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Formar professores como profissionais reflexivos Donald A. Schén In: Névoa, Anténio, Os professores e sua formagao. Dom Quixote, Lisboa, 1992 Como sabem, estamos agora no meio de um dos processos ciclicos de reforma educativa. Mais uma vez, tomamos consciéncia das inadequagdes da educagio na América, Como é habito, atribuimos a culpa as escolas € aos professores, 0 que equivale a culpar as vitimas. Alguns legisladores iniciaram um processo tendente a instituir um controle regulador das escolas, procurando legislar sobre o que deve ser ensinado, quando e por quem, contemplando ainda os modos de testar 0 que foi aprendido e se os professores sfio competentes para o ensinar. Neste processo, estamos a repetir um modelo ja conhecido de politica da reforma, ou seja, uma regulagao do centro para a periferia em que uma orientagao politica emanada de um governo central para uma periferia de instituigdes locais € reforgada através de um sistema de prémios e punicdes. Tais intervencdes induzem as instituigdes periféricas a tornear os regulamentos, a “arranjar” os relatérios de modo a sintonizi-los com a politica central e a fazer uma interpretagdo literal das medidas em detrimento das intengdes que Ihes esto subjacentes, tal como as criangas aprendem a obter boas notas em vez de aprenderem os contetidos que so ensinados. O resultado de tudo isto é uma espécie de jogo paralelo entre as escolas na periferia, que procuram continuar a fazer as mesmas atividades, e as autoridades centrais ou regionais que tentam controlar os comportamentos das escolas. Todas estas respostas das escolas so tentativas para conservar uma preciosa liberdade de decisio, Subjacente ao debate sobre estas intervencdes situam-se trés questdes principais: Cpa do taxto em partugués obtido em worn profmarcussibeia com br DONALD SCHON 1 - Quais as competéncias que os professores deveriam ajudar as criangas a desenvolver? - Que tipos de couhecimento e de saber-fazer permitem aos professores desempenhar o seu trabalho eficazmente? = Que tipos de formagio serio mais vidveis para equipar os professores com as capacidades necessirias ao desempenho do seu trabalho? A vaga atual de reformas educativas oferece uma oportunidade tinica para reexaminar estas questdes, pois 0 que est a acontecer na educagio reflete 0 que estd a acontecer noutras areas: uma crise de confianca no_ co profissional, que despoleta Antes de me debrugar mais profundamente sobre esta ideia, é preciso dizer que ela nada tem de novo. Muito daquilo que acabei de referir pode ser encontrado nas obras de escritores como Léon Tolstoi, John Dewey, Alfred Schutz, Lev Vigotsky, Kurt Lewin, Jean Piaget, Ludwig Wittgenstein e David Hawkins, todos pertencendo, se bem que de formas diversas, a uma certa tradigao do pensamento epistemolgico e pedagégico. Consideremos 0 Teacher Projetet, o trabalho de Jeanne Bamberger e Eleanor Duckworth. Com um pequeno grupo de professores do ensino bisico em Cambridge (Massachussetts), Bamberger e Duckworth realizaram um seminario onde, durante varias horas por semana ao longo de trés anos ou quatro anos, mostraram aos professores um video sobre dois rapazes separados um do outro por um ecra opaco. Cada um dos rapazes tinha diante de si um conjunto de solidos geométricos de diferentes tamanhos, formas ¢ cores. Em frente de um dos rapazes estava um modelo fixo: defronte do outro, encontrava-se uma miscelanea de sélidos geométricos, que o segundo rapaz teria de transformar no modelo fixo seguindo as instrugGes do primeiro. A medida que os professores viam o filme, observavam que, embora as instrugdes do primeiro rapaz parecessem bem formuladas, 0 segundo estava cada vez mais confuso. Os professores diziam coisas como: O segundo rapaz parecia ser um aluno de aprendizagem lenta; Néo consegue estar atento durante muito tempo: Nao consegue seguir as instrugées. Neste momento, uma das investigadoras salientou: Parece-me que o primeiro rapaz deu uma instrugdo errada, pois disse: “Pde 0 quadrado verde”, mas ndio existem quadrados verdes, $6 ha quadrados laranja e as tinicas coisas verdes siio 0s tridngulos. Uma das vantagens do video ¢ que pode ser revisto, e por isso os professores puderam voltar atris e observar o filme uma vez mais. Com efeito, 80 FORMAR PROFESSORES COMO PROFISSIONAIS REFLEXIVOS. coneluiram que as instrugdes do primeiro rapaz se referiam a um quadrado verde quando nao havia quadrado dessa cor. A medida que continuavam a observar 0 filme, ficaram surpreendidos ao notar que, de fato, segundo rapaz era eximio no cumprimento das instrugdes, encontrando sentidos em indicagdes sem nexo. Foi ent3o que um dos professores notou algo de surpreendente: Aquilo que acabévamos de fazer, foi dar razéio ao aluno. Essa expressio — dar razéio ao alymo —inspirou os professores durante os restantes dois anos do seminario. Neste exemplo esto contidas Existe, primeiro que tudo, a nogao de saber escolar, isto €, um tipo de conhecimento que os professores s4o supostos possuir ¢ transmitir aos alunos. E uma visio dos saberes como fatos ¢ teorias aceites, como proposes estabelecidas na aa de ae 0 saber (GRPUSHSEREMS. E molecular, feito de pecas isoladas, que podem ser combinadas em sistemas cada vez mais elaborados de modo a formar um conhecimento avangado. A progressio dos niveis mais elementares para os niveis mais avangados € vista como um movimento das unidades basicas para a sua combinagao em estruturas complexas de conhecimento. Por ou lado, CSET EATER. Como exemple, consideremos o psicdlogo russo Luria, que estudou o desenvolvimento cognitivo em camponeses no momento da coletivizacao da agricultura, Luria mostrava-lhes uma colegio de imagens de objetos e dizia: Associem as coisas que tém a ver umas com as outras. Uma destas colegées continha uma serra, um martelo, um machado ¢ um tronco. Quando Luria dizia, Associem as coisas que tém a ver umas com as outras, 0s camponeses que tinham frequentado as escolas coletivas respondiam: Bem, a serra, 0 machado eo martelo podem associar-se porque sio utensilios. No entanto, outros camponeses afirmavam: Bom, pode usar-se a serra para cortar a madeira para as fogueiras; pode usar-se 0 machado para cortar a ‘madeira para as fogueiras; por isso é possivel associar 0 tronco, 0 machado e a serra, Entio, Luria retorquiu-lhes: Ev tenho um amigo que diz que todos os utensilios esto associados. A resposta dos camponeses foi pronta: O seu amigo deve ter muita lenha para fazer fogueiras! Agrupar objetos de acordo com os seus contextos situacionais € muito diferente do que agrupa-los mma s6 categoria. Neste sentido, o saber escolar € categorial. 81 DONALD SCHON Finalmente, existe a ideia muito importante de que o conhecimento molecular, certo, factual e categorial, ¢ também privilegiado. Se um aluno tiver problemas na aquisi¢ao dos saberes escolares, trata-se de um problema seu. Inventamos entao categorias (por exemplo, “aprendizagem lenta”) para explicar esta realidade, as quais, no fundo, s6 servem para nos livrarmos de informagdes que nos poderiam perturbar. ‘Uma mensage! indida do centro para a periferia através de uma logica de comunicagao ¢ de controle. O conhecimento emanado do centro é imposto na periferia, ndo se admitindo a sua reelaboragdo. De fato, quando o governo procura reformar a educacio, tenta educar as escolas, do mesmo modo que estas procuram educar as criangas. E possivel ilustrar uma segunda visio do conhecimento e do ensino através dos professores que deram raz@o ao aluno. Os professores reconheceram nas criangas uma capacidade que o filésofo Michael Polanyi designa de “conhecimento técito”: espontineo, intuitive, experimental, conhecimento quotidiano, do tipo revelado pela crianca que faz um bom jogo de basquetebol, que arranja uma bicicleta ou uma motocicleta ou que toca ritmos complicados no tambor, apesar de no saber fazer operagGes aritméticas elementares. Tal como um aluno meu me dizia, falando de um seu aluno: “Ele sabe fazer trocos, mas ndo sabe somar os niimeros”. Se o professor quiser familiarizar-se com este tipo de saber, tem que Ihe prestar atengao, ser curioso, ouvi-lo, surpreender-se, e atuar como uma espécie de detetive que procura descobrir as razdes que levam as criangas a dizer certas coisas Ha nmuitos anos, o Conde Léon Tolstoi, no tempo que mediou entre Os Cossacos e Guerra e Paz, fundou uma escola na sua propriedade de Yasnaya Polanya, para ensinar os filhos dos camponeses. Devido a sua grande energia, 0 projeto alargou-se com a criagdo de cerca de setenta escolas, de uma escola de formagao de professores ¢ de um jomal pedagégico. A passagem seguinte ilustra a sua opiniao sobre a individualizacao no ensino dos rudimentos da leitura, “Todos os individuos devem, no mais curso espago de tempo, ser ensinados individualmente de modo a adquirir a arte da leitura”. Por isso devera haver um FORMAR PROFESSORES COMO PROFISSIONAIS REFLEXIVOS. método particular para cada um deles. O que é uma dificuldade instransponivel para um, nao o sera para outro, e vice-versa. Aum aluno que tenha boa meméria, ser-lhe-4 mais fécil memorizar as silabas do que compreender as consoantes mudas... Outro compreendera instintivamente a lei da combinagio das palavras lendo-as na integra, pelo que o aluno faz. Num segundo momento, reflete sobre esse fato, ou seja, pensa sobre aquilo que o aluno disse ou fez e, simultaneamente, procura compreender a razdo por que foi surpreendido. Depois, num terceiro momento, reformula 0 problema suscitado pela situacio; talvez o aluno nao seja de aprendizagem lenta, mas, pelo contrario, seja eximio no cumprimento das instrugdes. Num quarto momento, efetua uma experiéncia para testar a sua nova hipotese; por exemplo, coloca uma nova questao ou estabelece uma nova tarefa para testar a ae 6 jie lou sobre o modo de pensar do aluno. Este Por outro lad Tipicamente, a feflexio-na-agio de um professor implica a questio Ja mencionei 0 exemplo de Luria em relacio lenha, Também existe o interessante trabalho realizado por Sylvia Scribner que observou o modo como os leiteiros atendiam as encomendas numa fabrica de Nova Torque. Notou como eles dispunham as garrafas de leite nos 83 DONALD SCHON caixotes (por exemplo, trés garrafas de chocolate, duas garrafas de natas, ete.). Descobriu que os leiteiros experientes o faziam muito mais rapidamente do que as pessoas que tinham acabado a escola ha pouco tempo, apesar destes terem mais habilitagGes académicas. Reparou que os leiteiros com experiéneia usavam © proprio caixote, com as suas doze aberturas, como uma unidade de céleulo; por exemplo, olhando para o caixote e vendo sé uma abertura, verificavam que s6 continha onde garrafas, vendo-o meio cheio sabiam que continha seis garrafas Faziam contas com o caixote, como “uma coisa com que pensar”, tal como Seymour Papert disse, empregando uma estratégia de representagio muito diferente de uma lista de nimeros. No Massachusetts Institute of Technology tive a oportunidade de estudar 0s esforgos realizados por alguns engenheiros para construir computadores aplicaveis ao estudo da engenharia. Um trabalho muito interessante, feito por John Slater, é um programa informético chamado “Growltiger”, que permite desenhar estruturas tais como uma ponte ou um andaime. O utilizador tem de especificar as cargas a serem aplicadas sobre a estrutura, apés 0 que um programa inserido no sistema analisar4 rapidamente como a estrutura se deforma com 0 peso, produzindo uma representagio visual dessas deformagdes. Como todo este processo se desenrola rapidamente, o estudante pode fazer experiéneias, pode formular perguntas e pode observar como as deformacées se alteram. Alguns estudantes que utilizam o programa afirmam que, apesar de terem estudado e de saberem a teoria das estruturas, nio tinham tido até esse momento a “nogao do comportamento de uma estrutura”, como se quisessem dizer: Eu devia saber a teoria, estudei-a, e posso até dizer as formulas. Mas ndo tinha realmente compreendido como ela funcionava até ter feito estas experiéncias, tuma apés a outra, @ ter observado os resultados. De certo modo, o fato de se saber a teoria, no sentido de saber as proposigdes relevantes e as formulas, ndo € © mesmo do que ter a “nog’o do comportamento da estrutura”, 0 que permite antecipar como ela se deformara com o peso. Numa escola do ensino basico que eu conhego, uma professora pediu aos alunos que medissem os troncos das arvores com um cordel e depois que pendurassem esses cordéis de vrios comprimentos na parede. Mas houve uma aluna que se recusou a esticar 0 seu cordel; em vez disso, pendurou-o em forma de lacada, Para ela, 0 comprimento de uma lagada nao era o mesmo de um cordel estendido. E possivel afirmar que a aluna no percebeu o que se pretendia. E, de fato, ela no entenden a ideia do comprimento de uma linha enquanto quantidade que é constante, independentemente da forma que toma. Mas houve algo, no entanto, que ela entendeu: a qualidade especial da forma em lagada. 84 FORMAR PROFESSORES COMO PROFISSIONAIS REFLEXIVOS. Se alguma vez tentaram ensinar escrita musical, ou ouviram uma crianga a tentar aprendé-la, terdo observado a dificuldade de tocar ou cantar uma melodia coerente a partir da pauta. A escrita musical mostra barras que dividem a melodia em unidades métricas constantes Mas uma melodia arravessa essas unidades. Ha pessoas que sabem cantar ou tocar “de ouvido”, mas nao sabem ler as pautas. Pelo contrario, a maioria das pessoas que aprende a escrita musical ndo consegue de inicio usa-la de modo a produzir uma melodia coerente; apés terem aprendido a escrita, terdo de aprender a construir uma coeréneia musical. Todos estes exemplos ilustram a diferenga entre o que eu ¢ Jeanne Bamberger designamos por representagdes “figurativas” e “formais”. As figurativas implicam agrupamentos situacionais, contextualizados: as relacdes que se estabelecem na maior proximidade possivel das experigncias quotidianas. As formais implicam referéneias fixas, tais como linhas, escalas, mapas com coordenadas, medidas uniformes de distancia: numa palavra, SRE !° comtranio, deve ajudar a crianca a associar estas diferentes estrategias de representagao. Umma oxtra dimensio da refenfosna-agio consiste no que Israel Scheffer . E ‘Como costuma dizer 0 meu velho amigo, Raymond Hainer: $6 se pode ter uma nova perspectiva sobre alguma coisa apés nos termos afastado dela. Mas isto significa que a aprendizagem requer que se passe por uma fase de confusio. E ha algo mais ineomodo ou mais mareante do que a confusdo? Dizer numa sala de fou confirso, € 0 mesmo que dizer, Eu sou burro. é prestar a devida aten¢do ao que as criancas fazem (por exemplo, O que se tera passado na cabega daquela miitda para ter pendurado 0 cordel em forma de lagada?), O grande inimigo da confusio é a resposta que se assume como verdade ‘iniea, Se s6 houver uma tinica resposta certa, que é suposto o professor saber e 0 85 DONALD SCHON aluno aprender, entdo no ha lugar legitimo para a confusdo. Um dos participantes do Teacher Project formulou muito bem esta ideia: “A palavra magica é resposta, respostas melhores do que as minhas decerto. As respostas tinham sido dadas pelos autores dos livros, produtores de filme e programas, pessoal administrative; toda a gente tinha uma resposta correta para tudo, porque sabiam mais. Existe um sentido de seguranca em pensar que existe uma resposta, algures, que existe sempre uma resposta a cada situagdo, Se um sistema trabalhou durante anos de acordo com um determinado conjunto de pressupostos, a responsabilidade das pessoas é aprender esse sistema ¢ dominé- lo. O sistema é a resposta. Temos que nos moldar a encaixar-se nele. Este ¢ 0 objetivo, em vez de ser o inicio para atingir um fim, Que estupidez! O que temos de fazer & desenvolver a nossa compreensao sobre o sistema para que possamos explorar os meios de o melhorar. A precedéncia histérica nfo significa um modelo futuro: quer dizer algo a ter em conta no futuro, algo a reter na meméria quando tentamos uma nova abordagem. Mas é arriscado tentar algo novo, é preciso possuir-se de autoconfianea, desenvolvida a partir de uma conscigneia interior e da autoestima.” No Teacher Project, Eleanor Duckworth e Jeanne Bamberger aprenderam a medir 0 progresso através da frequéncia e do entusiasmo com que os professores davam voz @ sua propria confustio, no com vergonha, mas com orgulho, exclamando, por exemplo, quando alguém ameacava dar-lhes a resposta certa: Ainda ndo estou pronto para a ouvir! Imaginemos, por exemplo, que um professor pergunta Viste 0 eclipse ontem?, e um dos alunos responde: O meu pai disse que néo houve, porque o céu estava carregado de nuvens. Se o professor se sentir ansioso relativamente 4 sua autoridade, a resposta pode provocar-lhe uma atitude defensiva e 0 desejo de reassumir a autoridade. Admitamos, no entanto, que o professor assumia a resposta como um estimulo para pesquisar, para refletir-na- agio? Como o poderia fazer? Se comecar por tomar uma atitude defensiva, tera de entender esse seu impulso e transformé-lo em curiosidade. Tem de defender aquilo em que acredita, mas, paradoxalmente, também pode convidar 0 aluno a desafiéi-lo, dizendo, por exemplo: Se me demonstrares que estou errado, como fazem frequentemente os meus alunos ¢ colegas, entdo posso aprender com 0 que ‘me disseres @ vou me sentir recompensado por saber que estou a aprender a FORMAR PROFESSORES COMO PROFISSIONAIS REFLEXIVOS. partir de um erro. Ser capaz de o reconhecer & muito estimulante. Posso realmente aprender com meus proprios erros. Este posicionamento algo paradoxal € necessirio se o professor quiser funcionar como um profissional reflexivo. Caso contrario, ira sentir-se assustado ao ver-se confrontado com um erro que cometeu e tentard controlar a situagao para evitar que 0 seu erro venha a ser descoberto. periéncia dos professores que seguiram até o fim 0 Teacher Project € muito elucidativa, ainda que algo deprimente. Um deles disse: vou deixar a minha escola. O que aprendi aqui é demasiado bom para ela. Um outro afirmou: vou tentar criar uma aula aberta, uma escola alternativa, Sentiam-se ambos frustrados pela resisténcia oferecida pela escola relativamente as iniciativas que davam razio aos alunos. A burocracia de uma escola est organizada a volta do modelo do saber escolar. Isto pode ser verificado se considerarmos, por exemplo, o plano de aula, ou seja, uma quantidade de informagao que deve ser “cumprida” no tempo de duragio de uma aula. Mais tarde os alunos serio testados para determinar se a quantidade de informagao foi transmitida de forma adequada. A escola divide o tempo em unidades didaticas ¢ divide o espago em salas de aula separadas que representam niveis, tal como os horirios letivos representam periodos de tempo nos quais se dé cumprimento a planos de aula. Do mesmo modo, a progressio nos diferentes niveis representa uma passagem de moléculas mais simples do saber escolar para outras mais complexas. Os testes sao feitos para medir esse progresso, e os professores também sao medidos pelos resultados dos seus alunos, e promovidos, pelo menos em parte, de acordo com esta pritica. O sistema burocritico e regulador da escola é construido em toro do saber escolar. ace esta visio do conheciment a escola. quae © professor tem de se tomar um navegador atento a burocracia. Fos responsaveis escolares que queiram encorajar_os 87 DONALD SCHON Estes dois lados da questio — aprender a ouvir os alunos ¢ aprender a fazer da escola um lugar no qual seja possivel ouvir os alunos — devem ser olhados como inseparaveis. Existe uma experiéncia interessante: no sentido de estimular a investigacao coletiva sobre a burocracia escolar. Norman Newberg, juntamente com uma equipe de professores, gestores, pais e alunos de varias escolas do ensino basico e secundario da Filadélfia, tem trabalhado sobre a questdo do abandono escolar. A opinio inicial de Newberg era que os grupos profissionais nas escolas, isolados uns dos outros, se apoiam naquilo que pensam ser ensinado aum nivel que nao ¢ 0 seu, ¢ circunscrevem as suas tarefas ao Ambito da escola. Newberg encorajou a sua equipe a examinar os registros escolares, o que Ihe abriu novas perspectivas: os alunos que abandonavam a escola, ou que estavam em risco de a abandonar, ultrapassavam sessenta por cento do total dos alunos do ensino secundario Nao foi ficil fazer com que os professores ¢ os gestores falassem abertamente entre si acerca deste fendmeno chocante, pois os debates tendiam a transformar-se em acusagdes miituas; os professores dos diversos niveis de ensino, por exemplo, culpavam-se uns aos outros. Newberg organizou um programa de visitas entre escolas dos varios niveis. Comegou por levar as pessoas a pensar sistematicamente acerea dos abandonos, considerando que as suas causas eram da responsabilidade do todos. Encorajou ainda os membros da sua equipe a darem explicagdes explicitas sobre as razdes que haviam conduzido os alunos para situagdes de risco. Quando as suas afirmagdes entravam em conflito, tentava canalizar a discussio para os pontos de discordancia, por exemplo, os responsveis pela diregtio das escolas secundarias ¢ os professores tinham atribuido os abandonos a um fendmeno de “promogdes sociais” nos niveis mais elementares; descobriram que de acordo com a politica das escolas do nivel mais elementar, os alunos entre 0 quarto e oitavo ano sé podiam permanecer uma vez nesse ano, Quando a equipe perguntou aos alunos do décimo primeiro e décimo segundo anos quais as razGes por que achavam que os alunos ficavam na escola, estes referiam-se a um desejo de nfo decepcionar os pais. Isto levou a equipe a conceber novas estratégias para envolver os pais nas atividades da escola, Agora alguns professores individualmente esto tentando criar o que designam de “elementos positives” na escola Todo o processo tem envolvido uma reflexao coletiva sobre a pritica do sistema escolar ¢ tem tido grande impacto nos professores. Um deles escreveu: Levei muito tempo para constatar uma situagéo dbvia. Reprove 50% dos meus alunos. Deve haver meios mais eficazes que assegurem maior sucesso 20s alunos 88 FORMAR PROFESSORES COMO PROFISSIONAIS REFLEXIVOS. Creio que temos mais a aprender com as tradigdes da educago artistica do que com os curriculos profissionais normativos do sistema universitério de vocacio profissionalizante. As instituigdes de formacio artistica (0s areliers de pintura, escultura e design, os conservatérios de miisica e danca) tém longas tradigdes de formacdo profissional. Mas é evidente que muitas destas instituigdes, ou nao estio dentro da Universidade, ou vivem desconfortavelmente no seu seio. E isto por uma boa razao: baseiam-se numa concepgdo do saber escolar diferente da epistemologia subjacente a Universidade As tradigdes “desviantes” da formagao artistica, bem como do treino fisico e da aprendizagem profissional, contém, no seu melhor, as caracteristicas de um praticum reflexivo. Implicam um tipo de aprender fazendo, em que os alunos comecam a praticar, juntamente com os que estéo em idéntica situagdo, mesmo antes de compreenderem racionalmente 0 que estio a fazer. Nos ateliers de design arquiteténico, por exemplo, os alunos comecam por desenhar antes de saberem o que € o design. Nos primeiros tempos todos se queixam da confusio. Tudo isso tem lugar num praticum, que é um mundo virtual que representa o mundo da pritica. Lembremo-nos do bloco de esbogos do arquiteto. Quando os arquitetos desenham, conseguem representar edificios ¢ muito daquilo que Ihes esta relacionado. O preco do erro é muito mais baixo do que sair e retirar entulho do local da obra. Um arquiteto desenha muito mais depressa do que consegue escavar, € pode tentar transpor o seu pensamento para o desenho quantas vezes quiser. Pode voltar atras e ver o que fez, e pode fazer alteragdes. Um ensaio de uma orquestra é também um mundo virtual, tal qual como um role-play ou uma tela de computador. Um mundo virtual ¢ qualquer cenario que representa um mundo real — um mundo da pritica - e que nos permite fazer experiéneias, cometer erros, tomar consciéncia de nossos erros, e tentar de novo, de outra maneira. Num praticum reflexivo, os alunos praticam na presenca de um tutor que os envolve num didilogo de palavras e desempenhos. Num atelier de arquitetura, por exemplo, as mensagens que os alunos remetem para o seu monitor, nao sio apenas palavras, mas também desenhos. A medida que 0 monitor olha para os desenhos de um aluno, pode ver, por exemplo: Ah, isto foi o que ela fez a partir do que eu disse!, O desempenho do aluno transmite informagao muito mais fidvel do que as suas proprias palavras. Do mesmo modo, um tutor pode demonstrar através do sew desempenho e convidar os alunos a imité-Lo. 8g DONALD SCHON Nos circulos educacionais americanos, a imitag3o tem tido uma reputagdo muito ma. Nao sera claramente antiamericano e atentatorio da autonomia do aluno convidé-lo a imitar? Suponhamos, contudo, que muita da aprendizagem de nossas competéncias depende da imitago. A nossa recusa da imitagdo seria vista como se a remetéssemos para um segundo plano, teriamos de imitar fingindo que no 0 estévamos fazendo e, por isso, a nossa imitagao nao seria reflexiva. De fato, a imitagio € mais do que uma mimica mecanica; é uma forma de atividade criativa, Se eu tiver que imitar a habil ago de um de vocés, tenho de entender o que hé nela de essencial. Mas os elementos essenciais da vossa a¢do no surgem identificados como tal. O trivial e o essencial esto misturados: & por isso que os discipulos tém tendéncia para imitar os maneirismos do seu mestre. Quando te imito, tento construir 0 que entendo como essencial nas tuas agdes testar a minha construgdo ao desempenhar eu proprio a agao. Isto te permite, igualmente, reagir a0 meu desempenho e dizer, por exemplo: Nao é assim, veja Faca as extremidades mais afiadas, e aqui deverd ser uma drea mais suave. O dialogo das palavras e da ago, demonstragao e imitagao, permite gradualmente a alguns alunos ¢ aos seus monitores chegar a uma convergéncia de significados, através das suas afirmagées elipticas, acabando as frases uns dos outros, falando uma linguagem secreta que nenhum estranho pode entender. Os praticums reflexivos para os professores podem ocorrer de diferentes estigios da formagio e da pritica profissionais. O Teacher Project, atris referido, é um exemplo de um praticum reflexivo segundo os moldes da formagio continua. Eleanor Dueworth trouxe algumas caracteristicas deste praricum para a formagio profissional. O curso para professores que ela orienta na Harvard Graduate School of Education, tem como objetivo fazer com que os professores tomem consciéncia da sua propria aprendizagem: como é que aprendem a compreender o sentido das fases da lua, de bolas rolando por planos inclinados ou das coisas intrigantes que as criangas dizem e fazem nas salas de aula? A supervisio dese processo pode tornar-s num praticum reflexivo. Gaalen Erickson trabalhou durante varios anos com professores de Ciéneias em escolas do ciclo e do ensino secundirio, ajudando-os a refletir sobre o que fazem com as criangas. Este tipo de reflexao, a ser rigorosa, depende do desenvolvimento de dados diretamente observaveis. Nao € suficiente perguntar aos professores 0 que fazem, porque entre as agdes ¢ as palavras ha por vezes grandes divergéncias. Temos que chegar ao que os professores fazem através da observagio direta ¢ registrada que permita uma descri¢ao detalhada do comportamento e uma reconstrugio das intencdes, estratégias e pressupostos. A confrontacio com os dados diretamente observiveis produz muitas vezes um choque educacional, & 90 FORMAR PROFESSORES COMO PROFISSIONAIS REFLEXIVOS. medida que os professores vao descobrindo que atuam segundo teorias de ago diferentes daquelas que professam. No desenvolvimento de um praticum reflexive é importante juntar trés dimensdes da reflexio sobre a pritica: primeira, a compreensio das matérias pelo aluno (Como é que este rapaz compreende estes modelos? Como é que interpretou as instrugdes? Como é que a menina percebeu a distincia através da lagada de cordel que pendurou no quadro?); segunda, a interagdo interpessoal entre o professor e 0 aluno (Como & que 0 professor compreende e responde a outros individuos a partir do ponto de vista da sua ansiedade, controle, diplomacia, confrontagdo, conflito ou autoridade?); terceira, a dimenséo buroerética da prética (Como é que um professor vive e trabalha na escola e procura a liberdade essencial A pratica reflexiva?) como ‘ores ‘Na formacao de professores, as duas grandes dificuldades para a introdugio de um praticum reflexivo so, por um lado, a epistemologia dominante na Universidade e, por outro, o seu curriculo profissional normativo: Primeiro ensinam-se os principios cientificos relevantes, depois a aplicagdo desses principios e, por tiltimo, tem-se um praticum cujo objetivo é aplicar 4 prética cotidiana os principios da ciéncia aplicada, Mas, de fato, se 0 praticum quiser ter alguma utilidade, envolvera sempre outros conhecimentos diferentes do saber escolar. Os alunos-mestres tém geralmente conscigncia deste desfasamento, mas os programas de formacao ajudam-nos muito pouco a lidar com essas discrepancias © que pode ser feito. creio, juando os professores e gestores trabalham em conjunto, tentando produzir o tipo de experiéncia educacional que tenho estado a descrever, a propria escola para os professores. deveriamos apoiar os individuos que jé iniciaram este tipo experiéncias, promovendo os contatos entre as pessoas ¢ criando documentagio sobre os melhores momentos de sua pritica. © movimento crescente no sentido de uma pritica reflexiva, cujas origens remontam a John Dewey, a Montessori, a Tolstoi, a Froebel, a Pestalozzi, mesmo a0 Emilio de Rousseau, encontra-se no centro de um conflito epistemolégico. ‘orrem-se riscos muito altos nestes conflitos de epistemologias, pois o que esti em causa é a capacidade para usarmos as facetas mais humanas e criativas de nés proprios. 91 DONALD SCHON ‘ine primeira vero deste exo fo spresentnda na 4" Conferéncin Amal de ASCD (Boston, Massachusetts, 1988) 92

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