You are on page 1of 6
Resenha do livro W. R. Bion - A obra complexa! Claudio Castelo Filho? W. R. Bion — A obra complexa & um livro enderecado aos que almejam expan- dir repensar as ideias de Bion com as quais ja tiveram contato, F, uma reflexio inovadora a partir de Bion. Nao propée explicar as ideias de Bion, mas é uma obra ousada que nfo se submete 4 autoridade desse autor pelo qual os autores tém uma profunda admiracio; sugere algo préptio € novo: propostas tedricas, expanses, consideragdes, inovagdes e mesmo revises de construtos bionianos, FE valioso ¢ de muito interesse para quem trabalba nesse campo e zeconhece 0 grande impacto das ideias de Bion na psicandlise. Mesmo aqueles que estio se iniciando na obra de Bion podem, ao ler passagens deste livro, viveneiar expe- Hiéncias emocionais que poderio ajudé-los, no a entender a palavra ou letra de Bion, mas sim sua misica, seu espirito. Poderio tomar contato com seu poten- cial ctiativo por meio de uma linguagem de éxito/consecugio que nos langa num faturo de infinitas possibilidades. Sio correlacionados, nessa publicagio, a obra de Bion e diversos conceitos da fisica ¢ da filosofia, como a Teoria do caos, 0 Teorema de Gédel ¢ o Principio da incerteza. Os autores tém a opiniio de que a anilise esté dentro das pessoas como habili- dade humana potencial que faz 0 paciente se interessar mais pelo proces: € pelo conhecimento de sua mente em direcio diversa do conceito cléssico de psicanilise como tratamento proveniente do modelo médico, alterando-o plena: analitico Trabalho originalmente publicado na Revista Brasileira de Psicanilise v.49, . 1, 2015. 2 Membro Efetivo © Analista Didata da SBPSP. Psicdlogo pela USP. Mestze em Psicologia Clinica pela PUC-SP. Doutor em Psicologia Social ¢ Professor Livre Docente em Psicologia Clinica pela USP Psicandlise v.18 n° 2, 2016 | 185 Resenha ro WR lon A ore complexe mente. A psicanilise auxiliatia no desenvolvimento dessa habilidade potencial. Dessa forma, 2 anilise nio pode ser apresentada como se fosse remédio. O ana. lista trabatharia para desenvolver esse potencial Os autores constroem uma ficgio cientifica da histéria da evolucao dos pri ‘matas em que os hominfdeos acabaram gerando bebés cada vez mais inacabados € imatutos, o que teria diminuido a importincia do inato e teria aumentado a capacidade de aprender com a experiéncia. Ligam essa ficcao A ideia de precon: cepgio de Bion. Esta, em seu trajeto de realizagio para gerar uma concept, conservaria uma Jembranca dessa histéria que seria a etapa pré-natal movimentada pela imaginacao radical. © pré-humano se éuaginox humano ¢ as alteracdes de- correntes dessa imaginagio levaram a mudangas tremendas que romperam com a. ordem animal na qual estavam inseridos na natureza. Decorreu, como consequéncia, que os bebés neoténicos, devido fs suas ima- turidades, passaram a depender muito mais do grupo, 0 qual se tornon tio es sencial que o pré-humano mudou-se da natureza para 0 grupo, surgindo, dessa alteragio, uma sociedade. Consequentemente, a sobrevivencia da espécie passou a exigir coesio da co- letividade e uma socializagio integradora para que os bebés fossem cuidados, Desse modo, a preconcepcao incluitia nio somente o seio que alimenta, mas a mente de uma mie que o leva ao seio, os pais unidos que garantiriam a existéncia desse seio, a sociedade que protege os pais ¢, finalmente, a manutengio de uma mente criativa capaz de gerar solucdes novas & medida que a sociedade vai se tornando mais complexa. ‘A partir dessa evolugio, a ctiagio de uma nova forma de se comunicar teria sido © mais relevante, tendo em vista a facilidade de emitir sons diversos: postu- ta, gestos, aletta, afetos, ete., puderam set traduzidos em palavras. A linguagem digital simbélica seria 0 acontecimento mais emblemético e decisivo da espécie. A preconceps objeto psiquicamente gratificante ¢ onipotente, capaz de satisfazet ¢ preencher a incompletude humana Levando em consideracio o Principio de complexidade, constatou-se que os fatos absolutos (O) de uma sessio nunca podem ser conhecidos — eles evoluem como proceso de conhecimento na transitoriedade dos fendmenos. Uma grade negativa é proposta ao considerarem que os elementos beta for mariam um gradiente de manifestacdes clinicas de modo similar aos elementos alfa a partir da obsetvacio de pacientes muito graves que oscilariam rigidamente entre a idealizardo e 0 desprezo pelo analista. Observa-se a relagio transferencial permeada de perguntas com expectativas de se conseguir, por todos os meios, seria uma expectativa difusa de que no porvir existe um 186 | Psicanatise v. 18 n° 1, 2016 laud Calo Fike respostas arrogantes que inviabilizam a experiéneia emocional. Os sentimentos assemelhando-se a pantomimas rudimentares de amor que nitidamente mante iam vinculos mareados por uma espécie de vampirismo. O que diz respeito 4 grade negativa também scria pertinente as instituigdes que se tornariam arreme- dos daquilo que, em principio, se proporiam a ser ou das fungdes que Ihes seriam inerentes Ponderam, os autores, que os conceitos de maldade ¢ complexidade do mal decorreriam da impossibilidade de softer ¢ fazer contato com dor psiquica, 0 que também inviabiliza 0 acesso ao prazer, a softer 0 prazer, 0 que tornaria os individuos insensfveis. Sem a sensibilidade, haveria apenas um arremedo, 4 moda dos talibis ¢ outros grupos terroristas ou que pregam o terrorismo. Para os que se dedicam ao édio, o mal seria uma espécie de consciéncia de si mesmo: odiar seria igual a ser, a existir diante do outro e, consequentemente, para si mesmos. Abrir mio do ddio equivaleria a desistie da propria existéncia, dda propria identidade, Com o ddio, sentem-se grandiosos, sem ele nada seriam, O mal e a erueldade tais, Pela logica, o mal é vivenciado como se fosse bem, pois a confusio e ain versio de valores se justifica como desejo € meio de uma justiga propria de um grupo moralmente ressentido, Para excluir 0 outro do universo, o mal se vale de filosofias,ciéncia, ideologias, cosmologias. O discutso de ddio € uma justificati- va logica para a supressio dos nio alinhados, Tal situagio aplica-se igualmente aos grupos psicanaliticos e aos outros agrupamentos humanos. Qualquer grupo pode éomar passe da ética para torné-la uma moral conveniente a ele proprio, va~ Tendo-se dela pata justficar torturas e massacres de seus desafetos O principio da incerteza evidencia que toda vez que observamos um aspecto nio observamos outros, O absoluto é impossivel. No viger da maldade exige-se © absoluto do outro ou tenta-se coloci-lo como absoluto, de maneira a poder aniquilé-lo, uma ver que nio poderd fornecer 0 que dele se demanda. O mora- lista coloca-se como juiz supremo ¢ iguala-se a Deus, ponto que estaria por tris das manifestagies de maldade — a onipoténcia de seus execurores. Propée-se uma discussio entre moral, ética e redugdes desta tiltima, com 0 que Nietzsche chamou de moralina. A ética complexa, dizem, é modesta. Nao é arrogante como uma moral de fundamento ditada por Deus, igreja ou partido, Nio tem poder absoluto, somente fontes que podem espotar-se. A ética conside- ra 0 confronto com a dificuldade de pensar ¢ de viver. E, sem saturagao ¢ sempre promessa. Incorpora o desconhecido do mundo ¢ do humano. F. 0 oposto da moral que se apoia em maximas que sio por ela concebidas como leis universais, vilidas para todos os seres racionais. Desse modo, a moral ea atividade pensante ., em geral, racionalizados € no constatados como Psicanélise v.18 n° 2, 2016 | 187 Resenha ro WR lon A ore complexe teriam objetivos incompativeis ¢ diversos. Conforme Hannah Arendt, pensar é perigoso para todos os credos ¢, por si mesmo, nao produz nenhum outro credo. Segundo ela, pata ser um oficial da SS, basta ser alguém que dispense a faculdade humana de pensar, nao precisa set nenhum perverso. O vazio do pensamento gera a banalidade do mal. A ideia de que o maior mal possa ser feito pelo mais comum e servil dos homens transtorna a mente dos que pensam que o mal vem de um ser monstruoso, que nao esté na categoria do humano. As acdes de gran. de crueldade e maldade também fazem parte do humano! A ansiedade catastréfica, 0 terror sem nome ou o medo subtalimico podem ter como reagio um funcionamento em trinsito que se instala oferecendo uma seguranga iluséria contra o desampato ¢ 0 sofrimento, valendo-se de onisciéncia € onipoténcia, tal como ocorre nas drogadicées, nos fundamentalismos ¢ no terrorismo em geral, traduzindo-se na maldade. A finalidade da psicandlise nio seria a de produzir certezas sobre o ser ~ cla é ‘uma espécie de pritica da diivida. Ao final dela, espera-se que possamos tornar- 1nos mais intimos do estranho que existe em nds, o que levou ao desenvolvimen- to da Teoria das transformacées de Bion. A psicanilise teria o objetivo investigative primordial de auxiliar © analisan- do a alterar, de alguma maneira, sua relacio com a mente inconsciente, amide sequestrada por promessas vas de felicidade eterna vindas de muitas fontes — re- ligio, mistificagio, terapias breves diversas, autoajudas, terapias-cultos a si mes- mo, mitos pessoais, boatos, ete. De acordo com Bion, o analisando aproxima-se de set a pessoa que sempre deveria tet sido (cle mesmo) se a anlise for bem-sucedida. Lissa experiéncia sé ocorre se houver a transi¢ao do saber sobre a realidade para o tornar-se essa realidade na vida (transfotmacio em O), No que diz respeito & linguagem de éxito ressaltam, como Bion, a importin. cia da relacio entre o que se relaciona € no dos objetos ou seres relacionados. O problema aparece quando nio se da atencio A relagao, ao que esté entre, como na relagio entre metaforas. Ao se falar eu-tu, o que importa é a relacao entre eles, ‘numa realidade em aberto, em que nao ha término. O tornar-se aquilo que se & em uma conversa sincera sobre o que est se passando entre os presentes, interessada na existéncia da mente inconsciente, © que geraria uma sabedoria de vida, setia o principal foco de uma experiéncia analitica. Os autores evidenciam, ao tratarem da transferéncia, que é a suspensio de meméria, desejo da necessidade de compreensio que é possibilitada a intera cio com ela, ou seja, a0 se esperar a transferéncia, ela nfo aparece — aparece so- 188 | Psicandtise v. 18 n° 1, 2016 laud Calo Fike mente o transferido, o conteiido, por meio do qual se pode crer que sio possiveis interpretagées transferenciais, ao seguir-se mecanicamente o fluxo associativo. O transferido constitui parte do trinsito, mas fio & 0 que produz o transite. Faz parte da transferéncia, mas nfo é a transferéncia em si. Ao considerarem-se as interpretagdes, nao se altera o Ser do vinculo pelo que é transferido, mas pelos elementos que produzem o trinsito, alterando-se © continente, ampliando-se 0 espaco mental, problematizando! Somente com a mudanga de um estado mental para outro ocorretia a trans- feréncia — é a coisa em si que se movimenta que constitui a transferéncia. Para Bion, a anélise sempre fala a linguagem da experiéncia emocional (as paixdes sempre voltando 4 superficie), corroborando o pensamento de Freud de que a transferéncia expressa 0 essencial. O conceito de Cesura questiona a forma habitual de pensar, direcionando as novas possibilidades légicas que seriam desantropomérficas, expondo uma realidade que nao segue parimetros biolégicos deterministas de comeso, meio ¢ fim, nem conceitos de espacialidade. Foca-se numa realidade que est sempre além do nosso alcance, a do Inconsciente, que pode ser transcrita suma relagio entre infinito € finito. Ao abordar a ideia de Turbuléncia emocional, Chuster, Soares ¢ Trachtenberg a consideram como uma forma singular de apresentar a transferéncia, como um fendmeno de transitoriedade que sempre remete & cesura. Apoiando-se em Castoriadis, sugerem a ideia de Imaginagao radical, que abar caria estados mentais muito primitivos vinculados a sentimentos subtalimicos da mente embrionéria; o mundo pré-natal influenciando as transformacées pés E possivel observar aspectos muito primitivos conectados 4 existéncia de uma mente embrionétia ao trabalhar-se afastando meméria, desejo e necessida de de compreensio. Ao usar-se essa disciplina, estaria evidenciada a realizagio de um trabalho valioso se for desencadeada uma imagem onitica antes de uma interpretacao. Os autores propéem a correlagio de realizagao, um conccito originalmente matematico, com imaginagio radical, e oferecem um modelo de realizagao di: verso do considerado habitualmente, em que esta ocorre em duas etapas: na mente cmbriondria ¢ na mente pés-natal. Nele, 0 movimento condutor da pre concepgio na mente embrionétia pode atender a outro status tebrico em virrade de ser um sistema que demanda mais investigacio. F. sugerida a substituicio do conceito de identificacio projetiva pelo de imaginagao radical. A existéncia de uma posicio a mais, além das propostas por Klein, também é considerada Psicanélise v.18 n° 2, 2016 | 189 Resenha ro WR lon A ore complexe Para evidenciar 0 modo com que lidam na pritica com © que propéem, sio descritas duas situagdes clinicas. O final do livro se d& com uma cone io em aberto, tendo em vista que 0 relevante estaria na abertura de novos campos de indagacio ¢ pesquisa, voltados para o infinito. Considero que um dos aspectos mais valiosos desse livro est na liberdade dos autores em apresentarem suas prdprias ideias ¢ teorias, fomentadas a partir da obra de Bion, mas acrescentando algo novo € original. O imenso respeito que possuem por sua obra, pela de Freud, Klein, ou outros autores significativos, no os leva a caminhar sobre as pegadas deles. Essas so importantes referéncias, mas cles podem ir adiante abrindo novas trilhas. Referéncias CHUSTER, Amaldo; SOARES, Gustavo; TRACHTENBERG, Renato. W. R. Bion: a obra complexa, Porto Alegre: Editora Sulina, 2014, Copyright © Psicandlise — Revista da SBPdePA Revisio de portugués: Débora Rodrigues Cusco Caste. Frsio Rua Carlos Sampaio, 304 / 72 (01333-020 - Sio Paulo — SP — Brasil e-mail: claudio.castelo@uol.com.br 190 | Psicandtise v. 18 n° 1, 2016

You might also like