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Meméria discursiva e meméria metilica: (in)completude da linguagem RESUMO® Neste artigo, reflete-se sobre a linguagem dentro de um novo contexto de producao do dizer ~ 0 ciberespaco. Para tanto, tomamos como objeto de reilexio a producio de meméria rnesse espaco, 0 que vem a constituir a meméria metalica, conceito. entendido em oposigio 3 meméria. discursiva Nosso estudo orientado pela premissa de que a linguagem tem como caracterstica intrinseca a incompletude, nao importando o espacoia situacio de producio de sentido. PALAVRAS.CHAVE: incompletude da linguagem, memoria discursiva, meméria metalica CONSIDERAGOES INICIAIS No presente texto, refletimos sobre 0 funcionamento da meméria metilica, a qual rege um novo espaco de circulacao de discursos: 0 ciberespaco. De modo a realizarmos essa reflexao, fazemos algumas consideracdes sobre a maneira como ‘© homem se relaciona com o mundo por meio da linguagem, e, nessa perspectiva, procuramos entender essa relagio em termos discursives a partir da oposicao meméria discursiva/meméria metilica, 1.0 HOMEM E O MUNDO. © homem sempre procurou entender o mundo: explicar a existéncia; decifrar enigmas; fazer do desconhecido algo apreensivel, passivel de dominacao. Somos movidos por uma vontade de entender © mundo em sua totalidade. Para tanto, fazemos ciéncia, fazemos religiao. Orgulhamo-nos dessa _vastidado de saberes, tanto que quisemos construir a torre de Babel, quisemos reunir todos os saberes na Biblioteca de Alexandria, inventamos a enciclopédia e hoje montamos uma enciclopédia ainda mais ampla, com dimensdes incomensurdveis — a Internet — por meio da informatizacao de arquivos Esses modos de reunir todo o conhecimento fazem com que o mundo seja de certa forma esclarecido, precisado, explicado em uma pretensa totalidade. Para que isso se concretize, procuramos algo ideal, universal, sem falhas, que preencha todas as lacunas. Nas palavras de Blanchot, esse desejo se taduziria na existéncia de todo ser, a qual apela a “une communauté: une communauté finie, car elle a, son tour, son principe dans la finieude des étres qui la composent et qui ne supporteraient pas que celle-ci la communauté) oublie de porter un plus haut Michele Schmitt © degié de tension la finitude qui les constitue” (1983:17) A criacao de uma comunidade implicaria na extincao da finitude do homem. fssa criagao seria movida pela necessidade de completude do homem, para que tudo que fosse extemo ao ser se incorporasse nele através de uma comunhao, de uma parttha daquilo que € objeto dessa comunidad. Esse desejo de uma ‘comum unidade’ tornar-se-ia possivel a partir de uma homogeneidade lingiiistica e da universalizacao dos saberes, Essa vontacle manifesta-se, na Internet, por meio da criacio de uma lingua formal, a qual possibilitaria a comunicacdo universal. Estarfamos diante de uma lingua ideal, que daria conta de nomear tudo 0 que existe, que fizesse com que para cada objeto exista uma denominacao correspondente. A linguagem seria. entendida_—_-enquanto correspondéncia entre signo e objeto, o sentido seria transparente. Dessa forma, essa posicao “voit dans le langage une activité naturelle reflétant Vajustement harmonique de I'homme a la nature: les mots sont des, imitations du monde” (Gadet; Pécheux, 1981:25) A lingua ideal de que falamos & a lingua metilica, a dos computadores, a qual viria a garantir a unidade da comunicagio humana, Voltariamos assim ao sonho da torre de Babel: a unidade representaria a dominacao, nao deveria haver diferenca. Todos falariam a mesma lingua, nao haveria mal-entendidos : Parecemos assim estar diante do apagamento das diferencas, da anulacao do virtual. Nas palavras de Chartier, “0 retorno a unidade lingistica signitica (..) a perda da histéria, o desaparecimento das identidades e, finalmente, a destruigao aprovada” (2002:14-15). Além da unidade lingiistica, criar-se-ia “uma continuidade que nao mais diferencia os diversos discursos a partir de sua _ propria materialidade” (Chartier, -2002:23). Essa uniformizacao ameacaria a diversidade cultural e a diversidade de discursos: a transmissio das emocdes seria homogénea; textos de géneros diferentes seriam lidos “em um mesmo suporte (a tela do computador) e nas mesmas formas (geralmente as que sio decididas pelo leiton” (Chartier, 2002:23). Os textos 18 perderiam sua identidade e serfamos submetidos a uma mundializacao cultural Mas seria isso possivel, se, conforme Lévy (1998:69), “notre espece |. s‘est constitué dans et par la virtualisation”? Se assim fosse, 0 homem nao seria mais instado a interpretar, pois nao _haveria mais esquecimento, nao haveria mais lembranca: 0 excesso de informacao existente no mundo metilico ameacaria 0 processo de virualizacdo. Viverfamos como Funes, 0 memorioso, personagem de Borges, 0 qual retia todas as lembrancas em sua meméria e de nada esquecia, ou entao encontrariamos 0 Aleph, “o lugar onde estio, sem se confundirem, todos os lugares do mundo, vistos de todos os Angulos” (Borges, 1978:130). Nao seria mais necessirio pensar, nao precisariamos mais encontrar uma solugao para 0 Virtual: tudo estaria pronto, resolvido. Somos assim levadios a questionar até que ponto a instalacdo da unicidade nao faria com que vivéssemos enquanto uma extensio de méquinas, reproduzindo informacdes sem apelo a reflexdo. Para tanto, procuraremos entender como funciona a meméria metalica, tendo em vista que essa meméria simula um efeito de completude/totalidade. 2 MEMORIA METALICA E— MEMORIA DISCURSIVA Diariamente temos acesso ao radio, ao jornal, 4 televisdo, a revistas e, mais recentemente, a Internet. Sem que percebamos, somos _vitimas de um ‘bombardeio’ de textos, os quais invadem nossos olhos ouvidos sem pedir licenca. Dessa forma, nao somos apenas assujeitados “A meméria carnal das Hfnguas ‘naturais’” mas também as “varias modalidades da meméria metalica, os multi-meios, a informatica, a automagao” (Orlandi, 1999:10). Somos interpelados enquanto sujeitos de linguagem dentro desse novo contexto, De acordo com Orlandi, com a meméria metalica teriamos uma materialidade formal, distintamente da hist6rica. Conforme essa autora, a meméria metdlica (...] “lineariza” [...] 0 interdiscurso, reduzindo 0 saber discursivo a um pacote de informacdes, ideologicamente equivalents, sem distinguir posicdes. (1996:15-16) Com essa meméria, apagar-se-ia a meméria discursiva, © interdiscurso; nao haveria mais esquecimentos, nao irromperiam sentidos novos. Na meméria discutsiva, fala uma voz sem nome, nao hé controle sobre 0 dizer. Por outro lado, a meméria metalica € um artefato, é um simulacto, com ela tudo, se passa no nivel da formulacéo, do dizer atualizado, nao ha espaco para a constituicao de sentido, Ao contririo da meméria discursiva que é irrepresentavel, a meméria metilica pode ser apreendida, facilmente acessada, pois ela funciona a partir da presentificagio constante de um mesmo dizer. Essa atualizagao recorrente produz um efeito de completude de sentido, como se nao houvesse mais o que dizer, tudo jé estaria dito/posto, interpretado. No entanto, conforme Orlandi (2001:183), “nessas novas formas, mantém-se a incompletude e a dispersio, embora a vontade da onipoténcia de um dizer total, omnipresente, se reforce”. A tentativa de domesticagao da linguagem e da administragao dos sentidos seriam regiclas mais fortemente. A meméria metilica trabalharia para que nossa meméria discursiva nao trabalhasse, “para que, quando titubeamos, a beira do sem-sentido, discursos disponiveis com seus ‘contetidos’ jé ld, nos estejam 3 mio” (idem:181). Somos assim instados a significar por essa nova meméria. Nao estarfamos mais no nivel da metéfora, mas sim da textualizagdo. ‘Seriamos assujeitados a uma ‘enchente’ de formulacoes. Podemos ilustrar essa tentativa de completude de sentido, ao pegarmos como exemplo a midia televisiva, Na rede Globo, ha quatro telejomais, digrios: um pela manha, um apés 0 meio-dia, outro 3 noite e outro ainda & meia-noite. Essa seqiiéncia de transmissées repetem varios fatos, 0s quais sto interpretados uns pelos outros (Orlandi, 2001). Nao haveria necessidade, do sujeito que os assiste, interpreté-los. O sentido seria Gnico e pronto e, assim, administrado, controlado. Outro exemplo que podemos tomar é 0 hipertexto. Esse tipo de texto também nos transmite uma nogio de completude de sentido; ao leitor, é oferecida uma infinidade de percursos de leitura, Tora-se possivel uma consulta direta as fontes. Encontram-se intimeras_ verses sobre um mesmo tema. As versdes escolhidas pelo leitor podem ser representadas, gravadas, registradas. Temos assim uma mem@ria arquivada que pode ser apreendida e acessada facilmente, A totalidade de sentido, _entretanto, permanece comprometida, pois nos impossivel aprender todas as versbes oferecidas pelo hipertexto, na medida em que sua atualizacao final assumiria uma extensdo infinita. Além disso, 0 hipertexto, ao sugerir links para outras paginas, taria consigo a marca da sua incompletude, pois nao daria conta do sentido por ele mesmo, A insisténcia da repeticao de um fato, ou da explicacio dele pode representar a “cicatriz, 0 traco do ‘outro’ sentido, a marca _inexordvel da 7 incompletude, de sentidos postos em silencio” (Orlandi, 1996:13), Dessa forma, poe-se em jogo a dimensio politica do siléncio, ou seja, em que se faz “dizer uma coisa para nao deixar dizer outras” (Orlandi 1995:55). Tenta-se assim evitar sentidos outros, mas quanto “mais se diz, mais o silencio se instala, mais os sentidos se tomnam possiveis e mais se tem ainda a dizer” (idem: 71). A interpretacao nao cessa eo proceso de virtualizacao que nos constitui enquanto espécie humana continua CONSIDERACOES FINAIS A informatizacio de arquivos, ou seja, 0 estabelecimento de uma meméria metélica parece apresentar-se enquanto mais uma tentativa do homem de dominar todos os saberes, ao procurar explicar/nomear/apreender tudo 0 que existe. A lingua metilica e a meméria_metalica apresentar-se-iam enquanto uma linguagem que “tem imaginariamente dimensdes precisas, com recortes, segmentos, tamanhos" (Orlandi; 2001:114). © sentido seria Unico, signo e objeto corresponder-se-iam, Entretanto, com a meméria metalica, no dizer de Orlandi (1999:10), “apagam-se os efeitos da historia, da ideologia, mas nem por isso elas estio menos presentes”. A meméria metilica simularia um carter completo. da linguagem, mas, ainda que tentemos, nao conseguimos controlar o sentido, pois no estamos na posicao da origem do dizer. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BLANCHOT, Maurice. La communauté inavouable. Pars: Les Editions de Minuit, 1983, BORGES, Jorge Luis, Trad. Flivio José Cardoso. © Aleph. Posto Alegre: Globo, 1978, CCHARTIER, Rv eserita. Sio ger. Trad. Fuhia M. L. Moretto, Os desafios da Paulo: UNESP, 2002. GADET, Francoise; PECHEUX, Michel. La langue introuvable. Paris: Frangois Maspero, 1981 LEW, Fiesre. Quest-ce que le virtuel? Pars: La Découverte, 1998, ORLANDI, Fri. AS formas do silencio: no movimento des sentidos, %.ed. Campinas: Unicamp, 1995, __ Interpretacao: autoria, litura « efeitos do trabalho simblico. Petropolis: Vozes, 1996. __ Anilise do discurso: principios © procedimentos. Campinas: Pontes, 1999, Discurso © texto: formulacio © circulagio dos sentidos. ‘Gnpinas: Pontes, 2007 NOTA © Bobista FAPERGS do projeto de pesquisa: “Identidade, discurso e sociedade: a invengio de si e do outro na cultura do ciberespaco”, filiado ao Laboratorio CORPUS e orientado. pela professora Amanda Eloina Scherer

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