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2 TEATROS DO CORPO de fendmenos psicossomaticos freqiientemente escapa ao analista as vezes considerado uma afronta narcisica e pode levar alguns analistas a pensarem que os problemas psicossomaticos deveriam, Ser tratados em outro lugar, que os nossos esforcos deveriam, limitar-se aquilo que é psicoldgico e verbalizavel. A essas atitudes contratransferenciais acrescenta-se a impres sdo criada pelas revistas dedicadas & pesquisa psicossomética, que enfatizam a auséncia de afeto, a falta de capacidade imaginativa € a dificuldade de comunicacao verbal. E reconhecido que, des- de seu nascimento, a psicanalise, na esteira de Freud, privilegiou © papel da linguagem na estruturagao do psiquismo e no trata- ‘mento psicanalitico. Mas ha outras vias de comunicagao além da linguagem. Na tentativa de abordar a percepeao de determi- nados pensamentos, de determinadas fantasias ou de situages, conflituosas capazes de despertar sentimentos fortes (de dot ou de superexcitagéio), um paciente pode, por exemplo, desencadear uma explosio somética ao invés de dar A luz um pensamento, uma fantasia ou um sonho (a explosao psicossomatica de Chris- tophe, no capitulo II e, em seguida, sua transformagao em so- hos € fantasias verbalizaveis constitui exemplo elogiiente). Por essas diversas razdes e por medo de verem uma exacer- bacdo das doengas de pacientes conhecidos por serem sujeitos @ graves somatizagdes, ¢ compreensivel que certos analistas ndo Fecebam com entusiasmo essas pessoas. Entretanto, se tivermos tomado as precaugdes expostas acima, nao ha motivos para que lum paciente, conhecido por ser vulnervel no plano psicossoma- tico, ¢ um terapeuta de boa vontade e atento ao psicossoma nao possam empreender juntos a viagem psicanalitica, mesmo que tal viagem nao seja nunca totalmente desprovida de riscos. Mes- mo quando o psicossoma ameaca explodir ou esquivar-se do tra- batho analitico, a gratificacao psicoldgica que reside no dom do sentido, tanto para o analista quanto para o analisando, pode igualmente ocasionar mudancas considerdveis, como espero de- monstrar nesta obra. CAPITULO T MATER Eu tinha cinco anos de idade quando descobri que 0 corpo tinha uma linguagem prépria. Desde a minha mais remota in- fancia, tinhamos 0 habito de passar as férias, duas vezes por ano, nna casa de meus avés paternos, os Carrington, que possuiam uma grande fazenda na itha do sul da Nova Zelandia, a algumas cen- tenas de quilémetros de Dunedin, onde mordvamos. Eles cria- vam vacas, carneiros, porcos, galinhas e cavalos, mas orgulhavam se especialmente de suas vacas de raca “Jersey”, que ganhavam prémios todos os anos na feira agricola da regiao. Minha av uma pioneira baixinha, era o retrato escarrado da rainha Vit ria, Seus cinco filhos sua inica filha, assim como suas noras © 0 genro, chamavam-na sempre de “Mater”. Como um coronel do exército, cla reinava sobre “Pater”, seu marido, que era um pintor sonhador, sobre o tio Cedric, seu caculinha, ¢ sobre os nu- merosos pedes da fazenda. Eu detestava Mater. Ela me proibia de ver meus livros ilus- trados. Se eu queria pintar e desenhar como Pater, ela me ridicu- larizava. Mandava-me correr Id para fora para armazenar aquilo que chamava de ‘um pote de ar fresco nos pulmées”, ja que eu tinha ‘a aparéncia um pouco palida de crianga de cidade”. Meus sentimentos hostis em relacdo a ela eram provavelmente reforca- dos pelo fato de que minha mae, em seu santusrio, que era a nossa casa de Dunedin, zombava de Mater ao evocar com raiva a esti- ‘ma que Ihe testemunhavam em segredo meu pai, sua irma e os cinco irmaos dele, Mas eu sabia também que minha mae tinha ‘medo da pequena imperatriz e que, para compensar 0 fato de ser 14 TEATROS DO CORPO cla uma “estrangeira’” trazida por meu pai da Inglaterra, se ex- tremava em exibir-lhe a imagem de uma nora perfeita. Ela gos- taria que eu, filha de pai neozelandés de terceira geracdo, tam- bbém estivesse & altura, que fosse a imagem de um modelo de ne- ta. Mas, infelizmente, a cada visita, em quarenta em oito horas, cu desenvolvia uma urticaria gigantesca, fendmeno que nao acon- tecia em nenhum outro lugar e que durava todo o tempo das fé- rias. Apés dois ow trés anos, de comum acordo, a familia Car- rington decretou unanimemente que minha urticéria se devia a0 Ieite gordo demais das vacas Jersey, que eu adorava beber. Esta teoria familiar ndo era abalada sequer pelo fato de que o mesmo Ieite, bebido em outro local, ndo me provocava aqueles horri- veis ““doddis de pele”. Exasperada por ter que apresentar outra vez essa neta imperfeita ao olhar reprovador de Mater, minha mae declarou-me, na véspera de nossa partida para as férias de Natal: “‘Escute bem: nds todos estamos cheios desses seus do dis de pele! Vocé nao vai beber nem mais uma gota de leite na fazenda!”” Minha reacao foi imediata: ‘Nao é por causa do leite que eu tenho dodéis na pele, € por causa da Mater!” Produto da sabedoria ingénua de meus cinco anos, essa réplica entrou de imediato para a cronica familiar. Estranhamente, os acontecimentos que se seguiram deram crédito & minha teoria infantil de que era a minha avé que cu era alérgica! Pois a urticaria continuou a aparecer, quer eu be- besse quer ndo o leite das vacas Jersey. Depois, quando eu tinha cerca de oito anos, meu tio Cedric, que até entao escondera cui- dadosamente que andava namorando uma moca da regiao, ines- peradamente apresentoui-a nestes termos: “Esta é Edith! Vamos nos casar no final do més.” Logo se instalou, entre Mater e sua nova nora, uma guerra fria que resultow na partida de meus avés para a cidade de Napier (do outro lado do mundo, para mim!), na ilha do norte da Nova Zelandia. Foram ai acolhidos pelo tio Earnest, tiltimo solteiro a quem Mater podia impor suas vonta- des. Quanto a nds, continuamos a passar as férias na fazenda mas, sem Mater e Pater, nada foi como antes — inclusive 0 fato de que nunca mais tive urticéria! Agora eu podia fartar-me com 0 rico leite das vacas do tio Cedric. Dezenas de anos se passaram desde essa época, € nunca mais sofri de alergia de espécie algu- ma. MATER 15 Acrescentemos que, depois de sua partida da fazenda, foi Mater quem estreou no palco psicossomatica. Se hoje eu tivesse que tentar dar uma explicagao para a doenca que se abateu so- bre ela, eu diria que poderia ser atribuida & cdlera, ao despeito ‘cao sentimento de traigdo que ela experimentou diante do antincio do casamento-relampago do tio Cedric. Uma vez em Napier ¢ pelo resto de sua longa vida, Mater passou a sofrer de angina do peito... como se seu filho cacula the tivesse cravado um pu- hal no coragao. Durante os trinta anos que se seguiram, toda a familia se preocupou, receando, dia apés dia, a sua morte, Lembro-me de ter pensado que Deus a tinha castigado no cora- ao em virtude do seu cardter despético. Mas devo também ter- mne sentido culpada pelo que Ihe acontecera, pois rezava sem cessat para que Deus a mantivesse viva! Embora minhas preces apa- rentemente tenham sido ouvidas, aos quinze anos declarei sem rodcios, para consternacao de toda minha familia, que tinha me tornado atéia e que dai por diante passaria a cuidar da educacao de minha irmazinha para que ela aderisse as minhas novas con- viegSes. Acho agora que transferi para Deus os sentimentos am- bivalentes outrora vinculados a Mater, Hoje parece-me claro que Mater, com sua angina pectoris, eeu, com a minha urticéria, tinhamos como tnica escolha fa- zermos nossos corpos falarem ao invés de sentirmos nossas res- pectivas dores e elaborarmos psiquicamente sentimentos de des- peito, medo, angustia e cdlera, Evidentemente a cigncia nao es- perou pelas fantasias de uma crianga relativas & origem da urti cdria ou das patologias cardiacas para explicar os fenémenos so- maticos enigmaticos. Anos depois, eu iria aprender que a pes- quisa sobre a “‘linguagem”” somatica tinha uma longa historia. J4 no inicio do século, William Osler (1910), num tratado con- sagrado a um estudo da angina do peito, pintara um retrato do doente coronariano que se tornou classico. Osler observava que esses pacientes no cram, como em geral se tendia a acreditar, emocionalmente frageis, nem abertamente neuréticos; que, a0 contrério, pouco se preocupavam consigo mesmos € com 0s oU- tros (a sombra de Mater invadiu minha mente quando li essas linhas! 16 TEATROS DO CORPO Esta pequena histéria psicossomatica tirada de minha infan- cia nao pretende passar a impressdo de que, no inicio da minha carreira, eu era mais sensivel do que as outras pessoas as mani- festades somidticas quando elas surgiam no palco analitico, nem mesmo que estivesse especialmente preocupada com a relacio corpo-psiquismo. Eu tinha aceito entdo a posigio implicita de Freud que, embora sabendo que freqiientemente ha raz6es psi uicas ocultas nas doeneas organicas, mesmo assim decidiu manté- Jas fora do campo da pesquisa e do tratamento psicanaliticos Esse afastamento, assim como a concentragao no sistema representativo da linguagem, pode surpreender-nos. Com efei- to, Freud fundamentou toda sua teoria do aparelho psiquico no terreno biolégico; além disso, sempre insistiu em que o ser hu- ‘mano funciona como uma unidade corpo-mente. E, ademais, pre- tendia que todo processo psiquico ¢ construido sobre 0 modelo de um processo biol6gico. Apesar dessa fascinacao pela interfa ce entre psiquismo e soma, Freud achava que a psicandlise 56 tinha como campo de acdo os sintomas e as fungSes psicolég cas. Nos anos cingiienta, perfodo em que iniciei minha forma- fo analitica, e até 1962, ano da publicagao de L’investigation psychosomatique (David, Fain, Marty, de M'Uzan), eu ouvia, como a maioria de meus colegas, 0 relato das doencas fisicas de ‘meus pacientes como teria ouvido quaisquer outras associagées, isto é, como fazendo parte de uma cadeia inconsciente de pensa- ‘mentos ¢ como suporte para outras preocupagdes pré-conscientes ¢ inconscientes: fantasias de castragao, tentativas de seduzir 0 analista ete. (Hoje eu diria que confundia as mensagens saidas da imagem do corpo com as provenientes da percepgao do so- ‘ma.) Se ent&o me interrogava acerca da causa de seu aparecimento no discurso associativo, eu prestava pouca atengiio & comunica- sio virtual de ordem ndo-verbal da qual a doenca somatica po- de ser 0 sinal externo. Eu ndo me disse (como teria dito se um analisando tivesse, por exemplo, falado de uma série de aciden- tes de automével): “Por que isso ocorre neste momento? O que quererd dizer? Qual a mensagem codificaca que me esta sendo dirigida?” Interessei-me pela primeira vez. por esse mecanismo durante a anatise de um paciente sujeito a tlceras gastricas e que MATER 7 sempre tinha uma crise na semana que precedia minhas férias. Surpreendi-me entdo a me dizer, como fazem as mamdes fran- cesas quando seus filhinhos pegam um resfriado: “Ele me ar- ranjou outra iileera!” Mas meu interesse cientifico pela economia psiquica que sus- tenta 0 “self somdtico” era particularmente alimentado por um ‘campo de observagao clinica bem mais extenso, que dizia respei- to a tudo aquilo que tende a escapar ao processo psicanalitico. Refiro-me a esses sentimentos penosos que nunca aparecem no discurso associativo da sessao e que, ao invés disso, se descarre- gam numa atwacdo fora da anailise, da qual, evidentemente, nao me chegava nenhuma repercussdo. Sem toda a minha atencdo, eles teriam simplesmente escapado & minha compreensao, tanto quanto, € claro, a dos meus analisandos. Na verdade, percebi que s6 se descarrega na acdo quando a sobrecarga afetiva e a dor mental ultrapassam a capacidade de absoreao das defesas habi- tuais. Ao invés de contermos nossas emogdes e de refletirmos 50- bre elas para encontrarmos uma resposta adequada, somos le- vados a fazer alguma coisa: comer demais, beber demais, fumar demais, provocar uma briga com o namorado, destruir 0 auto- mavel... pegar uma gripe! Essas diferentes expressdes-através- do-ato, cujo objetivo & dispersar 0 afeto to depressa quanto pos- sivel, constituem freqtientemente a origem de tratamentos anali- ticos interminaveis Refletindo, pareceu-me que os mais dificeis de captar des- ses atos eram os fendmenos psicossomiticos. Coloquei-me en- ‘do a questo, em suma complexa, da distingdo entre expressoes psicossomaticas e expressbes histéricas (“Etats psychosomatiques, névrose d’angoisse et hystérie”, McDougall, 1982). Ja nao era facil manejar o proprio conceito de histeria toda ver que 0 cor- po e suas funges entravam no discurso de meus pacientes! Sen- ti entdo a necessidade de ‘dar nome” aos sintomas a fim de me- Ihor perceber sua potencial significagao inconsciente, a fim de fazer a distin¢do entre a imagem corporal ¢ 0 funcionamento so- ‘mético. Porquanto a primeira dizia respeito & imaginacao ¢ 0 se- gundo, ao real do corpo. Minha primeira tentativa de esclarecer essas questdes motivou um artigo intitulado ‘Le psychosoma et la psychanalyse” (1974). Voltarei a este ponto. 18 TEATROS DO CORPO A conversio histérica e suas confuses _Na ocasiao, fiz um retorno aos Estudos sobre a histeria, pois sentia a necessidade de um esclarecimento teérico melhor acerca das manifestacdes clinicas das perturbagdes corporais. Meus pa- cientes exibiam, como outros, sintomas dignos de Frau Emmy von N. ¢ de Frau Cacilie M. Estes nem sempre podiam ser atti- bbuidos a um corpo imaginario, portador de uma significagao pu- ramente simbélica, mas ofereciam uma dimensao histérica ¢ dente. E sabido que o sintoma histérico classico se manifesta por uma disfuncéo corporal, quando uma das partes do corpo, pot exemplo um dos érgaos dos sentidos, torna-se o suporte de uma significago simbélica inconsciente. Esta parte pode tornar-se 0 equivalente inconsciente do érgao sexual e deixa de funcionar nor- malmente se uma inibi¢ao macica atingir a sexualidade adulta. Todavia, a questéo se complicava se era preciso explicar per- turbagdes fisicas como a constipacdo, a dispepsia, a insOnia, a esterilidade psicogénica, a impoténcia sexual e a frigidez. Eu as- sistia entdo a esse tipo de “salto” da mente no corpo, que se re- velava de uma natureza totalmente diferente da da “histeria de defesa’’. No inicio, Freud (1894, 1895) recorreu ao conceito de “histetia de retengao” para descrever aquilo que distinguia tais distarbios das conversdes simbélicas “puras””. Entretanto, mais tarde, assimilou a histeria de retengdio as outras histerias, baseando-se nos mecanismos fundamentais que Ihe pareceram comuns. _ Quanto a mim, conclu que os sintomas de “retengaio” atra- vés dos quais o psiquismo empregava 0 corpo para traduzir as inibigdes das pulsdes do id (todas ligadas as funedes somaticas) eram nitidamente mais “psicossomiticas”” em sua estrutura e no tinham © mesmo sentido que as somatizagdes por conversao (McDougall, 1974). A propésito dessas duas formas de manifes- tacdo histérica, fiz-me a seguinte pergunta: “Sera possivel que © tempo de parada implicito na inibicao (tanto psiquica quanto fisica) indica uma diferenca importante ligada ao principio da realidade e & mentalizacao do conflito?” Num primeiro tempo, perguntei-me se essa mesma distin- 40 poderia ser igualmente aplicada as diferentes formas de fe- nOmenos amplamente reconhecidos como psicossomaticos. Ex- Dresses somaticas como a tilcera gastrica e a retocolite ulcerati MATER 19 va silo provas de hiperfuncionamento e da descarga direta que se seguem a acontecimentos carregados de afeto, mas nao ela- borados psiquicamente, ao passo que manifestacdes como asma ou tctania se situam no polo oposto, o da retencao. Nao obstante, no contexto da minha prépria experiéncia cli- nica, observei que 0s analisandos pouco marcados por aquilo que €chamado de alexitimia e de pensamento operatério se livraram de seus sintomas (problemas respiratérios de tipo asmatiforme, lileeras gastricas, certos casos de retocolite hemorragica) relati- vamente cedo no curso de uma longa analise. Creio que estes eram dotados de uma forte capacidade de ‘‘metaforizacio" do seu con- flito, fosse do lado da ““descarga”” ou do da “retengao”. Toda- via, muitos outros fatores devem ser levados em conta como, por exemplo, a significagao inconsciente da manifestagao somatica ‘em termos de economia libidinal arcaica (o desaparecimento muito tardio das alergias de Georgette, citada no Ultimo capitulo deste livro, € um bom exemplo: seus sintomas representavam um vin- culo extremamente primitivo com a mae aumentado tardiamen- te por uma signiticagao edipiana, onde era evidente a atragao proi- bida pelo pai). ‘As somatizagdes mencionadas acima, cuja significagao sim- bélica pura pode ser posta em diivida (impoténcia sexual, insd- nia etc,), freqiientemente se revelam como sinal externo de dese- jos libidinais proibidos, ao mesmo tempo que servem como de- fesa contra as pulses agressivas e sddicas pré-edipianas e até mes- mo contra fantasias arcaicas com base mais no medo de perder a identidade subjetiva do que numa angiistia ligada as pulsdes ea identidade sexual. Nao obstante, a cada momento, 0 psiquis- mo utiliza 0 corpo. A tarefa do analista consiste entéo em dis- tinguir as fantasias recalcadas daquelas que ainda serio construl, das, uma vez que elas nunca entraram no cédigo da linguagem, para depois poder decidir se um sintoma corresponde a uma pro- blematica marcada por angustias neuréticas ou se ¢ relativo a an- giistias psicdticas. ‘Tomemos o caso corriqueiro do paciente que tem impotén- cia sexual toda vez que deseja fazer amor e cujo discurso asso: ciativo permite compreender que, em toda mulher desejada, ele ve inconscientemente sua mae, A mulher em questo logo se torna objeto de desejo proibido, e os homens so percebidos como cas- tradores em potencial. Compreendemos com facilidade que tal 20 TEATROS DO CORPO roteiro interior torna necessaria a criagao do sintoma, que 0 ana- lisando, por assim dizer, castra a si mesmo preventivamente. E evidente também que tal construcdo sintomitica pode ser assi- milada a uma solugdo histérica para conflitos neurdticos falico- edipianos. Tomemos agora um outro analisando que sofre do mesmo sintoma de impoténcia ¢ no qual as fantasias revelam um medo inconsciente de perder o sentido de seus limites corporais. Se ousar penetrar uma mulher, corre o risco de desaparecer nela e até de tornar-se idéntico a ela, perdendo, conseqiientemente, nao ape- has sua identidade sexual, mas também sua identidade individual. ‘Com tais fantasias, saimos do dominio da angiistia neurética para entrar no campo dos terrores psicéticos. De um ponto de vista que desenvolvi em outro lugar (“*Les mots manguants et I'éco- nomie de l'affect”", McDougall, 1982a) esses distirbios podem ser considerados mais “‘psicossomaticos”” do que “histéricos”” Em outras palavras, a psicossomatose se aproxima muito da psi- cose no que se refere as angtistias vinculadas ao seu aparecimen- to. Talvez até possamos falar, por analogia com as “neuroses atuais”” de Freud, em psicose “‘atual”. Apesar da diferenga mar- cante entre o individuo que funciona com um pensamento psi- cético ¢ aquele que “somatiza”” suas angistias, encontramos no- vamente a mesma confusao inconsciente a propésito da repre- sentagdo do corpo como continente, os mesmos temores quanto 40s seus limites e & sua estanquidade e, a partir de fantasias de fusao corporal, um terror idéntico de perder o direito a identi- dade separada, tanto quanto o de ter pensamentos ¢ emogdes pes- soais. A comparagao entre essas duas organizagdes nao se limita forca dinamica das fantasias primitivas; em alguns casos, re- vela uma semelhanga quanto aos recursos econémicos mobiliza- dos para se defender desses terrores arcaicos (McDougall, op. cit. Nao obstante, € preciso observar que esses medos primiti- vos deixam em qualquer individuo vestigios psiquicos que esto ligados aos desejos e temores de todo infans* (voltaremos a este “Tene: En tin no oi. nfans = innate) + fans, fan ga bres, dverbofor qe signin ter a facades aso a fal” Cl Sune, Novisime aon lato porugues Gani B24) (NT) MATER eA) ponto no capitulo seguinte). Esses fantasmas, associados as an- wlistias infraverbais adjacentes & relagdio mde-lactente, podem ser considerados como o protétipo daquilo que vem a ser a anguistia de castragao resultante da crise edipiana. Esta tiltima esta, como E sabido, associada as representagoes verbais e corresponde a uma imagem corporal com limites consolidados ¢ estanques. Nas me- thores circunstancias, a nostalgia da fusao primordial, assim co- mo 0 temor pela sobrevivéncia psiquica que este fantasma des- perla so em grande parte resolvidos na fase félico-edipiana, pois © pai ¢ investido do papel original de protetor contra esse desejo primitivo. Conseqlientemente, os pavores primirios sao reabsor- vidos e transferem sua forca para as angustias mais claboradas do Edipo. Quando a angistia psiedtica domina 0 quadro clinico, nao estamos mais diante de uma problematica histérica no sentido clissico do termo, embora os analisandos de que tratamos aqui (que sofrem de sintomas a meio caminho entre a neurose e a so: ‘matizag2o) absolutamente nao sejam psicdticos. Talvez esteja- mos na posi¢ao de perguntar-nos se muitas organizagdes neuro- ticas, histéricas e obsessivas ndo so, no fundo, construidas a par- tir de um niicleo psicético. Da mesma maneira, essas expressbes sométicas intermedia- rias entre a ncurose, a psicose e a psicossomatose nao poderiam também ser assimiladas as doengas psicossomaticas descritas com © termo de “*Chicago Seven” (asma bronquica, ileera gastrica, artrite reumatdide, retocolite ulcerativa, neurodermatoses, tiro- toxicose, hipertensao essencial). Foram estudadas inicialmente por Franz Alexander (1950), depois por Alexander, French e Pol- lock (1968) em Chicago. Essas manifestages eram consideradas, como desprovidas de significagao simbélica. As pesquisas de Ale- xander o levaram a conceitualizar organizagdes especificas de per- sonalidade que correspondiam a esta ou aquela expresso psi cossomiitica, Hoje essas concepcdes estdo sendo postas em dii- vida, 0 que ndo impediu que fosse definido nas pesqui recentes sobre doengas cardiacas um tipo de personalidade cha- mado “tipo A” (Friedman, 1959; Rosenman, 1975) 2 TEATROS DO CORPO psiquismo ¢ a doenga psicossomaitica Nas afeccdes psicossomiticas, 0 dano fisico ¢ bem real, ¢ sua descrigdo, durante uma andlise, ndo revela a primeira vista qualquer conflito neurético ou psicético. O “sentido” € de or- dem pré-simbolica e provoca um curto-circuito na representacéo dda palavra. Vamos tentar aqui fazer uma comparagao com a ma- neira pela qual os psiedticos tratam a linguagem. O pensamento do psicético pode ser concebido como uma “inflagao delirante"” do emprego da palavra com a finalidade de preencher os espa 0s de vazio aterrorizante (Montgrain, 1987), enquanto 0s pro- essos de pensamento dos somatizantes procuram esvaziar a pa- lavra de sua significacdo afetiva (McDougall, 1982a). Nos esta- dos psicossomaticos, ¢ o corpo que se comporta de mancira ‘“de- lirante”; ele “hiperfunciona” ou inibe fungdes sométicas nor- mais e 0 faz de modo insensato no plano fisioldgico. O corpo enlouquece. O fato de as organizacdes psicoticas e psicossoma- ticas serem 20 mesmo tempo semelhantes e muito diferentes me preocupou durante anos sem que eu pudesse encontrar uma so- ugao tedrica adequada. ‘A medida que cu perscrutava as expressOes somticas de meus analisandos, cheguei a conclusdo de que os fendmenos psicosso- ‘maticos néo poderiam, do ponto de vista psicanalitico, ser limi- tados as doengas do soma e que deveriam incluir teoricamente, se for levada em conta a economia psiquica, tudo aquilo que atinge 0 corpo real (diferentemente do corpo imaginario da conversio histérica), inclusive suas fungdes autOnomas. Assim, passei a con- siderar como ligado aos fendmenos psicossomaticos tudo aquilo {que atinge a slide ou a integridade fisica quando os Fatores psi- colégicos desempenham algum papel. Inclui ai, por exemplo, as predisposigdes aos acidentes corporais e as falhas do sistema imu- nolégico de um individuo (McDougall, 1978). A pesquisa indus- trial, para citar s6 este exemplo, demonstra que os seres huma- nos tendem mais a adoecer ea softer acidentes quando esto an- siosos, deprimidos, estafados, do que quando a vida eo futuro Ihes sorriem. A adicgdo, a meu ver, também faz parte desse con- jumo, Com efeite, pode ser considerada como uma tentativa “psi- cossomitica”” de superar a dor mental através do recurso a subs- tancias externas que tranqtlilizam o espirito e suprimem provi- MATER 2B soriamente 0 conflito psiquico. O inconveniente desta solugdo que tem que ser repetida indefinidamente. © corpo enquanto joguete da mente Embora a angiistia seja a principal fonte de todos 0s nossos sintomas, a questao da “escolha’”” do sintoma enquanto tentati- va de cura de si mesmo continua em aberto. Diante do mesmo conflito, um determinado individuo vai criar uma neurose e um outro desenvolverd uma perversio sexual, um delirio ow uma doenca psicossomatica. Na pritica, s6 a posteriori podemos de- terminar por que um determinado individuo resolve seu proble- ma de identidade sexual obrigando-se a ser um ejaculador pre- coce ow a cumprir um ritual compulsivo de lavar as maos. Dian- te do mesmo problema, um outro conservara a atividade sexual associando-a a uma conduta fetichista ou sadomasoquista. Fi- nalmente, um individuo mais afetado submergiré num delirio que vai submeter sua sexualidade & de seres extraterrestres ou a algu- ‘ma maquina de influenciar, ou entao yai ataear seu préprio cor- ‘po (sem sintomas sexuais manifestos) sob a forma de tilcera pép tica, de alergias cutdneas, de asma ou de tetania, A analise po- dera reconstruir a historia desses conflitos libidinais e narcisicos, ‘mas nao pode predizer as condigdes de sua produgao (0 desapa” recimento dos sintomas psicossomaticos do caso de Isaac, rela- tado em Thédtres du je (McDougall, 1982a], onde os contlitos no elaborados psiquicamente se traduziram em palavras pela primeira vez, é demonstrativo a esse propésito). ‘A questo da causalidade complica-se com a necessidade de distinguir entre as causas da attalizacao do sintoma (como a ex- citacdo sexual) e sua origem nas primeiras trocas entre mie ¢ lac- tente © seu efeito sobre a organizacio c a estruturacdo iniciai do psiquismo. No que se refere s afecydes psicossomaticas, pa- rece provavel que determinados modos de funcionamento men- tal adquiridos nos primeiros meses de vida podem predispor mais as eclosdes psicossomaticas do que as solucdes neurdticas, psi céticas ou perversas. Para dizer a verdade, meu interesse pela causalidade psiquica em sua relagao com as primeiras pulsdes libidinais nao me levou a interrogar-me imediatamente sobre as produgdes psicosso- 24 TEATROS DO CORPO mdticas, Ao contrario, s6 tardiamente cheguei a esse ponto. Num primeiro momento, foi na perversiio que descobri, aquém dos Conflitos edipianos evidentes, suas origens mais antigas (MeDou- gall, 1964, 1978, 1982). Precisei de tempo para postular a exis- téncia de uma sexualidade ainda mais primitiva, dotada de as- pectos sidicos e fusionais, que podia estar na origem das reeres- bes psicossomticas que é possivel considerar como defesas contra vivéncias mortiferas. Neste universo em que a indistincao entre si mesmo € 0 outro se esbate, existe apenas tim corpo para dois. Correndo 0 risco de engendrar confusdo terminologica, vim a falar em “histeria arcaica’” para qualificar esses sintomas psi ‘cossomaticos. Digamos, para distingui-las, que a histeria neurd- tica 6 construida a partir de lagos verbais, enquanto aquela que descrevi sob o nome de histeria arcaica busca preservar ndo 0 sexo ola sexualidade do individuo, mas seu corpo inteiro, sua vida, e se constrdi a partir de lagos somatopsiquicos pré-verbais. 0 psicossoma no cenario psicanalitico Ao longo dos anos prestei mais atencio 4 maneira com fun- cionavam alguns de meus analisandos que, além de problemas psicolégicos, sofriam de alergias cutaneas, afecedes cardiacas, respiratorias ou ginecoldgicas cujos surgimento e desaparecimento pareciam estar estreitamente ligados a distirbios afetivos. Co- ‘mecei entdo a ler trabalhos ¢ artigos de analistas-psicossomatistas para ver se estes me permitiriam compreender melhor meus pa- cientes. A experiéncia clinica me ensinara que todos os analisan- dos (e 0s analistas também!) somatizam mais dia, menos dia, as. sim como me ensinara que as eclosdes somaticas coincidem, na maioria das vezes, com acontecimentos que ultrapassam a capa~ ‘dade de tolerdncia habitual desses pacientes. Mas aqueles que Teagiam através de fenémenos psicossomaticos a quase fodas as situagdes capazes de mobilizar emogdes fortes (cdlera, angiistias de separacao) chamavam especialmente a minha atenco. Era no tavel, além do mais, que essas doencas sempre tinham estado pre- sentes, mas que eles raramente as mencionavam por acreditarem que nao tinham significacao psicoldgica. Fiquei ainda mais espantada ao perceber que esses pacie tes, de certa forma, preservavam inconscientemente essa capaci MATER Bs dade de adoecer, como se ela thes permitisse uma “saida’’, co- imo se tivessem necessidade, em periodos de crise, de apalpar seus limites corporais ¢ de garantir assim um minimo de existéncia separada de qualquer outro objeto significativo, A pesquisa psicossomitica _ Antes de considerar uma abordagem especificamente psica- nalitica com relacdo & teoria da causalidade psiquica, convém pas- sar os olhos nos trabalhos produzidos nos centros psicossomati- 0s, que enriqueceram consideravelmente a compreensi0o das eclo- ses psicossomudticas no tratamento psicanalitico. Psicossomatistas de orientacdo psicanalitica publicaram nos Altimos vinte anos os resultados de uma pesquisa que realizaram a partir de entrevistas com centenas de pacientes em centros es- pecializados. Num primeiro momento, suas pesquisas permiti- ram a criac3o de dois conceitos principais, bem como de um es- bogo de uma “personalidade psicossomatica’’. O primeiro con- ceito, o de pensamento operatério, refere-se a uma maneira de relagdo com os outros e consigo mesmo, bem como a uma for- ma de pensamento ¢ de expresso. Esse modo de pensar, de al- guma maneira “deslibidinizado” e extremamente pragmatico, foi descrito por psicanalistas da Sociedade Psicanalitica de Paris (Marty, de M’Uzan e David, 1963; Marty e de M’Uzan, 1963), ‘A estes trabalhos vinha se acrescentar o importante conceito de neurose de comportamento (Marty, 1976, 1980) ive oportunidade de ouvir gravagdes de entrevistas e de acompanhar seminarios organizados por esses colegas. Mais tarde, assisti as exposigdes clinicas de Michel Fain (1971, 1974) e come. cei a ouvir de outra maneira os meus analisandos, a reconhecer esses discursos estranhos que me tinham impressionado no pas- sado e dos quais ew falara sob um outro angulo (“Les antianaly- sants en psychanalyse”, MeDougall, 1972). Ocorreu-me entao uma recordacao que dizia respeito a uma das minhas primeiras pacientes em andlise. Na entrevista preliminar que tivera com Do- othée, eu observara que ela se referia com facilidade a sua sati- de fisica quando evocava sua infancia: ““Eu sofri de asma du- rante toda a minha infancia, mas ela desapareceu quando sai de casa para me casar. E volta toda vez que vou passar férias com 26 TEATROS DO CORPO ximo da cidade de minha mae.” Pedi-lhe entdo que me falasse “Bem, ela € mais para alta, bastante forte, bastante bonita, sempre muito ocupada com mil pequenas tarefas... Bem, ela ndo é mais tao ativa como naquele tempo... Agora sofre de reumatismo, @ senhora sabe...’ Estas palavras despertaram em mim uma im- crevendo sua mae de fora — como faria um estranho.”” Quando ‘em seguida tentei fazé-la falar sobre seus sentimentos por sua mae, pria realidade psiquica. “Nao compreendo exatamente 0 que a cio, S6 @ posteriori pude reconhecer aquilo que meus colegas des- “reconhecia’” 0 que Dorothée sentira por ela. Sera possivel fa- lar nesse caso de representacao de coisas inconscientes? Esta é Alguns anos depois, as publicacdes ia Escola de en ins- miah e Sifneos, 1970a, 1970b, 1978). Esta palavra, de origem grega sem; lexis = palavra; thymos = coragao ou afetividade), de- signa o fato de que 0 individuo nao tem palavras para dar nome ‘a seus estados afetivos, ou, caso consiga dar nomes a eles, 0 fato de que nao consegue distinguir um estado do outro. Nao seria pelo menos em meus préprios pacientes, eu constatara que esses fendmenos tinham sobretudo uma funcao defensiva, Jevando-nos. to € objeto ainda ndo é estvel e pode despertar angustia. Essa MATER ” inscritas psiquicamente sem representagdes de palavras, como no inicio da infancia. O infans, antes de ter a palavra, é necessaria- mente “alexitimico” (McDougall, 1982, cap. 7). Isso me fez fa- lar de “‘afeto forcluido”, correndo o risco de criar uma confu- so terminolégica, como no caso da histeria arcaica. E evidente que, para aquele que é dotado da palavra, o reptidio ou a for- clusio de uma idéia insuportdvel por parte do psiquismo se da, como diz Freud, sobre a representacao da palavra, isto é, sobre pensamentos que nao podem receber seu quantum de afeto. Foi por isso que tentei acrescentar aos destinos do afeto inacessivel ‘a0 consciente descritos por Freud um quarto destino no qual o afeto seria congelado e a representagdo verbal que 0 conota, pul- verizada, como se nunea tivesse tido acesso a0 individuo. ‘Como j disse, meu interesse pelas maneiras “‘desafetadas”” de pensar e de relacionar-se era alimentado por meu desejo de compreender aquilo que aparentemente escapava ao processo psi canalitico, Alguns de meus pacientes recusavam-se a reconhecer sua dor psiquica provocada por afetos dolorosos ou afetos exci jam uma capacidade ineomum de expulsar de seu dis- curso analitico certas experiéncias carregadas de afeto, com a con- seqiiéncia de que estas encontravam expresso fora da andlise, de certo modo, fora do psiquismo. Estas experiéncias que se des- carregavam na aco ou sobre o ambiente s6 se tornavam acessi veis & palavra por intermédio de uma preocupagdo contratrans- ferencial. Isso ndo tornava mais facil estabelecer a relagao entre a experiéncia afetiva forcluida e as manifestagdes somaticas. Além disso, esses analisandos se queixavam freqiientemente de um sen- timento de vazio, de uma auséncia de contato com as outras pes- soas, ou achavam que a vida nao tinha sentido. Foram necessarios longos anos de andlise com determina- dos pacientes para compreender que era nas situagdes de stress que eles se revelavam alexitimicos ou operatdrios. Isso me levou ‘a pensar que essas reagdes eram como medidas draconianas pa- ra enfrentar dores mentais impossiveis de elaborar ou angiistias psicdticas. Ao tentar conceitualizar esses fendmenos, eu me afas- tava necessariamente da posicdo dos psicossomatistas que apre- sentavam conceitos de causalidade bem diferentes, em termos de desorganizacdo progressiva ou de defeito neuroanatémico (don deo pessimismo que envolvia o tratamento possivel dos grandes somatizantes pela psicandlise). Esses fenémenos, que podem ser 28 TEATROS DO CORPO observados nos centros psicossomaticos especializados, nao se aplicavam aos de meus préprios analisandos que sofriam uma regressao somiitica grave. Evidentemente, tratava-se de duas po- pulacdes diferentes: os que recorrem a psicanalise o fazem em funcao de seu sofrimento psiquico, enquanto as pessoas envia~ das por recomendagiio médica a um psicossomatista podem ¢s- tar totalmente inconscientes de seus problemas psicoldgicos ¢, por isso, sdo inaptas para uma intervencdo de tipo psicoterapeu- tico. E até provavel que suas defesas macigas contra o reconhe- cimento do conflito mental sejam necessarias ao seu equilibrio psiquico. Na minha opinido (que € compartithada pela maioria Ge meus colegas psicossomatistas), qualquer tentativa de desfa- zer essas defesas sem 0 consentimento ¢ a cooperagaio do pacien- te pode revelar-se perigosa porque pode aumentar seus proble~ ‘mas somaticos e psiquicos. Eis por que é importante detectar a existéncia de uma dimensio neurdtica nos somatizantes graves desde as primeiras entrevistas. © coragio da matéria Esta reflexdo leva-me & patologia cardiaca ¢ aos conceitos de causalidade e de personalidade “tipo A", propostos pelos pes {quisadores norte-americanos. Tim, que vamos encontrar no ca pitulo VIII deste livro, sofreu um enfarte do miocardio durante Sua andlise. Ele manifestava uma estrutura psiquica que, & pri- meira vista, parecia-se estranhamente com 0 retrato clinico tra- cado pelos psicossomatistas. Entretanto, esse acontecimento tra fico e traumatico permitiu-nos, a Tim ¢ a mim, fazer algumas descobertas cruciais. Seu funcionamento mental, por mais que estivesse em alguns aspectos de acordo com as hipéteses dos psi- ‘cossomatistas, nem por isso deixava de revelar fatores dinmi- cos inconscientes que contribuiam para esse tipo de funcionamen- to, Além de uma economia psiquica marcada por uma maneira de funcionar operatéria e alexitimica, descobrimos uma camada de traumatismos precoces que remetia ao inicio de sua infancia © relacdo primordial com sua mae. 'As pesquisas atuais (Brazelton, 1982; Stern, 1985; Debray, 1988) poem em evidéncia a importancia das primeiras trocas mae- actente, bem como o fato de que cada bebé constantemente en- MATER 29 ia & sua mie sinais que indicam suas preferéncias ¢ suas aver- sdes. Se a mae estiver livre de entraves internos, saberd “ouvir” as comunicagdes iniciais de seu lactente. Mas pode'ocorrer que uma mie, presa de sofrimento e angustia internos, nao seja ca- paz de observar e interpretar 0s sortisos, 0s gestos ¢ as queixas de seu filhinho ¢ que, a0 contrario, o violente ao impor seus pré- prios desejos e necessidades, o que cria no bebé um sentimento permanente de frustragao ¢ de furia impotente. Esse tipo de ex- perigncia pode impeli-lo a construir com os recursos de que dis- de maneiras radicais de se proteger de crises afetivas e do esgo- tamento que disso pode resultar. E tipico o retrato que muitos esses pacientes fazem de suas maes. Um outro fendmeno que provavelmente esta ligado as defesas primitivas contra a emoti- vidade € a recordacao de uma precocidade notavel na aquisigao da autonomia (de andar, da utilizagao da linguagem, dos habi- 10s higignicos). As pesquisas de Piera Aulagnier (1975, 1984) no terreno da psicose ¢ de sua génese especifica também mostram isso. A relagao primitiva da mae ¢ da crianca revela-nos a mes- ma “‘violéncia da interpretacao””. Mas € possivel que a “‘esco- tha’? entre psicose e psicossomatose seja, em certa medida, devi- da & constelacao familiar ¢ ao papel simbélico representado pe- lo pai na organizacdo psiquica. Solucio neurética, solugio psicossomiiti Houve uma época em que fiquei impressionada pela apa- rente “*normalidade” de alguns de meus analisandos somatizan- tes, Em seguida, fui levada a ver uma oposigao entre manifesta- es neurdticas e sintomas somaticos e a considerar essas mai Festagdes como tendo uma fungio de protecao contra explosdes psicossomaticas. Minha propria reflexao foi estimulada pelas pes- quisas pioneiras de George Engel (que ja em 1962 adiantava que 0s fendmenos psicossomaticos poderiam ser evitados quando exis- tisse uma organizacdo neurdtica que servisse como “escudo” con- tra a somatizacao). Pensei entdo que seria possivel assistir no adul- toa regressdes psicossomaticas semelhantes aquelas que podem ser observadas em criangas pequenas psicossomaticamente perturba- das. O modo de atuar dos adictos é um outro exemplo disso. 30 TEATROS DO CORPO ‘A medida que me pus a observar em detalhe o discurso de meus analisandos somatizantes ea relagao transferencial que es- tabcleciam comigo, uma outra dimensio me chamou a atencao. Eu ja tinha descrito um certo tipo de pacientes que pareciam ndo apresentar sofrimento neurético e que exibiam uma total apa- réncia de normalidade: uma espécie de pseudonormalidade. Eu chamara-os de “‘normopatas”; a0 mesmo tempo, notava que exi- biam todas as caracteristicas daquilo que Winnicott chamou de “falso self”. Parecia-me que esse falso self serviria, como Win- nicott aponta, para proteger 0 ‘‘verdadeiro” self, que, de outro ‘modo, correria o risco de nao sobreviver (McDougall, 1978). Mas foram-me necessarios longos anos até que eu pudesse conceitua- lizar melhor um tal modo de funcionamento mental, porque, por uum lado, nem todos os meus normopatas somatizavam e, por outro, s6 raramente aqueles que sofriam de doencas psicosso- raticas conseguiam estabelecer uma ligagao de causalidade en- tre suas afecgoes ¢ a ocorréncia de acontecimentos perturbado- res em suas vidas. Foi neste ponto que as pesquisas de meus colegas psicosso- rmatistas me foram esclarecedoras. Pude entdo reconstruir, pas- 50 a passo, como os analisandos langavam para fora do psiquis mo determinados traumas e faziam isso de uma maneira singu- Jarmente diferente do modo de funcionamento neurético. Neles, nao havia mais qualquer vestigio daqueles sinais de anguistia que permitiriam ao psiquismo preparar-se para enfrentar a situagao perturbadora, O que equivale a dizer que, ao contrario do que corre nas organizacdes neurbticas, essas fontes potenciais de an- ustia ndo tinham se tornado simbolizaveis, uma vez que nao ti- ham sofrido nem negagdo, nem recusa, nem recalcamento. Es- te método de funcionamento repercutia no discurso associativo, dando-the uma tonalidade desafetada ou alienante, capaz de mo- bilizar reagdes contratransferenciais de minha parte, Nao encontrei metafora melhor do que esta: 0 discurso desses pacientes me fa~ zia pensar numa cangdo da qual eu tivesse ouvido somente a mui- siea, mas cuja letra tivesse permanecido inaudivel: uma palavra por assim dizer desafetada (McDougall, 1981 e o capitulo VI deste livro). Pude observar que esta maneira de confiscar um aconte- cimento carregado de afeto em excesso sem Ihe dar uma saida do lado psicoldgico estava igualmente presente em pacientes que, sem serem grandes somatizantes, faziam aqui ou ali descompen- MATER 31 sages transitérias ou sofriam de distiirbios de algum modo p: cossomaticos (como insénia ou impoténcia sexual). Nos préximos capitulos voltarei as premissas que acabo de esbogar ¢ tentarei ilustré-las com exemplos clinicos. Entretanto, 1ndo nos esqueceremos de que todo esse trabalho sobre os miste- riosos saltos do psiquismo no corpo nao passa de um dos elos de uma pesquisa que estoy realizando e cujas lacunas estou ten~ tando preencher.

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