Direitosreserados para Portugal foram fecundas fontes de inspiragio e, muitas vezes sem © saberem, interlocutores da linha da frente. ‘Agradeco aos meus colegas do Johannesburg Workshop in Theory and Criticism (WTC), LeighAnn Naidoo, Zen Marie e Kelly Gillespie por terem sido figis companheiros, wecim como a Najibha Deshmukh ea Adila Deshmukh pela sua profunda amizade. G anew editor Hugues Jallon e sua equipa, Pascale Iti, ‘Thomas Deltombe e Delphine Ribouchon, foram, como hab: tualmente, um infalivel apoio. Dedico este ensaio a um homem para lé dos nomes, Fabien Bboussi Boulaga, ea dois amigos indefectiveis, Jean-Francois Bayart e Peter L. Geschiere. 1 ASAIDA DA DEMOCRACIA 0 objecto deste livro é contribuir, a partir de Africa, onde vivo e trabalho (mas também a partir do resto do mundo, fque nao deixo de percorrer), para uma crits do nosso fempo — um tempo de repovoamento e de globalizacao do tnundo sob a égide do militarismo e do capital e, com? der ‘adeira consequéncia, um tempo que promove & saida da “Jemocracia (ou a sta inversio) Para levar adiante est® PF” jecto, adoptaremos uma abordagem transversal, atenta aos res motivos da abertura, da travessia e da circulacto. Tal diligéncia s6 sera frutuosa se proporcionar uma leitura regressiva do nosso presente. Fla parte do pressuposto segundo o qual qualdusr Vi dadeia desconstrugao do mundo actual comega pelo total saan shecimento do estatuto forcosamente provincia JO y vceo diseurso e do caracter necessariamente regional dos osees conceitos ~ e, portanto, por uma critica a todas as formas de universalismo abstracto. Ao fazer isto, tenta row per com a mentalidade vigente que sabemos defender 0 fe- vhamento e toda a espécie de demarcacbes, a fronteira entre fguie acola, o proximo eo distante, ointerior © 0 exterio% caevinde de Linha Maginot para grande parte daquilo ave passa hoje por Ver Walter Johnson, River of Dark Dreams. Slavery and Empire in the Catton Kingdom, The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge, MA, 2013. 4+ Encontra'sein Richard S. Dun, A Tale of Two Plantations. Slave Life and Labor in Jamaica and Virginia, Hatvard University Press, Cambridge, 2014, tama andlise comparada desta instituigo. 23 que vivem actualmente na ociosidade aqui, que representam um peso, uma carga, e ndo pertencem a este reino, seriam postos a trabalhar, como os seus filhos de doze ou catorze anos, ou mais, seriam afastados da ociosidade, fazendo toda a espécie de coisas fuiteis, podendo vir a ser boas merca- dorias para este pais», escrevia, por exemplo, Antoine de Montchrestien no seu Traité d'économie politique no inicio do século xvii. E acrescentava ainda: «As nossas ociosas mulhe- res {...] sero empregadas, arrancando, tingindo e escolhen- do penas, esticando, batendo e trabalhando 0 cinhamo, colhendo 0 algodio, e diversas coisas com tingimentos.» (Os homens poderiam, por seu lado, «ocupar-se do trabalho nas minas, de actividades de lavoura, e até da caga a baleia [...]além da pesca do bacalhau, do salmao, do arenque, e do abate de érvores», concluia’. Do século xvi ao xix, estas duas modalidades de repo- voamento do planeta pela predagio humana, a extraccio de riquezas naturais e a ocupacio de grupos sociais subal- ternos, constituiram questées econémicas, politicas e, em muitos aspectos, filos6ficas importantes da época®. Tanto a teoria econémica como a teoria da democracia foram, em parte, construidas sobre a defesa ou sobre a critica de uma ou de outra destas duas formas de redistribuicao espacial de populagées?. Em contrapartida, estas originaram muitos 5 Antoine de Montchresten, Traitédconomie politique, Droz, Genebra,1999 (1635), p.387. 6 Verporexemplo, joriah Child, A New Discourse of Trade, Hodges, Londres, 3690, p.297; Charles Davenant,sDiscourses on the publi revenue and on. the trader, in The Political and Commercial Works Collected and Revised by Sir Charles Whitworth, R Horsfeld, Londres, 1967 > LerChristophe Savat, Formation et dif (Adam Smith et économie coloniale, Cahiers décor, que, n° 278,196. ry conflitos e guerras de distribuicdo ou de monopélio. Como resultado deste movimento de alcance planetario, desenhou- -se uma nova distribuigao da Terra, com as poténcias oci- dentais no centro ¢, fora dele ou nas margens, as periferias — dominios de abundante luta e dedicados & ocupacao € pilhagem. B além disso é preciso ter em conta a distingao genera~ lizada entre os formatos da colonizacae comercial ~ ou ainda das feitorias ~ e a colonizacao de povoamento propria- mente dita, Certamente, em ambos 0s casos, considerava-se que o enriquecimento da colonia ~ de qualquer colénia ~ s6 fazia sentido se contribuisse para o enriquecimento da metrépole. A diferenca, no entanto, residia no facto de que acolénia de povoamento era concebida como uma extensio da nacio, jé a colonia de feitoria ou de exploragio era ape- nas uma maneira de enriquecer a metrépole através de um comércio assimétrico, desigual, quase sem nenhum inves- timento de peso no terreno, Aliés, o dominio das coldnias de exploracao destinava- -se teoricamente a um objectivo, e a implantacdo dos euro- peus nestes lugares era proviséria, No caso das colénias de povoamento, a politica de migracao visava conservar na esfe- ra da nacao pessoas que seriam perdidas se tivessem ficado entre nés. A coldnia servia de saida paraestes indesejaveis, categorias da populacio «cujos crimes e deboches» poderiam ser «rapidamente destrutivose, ou cujas necessidades os leva- riam a prisio ou os forcariam a mendigar, tornando-os imi teis para o pais. Esta cisdo da humanidade em populagdes ‘citeis» e «initeis» — cexcedentérias» e esupérfluas» - eraa tegra, medindo-se a sua utilidade, basicamente, pela capaci- dade de desenvolvimento da forca de trabalho. Alids, o repovoamento da Terra no inicio da era moder- na nao passa apenas pela colonizacao. As migragdes € a mobilidade explicam-se igualmente por factores religiosos. 25 y No curso do periodo 1685-1730, a seguir a revogacio do Edito lc Nantes, cerca de 170 mil a 180 mil huguenotes deixaram Franga, A emigracao religiosa atinge muitas outras comu- nidades. Na realidade, diferentes tipos de circulacées inter~ ionais imbricam-se, quer se trate de judeus portugueses cujas redes comerciais se articulam em torno dos grandes portos europeus de Hamburgo, Amesterdio, Londres ou Bordéus; de italianos que investem no mundo da finanga, do negocio ow dos oficios altamente especializados, como © vidro e produtos de luxo; e até de soldados, mercensrios, engenheiros que, devido a varios conflitos da época, passam alegremente de um a outro mercado da violéncia’. Na alvorada do século xxr, jé nio é pelo trafico de escra- vos nem pela colonizacao de regides longinquas do globo que se repovoa a Terra. O trabalho, na sua acepcio tradicio- nal, jé nao é necessariamente o meio privilegiado de for- magio de valor. O momento é agora de agitacdo, de grandes e pequenas deslocagdes e transferéncias, em suma, de novas figuras de éxodo®. As novas dinamicas circulat6rias e a for- magio das diésporas passam, em grande parte, pelo comér- cio ou pelo negécio, pelas guerras, por desastres ecolégicos € catastrofes ambientais, e por transferéncias culturais de toda a ordem. O envelhecimento acelerado de grupos humanos das nagdes ricas do mundo representa, deste ponto de vista, um acontecimento de consideravel alcance. f o inverso dos excedentes demograficos tipicos do século x1x que acabé- mos de evocar. A distancia geografica enquanto tal deixa © Ver Jean-Pierre Bardet e Jacques Dupaquier (org), Histoire des populations de I Europe. 1. Des origines aus prémices de la revolution démographique, Fayard, Paris, 998, > Sobre amplitude das novas formas de circulagio, ver World Bank, Deve- lopment Goals in an Bra of Demographie Change. Global Monitoring Report, 2015/2016, 2016 (disponivel em «werw.worldbank orp) % i I \ { b f k de significar um obstéculo & mobilidade. As grandes rotas da migracio diversificam-se, e os dispositivos cada ver m: sofisticados de evasio das fronteiras actuam. Se, de sibito, 0s fluxos migratérios, centripetos, se orientam simultanea mente em varias direc¢des, a Europa e os EUA continuam a ser, sobretudo, os principais pontos de fixagao das muhi- des em movimento ~ em particular as que vem dos centros de pobreza do planeta. Aqui surgem novas aglomeracoes € constroem-se, apesar de tudo, novas cidades polinacionais. Como prova das novas circulagées internacionais, vao apa- recendo, a pouco e pouco e por todo o planeta, varios con- juntos de territérios-mosaico. Esta nova disseminacdo de colénias ~ que vem juntar-se as anteriores vagas de migracdes provenientes do Sul baralha os critérios de pertenca nacional. Pertencer & nagio nao é apenas uma questo de origem, mas também de esco- Tha, Uma massa incessantemente crescente de pessoas parti- cipa agora em varios tipos de nacionalidades (nacionalidade de origem, de residencia, de escolha) e de ligagdes identi- tirias. Em certos casos, tém de se decidir: ou se fundem na populagio, pondo termo as duplas fidelidades, ou, em caso de delito que ponha em perigo a «existéncia da nacio», se arris- cama ser privadas da nacionalidade de acolhimento™. Além disso, quanto a parte fulcral do repovoamento ~ em curso — da Terra, ndo encontramos unicamente os humanos. Os ocupantes do mundo ja nao se limitam aos seres huma- nos. Mais do que nunca, esto incluidos inmeros artefactos ¢ todas as espécies vivas, organicas e vegetais. Também as forcas geologicas, geomorfol6gicas e climatoldgicas comple- *© Ver Seyla Benhabib e Judith Resnik (ong), Migrations and Mobilit. Cit _znship, orders, and Gender, New York University Press, Nova lorque, 2009; ce Seyla Benbabib, The Rights of Others. Allens, Residents, and Citizens, Ca bridge University Press, Cambridge, 2004, a tama panéplia dos novos habitantes da Terra", Certamente, nao se trata de seres nem de grupos ou de familias de sores enquanto tais. No limite, nao se trata nem de ambiente nem de natureza, Sio agentes ¢ meios de vida — a agua, 0 ar, 0 po, 0s micrébios, as térmitas, as abelhas, os insectos -, 0s pro- tagonistas de relagées espectficas. Passamos assim da condi- so humana para a condicdo terrestre, O segundo trago caracteristico do nosso tempo éa rede- finicao ~ em curso ~ do humano no quadro de uma ecologia geral e de uma geografia agora alargada, esférica, irrever- sivelmente planetaria. De facto, o mundo jé nao é conside- rado apenas um artefacto fabricado pelo homem. Depois de viver na Idade da Pedra e da Prata, do Ferro e do Ouro, © homem, por sua vez, tende hoje em dia a tornar-se plas- tico. O acontecimento do homem plastico e do seu corolario, © sujeito digital, vai directamente ao encontro de inimeras convicgdes tidas, até hoje, por verdades imutaveis. Eo caso da crenca segundo a qual existiria uma «essén- cia do homem», um chomem genérico» separivel do.animal ou do mundo vegetal; ou, ainda, que a Terra que ele habita © explora ndo seria sendo um objecto passivo das suas inter- Vencées. E ainda a ideia segundo a qual, de todas as espécies vivas, 0 «género humanoy seria o tinico a ter-se libertado Parcialmente da sua animalidade. Com a quebra das cadeias da necessidade biolégica, ele ter-se-ia erguido quase até 20 nivel do divino. No inverso destes votos de fé e de muitos Outros, admite-se agora que, no seio do universo, 0 género humano, em particular, é apenas parte de um conjunto mais vasto de seres vivos, que inclui os animais, os vegetais ¢ outras espécies, (termo eovos habitantes ndo significa que eles no estivessem cd antes, Por enovor, deve entender-sea mudanca do seu estatito-n0s nossos dispo- sitivos de representagao. Sobre estas questes, ver Brio Latour Fae Guia ‘Hutt conférence sur le nouveau régime climaigue La Découverte, Pris, 2015, 28 dT Se observarmos a biologia e a engenharia genética, néo hé, propriamente falando, qualquer xesséncia do homem» a salvaguardar nem qualquer «natureza do homemy a pro- teger. Sendo assim, nio se coloca quase nenhum limite & modificagio da estrutura biolégica e genética da huma- nidade. No fundo, entregando-se as manipulagdes genéticas e germinais, é sempre possivel, pensa-se, nao apenas

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