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PancrioS Miriam Lemle GUIA TEORICO DO ALFABETIZADOR 0 propésito deste volume é apresentar a professores de classes de alfabetizacdo os fundamentos tedricos de que eles necessitam para compreender os fatos de lingua com que lidam no seu dia-a-dia Afinal, 0 momento de alfabetizagdo € 0 primeiro momento da vida em que precisamos falar de lingua, de suas unidades, de seus mecanismos, de sua representacdo. A compreensdo do seu sistema de representacdo escrita e dos seus mecanismos de mudanga afetara as atitudes dos professores, abalando seus preconceitos, alterando os seus critérios- de avaliacdo e auto-avaliacdo e liberando a sua criatividade. Miriam Lemle é professora de LingUlstica na Universidade Federal do Rio de Janeiro e publicou a obra Anlise sintaética — teoria geral e descricdo do portugués. Areas de interesse do volume Educacdo « Linguistica ISBN 85-08-01523-2 9°788508"015238) ut A OS smo LANGAMENT acne cose Ionics esta Chas es reso Veron Teta D site eo Ane da poss da tra Ci is eho ar ute ape Vera et ana Gore Aine ange age iio Forman dpaevas er Magivelsne Sebo Aosta a esas Aden 5) — Popo» it hence ad Nery Pesrns contest ees poten Irate ae dad 70— Agog te Stairs Teo ean Ades de 0 — Bs edo» ati et poee WatyRasse Grand sta vee — Rote PneeeS Miriam Lemle Professora de Lingilistica da Universidade Federal do Rio de Janeiro GULA TEORICO DO ALEABETIZADOR 15° edicao 78 impressao ta Diregao Benjamin Abdala Junior Samira Youssef Campedelli Preparagéo de texto Edison Mendes de Rosa Arte Coordenagao e Projeto grafico (miolo) Ant6nie do Amaral Rocha Arte-final René Etiene Ardanuy Elaine Regina de Oliveira Capa Ary Normanha Antonio U. Domiencio Impresso nas oficinas da Grafica Palas Athena ISBN 85 08 01523 2 2004 ‘Todos os dios eservados pela itor Aca Ru Baro de Iu, 110 — CEP 01507900 Caixa Postal 2937 CEP 01065970 ‘Sio Paulo SP “Tel: OXX 11 33463000 —F OX 11 3277-4145 Inmet hopwwaticacom br ‘email: eitora@aticacom br = Sumario Introdugao. 5 As capacidades necessarias para ‘gialtabetizigdo. = eee © que o alfabetizando precisa saber__7 © cultivo das capacidades que permitem os saberes bésicos para a alfabetizacjo___13 Primeiro problema: a idéia de simbolo___ 13 ‘Segundo problema: discriminacao das formas das letras. 13 Terceiro problema: discriminagao dos sons da fala 14 Quarto problema: consciéncia da unidade palavra 14 Quinto problema: a organizacéo da pagina escrita 15 A alfabetizagao. 16 ‘As complicadas relagdes entre sons e letras— a7 Como sistematizar as complicadas relagdes entre sods 6: letras ls A primeira etapa da aljabetizacao: a teoria do casamento monogdmico entre sons e letras. 26 A segunda etapa da aljabetizacao: a teoria da poligamia com restrigdes de posicéo______ 28 A terceira etapa: as partes arbitrdrias do sistema— 31 Variagao dialetal e arbitrariedades nas relacdes entre sons e letras. 34 ‘A quarta etapa: um pouco de morfologia___ 36 A avaliagdo das fathas de escrita_____ 39 Falhas de primeira ordem, 40; Falhas de segunda ordem, 40; Falhas de terceira ordem, 41. A metodologia — consideragées criticas______ 42 A variagao na lingua falada e a unidade na lingua escrita__._45 As linguas mudam 45 mecanismo de mudanga na forma das palavras—_ 48 s efeitos das mudaneas na estrutura da lingua $4 A telagio entre lingua falada e lingua escrita, 56 5. A boa ciéncia sana a ma consciéncia—__________ 62 6. Vocabulario critico__________66 7. Bibliografia comentada___...__ 68 1 Introdugao © que me proponho a fazer aqui é colocar, de ma- neira simples, alguns conhecimentos basicos sobre a lingua, que considero essenciais para o trabalho nas classes de al- fabetizacio. Trata-se de esclarecimentos de conceitos refe- rentes aos sons da fala, & relagdo entre os sons da fala as letras da lingua escrita, as diferentes maneiras existen- tes de pronunciar as palavras, as maneiras como essas variagées de prontincia podem afetar a aprendizagem da. lingua escrita e A distingdo entre lingua escrita e lingua falada. Tsso porque sei que, para levar sua tarefa a termo com sucesso, o professor das classes de alfabetizacao 6, de todos, o que enfrenta logo de saida os maiores proble- ‘mas lingiifsticos, e todos de uma vez. O momento crucial de toda a seqiiéncia da vida escolar 6 0 momento da alfa- betizagao. Sabe-se que 0s professores primérios evitam as clas- ses de alfabetizacdo. Desse modo, ninguém acaba tendo experiéncia longa em alfabetizacio. Tenho certeza de que esse temor pode ser substitufdo por entusiasmo, se os pro- fessores trabalharem preparados e conhecerem os varios 6 aspectos e seqiiéncias de sua tarefa, dominando os instru- mentos de trabalho necessirios. Os instrumentos de tra- balho de um alfabetizador so abstratos e incluem alguns conhecimentos bisicos sobre sons da fala, letras do alfa- beto e lingua. Esses instrumentos Ihe sero dados nas pr6- ximas paginas. E claro que, além dos conhecimentos bisicos, 0 alfa- betizador precisa de outros dons para se sair bem. Ele deve ter respeito pelos alunos, evitar o papel de ciim- plice de um sistema interessado em manter esmagada uma grande parte do seu povo, confiar na capacidade de de- senvolvimento dos alunos e ter criatividade, inventividade, iniciativa, combatividade e f€ em sua capacidade de tornar este mundo melhor. Esse texto no aborda a questo da falta de condi- Oes materiais minimas da maior parte das escolas prima- rias do pafs, nem a questi da mé distribuigdo da riqueza no Brasil. Estas si questOes a serem debatidas principal- mente nas arenas politicas. Ocorre, porém, que as arenas politicas estéo em todas as nossas reas de atuacdo, em todos os niveis. A medida que se sentirem mais seguros em sua pre- paragio para o trabalho, os professores se Sentirdo segu- ros também para exigir maior consideracao pela profissdo € mais investimentos para a educacio. E na medida em que aprenderem a respeitar seus educandos, ajudarao a promover um grande mimero de pessoas que até agora sio atiradas A marginalidade, Por isso, indiretamente, este texto tem, como o saber em geral, algo de politico. 2a As capacidades necessarias para a alfabetizagao Para que uma pessoa possa aprender a ler e a escre- ver, hd alguns saberes que ela precisa atingir e algumas percepgdes que ela deve realizar conscientemente. Quais slo esses saberes e essas percepgdes, como ajudar 0 al- fabetizando a atingi-los? £ disso que trataremos neste capi- tulo. O que o alfabetizando precisa saber A primeira coisa que a crianga precisa saber é 0 que representam aqueles risquinhos pretos em uma pagina branca. Esse conhecimento no € tao simples quanto pa- rece a quem jé 0 incorporou hé muitos anos ao seu saber. Observe que, para entender que os risquinhos pretos no papel so simbolos de sons da fala, € necessario compreen- der o que é um simbolo. A idéia de simbolo é bastante complicada. Uma coisa 6 simbolo de outra sem que nenhuma caracteristica sua seja semelhante a qualquer caracterfstica da coisa simboli- zada, Tomemos alguns exemplos de simbolos. Cor ver- melha, no sinal de transit, simboliza a instrugo Pare. A cor verde simboliza a instruco Ande. O dedo polegar vol- tado para cima simboliza a informacao Tudo bem. Ban- deira branca, na praia, simboliza Mar calmo. Uma ban- deira listada de preto e vermelho, no Rio de Janeiro, sim- boliza 0 Clube Flamengo. Esses exemplos de simbolos de uso comum em nossa vida servem para ilustrar a idéia de que a relagio entre um simbolo e a coisa que ele simbo- liza € inteiramente arbitréria, ou seja, a razdo da forma de um simbolo nao esté nas caracteristicas da coisa simboli- zada. Uma crianga que ainda no consiga compreender 0 que seja uma relacdo simbélica entre dois objetos nao con- seguiré aprender a ler. Vamos ao segundo problema. As letras, para quem ainda néo se alfabctizou, so risquinhos pretos na pagina branca. O aprendiz precisa ser capaz de entender que cada um daqueles risquinhos vale como simbolo de um som da fala. Assim sendo, o aprendiz deve poder discri- minar as formas das letras. As letras do nosso alfabeto tém formas bastante semelhantes, e por isso a capacidade de distingui-las exige refinamento na percepgio. Tome- mos alguns exemplos. A letra p ¢ a letra b diferem ape- nas na direcao da haste vertical, colocada abaixo da linha de apoio ou acima dela. O 6 e o d diferem apenas na posicao da barriguinha em relaco A haste. O pe 0 q di ferem entre si por esse mesmo traco, isto 6, a posi¢iio da barriquinha, Note que os objetos manipulados em nosso dia-a-dia nao se transformam, ao mudarem de posigao. Uma escova de dentes é sempre uma escova de dentes, es- teja virada para cima ou para baixo. Um copo de cabeca para baixo, ainda € um copo, Mas um 6 com haste para baixo vira p, e um p virado para o outro lado vira g. Do mesmo modo, um n com uma corcova a mais vira m, um ¢ alongado para cima passa a valer J, um a sem 0 seu ca~ 9 binho passa a ser o ¢ assim por diante. Sao sutis as dife- rengas que determinam a distingao entre as letras do alfa- beto. A crianca que nao leva em conta conscientemente essas percepedes visuais finas no aprende a ler. © terceiro problema para o aprendiz é a conscienti- zacao da percep¢do audiliva. Se as letras simbolizam sons da fala, preciso saber ouvir diferencas lingiiisticamente relevantes entre esses sons, de modo que se possa escolher a letra certa para simbolizar cada som. A diferenca sonora entre as palavras pé e fé, por exemplo, esta apenas na qua- lidade da consoante inicial: o [p] € uma consoante oclu- siva, enquanto o [f] é fricativa. As palavras toca e doca, tia e dia distinguem-se por outra caracteristica de suas con- soantes iniciais: a consoante [t] é enunciada sem voz, en- quanto a consoante [d] é enunciada com voz. As palavras vim e vi tem como tnica diferenca de promincia 0 traco de nasalidade da vogal. Convém lembrar que quando nos referimos a sons da fala, colocamos o simbolo entre colchetes. Essa é uma convengo de notagdo utilizada nos estudos de fonética, Quando se tratar de letras, 0 simbolo vird grifado. E claro que s6 sera capaz de escrever aquele que tiver a capacidade de perceber as unidades sucessivas de sons da fala utilizadas para enunciar as palavras e de distingui- las conscientemente umas das outras. Note que a andlise a ser feita pela pessoa é bem sutil: ela deve ter consciéncia dos pedacinhos que compem a corrente da fala e perce- ber as diferencas de som pertinentes & diferenca de letras. Recapitulando, essas trés capacidades analisadas sio as partes componentes da capacidade de fazer uma liga- do simbélica entre sons da fala € letras do alfabeto. A primeira 6 a capacidade de compreender a ligagdo simbé- lica entre letras e sons da fala. A segunda é a capacidade de enxergar as distingSes entre as letras. A terceira é a 10 capacidade de ouvir e ter consciéncia dos sons da fala, com suas distingdes relevantes na lingua. Mas a escrita contém, ainda, outras idéias escondidas. A corrente de sons que emitimos ao falar € a repre- sentagdo de um sentido, de um contetido mental. Certas seyiiéncias de unidades de som correspondem a unidades de sentido, ou conceitos. Por exemplo: a seqiiéncia de sons [pE] representa a unidade de sentido extremidade dos mem- bros inferiores do corpo humano. A seqiiéncia de sons [ali] representa a unidade de sentido em localizagao lon- ‘ginqua de quem fala. Chamamos de palavras os acasala- mentos de som ¢ sentido que utilizamos como tijolos na expressiio dos nossos pensamentos. Pois bem. Quem vai aprender a escrever deve saber isolar, na corrente da fala, as unidades que so palavras, pois essas unidades € que deverdo ser escritas entre dois espagos brancos. Teinos ai, entéo, 0 quarto problema para o alfabeti- zando: captar o conceito de palavra. Essa unidade pa- lavra é tio natural, que sua depreensio quase nao consti- tui problema para os aprendizes. Assim, se um princi- piante na escrita quer escrever a frase a bola dela 6 amarela & pouco provavel que ele erre na segmentacdo das pala- vras, escrevendo, por exemplo, abo lade laeama rela. tipo de dificuldade na depreensao de unidades vo- cabulares que se observa muitas vezes na pratica do ensino sio coisas como wnavez, nonavio, minhavd, ou seja, falta de separacio onde existe uma fronteira vocabular. O in- verso — a colocaciio de um espaco onde nao ha fronteira — € mais raro. A alocacdo errada de fronteiras vocabula- res onde nao existem acontece, por exemplo, com palavras i femininas que comecam com [a] — minha miga, em vez de minha amiga — ou com palavras masculinas que co- megam com [u] — 0 niverso, em vez de o universo. importante, na idéia da unidade palavra, é que ela 6 0 cerne da relacdo simbélica essencial contida numa men- sagem lingiifstiva: a relagdo entre conceitos ¢ seqiiéncias de sons da fala, Temos, portanto, na escrita, duas cama- das sobrepostas de relacio simbélica: uma relagio entre a forma da unidade palavra e seu sentido ou conceito cor- respondente, e uma relagdo entre a seqiiéncia de sons da fala que compdem a palavra e a seqiiéncia de letras que transcrevem a palavra. Esquematizando, temos, por exemplo: (Panes = © homem pensa na idéia panela, representa essa idéia pronunciando a palavra [panela] e representa os sons da palavra pronunciada por meio da seqiiéncia de letras panela. Ha uma primeira ligacdo simbélica entre o sentido de panela e os sons componentes da palavra falada [panela], e uma segunda ligaco simbélica entre os sons dessa palavra falada e as letras com que a palavra € es- crita. Na pritica escolar da alfabetizacao, h4 uma questéo polémica ligada ao fato de que a escrita contém, na ver- dade, esses dois niveis de representacao simbélica: a re- presentagao de conceitos através de sons ¢ a representa- 2 13 go de sons através de letras. A polémica é a seguinte: alguns acham essencial que todas as palavras utilizadas nas primeiras etapas da alfabetizaco sejam conhecidas pelo alfabetizando. Por exemplo: se na regio onde 0 alfabetizando mora ndo existe uva, ndo deveria ser usada a palavra uva nas classes de alfabetizagio. Outros acham que pode ser bom aprender palavras novas e brincar com sons desprovidos de sentido, pois isso ajuda o aprendiz a compreender a idéia de que as letras representam os sons da fala, e nfo diretamente o sentido. E certo que a es- crita representa 0 sentido, mas indiretamente, intermedia- da pela representacao dada pelas letras aos sons da fala. Por enquanto, fica a questio colocada, para ser pensada. Depois, voltamos ao assunto. Hi outra unidade da estrutura da lingua importantis- sima na escrita: a unidade sentenca, que 6 representada comecando por letra maidscula e terminando por ponto. Se considerarmos que o alfabetizando j4 precisa ser capaz de identificar, na corrente da fala, as partes que so sen- tengas, estabeleceremos como quinto problema para o al- fabetizando 0 reconhecer sentencas. Mas essa necessidade no precisa ser colocada logo de inicio, pois o aprendiz pode aprender a tomar consciéncia dessa unidade no de- correr de suas primeiras leituras. Outro saber que precisa ser estabelecido logo no infcio do trabalho da alfabetizagaéo é a compreensio da organizagao espacial da pagina, em nosso sistema de es- ctita: a idéia de que a ordem significativa das letras é da esquerda para a direita na linha, e que a ordem significa- tiva das linhas é de cima para baixo na pagina. Note que isso precisa ser ensinado, pois dessa compreenso decorre uma maneira muito particular de efetuar os movimentos dos olhos na leitura, A maneira de olhar uma pagina de texto escrito é muito diferente da maneira de olhar uma figura ou uma fotografia. O cultivo das capacidades que permitem os saberes basicos para a alfabetizagao Qs cinco conhecimentos basicos para a leitura e es- crita que acabamos de identificar podem ser atingidos es- pontaneamente pelas criangas. Mas podem, também, ser estimulados a eclodir, para que o alfabetizando esteja pre- parado para o arranque. ‘As criangas que fazem a pré-escola recebem esse pre- paro. A familiaridade com papel e lapis, massinhas e brin- quedos de encaixe, quebra-cabecas, cancdes, narrativas, jogos ajuda a preparar a crianca para os saberes ¢ as tare- fas envolvidas na alfabetizacio. Entretanto, os professores de escolas de meios sociais menos privilegiados, se quiserem investir alguma criativi- dade no trabalho, podem suprir a lacuna da falta da pré- scola e podem ajudar suas criangas a ficarem em pé de igualdade com as outras. Vamos procurar algumas idéias sobre como se pode estimular 0 desabrochar de cada uma das cinco capaci- dades necessdrias para a alfabetizacao. Primeiro problema: a idéia de simbolo Trazer para a escola exemplos de simbolos: escudos de times de futebol, bandeiras de clubes de paises, sinais de transit, apitos convencionais de guardas de trinsito, gestos convencionais, gestos da lingua de sinais manuais dos surdos-mudos, simbolos religiosos, emblemas, amu- letos. Segundo problema: discriminacdo das formas das letras Exercicios de desenho de pequenas formas: circulos, tragos, cruzes, quadrados, Angulos, curvas, espirais, com- 4 posigdes com varias unidades de formas diversas. Na es- cola de antigamente, as criancas preenchiam paginas e mais péginas com linhas verticais enfileiradas, linhas incli- nadas, circulozinhos, arquinhos e exercicios e mais exer- cfcios de tracados, antes de comecar a alfabetizacio. Sem chegar ao exagero, parece-me que ha lugar para um certo retorno a essa disciplina, pois hoje é muito comum ver pessoas segurando mal o lapis, colocando torto o papel sobre a mesa, sentando-se errado para escrever, come- gando o tragado das letras de modo arrevesado, Cultivar a boa técnica na escrita é um valor que merece voltar a moda, Terceiro problema: discriminacao dos sons da fala Criar listas de palavras que comecam com o mesmo som, de palavras que rimam (rimas perfeitas, rimas im- perfeitas), de cangSes que apresentam repetigdes de sila~ bas. Tomar uma mesma melodia e canté-la em diversas silabas: la-la-lala... ta-ta-tata... pum-pum-pumpum. . bim-bim-bimbim... Brincar de telefone-sem-fio. Imitar sotaques. Quarto problema: consciéncia da unidade palavra Dizer 0 nome dos objetos que esto a vista. Apren- der palavar novas: partes do corpo, termos de parentesco, acidentes geogrificos, profissées, bichos, plantas, frutas, sentimentos, atividades, comidas, instrumentos. Localizar a mesma palavra colocada em duas posicdes diferentes em duas sentencas diferentes. Contar quantas palavras hé numa expresso: 15 Macaco feio — quantas palavras tem? ‘Agua frla — quantas palavras tem? Zico fez gol — quantas palavras tem? Quinto problema: a organizacao da pagina escrita Brincar de ler. Colocar pequenos textos na pedra, me- morizé-los e recité-los de meméria, apontando para as pa- lavras correspondentes & medida que a recitagiio vai pros- seguindo. Os textos podem ser criados pelos préprios alu- nos. Com bonitos versinhos, essa atividade pode tornar-se muito agradavel. A escolha de textos familiares na cul- tura local (provérbios, ditados, refrdes) fara a leitura ser sentida como algo normal da vida. Depois de todo esse trabalho, temos um fregués pronto e desejoso de aprender a ler e a escrever. Vamos & alfabetizagio. 3 A alfabetizagao Quando tratamos das capacidades essenciais para a alfabetizacio, colocamos como primeito problema o de compreender que existe uma relagéo de simbolizacao entre as letras e os sons da fala. Todo sistema alfabético de es- crita tem essa caracteristica essencial: os segmentos gré- ficos representam segmentos de som. Quem jé tentou ensinar alguém a ler e a escrever cer- tamente teve a experiéncia de testemunhar um salto repen- tino no progresso do aprendiz. H4 um dado momento em que parece ocorrer um verdadeiro estalo, apés 0 que a pessoa faz répidos progressos. Que estalo ser esse? A suposigau mais plausivel € que o estalo ocorre quando 0 aprendiz capta a idéia de que cada letra é sim- bolo de um som e cada som é simbolizado por uma letra. Uma vez agarrada a idéia, o problema reduz-se a lembrar que figura de letra corresponde a que tipo de som da fala. Pobre alfabetizando! Sua euforia logo deverd se abrandar, porque as coisas que acontecem entre sons ¢ letras sio um pouco mais complicadas do que essa perfei- cao de casamento monogimico entre uma letra e um som. Ha poligamia, ha poliandria, ha rivalidades, hé abandonos. PU A revelacdo inicial deve ser seguida de alguns ajeitamentos, até que o alfabetizando conheca a verdade, menos limpida do que parecia inicialmente, do casamento um pouco de- feituoso entre sons e letras. As complicadas relagées entre sons e letras © casamento entre sons ¢ letras nem sempre é mono- imico. O modelo ideal do sistema alfabético € 0 de que cada letra corresponda a um som e cada som a uma letra, mas essa relagio ideal s6 se realiza em poucos casos. Na verdade, temos em portugués pouquissimos casos de correspondéncia biunivoca entre sons da fala e letras do alfabeto. Chama-se correspondéncia biunivoca aquela em que um elemento de um conjunto corresponde a ape- nas um elemento de outro conjunto, ou seja, € de um para um a correspondéncia entre os elementos, em ambas as diregdes. Temos, no Quadro 1, 0s casos de correspondéncia biunivoca entre letras ¢ fonemas no dialeto carioca. Note que, nesse quadro, um elemento do conjunto de letras cor- responde a um elemento do conjunto de fonemas, ¢ um elemento do conjunto de fonemas corresponde a um ele- mento do conjunto de letras. QUADRO 1 — Correspondéncias biunivocas entre fonemas ¢ Jef /b/ ith iaf i Wh Jaf 18 Chamamos de fonema, em lingiifstica, uma unidade de som caracterizada por um dado feixe de tracos distin- tives. Tragos distintivos sao caracteristicas de som que so relevantes na diferenciacdo entre unidades do sis- tema, Por convengao, esse tipo de unidade é representado entre barras inclinadas (/ /). O segundo tipo de relacdo existente entre os sons da fala e as letras do alfabeto é o que foi chamado anterior- mente de poligamia ¢ de poliandria. Chama-se poligamia © casamento de um homem com varias mulheres, e po- liandria 0 casamento de uma mulher com varios homens. As relagGes entre sons ¢ letras vistas a seguir sio uma forma de poligamia e de poliandria muito especial. E como se 0 homem poligamo tivesse apenas uma mulher em cada ci- dade que freqiienta, e a mulher polidindrica tivesse um sé homem em cada lugar freqiientado por ela. Vamos comecar com exemplos de sons casados com letras diferentes segundo a sua posicao. Tomemos, por exemplo, 0 som da vogal [i]. Se a vogal [i] esté numa posicao de silaba acentuada, ela sera transcrita, em nossa convencao ortografica, pela letra i. Isso ocorre em palavras como vida, saci ¢ rio. Se a vogal [i] esté numa sflaba dtona final de palavra, ela correspon- deré a letra ¢, em nossa ortografia. Eo caso de vale, corre, morte etc. Com a vogal [ul, a situaco no dialeto carioca € simétrica a da vogal [i]. Em posicao de silaba tOnica, a letra que transcreve [u] 6 u (lua, tudo) e em posi¢ao final de palavra, se a silaba é atona, a vogal é transcrita na ortografia pela letra o (mato, pego). Indo, agora, da letra para o som, verificamos como as letras se casam com sons diferentes, dependendo de onde estio. Tomemos a letra 1 como primeiro exemplo. Essa letra deve ser pronunciada com o som de uma con- soante lateral, se se“encontra diante de uma vogal, como em lata e bola. Mas em posigdo final de palavra ou diante 19 de uma consoante, a letra I corresponde, no dialeto ca- rioca, ao som da vogal [u}, como em sal, anzol, jornal, alto, almogo, calca e caldo. Outro exemplo de correspondéncia nao-biuniveca do som para a letra é 0 das vogais acentuadas no dialeto ca- rioca, O yue ocorre & una ditongagdo de todas us vogais tOnicas localizadas na dltima silaba de uma palavra, se uma consoante [s] vem depois. Por exemplo: a pronincia de rapaz é [rapai8], a de pés € [pei8], a de giz é [Ziys], a de cds 6 [koi8], a de luz é [luis]. No dialeto paulista, essa di- tongagao das vogais é mais generalizada do que no carioc os paulistas ditongam também em ambientes nao-finais. Ouvem-se promincias como [meizmo] para mesmo, [paista] para pasta, [roisto] para rosto. Na lingua escrita, essas transigdes em [y] ndo sao representadas: diz-se [peys] € creve se pés, mas diz-se [papeys] e escrevese papéis. E claro que essas situagGes de poligamia e de polian- dria trazem problemas de escrita para os alfabetizandos. E que se eles acabaram de ter aquele maravilhoso estalo, aquela revelagao de que letras simbolizam sons, logica- mente pensam que ha fidelidade conjugal entre letras ¢ sons: cada letra com seu som, cada som com sua letra. Assim € que as coisas deviam ser, no é mesmo? O alfa- betizando € coerente ao supor que o som [i] corresponde sempre A letra i, e que o som [u] corresponde sempre & letra u. Por isso, retomando os mesmos exemplos ante- riores, 0 que os principiantes escrevem & vali para vale, morti para morte, matu para mato, pegu pata pego, peis para pés. Indo da letra para o som, eles supdem que a letra | transcreve sempre e somente o som [I]. Por isso, por que escrever com 7 final as palavras sal e anzol, se € com [u] final que elas séo pronunciadas? Com essa I6gica, os prin- cipiantes da escrita escrevem sau, anzou, auto. E muito importante que o alfabetizador tenha bem claras em sua mente essas particularidades nas variedades de correspondéncias entre sons e letras. Fatalmente, 0 al- 20 fabetizando com capacidade de observacio e de critica faré perguntas do tipo: — Professor, se eu falo [péis], por que 6 errado escrever peis? — Eu falo [matu] e néo [mato]. Devia ser matu a escrita certa, — [pau] e [sau] se falam igual vem pau € sal? tho. Por que se escre- A resposta dada pela maior parte dos professores a de que “a gente é que fala errado, porque o certo é falar [pes], [mato], [sal]”. Mas é uma péssima resposta. O professor deve estar apto a explicar que a posicio precisa ser levada em conta para a correspondéncia entre sons ¢ letras. Assim, no fim das palavras é a letra o que transcreve 0 som [ul], e é a letra e que transcreve 0 som [i]. Em relacdo ao fim de sflaba, ocorreu na regiio onde vivemos uma mudanca de prontincia do I, e por isso pro- nunciamos como [u] essa partezinha da palavra que nossos avés pronunciavam como [I]. £ por isso que dizemos [sau] € nao’ [sal]. Mas, preste atencdo, nés falamos [saleiro]. Eis 0 J de volta. O [u] de [sau] é um [I] que mudon para [u}. Em nosso dialeto, pronunciamos nossos /1/ como [u}, no fim das silabas. Essa é a maneira como tais perguntas devem ser res- pondidas. Responder dizendo que as pessoas falam errado € um equivoco lingiiistico, um desrespeito humano e um erro politico. Um equivoco lingtifstico, pois ignora o fato de que as unidades de som sao afetadas pelo ambiente em que ocorrem, ou seja, sons vizinhos afetam-se uns aos ou- tros. Um desrespeito humano, pois humilha e desvaloriza a pessoa que recebe a qualificagao de que fala errado, Um erro politico, pois ao se rebaixar a auto-estima lingiifstica de uma pessoa ou de uma comunidade contribui-se para achaté-la, amedronté-la e torné-la passiva, inerme ¢ incapaz 24 de manifestar seus anseios. O professor que usa a saida facil de explicar as dificuldades de escrita como sendo oca- sionadas por defeitos da fala contribui para a marginalida- de de seus alunos. Mais adiante, retomaremos essa questao. Nos dois quadros a seguir, podem ser vistas as mais nportantes correspondéncias miltiplas entre letras e sons (Quadro 2) e entre sons e letras (Quadro 3). E impor- inte ter claro na mente que tais correspondéncias sio de- lerminadas pela posi¢ao, ou seja, sao regulares. E possi vel aprendé-las por meio de uma regra, de modo que po- dem ser sistematicamente ensinadas por um professor bem preparado para exercer sua profissio. QUADRO 2 — Uma letra representando diferentes sons, segundo a posi¢ao Exemplos 0 Fone (sons) Posicao 8 [s] inicio de palavra | sala [2] Intervocdlico casa, duas drvores 3] Diante de consoan-|resto, duas casas Ite surda ou em fi- Inal de palavra fea) Diante de consoan-| rasgo, duas gotas Ite sonora ™ [m] [Antes de vogal | mala, lem (nasalidade da —_Depois de vogal, | campo, sombra vogal precedente)|diante de_p 0 b n Tn} ‘Antes de vogal (nasalidade da _|Depois de vogal vogal_ precedente) nada, banana ‘ganso, tango, conto 1 10 JAntes de vogal | bola, lua tu) Depois de vogal _|calma, sel Te] ou [e]]Néo-inal dedo, pedra ti Final de palavra_|padre, morte To} ou [9]|Néo-final bolo, cova (ul Final de palavra bolo, amigo 22 QUADRO 3 — Um som representado por diferentes letras, segundo a posicéo Fone (som) Letra} Posi¢do Exemplos Tk @ |Diante de a,o,u | casa, come, bicudo qu | Diante de e, 1 Pequeno, esquina Tat @ |Diante de a, 0, u ‘gato, gota, agudo gu | Diante de e, i paguei, guitarra ta 1 |Posigao acentuada | pino e |Posicéo atona em final| padre, morte de palavra Te) u |Posigéo acentuada | lua © |Posigéo atona em final | falo, amigo de _palavra TR] tr | Intervocalico ‘carro tr forte) |__| Outras posigdes rua, carta, honra Téw] | Go [Posicao acentuada | portéo, cantarao ‘am | Posicao étona cantaram Tel ‘qu | Diante dea, o aquario, quota qi | Diante de e, i cinquenta, eqiino eu | Outras frescura, pirarucu Toul gi | Diante dee, t ‘agienta, sagit gu |Outras gua, agudo Esses quadros nao esgotam a informacao sobre rela~ gdes som-letra e letra-sum previsiveis pela posigéo, nem so verdadeiros para todos os falares do Brasil. Em cada comunidade lingiifstica os professores deverfio compor seus proprios quadros correspondentes aos quadros dados aqui, registrando neles a distribuigdo dos sons conforme se dé no dialeto falado pela sua clientela e por eles mesmos. Por exemplo: para os falantes do dialeto gaticho que enunciam um [I] velarizado em posigdo final de silaba, 0 segunda linha do correspondente fonético da letra [I] no Quadro 2 deverd ser alterada. O mesmo deverd ser feito 23 para as contrapartes fonéticas das letras e e 0 em posicéo final de palavra, que soam escandidas para ouvidos nao- -sulino: Outro exemplo de alteragdo do Quadro 2 refere-se & incluso dos fatos lingiiisticos da variedade de portugués na qual houve a perda da nasalidade de vogais dtonas fi- nais de palavra, As prontincias de palavras como homem, viagem, Cristévao, falam sao, respectivamente, home, vage, Cristévo, falo. O Quadro 2 referente a esses dialetos de- verd receber uma linha a mais no espaco destinado & con- traparte fénica da letra m, e o elemento ocupante dessa linha seré um zero fonético. 0 terceiro tipo de relacdo possivel entre sons ¢ letras 6 0 mais dificil: a concorréncia, em que duas letras esto aptas a representar 0 mesmo som, no mesmo lugar, ¢ nao om lugares diferentes, como nos casos jé vistos. E 0 caso da letra s e da letra z, que so usadas, ora uma, ora outra, para representar 0 mesmo som de [z] entre duas vogais. Temos mesa, mas também reza. Temos azar, mas também casar, Do mesmo tipo é a rivalidade entre c- © ss, usa- dos entre vogais para representar aquilo que € sempre o mesmo som [s]: posseiro € roceiro, assento ¢ acento, passo © laco, cagado e cassado. Da mesma maneira, 0 ch ¢ 0 x competem na representagao da fricativa palatal surda (taxa, racha) € 0 g e 0 j rivalizam no privilégio de representar a ativa palatal sonora (jeito, gente, sujeira, bagageiro). Com base nos fatos do dialeto carioca, é fornecida no Quadro 4 uma visio dos principais casos da situagio de concorréneia pela qual mais de uma letra, na mesma posigio, pode servir para representar 0 mesmo som. Esse caso é 0 mais dificil para a aprendizagem da lingua escrita. Aqui, ndo hé qualquer principio fénico que possa guiar quem escreve na opcao entre as letras con correntes. Nesses casos, a tinica maneira de descobrir a letra que representa dado som numa palavra na lingua es- 24 QUADRO 4 — Letras (que representam fones Idénticos em contextos idénticos Fone Contexto Letras Exemplos [2] | Intervocatico s | mesa z | certeza x_|_exemplo {s] | Intervocélico diante del ss | russo ou ¢ | ruco 85 | cresca Intervoedlico diante de] ss | posseiro, assento ei © | roceiro, acento sc | asceta Diante de a, 0, u, pre| s | balsa cedido por consoante | ¢ | alga Diante de e, i, prece| s | persegue dido por consoante ce | percebe 18] | Diante de vogal ch | chuva, racha x | xuxu, taxa Diante de consoante | s | espera, testa x | expectativa, texto Fim de palavra e | funis, mas, Tais diante de consoante | z | atriz, vez, Beatri ou de pausa [2] [inicio ou meio de pa] j | jeito, sujeira lavra e diante dee, i] g | gente, bagageiro Tu) | Fim de silaba uw | céu, chapéu 1 | mel, papel zero | Inicio de palavra zero | ora, ovo h_ | hora, homem 25 ctita € recorrer ao dicionério. E decorar, aprendendo a grafia das palavras, uma a uma, guardando-as na meméria. Nada mais légico pode ser feito, em termos da represen- aco dos fatos fonéticos da lingua. Depois, veremos que grande parte dessas opeGes que sao arbitrarias como re- presentago de fatos fonéticos perdem essa arbitrariedade quando a estrutura morfolégica das palavras é levada em conta, Como stematizar as complicadas relagGes entre sons e letras Antes de entrar no assunto, um aviso: néo aborda- remos questdes de metodologia de ensino, pois é area dos pedagogos. Discutitemos, aqui, © percurso e © enfoque do contetido a ser colocado nas primeiras etapas do ensino da lingua escrita. No item anterior, fizemos uma subdivisio dos tipos de relacdo existentes em nossa lingua entre sons da fala ¢ letras do alfabeto. Encontramos trés tipos de relacdo: @ relagdo de um para um: cada letra com seu som, cada som com uma letra; @ relagées de um para mais de um, determinadas a partir da posicdo: cada letra com um som numa dada posi¢ao, cada som com uma letra numa dada posigio; © relacdes de concorréncia: mais de uma letra para © mesmo som na mesma posicao. HA uma gradaco entre esses trés tipos de relagdio. A motivagdo fonética da relacdo simbélica é perfeita no pri meiro caso e decai gradativamente. No segundo caso, a motivagao fonética vem combinada com a consideracao da posicao e no terceiro, a motivacao fonética da opcao entre 26 as letras esta perdida. Essa gradagdo determina uma gra- dagdo de facilidade na aprendizagem das letras. A primeira etapa da alfabetizacao: a teoria do casamento monogamico entre sons e letras Como foi visto quando discutimos as capacidades ne- cessarias para a alfabetizacdo, podemos afirmar que o pri- meiro grande progresso na aprendizagem dé-se quando o alfabetizando atina com a idéia de que ha, na escrita, re- presentagio de sons por letras. Faz sentido supor que a idéia construida por ele sobre essa relacéo é a mais sim- ples possivel: a relagio monogimica, ou biunivoca, para usar linguagem técnica, Entao, por que no comecar 0 ensino seguindo as etapas naturais do aprendiz? Considerando que o primeiro passo do alfabetizando em sua compreensio do sistema da escrita € o entendi mento da situacdo ideal e perfeita de que cada letra tem seu som e cada som tem sua letra, vamos deixé-lo explorar essa hipétese por um curto espaco de tempo. Vamos fornecer-Ihe material de exercitagéo que nao entre em contradico com a hipétese construida em sua cabeca, que € a da relacdo de um-para-um entre sons e letras, ou hipétese da monogamia. No Quadro 1, temos as letras mais virtuosas do por- tugués do Brasil: as consoantes p, b, t, d, f, v e a vogal a, Figis esposas de um marido s6, elas representam, onde quer que aparecam, sempre a mesma unidade fonémica Essa virtude faz com que essas letras merecam o privil gio de serem as primeiras a aparecer no inicio da alfabe- tizagdo. Com elas, seriam formadas as primeiras palavras e as primeiras frases dos exercicios, seriam inventados ver- sinhos ¢ musiquinhas. Por que nao brincar com silabas desprovidas de sentido? Criar ritmos alternando as con- soantes, tomar melodias conhecidas e cantarolé-las, lendo 27 simultaneamente sucessGes de sflabas formadas com essas consoantes virtuosas, ¢ inventar joguinhos de palavras cru- zadas usando s6 essas letras so algumas sugestdes de ati vidades que podem ser criadas. Num segundo momento dessa primeira etapa, deixa- riamos entrar letras menos virtuosas, mas fariamos de con- ta que elas sio virtuosas para manter o alfabetizando pro- tegido na hipétese da monogamia por mais tempo. Per- mititfamos, entio, a entrada das letras do Quadro 2, mas apenas em seus contextos mais gerais e em seus valores fonéticos mais tipicos. Por exemplo: a letra I entraria nos contextos de inicio de sflaba, com seu som de consoante lateral, mas nfo nos contextos de fim de silaba, onde ela soa como [u]. Assim, admitirfamos lua, lava e vala, mas evitarfamos enfrentar sol, mel e sal. A letra s apareceria posicionada em inicio e em fim de palavra ou de silaba, mas teria seu aparecimento evitado em posicao intervocd- lica, porque ai ela soa igual ao z, perturbando a hipétese da monogamia. O me on entrariam sé em ocorréncias iniciais de silaba, ou seja, nos casos em que sua articulacdo é plena, As vogais ee 0 somente apareceriam quando facentuadas, e nao em situagdes em que soam como [i] e fu). B claro que nao podemos nos agarrar com rigidez a0 intuito de manter o alfabetizando resguardado por algum tempo das complicacdes da escrita. As palavras vao jorrar de todos os lados, as criangas vao trazé-las, e nao seria sensato exagerar o peneiramento dos dados. Se as letras indesejadas forcarem sua entrada, sera preciso adiantar a explicagiio de que essas letras podem, as vezes, ter outros sons, quando colocadas em outras posicées. Cabe ao professor decidir por quanto tempo convém trabalhar sob a redoma da hipétese da monogamia. & im- possivel ater-se a ela por muito tempo, sob pena de per- mitir que 0 aprendiz se fixe com excessivo apego a um conceito ilusério da rede de relagdes entre sons ¢ letras.

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