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Jacques Derrida Forca de Lei Q “Fundamento mistico da autoridade” Traduclo LEYLA PERRONEMOISES Jacques Dertida, ildsfo principal trio do desconste- tivismo,nascevem ELBiar, Anglia, em 1980, Ensinou na Sorbor- re, na Ecole Normale Supérieure na fcole de Hautes Etudes. Desde os anos 1970 altemou sua vida na Franca com tempors- 4 das de ensino nos Estados Unidos, onde sua obra foi muitobem recebida. Morreu em Paris em outubro de 2004, Entre suas obras | wmfmartinsfontes publi no Basi Gri © ania we ie st ¢ oe tox pti eine mos Setib ine rp iat “rg ten 0 cert thro oy Ett, ‘ri povero s tie 207 esi 28 The Leva rERRONE MOISES = eee e “eee ee oe ae a pm di Ss ‘retul len ‘ai es Pro ‘nde Omen Er ei or Tot de frame mise de autinde / nays erin aa Per Mole ~ {ye ttn WA Mares Ro, 8 once (psa wee) “ei a 1 he -Re2 J T roses cousin Mote eae an Tio dros dea lg reercadosd “Edo WMP Marit Fontes ide, ‘aa Prof. Laere Ras de Casa, 119 0935030 $0 Paslo SP Brasil "(11593 8150 era eo vmfmaringo com br ap tearing com INDICE Adverténcia .. L.Do direito a justig IL Prenome de Benjamin... Post-scriptt nmmenmnees ADVERTENCIA A primeira parte deste texto, “Do direito a jus- tica’, foi lida na abertura de um col6quio organizado por Drucilla Comell na Cardozo Law School, em ou- tubro de 1989, sob o titulo “Deconstruction and the Possibility of Justice”. O coléquio reuniu filésofos, teGricos da literatura e juristas (principalmente repre- sentantes do movimento norte-americano intitula~ do Critical Legal Studies). A segunda parte do texto, “Prenome de Benjamin”, nao foi ali pronunciada, mas uma cépia foi distribuida aos participantes. ‘Na primavera do ano seguinte, no dia 26 de abril de 1990, a segunda parte da mesma conferéncia foi lida na abertura de outro coléquio, organizado por Saul Friedlander na Universidade da Califérnia em Los Angeles sob o titulo “Nazism and the ‘Final Solution’: Probing the Limits of Representation”. Essa segunda parte foi precedida de um prélogo e Vil PORGA DE LET seguida de um post-scriptum, que acrescentamos & presente publicagdo. Esta apresenta alguns desen- Yolvimentos e notas as edic6es anteriores e em Iin- guas estrangeiras, sob forma de artigo ou de livro'. 4. Deconstruction and the Possibility of Justice, trad. ing. Mary (Quaintance, in Cardozo Law Review, Nova York, vol Il, nt 56 jultor «agosto de 1990, depois in Deconstruction and the Possibility of ust, D- CComell.M. Rosenfeld DC. Carlson (orgs), Nova York Londres, Kou- Ledge 199; finalment, sb forma de io separado, Gesteskrs. Der imystische Grant der Autritt”, tad, al, Alexander Gareé Diittmann, Suhekamp, 191 DO DIREITO AJUSTICA E para mim um dever, devo enderecar-me [m‘a- dresser] a vocés em inglés'. O titulo deste coléquio e o problema que devo, como vocés dizem transitivamente em sua lingua, to address fazem-me refletir hd meses. Embora me tenham confiado a temfvel honra da keynote address, nada tenho a ver com a invengao desse titulo e com a formulagdo implicita do problema.(“A desconstru- ‘a0 e a possibilidade da justiga”: a conjunc e asso- ia palavras, conceitos, talvez coisas que nao perten- am & mesma categoria) Tal conjungao ousa desafiar a ordem, a taxinomia, a l6gica classificatéria, qual- quer que seja 0 modo pelo qual ela opera: por ana- logia, distingdo ou oposigio. Um orador mal-humo- rado diria: nao vejoa relacdo, nenhuma retérica pode 1. Acconferéncia fol iniclalmente proferida em inglés Esta primei- 1 frase foi pronunciada primeiro em francs, depois em inglés 4 ORCA DE Let prestar-se a tal exerciio. Disponho-me a tentar fa- far de cada uma dessas coisas ou dessas categorias (’Desconstrugio”, “possibilidade”, “justica”), e até mesmo dos sincategoremas ("e”, “a”, “de”), mas néo nessa ordem, nessa taxinomia ou nesse sintagma, Tal orador ndo estaria apenas de mau humor, es taria de ma-fé, E estaria até mesmo sendo énjusto) Pois poderiamos facilmente propor uma interpreta- Gio justa, isto é, neste caso, adequada e licida, por- tanto algo suspeitosa com respeito as intencSes @ aos, tidos do titulo. Este titulo sugere uma pergunta assume, ela mesma, a forma da suspeitarsera que io assegura, permite, autoriza a possi lidade da justica?|Serd que ela torna possivel a jus- tiga ou um discurso conseqiiente sobre a justica e sobreias condigées de possibilidade da justi: responderiam alguns; néo, responderiam os oposi- - tores. Os “desconstrucionistas” tém algo a dizer so- «bre a justiga, algo a fazer com a justiga? Por que, no fundo, eles falam dela to pouco? Isso Ihes interes- sa, afinal? Nao serd, como alguns desconfiam, por- que a desconstrugio no permite, nela mesma[ne- nhuma aco justa, nenhum discurso justo sobre a “~*~ justica, mas constitui até mesmo uma nea con- tra o direito e arruina a condicao de possibilidade da justia? Sim, responderiam alguns; ndo, responderia 0 adversério! Desde este primeiro debate ficticio, anunciam- se deslizamentos equivocos entre direito e justica. Do DIREITO A juSTICA 5 O sofrimento da desconstrugao, aquilo de que ela sofre e de que sofrem os que ela faz sofrer, é talvez a auséncia de regra, de norma e de critério seguro para distinguir, de modo inequivoco, direito e justi- a. Tiata-se pois destes conceitos (normativos ou nao) de norma, de regra ou de critério[Trata-se de julgar aquilo que permite julgar, aquilo que se autotiza 0 julgamento.] (+ juraemta y Esta seria a escolha, o “ou... ou”, “sim ou nao”, que se pode suspeitar neste titulo. Deste Angulo, tal titulo seria virtualmente violento, polémico, inqui- sidor. Podemos temer nele algum instrumento de tortura, uma maneira de interrogar que nao seria a mais(usta)E inutil precisar, desde j4, que a perguntas colocadas desta forma (“ou isto ou aquilo”, “sim ou nio”) ndo poderei dar nenhuma resposta, em todo caso nenhuma resposta trangiiilizadora para quem quer que seja, para nenhuma das expectativas assim formuladas ou formalizadas. Devo)pois, este é um dever, enderegar-me a vo- cés em inglés. Devo-o, isto quer dizer muitas coisas a0 mesmo tempo. 1. Devo falar inglés (como traduzir este “devo”, este dever? I must? I should? 1 ought to? 1 have to?) porque me colocam uma espécie de obrigagao ou uma condicdo imposta por uma espécie de forca simbélica, ou de lei, numa situago que ndo contro- lo, Uma espécie de pdlemos concerne, de imediato, 6 roRcA Dee & apropriacao da lingua: se ao menos desejo fazer- me ouvir, preciso falar na lingua de vocés, devo fa~ Zé-lo, tenho de fazé-lo. 2. Devo falar na lingua de vocés pois aquilo que direi assim sera mais justo ou julgado mais justo, mais justamente apreciado, isto & neste caso, no sen tido da justeza, da adequacao entre o que é ¢ 0 que E dito ou pensado, entre o que é dito eo que é com- preendido, ou entre o que é pensado e dito ou ouvi- do pela maioria dos que aqui estdo e que, de modo manifesto, fazem a lei. “Fazer a lei” (“making the lao") € uma expressdo interessante sobre a qual voltare- a falar) ie 8, Devo falar numa lingua que nao é a minha porque seré mais justo, num outro sentido da pala- via “justo”, no sentido da justica, um sentido que di- remos, sem refletir demasiadamente por enquanto, {jurfdico-ético-politico} é mais justo falar a lingua da ‘maioria, sobretudo qdando, por hospitalidade, esta dé a palavra ao estrangeiro, Referimo-nos aqui a uma lei da qual é dificil dizer se é uma convenién- cia, uma polidez, {lei do mais fortelou a lei eqiiita- tiva da democracia. E se ela pertence a justiga ou a0 direito. E, ainda mais, para que eu me submeta a essa lel ea aceite, ha certo ntimero de condigées: por exemplo, que eu responda a um convite e manifeste meu desejo de falar aqui, o que, aparentemente, nin- bo DmREITO AjusticA 7 guém me obrigou a fazer; em seguida, é preciso que eu seja capaz, até certo ponto, de compreender 0 contrato e as condigdes da lei, isto é, de me apropriar ‘20 menos minimamente da lingua de vocés, que, des- de entdo cessa, em certa medida, de ser para mim estrangeira. E preciso que vocés e eu compreenda- mos, mais ou menos do mesmo modo, a tradugao de meu texto, escrito primeiramente em francés ¢ que, por melhor que-seja, permanece sendo neces- sariamente uma traducao)isto 6, fam compromisso sempre possivel mas sempre imperfeito entre dois idiomas’ Essa'questo de lingua e de idioma estaré certa~ mente no cerne daquilo que eu desejaria Ihes ofere- cer & discussao. Existe, na lingua de vocés, certo ntimero de ex- presses idiomaticas que sempre me pareceram pre- ciosas, pelo fato de nao terem nenhum equivalente estrito em francés. Citarei ao menos duas, antes mes- ‘mo de comegar. Elas tém alguma relagio com o que eu gostaria de tentar dizer esta tarde. A.A primeira 6 “to enforce the law”, ow ainda “en- forceabitity of law or of contract”. Quando se traduz em francés “to enforce the law” por “aplicar alei”, per- de-se aquela alusio direta, literal, &forcalque vem do interior, lembrando-nos que o direito € sempre uma forca autorizada, uma forga que se justifica ou que tem aplicacao justificada, mesmo que essa justifica~ 8 FORCA DE LET sa ser julgada, por outro lado, injusta ou in- justificdvel. Nao hd direito sem force, Kant o lembrou fom o maior rigor. A aplicabilidade, a “enforceability” nao é uma possibilidade exterior ou secundaria que viria ou nao juntar-se, de modo suplementar, ao direi to. Ela é a forga essencialmente implicada no préprio conceito da justiga enquanto direito, da justica na me- ida em que ela se torna lei, da lei enquanto direito]| ‘Quero logo insistir, para reservar a possibilidade de uma justiga, ou de uma lei, que nao apenas exceda, ou contradiga o direito, mas que talvez nao tenha re- lagao com 0 direito, ou mantenha com ele uma rela- _ cao tdo estranha que pode tanto exigir 0 direito quan- “to exclui-lo, ‘A palavra “enforceability” chama-nos pois a letra. Ela nos lembra, literalmente, que nao hé direito que ‘nao implique nele mesmo, a priori, na estrutura analf- aide seu conceito, a possibilidade de ser “enforced”, pela forca. Kant o lembra desde a Introdugiio ireito (no § F, que concerne ao “diei- icle Rect). Existem, certamente, leis gio pos 100 drcito da moral, mas ela insu undélo J, "Certamente, esse direito se funda na consciéncia da obrigagio de todos segundo a lel; mas, para determ aro arbitrio,eleno pode nem deve, se tem de ser puro, apoiar-se nes sa consciéncia como mobil, mas deve, pelo contriri, esabelecer-seso- ‘be o principio da possbilidade de um constrangimento externo, que ppossa concliarse com a liberdade de cada um, segundo leis univer- Sas” Sobre essa questo, permito-me remeter a meus livro Du droit Philosophie, Galle, 1990, pp. 77 ss. DO DIREITO A jusTiCA 9 nido aplicadas, mas ndo hé lei sem aplicabilidade, e nao ha aplicabilidade ou “enforceability” da lei sem forga, quer essa forga seja direta ou nao, fisica ou simbélica, exterior ou interior, brutal ow sutilmente discursiva - ou hermenéutica ~, coercitiva ou regu- ladora etc:] [Como distinguir entre essa forca da lei, essa “forga de lei”, como se diz tanto em francés como em inglés, acredito, e por outro lado a violéncia que jul- ‘gamos sempre injusta?|Que diferenca existe entre, por um lado, a forga que pode serfjusta) em todo caso jul- gada legitima (nao apenas o instrumento a servigo do direito, mas a propria realizado, a esséncia do direi-~ to} por ourg lad, a violencia que jlgamosinjusta? O que 6 uma{forta jistajou umafforca nao violenta?) ~ Para no abandonar a questo do idioma, refiro- me aqui a uma palavra alema que nos ocupard bas- fanie aqua poacaitia palo Goa i como em inglés, ela é freqiientementé traduzida por “violéncia”. O texto de Benjamin, de que falarei mais adiante e que se intitula Zur Kritik der Gewalt, é tra- duzido em francés como Pour une critique de la vio- lence, e em inglés como Critique of Violence. Mas es- sas duas tradugdes, sem ser totalmente injustas, portanto totalmente (iolentas, sao interpretagdes muito ativas que nao fazem justiga ao fato de que" »~ (Gewalt significa também, para os alemaes, poder le- gitimo, autoridade, forca puiblica,|Gesetzgebende Ge- walt é o poder legislativo, geistliche Gewalt é 0 poder FoR¢A Deter 10 spiritual da Igreja, Staatsgewal 6 a autoridade ou o ere do Estado Gawalt 6, portanto, ao mesmo tem- a ‘a violéncia e o poder legitimo, a autoridade jus- Fircada_|Como distinguir entre a forga de lei de um poder legtimo e a violénca prtensamente org naria que precisou instaurar essa autori ede e que no podia ela mesma autorizar-se por nenhuma le- gitimidade anterior, de tal forma que ela ndo é, na- quele momento ical, nem legal nem legal, outros diriam apressadamente nem justa nem injusta? As palavras Wallen e Gewalt tm um papel decisivo em certos textos de Heidegger, ali onde ndo saberiamos “traduzi-as simplesmente nem por forsa nem por vio- Tenia, ¢ isso num contexto em que, aliés, Heideg- ‘ger se aplicard a mostrar que, por exemplo em Heré- dito, Dike, a justica, o direito, o julgamento, a pena ou 0 castigo, a vinganga etc, 6 originariamente Eris (0 contlito, Streit, a discérdia ou o pélemos, ou a Kampf, isto 6, também adikfa, a injustica’. Jé que este coléquio é consagrado descons- truco e a possibilidade da justica, lembro primeira- ‘mente que, em numerosos textos ditos “desconstru- cionistas”, e em particular em alguns daqueles que eu mesmo publiquei, o recurso & palavra (forga” é 20 mesmo tempo muito freqiiente, eu ousaria mesmo dizer decisivo em lugares estratégicos, mas sempre, ‘ou quase sempre, acompanhado de uma reserva ex- 3.CE. “Lorelle de Heidegger in Politiques de amit, Galle, 19, rar Do DIRETTO A jUSTICA a plicita, de um alerta. Muitas vezes recomendei vigi- \ancia, lembrei a mim mesmo os riscos que essa pa- lavra implica: risco de um coneeito obscuro, substan- cialista, ocultista-mistico, risco também de uma au- torizagdo concedida a forga violenta, injusta, sem regra, arbitréria. (Nao citarei esses textos, seria uma forma de complacéncia e nos faria perder tempo, mas peco-lhes que confiem em mim.) Contra os ris. os substancialistas ou iracionalistas, a primeira pre- causdo consiste justamente em lembrat(o cardter di- ferencial da forga\Nos textos que acabo de invocar, trata-se sempre da forca diferencial, da diferenca como diferenca de forca, da forca como differance ou forga de différance (a différance & uma forca diferida- diferinte); trata-se sempre da relagéo entre a forca a forma, entre a forga e a significacao; trata-se sempre de forga “performativa”, forca ilocuciondria ou perlo- cutéria, forga persuasiva e de retérica, de afirmagao da assinatura, mas também e sobretudo de todas as si- tuagdes paradoxais em que a maior forga e a maior fraqueza permutam-se estranhamente. E é toda a histéria. Resta que sempre me senti pouco & vonta- de com a palavra “forga”, mesmo que muitas vezes a julgasse indispensével - e agradeco-lhes pois por me obrigarem a dizer, hoje, algo mais sobre ela. O mesmo acontece, aliés, com a palavra “justiga”. HA sem diivida numerosas razées pelas quais os textos apressadamente identificados como “desconstnucio- nistas” parecem, digo bem parecem, nao colocar o tema 2 FORCA DE LED da justiga como tema, justamente, em seu centro, nem mesmo o da ética ou da politica. Naturalmente, é apenas uma aparéncia, se considerarmos por exemplo (citarei somente aqueles) numerosos textos consa- grados a Levinas e as relages entre “violéncia e me- tafisica”, & filosofia do direito, a de Hegel com toda a sua posteridade em Glas, em que é 0 motivo prin cipal, ou de textos consagrados a pulsio de poder e aos paradoxos do poder em Spéculer ~ sur Freud, & lei em Devant la loi (sobre Vor dem Gestetz, de Kafka), ou em Declaration d’indépendance, em Admiration de Nelson Mandela ou les lois de la réflexion, e em mui- tos outros textos. Nao é preciso dizer que discursos sobre a dupla afirmacao, o dom para além da troca e da distribuicdo, o indecidivel, o incomensurével ou 0 incalculavel, sobre a singularidade, a diferenca ea ++ heterogeneidade sio também, de ponta a ponta, dis- | cursos pelo menos obliquos sobre a justia. E aliés normal, previsivel, desejavel, que pesqui- sas de estilo esconstrutivo desemboquem numa problematica do direito, da lei e da justiga. Seria mes- mo seu lugar mais proprio, se algo como tal existisse] ‘Um questionamento desconstrutivo que comeca, como foi o caso, por desestabilizar ou complicar a oposicaio de ndmos e physis, de thésis e de physis ~ isto 6, a oposicdo entre a lei, a convencao, a institui- cao por um lado, e a natureza por outro lado, e todas as que elas condicionam, por exemplo, e é apenas um exemplo, a do direito positivo e do direito natu- \ bo DikErTO A usTicA 7 ral (a différance & 4 Za on qn ce re \ to desconstrutivo que comesa, como foi 0 caso, por desestablizay, compli- car ou apontar os paradoxos de valores como os do (Proprio e da propriedade, em todos os seus registros, OO sujeito, e portanto do sujeito responsavel. de Sujeito do direito e do sujeito da mora, da pessoa ju. ridica ou moral, da intencionalidade etc. e de tudo 0 que dai decorre,|tal questionamento desconstrutivo ¢, de ponta a ponta, um questionamento sobre o di- reito e a justica’|Um questionamento sobre os fun- damentos do diteito, da moral e da politica. Esse questionamento sobre os fundamentos nao énem fundamentalista nem anti-fundamentalista. Acontece mesmo, ocasionalmente, ele colocar em questdo ou exceder a possibilidade ou a necessidade Ultima do préprio questionamento, da forma ques- tionadora do pensamento, interrogando sem con- fianca nem preconceito a prépria histéria da questao e de sua autoridade filos6fica, Pois existe uma auto- tidade ~{portanto uma forga legitima da forma ques- tionadora, a respeito da qual podemos nos pergun- tar de onde ela tira uma forca tio grande em nossa tradigao, ‘J Se, por hipétese, ele tivesse um lugar proprio, 0 que justamente nao é o caso, tal “questionamento” ou metaquestionamento desconstrutivo estaria mai “em seu lugar” nas faculdades de direito, e talvez também, como as vezes acontece, nos departamen- 4 rorcaeus etn ee porter tos de teologia ou de arquitetura, do que em depar- tamentos de filosofia ou departamentos de litera- tura, Eis por que, sem os conhecer bem do interior, sinto-me culpado, sem pretender qualquer fami- liaridade com eles, julgo que os desenvolvimentos dos Critical Legal Studies ou dos trabalhos como os de Stanley Fish, Barbara Herrstein-Smith, Drucilla Cornell, Samiuel Weber e outros,(que se situam na ar- ticulado entre a literatura, a filosofia, o direito e os problemas politco-institucionais) sfo, hoje em dia, do ponto de vista de certa desconstrucio, dos mais, fecundos e dos mais necessérios. Eles respondem, a meu ver, aos programas mais radicais de uma des- construcdo que desejaria, para ser conseqiiente com relagio a ela mesma, nao permanecer fechada em discursos puramente Gpeculativos, teéricos e acadé- micos, mas pretender, contrariamente ao que suge- re Stanley Fish, ter conseqiiéncias, mudar as coisas e intervir de modo eficiente e responsavel (embora sempre mediatizado, claro) ndo apenas na profisséo mas naquilo que chamamos a cidade, a polis e, mais geralmente, o mundo, Nao mudé-las no sentido, sem diivida um tanto ingénuo, da intervengao calculada, deliberada e estrategicamente controlada, mas no sentido da intensificagdo maxima de uma transfor- magdo em curso, a um titulo que ndo é do simples sintoma, nem o de uma simples causa: outras cate~ gorias seriam aqui requeridas. Numa sociedade in- dustrial e hipertecnol6gica, o espago académico & DO DIRETOAUsTICA Bb menos do que nunca, 0 enclave monddico ou mo- néstico que, ali, ele jamais foi. E isso é verdade em particular para as faculdades de direito, Apresso-me a acrescentar isto, em trés pontos muito breves: 1, Essa conjungao ou essa conjuntura é sem dii- vida inevitdvel entre uma desconstrucao de estilo mais diretamente filoséfica ou motivada pela teo- ria literéria, por um lado, pela reflexdo juridico-lite~ réria e pelos Critical Legal Studies, por outro. 2. Essa conjungdo articulada certamente no se desenvolveu de modo tao interessante neste pais por caso. Esse é outro problema - urgente e apaixonan- te—que, por falta de tempo, devo deixar de lado. Ha sem diivida razdes profundas para que esse desen- volvimento seja primeiramente e sobretudo norte- americano; razdes complicadas, geopoliticas e nao somente domésticas. 3. Sobretudo, se parece urgente atentar para esse desenvolvimento conjunto ou concorrente, e dele participar, é igualmente vital ndo assimilar discursos, estilos, contextos discursivos muito heterogéneos ¢ desiguais. A palavra “desconstrugao” poderia, em certos casos, causar ou encorajar tal confusao. Ela mesma ocasiona suficientes mal-entendidos para que nao lhe acrescentemos outros, assimilando por 16 FORGA DE Ley exemplo, primeiro entre cles, todos os estilos de Critical Legal Studies, ou transformando-os todos em exemplos ou prolongamentos da desconstrugdo. Por ‘ouco familiares que eles me sejam, sei que esses frabalhos dos Critical Legal Studies tém sua histéria, seu contexto e seu idioma préprios; que compara- dos a tal questionamento filos6fico-desconstrutivo les sao por vezes, digamos para abrevier, desiguais, timidos, aproximativos ou esqueméticos, para nao dizer atrasados, ao mesmo tempo que, por sua espe- cializagio. pela acuidade de sua competéncia técni- «a, eles estdo, pelo contrério, muito adiantados em relagdo a determinados estados da desconstrucio, Chum campo mais literdrio ou filosético. O respeito &s especificidades contextuais, académico-institucio- nais, discursivas, a desconfianca dos analogismos e das transposig6es apressadas, das homogeneizacées confusas parecem-me, na fase atual, o primeiro im- perativo, Estou persuadido, espero em todo caso que este encontro nos deixard a meméria de diferencas e diferendos, tanto quanto a de cruzamentos, coinci- déncias ou consensos. E pois somente em @paréncia que, nas manifes- tagdes mais conhecidas sob esse nome, a descons- trugdo nao “enderegou”* 0 problema da justica. E somente uma aparéncia, mas é preciso prestar con- * Derrida usa aqui o verbo “enderegar” com regéncia transits ireta, como em inglés. (N. da.) DO DIREITOAJUSTICA oO tas das aparéncias, “salvar as aparéncias”, no sentido que Aristdteles dava a essa necessidade. E 0 que eu gostaria de me esforcar por fazer aqui:{mostrar por que e como aquilo que se chama correntemente a desconstruséo, embora nao pareca “enderecar” 0 problema dajustica, fez apenas isso sem poder fazé lo diretamente, somente de modo obliquo] Obliquo como, neste momento, em que me preparo para de- monstrar que nao se pode falar diretamente da justiga, tematizar ou objetivar a justica, dizer “isto é justo” e, ainda menos, “eu sou justo”, sem trair imediatamen- tea justica, sendo o direit B.Ainda nao comecei. Acreditava dever comesar dizendo que devo enderecat-me a vocés em sua lin- gua; e anunciei logo que sempre julguei preciosas, ou mesmo insubstituiveis, pelo menos duas de suas expresses idiomaticas. Uma era “io enforce the law”, que nos lembra sempre que, se a justiga nao é ne- cessariamente o direito ou a le, ela s6 pode tomar-se justica, por direito ou em direito, quando detém a forca, ou antes quando recorre & forga desde seu pri- meiro instante, sua primeira palavra. No comego da justica, teré havido o légos, a linguagem ou a lingua, mas isso ndo é necessariamente contraditério com outro incipit que dissesse: “No comeco, tera havido Scbre a enusa do obiquo, permitome rome # Du dri de ioe, Cale, 1951 em partic, p. 7 ss Pasion, “Lota fe oblique", Gai, 198. ‘FORGA DE Ley 18 forca.” © que se deve pensar & pois, esse exercicio . at da forca na propria linguagem, no mais intimo de seeséncia, como no movimento pelo qual ela se su , desarmaria absolutamente por si mesma. Pascal o diz. num fragmento ao qual voltarei tal- vez mais tarde, um de seus célebres “pensamen- tow", sempre mais dificeis do que parecem. Este as- sim comega: “ustica, forca. - justo que aquilo que € justo seja seguido, é necessério que aquilo que é mais for- te seja seguido.”* O comeco desse fragmento jé é extraordinatio, pelo menos no rigor de sua retdrica. Ele diz que aquilo que ¢ justo deve —e é justo ~ ser seguido; se- guido de conseqiiéncia, seguido de efeito, aplicado, enforced; depois, que aquilo que é “0 mais forte” deve também ser seguido: de conseqiiéncia, de efeito ete. Por outras palavras: o axioma comum é que 0 justo eo mais forte, 0 mais justo como o mais forte devem ser seguidos. Mas esse “dever ser seguido”, comum a0 justo e ao mais forte, é “justo” num caso, “neces- sério” no outro: “E justo que aquilo que é justo seja seguido [por outras palavras: 0 conceito ou a idéia do justo, no sentido de justica, implica analiticamente 2 priori que o justo seja ‘seguido’, enforced, e 6 jus- 5, Pensées, ed. Brunschvicg, § 288, p. 470. [Trad. bras. Pensaments, ‘Sto Paulo, Martins Fontes, 2! ed, 208.) DO DIREITO A USTICA a to ~ também no sentido de justeza ~ pensar assim), E necessdrio que aquilo que é mais forte seja segui- do (enforced).” Pascal prossegue: “A justica sem a forga é impo- tente [por outras palavras: a justica nao é a justica, ela nao é feita se nao tiver a forca de ser ‘enforced’, uma justica impotente nao é uma justiga, no sentido do direito}; a forca sem a justiga é tirdnica. A justiga sem forca é contradita, porque sempre hd homens mau; a forca sem a justiga é acusada. E preciso pois colocar juntas a justica a forga;e, para fazé-lo, que aquilo que é justo seja forte, ou que aquilo que é for- te seja justo.” Quanto ao “é preciso” dessa conclusio ("E pre- ciso pois colocar juntas a justica e a forca”),é dificil decidir ou concluir tratar-se de um “é preciso” pres- crito por aquilo que é justo na justia ou por aquilo que ¢ necessério na forga. Hesitagdo que podemos considerar também como secundaria.|Ela flutua na superficie de um "6 preciso” mais profundo, por as- sim dizer, jA que a justica exige, enquanto justica, 0 recurso a forga. A necessidade da forca esta pois im- plicada no justo da justica) Sabemos 0 que segue ¢ conclui essa prop “E assim, ndo podendo fazer com que aquilo que 6 justo fosse forte, fizeram com que aquilo que é forte fosse justo.” Estou certo de que o principio de ané- lise desse pensamento de Pascal, ou melhor, de in- terpretagao (ativa e tudo exceto ndo-violenta) que 20 PORGA DE tay proporei indiretamente no decorrer desta conferén. Gia iria contra a tradigdo e seu contexto mais evi dente. Esse contexto dominante e a interpretagio convencional que ele parece comandar vao justa- mente num sentido{convencionalista, em diregdoa uma espécie de ceticismo pessimista, relativista ¢ empirista,| Foi essa razdo que levou Arnaud, por exemplo, a suprimir esses pensamentos da edigao de Port Royal {alegando que Pascal os havia escrito sob a impressao de uma leitura de Montaigne, segundo © qual as leis no so justas nelas mesmas, mas so- mente porque sao leis] E verdade que Montaigne havia utilizado uma expresso interessante, que Pas- cal retoma por sua conta, e que eu também gosta- tia de reinterpretar e subtrair a sua leitura mais con- f vencional. A expressdo é “fundamento mistico da \ autoridade”. Pascal cita Montaigne sem nomeé-lo, quando escreve: [..] um diz que a esséncia da(ustigd ¢ a autori- dade do legislador, outro, a comodidade do sobera- 1o, outro, 0 costume presente; ¢ é 0 mais seguro: nada, segundo somente a razio, 6 justo por si; tudo ‘se move com o tempo. O costume faz toda eqtiida- de, pela simples razao de ser recebida; é 0 fundamen- 40 mistico da autoridade. Quem a remete a seu princ!- pio a aniquila.* 6.Op. cit, § 29, p. 467. Sublinhado por mim. oO DIRETTOA JUSTICA 2 ‘Montaigne falava de fato, so suas palavras, de um “fundamento mistico” da autoridade das leis: (Ora, as leis se mantém em crédito, nao porque elas sdo justas, mas porque sio leis. £0 fundamen- to mistico de sua autoridade, elas nao tém outro [..J. Quem a elas obedece porque sao justas ndo thes obe- dece justamente pelo que deve.” Visivelmente, Montaigne distingue aqui as leis, (0 6,0 direito, da justia, justica do direito,a jus tiga como direito nao é a justica. As leis nao so justas como leis. Nao obedecemas a elas porque sao jus- tas, mas porque tém@utoridade) A palavra “crédito” porta toda a carga da proposigao e justifica a alustio a0 cardter “mistico” da autoridadelA autoridade das leis repousa apenas no crédito que lhes concedemos)) Nelas acreditamos, eis seu tinico fundamento. Esse ato de fé nao é um fundamento ontolégico ou racio- nal. E ainda resta pensar no que significa crer. E pouco a pouco que se esclarecerd, se for possf- vel e se isso tem um valor de clareza, o que podemos entender pela expressio “fundamento mistico da autoridade”. E verdade que Montaigne também ti- nha escrito isso, que também deve ser interpretado para além de sua superficie simplesmente conven- DMntagn, Ess, xp, X, “De espn” bith que la Pind, p20. Tad brs Os enti So aul, Mar tn Fontes 200] ‘FORCA DE LEt 2 ional e convencionalista: “... nosso proprio direito tem, ao que dizem,fiegdes legitimas sobre as quais ele funda a verdade de sua justiga”*. O que é uma ficcdo legitima? Que quer dizer fundar a verdade da justiga? Eis algumas das perguntas que nos es- peram, Montaigne propunha uma analogia entre esse Guplemento de ficgdo legitima, isto é, neces- sdria para fundar a verdade da justica, e 0 suple- mento de artificio suscitado por uma deficiéncia da natureza, como se a auséncia de direito natural solicitasse o suplemento de direito histérico ou po- sitivo, isto é um acréscimo de ficgdo, como ~e é a aproximagio proposta por Montaigne - “as mu- Iheres usam dentes de marfim onde os naturais lhes faltam e, em vez de sua verdadeira tez, forjam outra de alguma maneira estranha... embelezam-se com uma beleza falsa e emprestada: assim faz a ciéncia (e até mesmo nosso direito tem, ao que dizem, fic- Ges legitimas sobre as quais ele funda a verdade de sua justia)”, ojenb6 Ne duedevmnnte O pensamento de Pascal, que “pée juntas” a justica e a forca e faz da forga uma espécie de pre- dicado essencial da justia - palavra sob a qual ele entende mais 0 diteito do que a justica -, vai talvez além de um relativismo convencionalista ou utilité- io, além de um niilismo antigo ou moderno, que 8.Op. ct, I, cap. Xp 60 9. bid Do DIRETTO A JusTICA 23 mascarado”, para além da moral cfnica de “O lobo 0 cordeiro” de La Fontaine, segundo a qual “A ra- zi0 do mais(forte é sempre a melhor” (“Might ma- kes right”). Em seu principio, a critica pascaliana remete a0 pecado original e & corrupgio das leis naturais por uma razo ela mesma corrompida: “Hé, sem diivida, leis naturais; mas esta bela razio corrompida cor. rompeu tudo.”” E em outra parte: “Nossa justiga [se anula] diante da justica divina/" (Esses pensamen- tos nos preperars STSRiTr de besjoning Mas se isolarmos a alcada, de certo modo fun- ional, da critica pascaliana, se dissociarmos esta sim- ples analise da presungio de seu pessimismo cristo, © que ndo é impossivel, podemos entdo nela encon- ‘rar, como alids em Montaigne, as premissas de uma filosofia critica moderna, ou uma critica da ideologia juridica, uma dessedimentacio das superestruturas do direito que ocultam e refletem, ao mesmo tempo, [os interesses econdmicos ¢ politicos das forcas do- minantes da sociedade] Isso seria sempre possivel e, Por vezes, itil. Mas, para além de seu princfpio e de sua algada, este pensamento pascaliano conceme talvez a uma estrutura mais intrinseca. Uma critica da ideologia faria da lei o que se chama por vezes de “um poder 10, Pensées, TV, § 294, p. 466 1M. Op. cit. § 233, p. 435. 24 FORCA DE tay juridica ndo deveria jamais negligencié-ta{O préprig surgimento da justiga e do direito, o momento insti. tuidor, fundador e justficante do direito, implica uma forsa performativa, isto é, sempre uma forga inter. pretadora e um apelo a crenga: desta vez, nao no sentido de que o direito estaria servigp da forca, ins- trumento décil, servil e portanto exterior do poder dominante, mas no sentido de que ele manteria, -¢.com aquilo que chamamos de forga, poder ou vio- - Iéncia, uma relagio mais interna e mais complexalA _~ justica —no sentido do direito (right or law) ~ ndo es- taria simplesmente a servigo de uma forca ou de um © poder social, por exemplo econdmico, politico, ideo- 5 légico, que existiriafora dela owéntes dela, e ao qual ela deveria se submeter ou se ajustar, segundo a uti- lidade. Seu momento de fundagao ou mesmo de ins- tituicdo jamais ¢, aliés, um momento inscrito no te- cido homogéneo de uma histéria, pois ele o rasga por uma(decisio, Ora, a operacdo de fundar, inaugurar, justficar 0 dreito, faze ale, consistria num golpe de forca, numa violencia performativd e portanto inter- pretativa que, nela mesma, nao é nem justa nem in- justa, e que nenhuma justica, nenhum direito prévio ¢ anteriormente fundador, nenhuma fundagdo pre~ existente, por defini¢ao, poderia nem garantir nem contradizer ou invalidar/ Nenhum discurso justifica- dor pode, nem deve, assegurar 0 papel de metalin- guagem com relagao a performatividade da lingua- gem instituinte ou a sua interpretacéo dominante.] oO DIREITO A JUusTICA 2B discurso encontra ali seu limite: nele mesmo, em seu préprio poder performativo. E 0 que propo- nho aqui chamar, deslocando um pouco e generali- zando a estrutura, 0 (Ha ali um siléncio mura- do na estrutura violenta dolato fundador)Murado, emparedado, porque esse siléncio nao é exterior a, linguagem. Eis em que sentido eu seria tentado a interpretar, para além do simples comentario, o que Montaigne e Pascal chamam de fundamento mistico da autoridade|Poder-se-4 sempre voltar a - ou vol- tar-se contra ~ 0 que faco ou digo aqui, mesmo o que digo que é feito na origem de toda(nstituicao. Eu puxaria pois 0 uso da palavra “mistico” a um sen- tido que me arrisco a dizer wittgensteiniano, Esses textos de Montaigne e de Pascal, como a tradigao a que pertencem, como a interpretagéo um pouco ati- va que deles proponho, poderiam ser chamados discussdo por Stanley Fish em “Force” (em Doing What Comes Naturally") de “the Concept of Law” de Hart e alguns outros, entre os quais implicitamen- te Rawls, ele mesmo criticado por Hart, assim como pelos debates iluminados de certos textos de Samuel Weber sobre o carter agonistico e néo simplesmen- te intra-institucional ou monoinstitucional de certos conflitos em Institution and Interpretation”. 12. Stanley Fish, Doing What Comes Naturally, Change and the Rhe- toric of Theory in Literary and Lega Studies, Durkam-Londes, Duke Uni versity, 1989, 13, Minneapolis, University of Minnesota Pres, 1987. me FORCA DE LEE Jé que a origem da autoridade, a fundacao ou o fandamento, a instauragao da lei no podem, por de- finigio,apoiar-se finalmente sendo sobre elas mes- sas, elas mesmas sio uma violencia sem fundamen- to]O que nao quer dizer que sejam injustas em si no sentido de “ilegais” ou “ilegitimas”. Elas nao sio rnem legais nem ilegais em seu momento fundador. Elas excedem a oposigdo do fundado ao nao-funda- do, como de todo fundacionismo ou todo antifun- dacionismo. Mesmo que o éxito de performativos fundadores de um direito (por exemplo, e é mais do que um exemplo, de um Estado como garante de direito) suponha condig&es e convencdes prévias (por exemplo no > espaca(facional ‘owinternacional), ‘o mesmo limite /mistico” ressurgird na origem su- posta das ditas condig6es, regras ou convencdes de sua interpretagao dominante. > Na estrutura que assim descrevo, o direito é es- sencialmente desconstrufvel, ou porque ele ¢fundado, x isto 6, construfdo sobre camadas textuais interpreté- veis e transformaveis (¢ esta 6 a histéria do direito, a possivel e necessdria transformacao, por vezes a me- Ihora do direito), ou porque seu fundamento tiltimo, | por definigao, nao é fundado. Que o direito seja des- construivel, nao é uma infelicidade, Pode-se mesmo encontrar nisso a chance politica de todo progresso histérico, Mas o paradoxo que eu gostaria de sub- meter a discussio é o seguinte: é essa estrutura des- construivel do direito ou, se preferirem, da justica Ay DO DIREITO A JUSTICA z como dircito, que assegura também a possibilidade da desconstrucao. (justia nela mesma, se algo como tal existe, fora ou para além do direito, nio é des. construivel. Assim como a desconstrugao ela mes. ma, se algo como tal existe [A desconstrugiio é a jus- tiga. talvez porque o direito (que tentarei, por- tanto, distinguir regularmente da (ustica) & cons- truivel, num sentido que ultrapassa a oposigio da convengdo & natureza, é talvez na medida em que ultrapassa essa oposicao que ele é construivel — portanto desconstruivel e, ainda mais, que ele tor- na possivel a desconstrucdo, ou pelo menos o exer- cicio_ de uma desconstrugéo que, no fundo, trata -semprOde questées de direito ou relativas ao direi- to. Donde estas trés proposicses: 1.A desconstrutibilidade do direito (por exem- plo) toma a desconstrugao posstvel. __ 2.A.indesconstrutibilidade da justiga torna tam- bém a desconstrugio possivel, ou com ela se con- funde. 3. Conseqiiéncia:{a desconstrucao ocorre no in- tervalo que separa a indesconstrutibilidade da justi- a ea desconstrutibilidade do direito] Ela é possivel como uma experiéncia doimpossfvel, ali onde, mes- mo que ela nao exista, se nao estd presente, ainda nao ou nunca, éxiste}a justica. Em toda parte em que se Pode substituir, traduzir, determinar 0 X da justiga, deveriamos dizer: a desconstrucio é possivel como impossivel, na medida (ali) em que existe X (indes- 28 FORCA DE LE construivel), portanto na medida (ali) em que existe (0 indesconstruivel). . . Por outras palavras, a hipétese e as proposigdes em direcao s quais eu aqui tateio solicitariam pre- ferivelmente como subtitulo{a justi¢a como possi bilidade da desconstrucao, a estrutura do direito ou da lei, da fundagio ou da auto-autorizacao do direi- to como possibilidade do exercicio da desconstru- 40} Estou certo de que isso nao esté claro. Espero, sem ter certeza, que isso se tornaré um pouco mais dlaro daqui a pouco. 4 Bu disse que ainda ndo tinha comecado. Talvez, eu ndo comece nunca, ¢ talvez este coléquio fique sem keynote, No entanto, jd comecei. Autorizo-me- mas com que direito? ~ a multiplicar os protocolos e 108 desvios. Comecei dizendo que estava enamorado de pelo menos dois de seus idiomatismos. Um era “ enforceability’, 0 outro é 0 uso transitivo do verbo “to address" Em francés, enderegamo-nos a alguém, en- deregamos uma carta ou uma fala, uso também tran- sitivo, sem ter certeza de que elas chegartio a um des- tino, mas nao se endereca um problema. E, ainda menos, enderegamos alguém. Esta tarde, comprome- ti-me, por contrato, a “enderecar” em inglés um pro- blema, isto 6, a ir diretamente a ele e diretamente a vocés, tematicamente e sem desvio, enderecando-me a vocés em sua lingua. Entre o direito, a retidao do enderego, a direcio e a direiteza, deveriamos encon- trar a comunicacgo de uma linha reta e encontrar a ‘DO DIREMTO A UsTICA 29 diregdo certa. Por que a desconstrugdo tem a repu- tacio, justficada ou nao, de tratar as coisas obliqua- ‘mente, indiretamente, em estilo indireto, com tantas aspas e perguntando sempre se as coisas chegam a0 endereso indicado? Essa reputacao & merecida? E, merecida ou nao, como explicé-la? Jé fiz, pelo fato de falar a lingua do outro e rom- per com a minha, pelo fato de me render ao outro, uma singular mistura de forca, de justeza e de justi- ca. E devo, é um dever, “enderesar” em inglés, como vocés dizem em sua lingua, os problemas infinitos, infinitos em seu mimero,infinitos em sua histéra, in- finitos em sua estrutura, recobertos pelo titulo De- construction and the Possibility of Justice. Mas, é 0 sabe- mos, esses problemas nao sao infinitos porque infi- nitamente numerosos, nem porque esto enraizados no infinito de memérias e de culturas (religiosas, filoséficas, juridicas etc.) que jamais dominaremos. Eles so infinitos, por assim dizer, neles mesmos, por- que exigem a propria experiéncia da aporia que tem alguma relagao com o que, ha pouco, chamavamos de mistica, Dizendo que eles exigem até mesmo a experién- cia da aporia, podemos entender duas coisas jé bas- tante complicadas. 1. Uma experiéncia 6 uma travessia, como a pala- vra 0 indica, passa através e viaja a uma destinagio para a qual ela encontra passagem. A experiéncia en- contra sua passagem, ela é possivel. Ora, nesse sen- a FORCA Deer tido, ndo pode haver experiéncia plena da aporia, isto & daquilo que néo da passagem. Aporta é um nao- caminho. A justiga seria, deste ponto de vista, a ex- periéncia daquilo que néo podemos experimentar, Encontraremos, daqui a pouco, mais de uma aporia, sem poder ultrapassé-las. 2. Mas acredito que nao hé justica sem essa ex periéncia da aporia, por impossivel que seja.A jus- tiga é uma experiéncia do impossivel. Uma vontade, um desejo, uma exigéncia de justica cuja estrutura, no fosse uma experiéncia da aporia, nao teria ne- nhuma chance de ser o que ela é, a saber, apenas um pelo & justiga. Cada vez que as coisas acontecem ou acontecem de modo adequado, cada vez que se apli- ca trangiiilamente uma boa regra a um caso parti- cular, a um exemplo corretamente subsumido, se- gundo um juizo determinante, o direito é respeitado, mas no podemos ter certeza de que a justica 0 fo. O diteito nao é a justica. O direito é 0 elemento do cAlculo, ¢ justo que haja um direito, mas a justiga 6 incalculivel, ela exige que se calcule o incalculével; eas experiéncias aporéticas sao experiéncias tao im- provaveis quanto necessarias da justica, isto 6 mo- mentos em que a decisio entre 0 justo e o injusto nunca é garantida por uma regra. Devo pois enderecar-me a voces e “enderesar” problemas, devo fazé-lo brevemente e numa lingua estrangeira. Para o fazer brevemente, eu deveria fazé- lo omais diretamente posstvel, indo em frente, sem DO DIREITO A JUSTICA a desvios, sem alibi histérico, sem encaminhamento obliquo, em direcdo a vocés, por um lado, primeiros destinatdrios deste discurso, mas a0 mesmo tempo, por outro lado, em diregio ao lugar de decisdo essen- cial para os referidos problemas. © endereco, como a diregao, como a retidao, diz algo acerca do direito, ce aquilo a que ndo devemos faltar quando queremos a justiga, quando queremos ser justos, é a retido do endereco. Néo devemos carecer de endereso, mas, sobretudo, ndo devemos errar de endereco, nao de- vemos nos enganar de endereco. Ora, o endereco é sempre singular. Um endereco é sempre singular, idiomético; enquanto a justiga, como direito, parece sempre supor a generalidade de uma regra, de uma norma ou de um imperativo universal. Como con- ciliar 0 ato de justiga, que deve sempre concernir a uma singularidade, individuos, grupos, existéncias insubstituiveis, 0 outro ou eu como outro, numa tuaco tinica, com a regra, anorma, 0 valor ou 0 im- perativo de justica, que tém necessariamente uma forma geral, mesmo que essa generalidade prescreva uma aplicacao que é, cada vez, singular? Se eu me contentasse com a aplicacao de uma regra justa, sem espirito de justica e sem inventar, de certa maneira, a cada vez a regra e 0 exemplo, eu estaria talvez a salvo da critica, sob a protegao do direito, agiria de modo conforme ao direito objetivo, mas ndo seria justo, Eu agiria, como diria Kant, em conformidade com o dever, mas nao por dever ou por respeito a lei, 32 FORCA DeLay Seré jamais possivel dizer: uma ago é nao apenas legal, mas justa? Uma pessoa esté nao somente em seu direito, mas na justica? Tal pessoa ¢ justa, uma decisio é justa? Sera jamais possivel dizer: sei que sou justo? Eu gostaria de mostrar que tal certeza é essencialmente impossivel, fora da figura da boa consciéncia e da mistificagao. Mas permitam-me ou- tro desvio. Enderegar-se a outrem na lingua do outro 6, a0 mesmo tempo, a condicdo de toda justiga possive, ao que parece, mas isso parece nao apenas rigoro- samente impossivel (jé que s6 posso falar a lingua do outro na medida em que dela me aproprio, ou que a assimilo segundo a lei de um terceiro implicito), mas até mesmo exclufdo da justica como direito, na medida em que parece implicar um elemento de uni- versalidade, 0 recurso ao terceiro que suspende a unilateralidade ou a singularidade dos idiomas. Quando eu me endereco a alguém em inglés, é sempre uma provacao para mim. Para meus desti- natarios também, imagino. Em vez de lhes explicar por que e perder tempo ao fazé-lo, comeco in media 10s, por algumas observagées que ligam, para mim, a gravidade angustiante desse problema de lingua 4 questio da justica, da possibilidade da justica. Por um lado, e por razdes fundamentais, parece- nos justo rendre la justice (fazer justical, como se diz em francés, em determinado idioma, numa lingua para a qual todos os “sujeitos” concernidos sao su- DO DIRETTO A JUSTICA o postos competentes, isto é, capazes de entender e de interpretar; todos os “sujeitos”, isto é aqueles que estabelecem as leis, os que julgam e 0s que sio jul- gados, as testemunhas no sentido largo e no sentido restrito, todos os que so garantes do exercicio da justica, ou melhor, do direito. f injusto julgar alguém que ndo compreende seus direitos nem a lingua em que a lei estd inscrita, ou o julgamento pronunciado etc. Poderiamos multiplicar os exemplos dramaticos de situagio de violéncia em que se julga num idio- ma que a pessoa ou a comunidade de pessoas supos- tamente passiveis da lei ndo compreendem, as vezes ndo muito bem, as vezes absolutamente nada. E, por mais leve e sutil que seja aqui a diferenca de compe- téncia no dominio do idioma, a violéncia de uma in- justica comega quando todos os parceiros de uma co- munidade nao compartilham totalmente o mesmo idioma. Como essa situagio ideal nunca é rigoro- samente possivel, jé podemos extrair dela alguma conseqiiéncia acerca daquilo que o titulo de nossa conferéncia chama de “possibilidade da justiga”. A violéncia dessa injustiga, que consiste em julgar aque- les que nao entendem o idioma no qual se preten- de, como se diz. em francés, que justice est faite [se fez justiga], nao é uma violéncia qualquer, uma i justica qualquer. Essa injustiga supde que 0 outro, a vitima da injustiga de lingua, por assim dizer, aquela que todas as outras supdem, seja capaz de uma Iin- gua em geral, seja um homem enquanto animal fa- a FORCA Deter sentido que nés, os homens, damos a essa palavra de linguagem. Houve aliés um tempo, nem Tonginquo nem terminado, em que “nds os homens ‘queria dizer’ nés os europeus adultos machos bran: cos carnivoros ¢ capazes de sacrificios” No espago em que situo estas consideracées, ou reconstituo este discurso, ndo se falard de injustiga ou de violencia com relagéo a um animal, e ainda menos com relagdo a um vegetal ou a uma pedra, Podemos fazer sofrer um animal, e nunca se diré, no sentido dito préprio, que ele é um sujeito lesado, a vitima de um crime, de um assassinato, de um estu- pro ou de um roubo, de um perjtirio ~ ¢ isto é ver- dade a fortiori, segundo se pensa, para aquilo que chamamos de vegetal ou de mineral, ou para as es- pécies intermediérias, como a esponja. Houve, hi ainda, na espécie humana, muitos “sujeitos” que ndo sdo reconhecidos como sujeitos, e recebem esse tra tamento do animal (é toda a hist6ria inacabada a qual eu fazia breve alusio hé pouco). O que se chama confusamente de animal, portanto o ser vivo como tal e sem mais, no é um sujeito da lei e do direito. A oposigéo do justo ao injusto nao tem nenhum sentido no que lhe concerne. Quer se trate de pro- cessos de animais (jé houve) ou de demandas ju- diciais contra aqueles que infligem certos sofrimen- tos aos animais (certas legislagdes ocidentais 0 pre- véem, ¢ falam nao apenas dos direitos do homem, mas do direito do animal em geral), trata-se ou de at~ lante, no (DO DIREITO A JUSTICA 35 caismos ou de fendmenos ainda marginais e raros, nao constitutivos de nossa cultura. Em nossa cultura, o sacrificio carnivoro é fundamental, dominante, re- gulado segundo a mais alta tecnologia industrial, as- sim como a experimentagio biolégica sobre o animal — tdo vital para nossa modernidade, Como tentei mos- trar em outro lugar", 0 sacrifcio carnivoro é essencial para a estrutura da subjetividade, isto é, também para 0 fundamento do sujeito intencional e, se nao da lei, pelo menos do direito, a diferenga entre a lei e 0 di- reito, a justica e o direito, ajustiga e a lei permanecen- do aqui aberta sobre um abismo. Nao me aproximo dessas quest6es por enquanto, nem trato da afinidade entre o sacrificio carnivoro, no fundamento de nossa cultura e de nosso direito, e todos os canibalismos, simbdlicos ou ndo, que estruturam a intersubjetivi- dade no aleitamento, no amor, no luto e, na verda- de, todas as apropriagdes simbélicas ou lingiisticas. Se quisermos falar de injustica, de violencia ou de desrespeito com relagao ao que chamamos, ainda Go confusamente, de animal ~a questo ¢ mais atual do que nunca (e incluo nela, portanto, a titulo de des- construgao, um conjunto de questées sobre o camo- falogocentrismo), é preciso reconsiderar a totalidade da axiomatica metafisico-antropocéntrica que domi- 1a, no Ocidente, o pensamento do justo e do injusto. 14. Sobre a animalidade, ver De fesprt, Heidegger elt question, Galilée, 1987. Quanto ao sacrficio e & cultura carnivor, “I faut bien ‘manger — ou le calcul du sujet” in Points de suspension, Gaile, 1992. 36 FORCADEIay Entrevemos, desde este primeirfssimo passo, uma conseqieni: 0 desconstui a epartides Gque instituem o sujito humano te preerénia eps “Aigmaticamente o macho adulto, mais do que a mulher a crianga ou o animal), como medida do jus. to e do injusto, nao se conduz necessariamente injustica nem ao apagamento de uma oposicao en- tre o justo e o injusto, mas talvez, em nome de uma exigencia mais insacidvel de justica, 4 reinterpretagéo de todo o aparelho de limites nos quais uma histéra ‘euma cultura puderam confinar sua criteriologia. Na hipétese que avento superficialmente, por enquanto, co que se chama correntemente de desconstrugao no corresponderia de nenhum modo, segundo a confu- so que alguns tém interesse em espalhar, a uma abdicagao quase nillista diante da questo ético-po- Iitico-juridica da justica e diante da oposicao do jus- to ao injusto, mas a um duplo movimento que eu assim esquematizar 1. O sentido de uma responsabilidade sem limi- tes, portanto necessariamente excessiva, incalculé- vel, diante da meméria; ¢, por conseguinte, a tarefa de lembrar a histéria, a origem e 0 sentido, isto é, 0s limites dos conceitos de justiga, de lei e de direito, dos valores, normas, prescriges que ali se impuse- ram e se sedimentaram, permanecendo, desde en- tio, mais ou menos legiveis ou pressupostos. Quan- to. ao que nos foi legado sob o nome de justiga, e em mais de uma lingua, a tarefa de uma memiéria hist6- primeira | DO DIREITO A JUSTICA 37 rica e interpretativa est no cerne da desconstrugao. Nao 6 apenas uma tarefa filol6gico-etimologica, ou uma tarefa de historiador, mas a responsabilidade diante de uma heranga que é, ao mesmo tempo, a heranca de um imperativo ou de um feixe de injun- ges. A desconstrucao jé esta empenhada, comprome- tida com essa exigéncia de justia infinita, que pode tomar 0 aspecto daquela “mistica” de que falei ha pouco. E preciso ser justo com a justica, e a primeira justica a fazer-lhe é ouvi-la, tentar compreender de onde ela vem, 0 que ela quer de nés, sabendo que ela o faz através de idiomas singulares (Dike, Jus, jutita, justice, Gerechtigket, para nos limitar a idiomas euro- ppeus que seria talvez igualmente necessario delimi- tar com relagio a outros: a isto voltaremos). E preci- 0 também saber que essa justica se endereca sempre a singularidades, 8 singularidade do outro, apesar ou mesmo em razao de sua pretensdo universalidade. Por conseguinte, nunca ceder a esse respeito, manter sempre vivo um questionamento sobre a origem, os fundamentos e os limites de nosso aparelho concei- tual, teérico ou normativo em tomo da justiga é, do ponto de vista de uma desconstrugao rigorosa, tudo salvo uma neutralizacao do interesse pela justica, uma insensibilidade a justica. Pelo contrério, é um aumento hiperbélico na exigéncia de justiga, a sen- sibilidade a uma espécie de desproporgao essencial que deve inscrever, nela, o excesso e a inadequacao. Isso leva a denunciar nao apenas limites teéricos mas 38 FORCA DE Lay também injustigas concretas, com efeitos mais sens veis, na boa consciéncia que se detém dogmaticamen- te em tal ou qual determinacao herdada da justiga, 2, Essa responsabilidade diante da meméria é uma responsabilidade diante do préprio conceito de responsabilidade que regula a justica e a justeza de nossos comportamentos, de nossas decisGes tedricas, praticas, ético-politicas. Esse conceito de responsa- bilidade é insepardvel de toda uma rede de concei- tos conexos (propriedade, intencionalidade, vontade, liberdade, consciéncia, consciéncia de si, sujeito, eu, pessoa, comunidade, decisio etc.). Toda desconstru- Gio dessa rede de conceitos, em seu estado atual ou dominante, pode assemelhar-se a uma irresponsa- bilizagdo, quando, pelo contratio, é a um acréscimo de responsabilidade que a desconstrugio faz apel. ‘Mas, no momento em que o crédito de um axioma € suspenso pela desconstrucao, naquele momento estruturalmente necessério, pode-se sempre acredi- tar que ja no hé lugar para a justica, nem para a prépria justica, nem para o interesse tedrico que se orienta para os problemas da justiga. 2 um momen- to de suspensao, aquele tempo da epokhé sem o qual, com efeito, ndo hé desconstrugao possivel. Nao é um simples momento: sua possibilidade deve perma- necer estruturalmente presente no exercicio de tod responsabilidade, se considerarmos que esta né0 deve jamais abandonar-se ao sono dogmitico, ¢ a- sim renegar a si mesma. Desde entao, aquele mo- Do DiREITO A jusTigA s mento transborda. Torna-se, entdo, ainda mais an- gustiante, Mas quem pretenders ser justo poupan. do-se da angtistia? Aquele momento de suspensio angustiante abre, assim, ointervalo do espacamento em que as transformagdes, ou as revolugdes juridi- co-politicas, acontecem. Ele s6 pode ser motivado, 86 pode encontrar seu movimento e seu eli (um el que, por sua vez, nlo pode ser suspenso) na exigen- cia de um aumento ou de um suplemento de justi- a, portanto na experiéncia de uma inadequacao ou de uma incalculével desproporcio, Pois, afinal, onde a desconstrugao encontraria sua forga, seu movi- mento ou sua motivago, senao nesse apelo sempre insatisfeito, para além das determinagoes dadas da- guilo que chamamos, em contextos determinados, de justica, de possibilidade da justiga? ainda preciso interpretar essa desproporgio. Se eu dizia que nao conhego nada mais justo do que aquilo que chamo hoje de desconstrugio (nada mais justo, nao digo nada mais legal ou mais legitimo), sei que nao deixarei de surpreender ou de chocar ~ e no apenas determinados adversérios da dita des- construgao, ou daquilo que eles imaginam sob esse nome, mas até mesmo aqueles que sio considerados ‘ou se consideram seus partidarios e praticantes. Por- tanto, nao o direi, pelo menos dessa forma, nao di- retamente e sem a precaugio de alguns rodeios. Como se sabe, em numerosos paises, no passa- do como ainda hoje, uma das violéncias fundadoras da lei ou da imposigio do direito estatal consistiu 40 NN DE LEY em impor uma lingua a minorias nacionais ou étnj. cas reagrupadas pelo Estado. Foi 0 caso na Franca, pelo menos duas vezes, primeiro quando o decreta Ge Villers-Cotteret consolidou a unidade do Estado monarquico, impondo o francés como lingua jurid- co-administrativa e proibindo o latim, lingua do di- reito e da Igreja, até que se permitisse a todos os ha- Ditantes do reino deixarem-se representar numa lin- comum, através de um advogado intérprete, sem deixar que se Thes impusesse aquela lingua parti- cular que ainda era o francés. E verdade que o latim ja carregava uma violéncia. A passagem do latim ao francés marcou apenas a transigao de uma violéncia a outta. O segundo grande momento da imposigéo foi o da Revolugio Francesa, quando a unificagao lin- giiistica adotou por vezes as formas pedagégicas mais repressivas, pelo menos as mais autoritadrias. Nio vou embrenhar-me na hist6ria desses exemplos Poderiamos encontrar outros, nos Estados Unidos, ontem e hoje. O problema lingiifstico existe ainda e serd, por muito tempo, agudo, precisamente naque- le lugar onde as questdes da politica, da educaga0 e do direito sao insepardveis. Vamos agora diretamente, sem o menor desvio pela meméria hist6rica, em diregéio ao enunciado for- mal, abstrato, de algumas aporias, aquelas nas quais, entre 0 direito ea justica, a desconstrugéio enconta seu lugar, ou melhor, sua instabilidade privilegiada Em geral, a desconstrugao se pratica segundo dois (DO DIREITO A JUSTICA 4 estilos que, o mais das vezes, ela enxerta um no ou- tro, Um deles assume o aspecto demonstrativo ¢ aparentemente nao-histérico dos paradoxos légico- formais. O outro, mais histérico ou mais anamnésico, parece proceder por leituras de textos, interpretacdes minuciosas e geneal6gicas. Permitam-me praticar su- cessivamente os dois exercicios. Enuncio primeiro, secamente, diretamente; “en- dereco” as seguintes aporias. De fato, trata-se de um tinico potencial aporético que se distribui infinita- mente. Tomarei apenas alguns exemplos. Eles supo- ro aqui, explicitarao ou produzirdo acolé uma dis- tingdo entre a justica e 0 direito, uma distincao dificil ¢ instavel entre, de um lado, a justiga (infinita, incal- culavel, rebelde as regras, estranha a simetria, hete- rogénea e heterotrépica) e, do outro lado, 0 exercicio da justica como direito, legitimidade ou legalidade, dispositivo estabilizdvel, estatutério e calculével, sis- tema de prescrigdes regulamentadas e codificadas. Eu seria tentado, até certo ponto, a aproximar 0 con- ceito de justiga ~ que tendo a distinguir, aqui, do direito — daquele de Levinas. Eu o faria em razo daquela infinidade, justamente, ou da relagao hete- ronémica a outrem, ao rosto de outrem que me co- manda, cuja infinidade nao posso tematizar e do qual sou refém. Em Totalité et Infini®, Levinas escreve: “|... 15, Emmanuel Levinas, Ttalié et Infin, “Veit et ystice”, Nf, 1962, p. 62, 2 FORCA Dee a relagao com outrem — isto é, a justica” —justiga que ele define em outro lugar como “direiteza da acolhi. da feita ao rosto”. A direiteza nao se resume ao dix reito, claro, nem ao “endereco”, nem a “diego” de que estamos falando hé alguns momentos, embora 08 dois valores tenham alguma relacao, a relagdo co- ‘mum que mantém com certa retidao. ‘Levinas fala de um direito infinito: naquilo que ele chama de “humanismo judaico”, cuja base nioé “0 conceito de homem”, mas o de outrem: “a exten- sio do direito de outrem” é a de “um direito pratica- mente infinito””.A eqiiidade, aqui, nao a igualdade, a proporcionalidade calculada, a distribuigao eqtita- tiva ou a justica distributiva, mas a dessimetria abso- luta. E a nogdo levinassiana de justiga se aproximaria mais do equivalente hebreu daquilo que traduzi- riamos, talvez, por santidade. Mas, como tratarei de outras questées relativas a esse discurso dificil de Levinas, ndo posso contentar-me aqui em tomar-Ihe de empréstimo um traco conceitual, sem correr 0 ris- co de confusdes ou de analogias. Tudo seria ainda simples se essa distingao entre justica e direito fosse uma verdadeira distingio, uma oposico cujo funcionamento permanecesse logice- mente regulado e domindvel. Mas acontece que 0 16. hil, p54, 17, Emmanuel Levinas, “Un droit infni’, in Du Sacré au Sain Cinq noweeles lectures talmudiques, Minuit, 1977, pp. 17-8 10 DIREITO A USTICA 493 direito pretende exercer-se em nome da justica, e que a justiga exige ser instalada num direito que deve ser josto em acao (constituido e aplicado — pela forca, enforced”). desconstrugao se encontra e se deslo- ca sempre entre ambos. Eis alguns exemplos de aporias. 1. Primeira aporia: a epokhé da regra Nosso axioma mais comum é que, para ser jus~ to — ou injusto, para exercer a justica — ou violé-la, devo ser livre e responsdvel por minha ago, por meu comportamento, por meu pensamento, por minha deciséo. Nao se pode dizer de um ser desprovido de liberdade, ou que, pelo menos, nao é livre em tal ou tal ato, que sua decisdo é justa ou injusta. Mas essa liberdade ou essa decisdio do justo deve, para set dita como tal, ser reconhecida como tal, seguir uma lei ou uma prescri¢do, uma regra. Nesse sentido, em sua propria autonomia, em sua liberdade de seguir ou de se dar a lei, ela deve poder ser da ordem do calculé- vel ou do programével, por exemplo, como ato de eqiiidade. Mas, se o ato consiste simplesmente em aplicar uma regra, desenvolver um programa ou efe~ tuar um célculo, ele serd talvez legal, conforme ao direito, e talvez, por metéfora, justo, mas nao pode- temos dizer que a decisdo foi justa. Simplesmente Porque nao houve, nesse caso, decisio.

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