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\ \4 | Sema, O PAPALAGUI Titulo do original em alemfo: Der Papalagi ; ‘Traduzido diretamente do alemo por Samuel Penna Aardo Reis Comentarios de Tuiavii, chefe da tribo Tiavéa nos mares do sul Recolhidos por Erich Scheurmann [2 BiauioTeca Introdugao de Erich Scheurmann —--S amais Tuidvii pretendeu publicar na Europa estas falas ou discursos; nem mandar imprimi-los de forma alguma, porque se destinavam, exclusivamente, 20s seus compatriotas polinésios. Se, contudo, sem que cle 0 saiba e, decerto, contra a sua vontade, comunicaremos ao mun- do europeu que Ié as falas deste nativo, é porque estamos convencidos de que para nés, brancos instrufdos, pode ser til conhecer a forma como mos vé, a n6s.e a nossa cultura, um individuo estreitamente ligado & natureza. Com_os olhos dele ficamos sabendo_ como nés tmesmos somos, de_um ponto de vista que nos € mir, Podemos, principalmente os fanéticos da ci se porque a sua sabedoria ndo provém da erudi¢go mas da simplici- dade que é divina, Estas falas representam, por ‘nada mais nada menos do que 8 pov dos mares do Sul para que se” im dos povos civiizados da Europa, Tuisvi, que despreza esta vViveu na mais profunda certeza de que os seus antepassados indfgenas haviam cometido o maior dos erros quando acolheram amavelmente as luzes da Europa. Tal qual aquela virgem de Fagasa que, do alto de um rochedo, repel © primeiro missio- nério branco, dizendo: “Vai, dem6r ymbém ele viu na Europa o dem®nio sombrio, o prinefpio que destréi, aquele do qual deve fugir quem quiser conservar-se puro Quando 0 conheci, Tuiévii_vivia pacatamente, segregado do mundo europe, na_pequena ¢ Tonginaiia ilha de Upolu, que faz parte_do_arquipélago_de_ Samoa, na a ura, de estrutura particu. larmente robusta. A voz, em contraste, era suave, branda, quase fe- ‘minina. Os olhos grandes, profundos, sombreados por espessas 50- brancelhas, tinham algo de fantéstico, fixo. Mas, quando de repente falava, mostravamse calorosos, revelando disposigao clara e benévola, ‘Nada havia, quanto a0 mais, que distinguisse Tuidvii dos outros nativos, Bebia a sua Kava (bebida popular samoana, feita com as rafzes do arbusto chamado Kava); pela manhi e & noite, ia a0 loto (Gervico religioso), comia bananas, taro e inhame, observava todos os dos, ficava deitado na grande esteira que tinha em casa. ‘Ao passo que os indigenes, em geral, viviam tal qual eriangas, apenas ¢ exclusivamente no teino dos sentidos, totalmente e s6 no = sem pergiirir coisa alguma de si mesmos, nem do ambien- te mais préximo ou mais distante, Tuidvii era de natureza excepcio- nal, pois excedia de muito os seus semelhantes: isto 6, tinha consei- 105 distingue, mais do que qualquer coi- dade que se originara o seu desejo inqla; aspiragdo ardente que jé sentia ‘ escola dos missiondrios maristas mas que ‘um grupo teatral popular que ‘experiéncia, sucessiva- ganhando, assim, um conhiecimento é clues, Mais de tima vex me eu era membro da quando nos tomamos ami ‘ou mesmo esquecido, © de que eu amadurecera p la nfo zombaria de manei que me permitiu mim sem paixio, sem oratério, como se aquilo que tinha pa- 10 1m dizer fosse, por assim dizer, hist6rico; mas foi precisamente pela forma com que falava que tanto mais nitida e claramente me impres- sionou o que disse e me despertou o desejo de registrar o que ouvira. Foi 36 multo mais tarde que Tuidvii me entregou osseus apon- tamentos e me permitiu traduzi-tos para o alemfo, Segundo preten- dia, a tradusfo devia servir, unicamente, para fins de comentirios de minha parte, jamais seria um fim em si mesma. Todas estas falas ‘io esbogos, nenhuma esté concluida; nem Tuidvii jamais as cons- derou de outra forma. Depois da completa ordenscdo da matéria em 1a Polinésia, ive de deixar a Oceania antes que ele partisse nesta viagem, Por mais que hajt ambicionado permanecer fiel a0 m&ximo a0 ue sabem quanto é dificil tradu- 2ir para o sleméo ums lingua primitiva, ou exprimir 0 que nela soa pueril sem dar impressfo de banalidade ou insipidez. ‘Todas.as conquistas culturais européias sfo engano para Tuisvii,o insulano sem cultura; sio becos sem safda. Isso poderia parecer arro- Hincia, se tudo nfo fosse exposto com simplicidade maravilhosa, se ‘fo revelasse humildade. Sim, ele adverte aos seus compatriotas que se libertem do fascinio do Branco, mas o faz com melancolia, mos trando que o seu zelo missionério emana do amor humano e néo do ‘64i0. “Acreditals trazer-nos a luz”, disse-me em nosso ‘iltimo encon- tro, “mas, na verdade, quereis é arrastar-nos para a vosst obscurida: de”, Tuisvii vé as coisas ¢ os fendmenos da vida com a honestidade e © amor A verdade de uma crianga; esbarra em contradigdes, desco- bre deficiéncias morais profundas e, enumerando-as, recordando-as, transforma-as em experiéncia. Ele nfo consegue reconhecer em que reside 0 alto valor da cultura européia, se ela aliena o homem de si mesmo, 0 torna inauténtico, mais o desnatura, o piora, Ao enumerar nossas conquistas e comegar, por assim dizer, pela epiderme, pela exterioridade, designando-as de modo absolutamente ndo- ‘quropen € desapiedado, sem nenhum respelto, Tuidvii nos revela 0 expeticulo, emboralimitado, de nés mesmos; espetéculo ente o qual no sabemos se ¢ do autor ou do seu objetivo que devemos tr, ‘A meu ver, reside nesta franqueza pueril, nesta falta de respei- 0.0 valor que tém para nés, europens, as falas de Tuidvi e a rerio Para que sejam publicadas. A Gue1 singela de pensar ¢ ver deste homem dos mares do Sul que, ainda I wre do fardo da instrupto e ainda primitivo no modo de sentir ¢ de Pensar, nos ajuda a descobrir em que nés perdemos o sentida sagrado do homem, criando, em compensacao, {dolos sem vida, Erich Scheurmann Hom in Baden Como o Papalagui cobre a sua carne com muitas tangas e esteiras Papalagui-esté sempre precupado.em cobrir bem a sua came. “O éorpo ¢ Os membros so came; 56 aquilo ie ima. do pescogo é que é o homem, real im me falava um Branco, muite respeitado ¢ tido como mui Queria ele dizer que s6 se devia considerar aquelas partes em que reside o espfrito, com todos os pensamentos, bons ¢ maus: acabeca, A cabeca, sim, se necessério também as mios, © Branco permite que fiquem descobertas, embora a cabeca ea mo nfo sejam mais do que came e os80. Aquele que, quanto a0 mais, deixa que se lhe vejt a carne nfo pode pretender a verdadeira moral. dade, Quando faz de uma moga sua esposa, nunca o rapaz sabe se foi enganado, porque jamais the viu, até entio, o corpo A moca, por mais bela que seja, tanto quanto a mais bela taopu"de Samos, cobre © corpo para que ninguém o veja, nem tenha prazer em vé-lo, A came € um pecado, segundo diz 0 Papalagui, porque o seu espfrito € grande, é 0 que ele pensa, © braco que se ergue, a luz do sol, para atirar, é flecha do pecado; o peito, sobre o qual palpitam as ondas do respirar, é habitagio do pecado; os membros com que ‘4 moga convida para a siva’, sfo pecadores, E também os membros que se tocam para fazer seres humanos, alegrando a vasta pecaminosos. Tudo que & carne ¢ pecado, Um veneno existe em to. dos os tendées, malicioso, que salta de um homem para outro. 0 ‘espeticulo da came, por si s6, é suficiente para entvenenar quem a contempla, intoxicé-lo, corrompé-lo e tornédo t#o abjeto_ quanto aquele que se deixa ver. E 0 que proclame a moral sagrada do ho- mem branco, E por isto que 0 corpo do Papalagui se envolve, da cabera 20s és, em tay, esteirase peles,tHo justas,tfo apertadas, que ofhar ‘humano algum, raio algum do sol as atravessa; tHo justas que o corpo * Nota de Tuisvl: mesmo mais tarde, ela 96 0 mostrard raramente, © apenas de noite ov ao crepssculo, * Moga alded, uinhs das mogas, * Danga netiva. se toma livido, branco, fatigado, assim como as flores que crescem no mais profundo dos bosques. Escutsi, irmdos mais sensatos das im Papalagui carrega no seu corpo. Em primeis envolve-o numa delgada pele branca, feita de fibras de certe planta, a chamada pele superior, que se atira para o alto ¢ se enfia de cima para baixo, pela cabega, peito e bragos até as coxas. Por sobre as pernas e coxas até © umbigo, puxada de baixo para cima, vem a chamada pele de baixo [As duas peles so cobertas por uma terceira, mais grossa, tecida com (5 pelos de certo animal quadrépede, Ianoso, criado especialmente para este fim, £ esta, propriamente, a tang pre em bre a ps 8, que fardo um \ trés partes prendem-se entre si por meio de coma seiva ressecada da borracha, de tal forma que dao a impressfo de ser uma pega 36. Esta tanga quase sempre € cinzenta como a lagoa quando chove, nunca é realmente colorida; quando muito, a pega do meio, e s6 para aqueles hhomens que gostam de dar 0 que falar e de sempre andar atrds das mulheres. Por fim, os pés ganham uma pele macia outra muito dura. A pele macia, na maior parte das vezes, pode-se esticar é, a0 passo que a outra quanto mais dura, menos com a pele de um bicho forte que se mergutha, durante algum te- PO, na dgua, se raspa com facas, se bate e se coloca a0 sol até enrije- cer de todo. Com isso o Papalagui fabrica uma espécie de canoa de justo o suficiente para nele caber um pé; uma canoa pa- ito, uma canoa para o pé esquerdo. Estas canoas sfo amarradas, sfo atadas, a0 tomozelo de maneira que os pés ficam den- fro de um estojo rigido, tal qual o corpo do caracol. O Papalagui tusa-o do nascer ao por do sol, soi nele para viajar e com ele danca; ‘mesmo que esteja quente como apés a chuva tropical. Como isso € muito contrério @ naturera — conforme até o Branco percebe ~, como os pés ficam como se estivessem mortos e comesam a cheirar mal, como, de fato, quase todos os pés curopeus + Tus rt 44 nfo conseguem agarrar nem trepar numa palmeira, por (udo isso © Papalagui tenta esconder a sua tolice, cobrindo com muita lama a pele do bicho, que € vermetha por natureza, dando-the, a custa de ‘muita esfregago, um brilho tal que os olhos nfo suportan 0 ofusca- ‘mento e tém de desviar-se. Viveu, em certo tempo, na Europa um Papalagui que ficou of- lebre e que muitos homens vinham procurar porque lhes dizia: “Nao € bom que useis peles tfos estreitas ¢ pesadas nos pés; andai descal- 908 sob 0 céu enquanto o orvatho da noite cobre a relia; ass ccurareis de todas as doencas”. Muito sadio era este homem,¢ ajuiza- do, mas riram-te dele e nfo tardaram a esquecé-lo, ‘As mulheres, als, tal qual os homens, usam muitas esteires € tangas, enroladas no tronco € nas coxas, Sua pele se mostra sempre coberta de cicatrizes¢ esfoladuras devido aos cores, Os seios ficam fldcidos, sem leite, por causa de uma esteira que os aperta e vai do ~ pescopo até 0. ventre e se amarra na frente e também nas costas; esteira que se enrijece com espinhas de peixe, aame efios. £ por isto que a maior parte das mies dao o leite aos filhos num rolo de vidro, fechado em baixo e com uma maminha artificial em cima, Nem é0 leite delas mesmas que dio, mas o de animais vermelho: chi frados, dos quais 0 arrancam com violéncia pelas quatr tém em baixo. Alls, as tangas das mulheres ¢ das mogas sfo mais finas que as dos homens, e também podem ser de cor, muito luzidias. E eomum 0 ppesoogo e 08 bracos aparecerem, mostrando mais came do que o ho- mem. Em todo caso,.convém que as mosas se cubram muito e se diz com benevoléncia, entio, que sfo pudicas, o que significa: observam 8 mandamentos da boa moral. ‘> Dalé que nunca entendi por que, nos fonos’, nos banquetes, as mulheres e mogas deixam que se Ihes veja a came do pescogo e das costas, sent daf resultar vergonha, Mas talvez esteja nisso a graca da lenidade: ¢ que af se permite aquilo que nose permite todos os dias, + Reunibes, deliberagées ‘S6 08 homens tém o pescoro ¢ as costas sempre muito cober- tos. Do pescogo ao mamilo, o Ali isto 6, 0 chefe, usa um pedago de tanga tratado a cal, do tamanho de uma folha de taro, por cima da qual, enrolado no pescogo, descansa um aro mais alto, também bran. co e também tratado a cal. Através deste aro ele passa um pedago de {tanga colorida, fixethe um prego de ouro ou uma conta de vidro, tt. do pendente do peitoral. Muitos Papalaguis também usam aros' tre. tados a cal no punho; nunca, porém, nos tomozelos. Este peitoral branco, como os aros brancos de cal, tem muita ‘mportincia. Jamis um Papalagui fice sem estes adomos na presen- ¢a de uma mulher. Pior ainda 6 se 0 aro de cal enegrece, fica sem bi. ‘ho; € € por isto que muitos sliis importantes mudam todos os dias 8 peitorais e os aros de cal. Enquanto as mulheres t&m, para as festas, muitas esteiras de cor, com as quais enchem uns bats em pé e ocupam muitos de seus Pensamentos para saber que tanga gostarjam de usarhoje ou amanhi, ‘Pode ser curta ou comprida; enquanto elas falam com muito inte. ‘esse nos adomos com os quais fixtlos, os homens quase sempre tém um 6 traje para festas, do qual quase nunca falam. E a chamada roupa de ave, de um preto muito forte, que desce em ponta pelas ‘costas, feito 0 rabo de papagaio’ Quando se usa esta roupa de festa, também as mfios levam peles brancss; peles em cada dedo, tho estrei, {as que o sangue arde e corre para o coragdo, Por isto se permite que (0s homens sensatos apenas segurem estas peles nas mlos, ou at colo quem na tanga abaixo dos mamilos, Assim que saem da cabana para a rua, 0 homem e a mulher en- Nolvermse noutra tanga mais larga, grossa ou fina conforme o sol bri- the mais ou menos, Cobrem, enti, a cabeca, os homens com um va- 50 preto, rijo, curvo e oco feito o telhado de uma cabana samoana; as ‘mulheres com grandes malhas de vime ou cestos virados para cima, ‘08 quais prendem flores que nuxca murcham, penss omamentais tires, contas de vidro, todo tipo de enfeites, Parecem-se com a tuiga” * Heo fraque que se trata, certemente, + Enfete de cabecs $6 a noite, quando das as tangas, mas s¢ que seabre nos pés. std deltado a0 sl, mesmo qu (© Papalagi nao dé Compreende co e palo, sem a Até as mulheres, roteger a pele ms a i Solos ete 98 ae wre te comoie or ‘ida da lua valesse mais que a cor do sol E que o Papalagu em todas ‘as coisas gosta de fazer uma sabedoria e uma lei a sua maneira, Q. Sei proprio nariz, pontudo como o dente do tubario, para ele € bonito, ao passo que o nosso, sempre redondo e mole, cle acha feio \. edisforme, quando nds pensamos exatamente a0 contrério, E porque 0 corpo das mulheres e mogas se cobre tanto que os homens e rapazes desejam natural Noite e di, pensam ni ‘es deixassem ver a cane & vontade, poderiam pensar em outras coi- °8; € 08 olhos néo revirariam nem a boca diria palavras impudicas tando encontrassem uma moss, re) ds 1 (Masa came 6 pecado, é do aitu’? Existe idéia mais tola, ama- | dos irmfos? A crer no que diz 0 Branco, deverfamos querer, como | cle, que a nossa came fosse dura como a rocha do vuleio, sem a be- ) ia quentura que vem de dentro, No entanto, alegramo-nos porgee ¢ nossa came encontra o sol; as nossas pernas mexem-se como o caya- \\ lo selvagem, sem tanga que as amarre, nem pele que as contenha ¢ ‘fo nos preocupamos com que coisa algumma caia da nossa cabeca, Alegramo-nos ao ver a virgem que mostra seu corpo bonito a0 sol ¢ lua, Tolo, cego é 0 Branco, que néo sente o prazer verdadeiro, ele \ que precisa cobrir-se tanto para evitar se envergonhar, + Espirito mau, disbo, jure Dos baus e fendas de pedrae do que entre eles existe Papalagui mora, como 0 marisco, numa casca dura; ¢ vive no meio de pedras, tal qual a escalopendratentre fendas de lava, com pedras em volta, dos ladose por ima, A cabana em que mora pareoe-se com um bat de pedra em pé, com muitos compartimentos e furos,” AA gente desliza para dentro e para fora da casca de pedra ape- has por um lugar que o Papalagui chama entrada quando vai pera dentro, ¢ safda quando vem para fora, embora arnbas as coisas se- jam sbsolutamente uma s6-¢ a mesma. Neste lugar existe uma gran- de fotha de madeira que se tem de empurrar com forea para entrar 1na cabana, Mas isto € s6 para comecar: temse de empurrar ainda outras folhas para estar, de fato, na cabs Quase todas as cabanas so habi #8 que moram numa $6 aldeia samo: exatamente 0 nome da aiga* que se quer iga tem para si ums parte especial do bat de pedra, ou em cima, ou embaixo, ou no meio, & esquerda, a direita, ou mesmo na frente. E cada aiga no sabe nada de outra, nada mesmo, como se entre elas no houvesse lum muro de pedra mas, sim, Manono, Apolima, Savdii“e numerosos mares, £ muito comm nem saberem o nome umas das outras; ¢ s se encontram no buraco por onde entram e saem, cumprimentam- se de mé vontade, ou resmungam qualquer coisa, tal qual insetos hos tis, dando a impresséo de estarem zangadas por terem de viver perto uumas das outras, Se @ sige habita no alto, embaixo do préprio teto da cabana, tem-se de subir por muitos galhos, em ziguezague ou em cfrculo, pa. ra chegar ao lugar em que esté escrito na parede 0 nome da fam ‘Vése, enti, a imitagto graciosa de uma maminha que se aperta até ‘que ressoe um grito e apareca a familia. Esta olha por um pequeno furo gradeado, redondo, para saber se nfo é um inimigo, caso em que * Uma espésie de contoptin, + Fema * Tes ithas do grupo de Samor. 23 ‘nfo abre, Mas se vé que é amigo, solta imediatamente um grande ba- tente de madeira, que se acha bem preso por correntes, e puxs-o para dentro para que o visitante possa entrar, pela fenda, na cabana pro- priamente. Esta, por sua vez, € cortada por muitas paredes abruptas de pedra, Vai-se entrando por batentes e mais batentes, de bad em bas, cada vez. menores. Cada tum dos batis, que o Papalagui chama quartos, tem um bursco; quando é maior, dois buracos, ou mais ainda. E por cles que entra 2 luz. Esses buracos sfo fechados com vidros que se podem tirar quando 0 bat precisa de ar fresco, o que é muito necessé- io, Mas hé muitos baGs sem buracos para a luz, nem para o ar. © samoano nfo demoraria a sufocar num bat destes, porque de parte alguma ver uma corrente de ar, como acontece em todas as nossas cabanas, Também os cheiros do bati-cozinha procuram es- capar. Mas na maior parte dos casos o ar que vem de fora nfo é mui- to melhor. E dificil compreender como um ser humano nfo morre estes lugares, ndo se transforma, de ansiedade, em ave; que ndo Ihe Grespam asas com que paire e voe pare onde exista are sol, O Papala gui no entanto, gosta dos seus bats de pedra, e jd nem thes nota as falhas. CCada um dos bats serve para um fim especial. © maiore mals "Missa pote Tea ax pooansabarse iin tinned dormir e neste vierse a8 esteras, quer di , em suportes de pau, de peas comprias para oar past ene ela [Num terceiro bat € onde se come e se produzem nuvens de fumaga; ‘outro sinda € onde se guardam o8 mantimentos; noutro e cazinha; no Gltimo, que & 0 menor, toma-e banho. Esta também é 1 mais bo- nita pega, revestida de grandes espelhos, 0 piso adomado com um forro de pedras coloridss, tendo no meio uma grande bacia, de me- tal ow pedra, para dentro da qual escore dgua fia ou aquecida 20 tol, £ nesta baca (tdo grande, maior até do que o timulo de um chefe) que as pessoas entram para ee lavarem e tirrem do corpo a areia dos baGs. Também existem, & claro, cabanas com mais bate: + Reunites, deteragBes, a ~ to um fio, coberta de pedras duras. Tem-se de andar muito até en- ‘existem até cabanas em que cada crianca, cada criado, tem um quar to para sie até mesmo os cies e os cavalos. E nestes bats que o Papalagui passa a sua existéncia, ora num, ora noutro, conforme as horas. E af que as criangas acima da terra, muito alto, em inimeros casos mai palmeira, entre pedras. De vez em vez, o Papal privados ("6 assim chama") ¢ vai ter a outro bad; que serve ‘af que trabalha sem ser incom 5. Enquanto isso, as mulheres ficam na cozinha, fazendo comida, limpando até que bi 88 pe= Jes que usam nos pés, ou lavando tangas, Quando sfo ricas e podem ter criados, sfo eles que fazem estes servicos; elas ezem para visitas ou para comprar provisées para a boca. Desta forma vivem tantas pesso.s na Europa quanto as palmei- ras que crescem em Samoa, muito mais até, Sim, hé quem tenha tm desejo ardente de ver os bosques, 0 sol, muita luz; mas isso, em geral, 6 considerado como uma doengs, doenca que deve ser combatida, ‘Quando alguém esté descontente com a existéncia na pedra, dizem 8 outros: “é um desnaturado!”, 0 que significa que ele nio sabe 0 ‘que Deus determinou para o homem. Estes b dra so sempre em dos uns contra o3 out ic irvore, pare; parecem ho ados uns n0$ 0 ‘Ui deles tantos Papalaguis quantos numa aldeia samoana inteira, A distincia de uma pedrada, do outro lado, vé de pedra, também encostados uns nos out meio das dus fils, existe apenas uma fe . . suis chamam mu, fends que, em muitos esos, € fo comprida quan- bosque, um pedaco grandede cfu. $6 raramen- fendas a cor mesma do céu, porque em todas as ~vabanas existem (no mfaimo uma, em muitos casos, muitas) lareiras 25, enchendo sempre o ar de fumaga e cinzas, como se fosse a erupslo dda grande cratera de SavAii. Fumaca e cinzas que chovern nas fendas, de modo que 0s altos batts de pedra parecem o limo dos péntanos; a¢ Pessoas recebem nos olhos nos eabelos terra preta, além de arcia dura entre os dentes. Apesar disso tudo, os homens andam por estas fendas da ma. nha a noite, muitos até content{ssimos, Nota-se que em algumasfendas ‘hé uma confusto para a qual as pessoas acorrem feito limo grosso, Sto as ruas onde se construfram enormes caixas de vidro nas quais se mostram todasas coisss necessrias vida do Papalagui: tes para a cabega, peles para as mfos e os pés, coisas, alimentos verdadeiros como frutas, leguines e mui oisas, Tudo estd ali exposto para atrair 0s homens. No entanto, ninguém pode tirar coisa alguma, mesmo em caso de preciso extrema. Para isso, temse de conseguir uma licenga especial e fazer uma oferenda. Nestas fendas, de todos os lados, hf perigos que ameacam; 08 homens no somente’esbarram uns nos outros, mas circulam e galo- pam 4 cavalo, cruzando-se e entrecruzando-se, ou se fazem carregar fem grandes batis de vidto, que deslizam sobre tiras metélicas. E gran- de 0 barulho. Os ouvidos ficam surdos, porque os cavalos beter com 08 cascos nas pedras do chifo, as pessoas batem com as peles durat que hes cobrem os pés. As criangas berram, os homens gritem de Alegria ou medo, todos gritam. Ninguém pode entender o que o ou. ‘to diz senso gritando, £ um rugido geral, um ronco, um bater de és, um grunhido, como se a gente estivesse no penhasco de Savi, com a tempestade bramindo; bramido que, no entanto, é mais agra Todo Papslagui £possufdo pelo medo de perder 0 seu tempo. Por isso todd saber exatamente (e néo s6 os homens, mas as mulhe- tes € as criancinhas), quantas vezes a ha eo sol safram desde que, pe- le primeira vez, viram a grande luz, De fato, isso € tdo sério que, a ccertos intervalos de tempo, se fazem festas com flores e bes, Muitas vezes percebi que achavam esqits quando me perguntavam quantos anos tinh devias saber”. Calavarme e pensava que era melhor ndo saber Ter tantos anos. significa ter vivido um nimero preciso de luas. E pefigoso esta mancira de indagar e contar 0 niimero das luas por. que assim se chega a saber quan dura a vida da maior parte dos homens. Todos prestamn io isso e, passando um mde ‘mero muito grande de luas, dizem: “Agora, no vou demorar a mor- rer”, E entio essas pessoas perdem a alegria e morrem mesmo dentro de pouco tempo, Pouca gente hi na Europa que tenha tempo, de fato; talvez nin- guém mesmo. E por isto que quase todos levam a vida correndo com a velocidade de pedras atiradas por alguém. Quase todos andam olhando para o chfo e balangando com os bracos para caminhar 0 mais depressa possivel, Se alguém os faz parar, dizem, mal-humors- dos: “Nao me aborregas, no tenho tempo, vé se aproveitas melhor © teu,” Dé a impressdo de que aquele que anda depressa vale mais ¢¢ mais valente do que aquele que anda devagar Vi um homem com a cabeca estourando, boca aberta feito a de um peixe agonizante, vermetha a verde, batendo com as mdos e os pés, porque um criado tinha chegado um pouquinho mais tarde do que prometera, Esse pouquinho era para ele um grande , prejutzo iereparivel, O criado teve de ir-se embora, 0 Papalagui expulsow-o ¢ recriminou-o: “Roubaste-me tempo demais! Quem néo presta atencZo a0 tempo ‘no merece 0 tempo que tem!" ‘S6 uma vez é que deparei com um homem que tinha Po, que nunca se queixava de nfo té-lo, mas era pobre, prezado. Os outros passavam longe dele, ninguém the dava importin- cia, Nzo compreendi essa 0s olhos sorrindo, mans, careta€ disse, tristemen olhos virados, a cara passando de ensamentos ten {gua e do Toso, da tempestade, dos elampagos que Brlham no cfu para fazer parar 0 tempo. Pée rodas de ferro nos pés, dd asas vas ue diz para ter mais tempo. Mas pars que todo este st © que ¢ que o Papalagui faz com o tempo? Nunca compreendi bem ‘embora pelos seus gestos e suas palavras, ele sempre tenha me dado 4 Impressfo de alguém a quem o Grande Esptrito convidou para um fono. Acho que 0 tempo the escapa tal qual a cobra na mo molhada, justamente porque o segura com forea demais. O Papalagui nfo ex Bera que tempo verha até ele, mas sai_ao seu aleance, sempre, sempre, com as mfos estendidas ¢ nfo the dé descanso, n2o deixe ajunté-lo nem em partilo. Nunca o tempo nos falta, nunca nos nfastia. Adiantese aquele dentre n6s que go tem tempo! Cada umn de nbs tem tempo em quantidade © nos contentamos com ele, Nao Precisamas de mais tempo do que temos e, no entant, temos tempo ue chega. Sabemos que no devido tempo havemos de chegar 10 new. fo fim e que o Grande Esp{tito nos chamard quando for sua vontade, ‘mesmo que néo stibamos quantes fuss nossas passaram. Devemoy Hvrar 0 pobre Papalagui, tio confuso, da sua loucu {eterihe © verdadeiro sentido do tempo que perdeu, Vamos despe- dasa sua pequena méquina de contar © tempo.e Ihe ensinar que, do nascer 20 pér do sol, o homem tem muito mais tempo do que é ‘eapaz de usar, Deus ficou mais pobre por causa do Papalagui ] 33 Papalagui pensa de modo estranho € muito confuso, Esté sempre pensando de que maneira uma coise pode Ihe ser util, de que forma the dé algum direito. Nio Pensa quase nunes em todos os homens, mas num $6, ‘que & ele mesmo, Quem diz: “Minha cabega € minha, no € de mais ninguém”, estd certo, esté realmente certo, ninguém pode negar. Ninguém tem mais direito a sua propris mo do que aquele que tem @ mio. Até af | grama, 0 mar, 0 cfu, as nuvens que 0 cobrem, tudo isso Deus. Podemos pegi-las ‘quase a mesma coisa, Mas na lingua do Papalagui quase nfo Palavras que signifiquem coisas mais diversas do que “meu” Meu ¢ apenas, e nada mais, o que me pertence; teu é s6, e nada mais, (© que te pertence. por isto que o Papalagui diz de tudo quanto exis te por perto da sua meu”, Ninguém tem direito a essas coisas, sendo ele. Se fores a terra do Papalagui c alguma coisa vires, ‘uma fruta, uma drvore, 4 que, montinho de terra, hés de ver sempre perto alguém que to € meu! Nao pegues no que é meu!” Mas se pegares, te chamargo gatuno, o que é uma vergonha muito grande, ¢ $6 porque ousastes tocar num “meu” do teu pr6= ximo, Os amigos deles 0s servos dos chefes mais important Bem correntes, te levam para o falé pui puit e serds banido pela vida inteiea, , /Bara ninguém pear em coisas que o outro declarou como sus,

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