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Revista Critica de Ciéneias Sociais n* 7/8 Dezembro 1981 ANTONIO GAMA, GRACA SANTOS, IVA PIRES (*) ANALISE ESPACIAL DE UMA, TRANSFORMACAO DA AGRICULTURA Este estudo pretende mostrar o interesse do recurso & andilise espacial para a compreensio das modificagdes das formas de ocupacio do territério do ponto de vista agrario, Com esse objectivo procuramos analisar as transformacdes ocorridas no decurso dos tltimos cem anos, numa rea que correspondendo & parte oriental da Peninsula de Setibal; abrange os concelhos de Seixal, Barreiro, Moita, Montijo, Alcochete, Palmela ¢ Settibal. Esta rea, muito populosa, situada préximo de Lisboa, dentro de um raio de 50 quilémetros, circunscrita a norte pelo rio Tejo ¢ a sul pelo Sado, caracteriza-se por ter sofrido pro- fundas modificacdes sécio-econémicas, com reflexos no uso do ‘espaco, durante 0 periodo considerado, Faz actualmente parte do distrito de Setibal o qual compreende, a norte, os concelhos Almada, Seixal, Barreiro, Moita, Montijo e Alcochete, que, com excepeao do tiltimo, formam a chamada cintura indus: trial da margem sul do Tejo, na parte meridional da Peni sula, os concelhos de Palmela, Settibal e Sesimbra, de carac- ter'sticas pouco idénticas entre si, e ainda os concelhos de Aleécer do Sal, Grandola, Santiago do Cacém e Sines, mais a sul, ¢ jé fora’ do mbito do nosso estudo. ‘A zona correspondente ao primeiro grupo de concelhos constitui, hoje, em parte, um dormitério de Lisboa, pelo quantitativo populacional que, trabalhando na capital, ‘af ha- bita, ao mesmo tempo que € uma area de grande imnortancia na implantacdo industrial, nomeadamente os concelhos do Barreiro ¢ Seixal Por outro lado, a zona correspondente A parte sul da peninsula, mais hetcrogénea nas suas caracteristicas soci (#)_ Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Colabo- ragio gréfiea de Vitor Torres. 536A. Gama, G. Santos, I. Pires -cconémicas ¢ com uma menor dependéncia de Lisboa, associa um litoral turistico, caso de Sesimbra, um concelho rural, Palmela, ¢ um industiial, Setubal, com importante actividade portudria, Apesar do crescimento industrial e urbano de Setubal, nos ltimos decénios, o crescimento dos concelhos da orla do Tejo nao ¢ suplantado. Esta drea, cuja importancia agricola, na segunda me- tade do séc. XIX, foi consideravel j4 que se processaram nela algumas das tentativas de inovagio no campo da agricultura portuguesa, contribui largamente com as suas produc6es para ¢ comércio exportador que caracterizou a nossa agricultura dessa época, sbeneficiando nitidamente da existéncia de um vasto mercado externo, rico e relativamente estavel> (*). Estas culturas faziam-se sobretudo (*) trouxe beneficios & agricultura, propiciando alteragbes nas ©) ibidem, p. 14. 546A. Gama, G. Santos, I, Pires técnicas agricolas utilizadas, tanto em méquinas como em adubos, principalmente ligadas as culturas para exploracao ¢ introduzidas pelos empresarios capitalistas mais inovadores, aliés os que dispunham de maior capacidade de investimento. «Ao mesmo tempo empreenderam-se os primeiros passos na mecanizagio agricola, a aplicacdo dos adubos quimicos vulgar rizowse, inicialmente, nalguns centros viticolas» (). Estas transformagoes sao resultado de alteragdes econémicas, 0 au- mento de importancia da economia de mercado, 0 suito de industrializagao nascente, e sociais, aumento da populacio urbana e alteragées na estrutura social, resultado das modifi cagdes politicas ¢ econdmicas, como a proletarizacdo ¢ semi- proletarizacao, tanto na indistria como na agricultura. Mas, 6, todavia, ao crescimento da populagao urbana e & solicita- a0 dos mercados externos que se deve essencialmente a modificagio do papel do autoconsumo no conjunto da produ- cao nacional» (*), As transformacoes sociais, que acompanharam esta si- tuacio, traduziram-se no plano juridico-pol tico. Medidas legislativas, tanto no plano juridico como no financeiro, cria- ram condigdes para a mudanga econémica, como resultado da revolugao liberal. «A estrutura demografica do Antigo Regime desapareceras, «a propriedade fundiaria perdera progressiva- mente o seu cardcter feudal para se tornar capitalista. A classe dos agricultores capitalistas aumentara, surgiram empresarios agricolas» (#*). Também «as formas juridicas de exploragao da terra apresentam situacées novas, dando os proprietarios das terras preferéncia «ao aluguer a curto prazo em relagdo & enfi- teuse que no permitia a actualizacao frequente das ren- daso (*"), © mesmo se verificou nos processos de trabalho da terra com a utilizagao de méquinas nas arroteias e nas planta- ees, de que é exemplo a maquina a vapor da herdade do Po- ceirfo, para a plantacdo de vinhas (*), e nos processos de adu- bagao, com a adopcao de adubos quimicos. M. H. Pereira refere o caso de José Maria dos Santos, como um dos empre- sdrios que introduziu os primeiros ensaios de estrumes artifi- ciais na cerealicultura (*). ©) fibidem, p. 15. ©) ibidem, p. 18. ©) fbidem, p. 18 () ibidem, b. 18, ©) HM. Pereira, ico, Lisboa, 1971, p. 17, Cy ibidem, p. 102208. ivre Cambio © Desenvolvimento Ecané- Andlise Especial 947 Também no plano de tecnologia dos transportes houve modificagdes importantes que tiveram grande influéncia na forma e na maior rapidez de escoamento dos produtos da terra fe, por consequéncia, levou mais longe a pratica de certas cul- turas muito dependentes do transporte na_ sua localizagao 0 caminho de ferro, que ligava a parte sul do pais a Lisboa, atravessando 9 territério de que tratamos, caso da linha do Sul e das ligacdes entre Pinhal Novo e Settibal, tem um grande significado como eixo de penetracdo econdmica. Igualmente devem ser referidos os transportes fluviais, que apesar do caminho de ferro, assumem ainda um papel relevante no escoamento de mercadorias, e que registam ainda melhora- mentos, tanto no que respeita a embarcagdes, como nas vias, canais ¢ portos. A organizacio agricola da parte oriental da peninsula de Settbal pode ser esquematizada, nos fins do séc. XIX, do seguinte modo: duas reas de hortas ¢ fruticultura com maior importancia envolvidas por vinhas e olivais, uma extensa rea de producao de vinha, cercadas por pinhais e montado de sobro ainda pouco extensos e uma grande extensio de charneca, As duas areas de horticultura ¢ fruticultura referi- das, servindo os centros de Lisboa e Setiibal, dispunham-se, em redor das vilas da Borda d’Agua para o' primeiro caso, para a segunda cidade em redor desta. Referindo-se & area de horticultura em torno da capital, Campos Pereira diz que «a proximidade de Lisboa que 0 grande centro de consumo e para exportacio, as facilidades de transporte ¢ a certeza de ‘uum mercado certo ¢ sempre bem remunerador sao motivos imperiosos para que a hortalica, as frutas e os legumes obte- nham grandes resultados econémicos» (®). ‘A Area horticola e fruticola repartia-se pelos concelhos de Barreiro, Moita, Aldeia Galega e Alcochete, criando. uma faixa agricola polinucleada, ribeirinha do Tejo, desempenhan- do a série de vilas, & volta das quais se desenvolve a actividade horticola, o papel de centros intermédios na comercializacao dos produtos para 0 mercado da capital e para a exportacao. Esta horticultura apresenta uma particularidade j4 que como refere M. H. Pereira, se fazem os cultivos «em grandes explo- rages, grandes A escala da horticulturay (*). A outra area horticola, a sul, em redor de Setibal, menor que a anterior, uninucleada, evidencia-se pela grande producdo de laranjas. ©) J. Campos Poreira, op. eit, p. 118. ©) MOH Pereira, op. cit, 81 548A. Gama, G. Santos, I. Pires © arco em redor de Se 2 Palmela, Envolvendo estas areas de horticultura e fruticultura, dispunham-se vinhas ¢ olivais j de ocupagio antiga, em que se destacam os concelhos de Aldeia Galega, Setiibal e Palmela, Dispunham-se em seguida os pinhais para lenha, fachina e outros usos, como a construcao naval. No concelho do Bar- reiro, em fins do séc. XIX, a distribuigao das culturas pelas freguesias correspondia a esta sequéncia de norte para sul. Por fim nas Areas mais afastadas extensGes de montado ¢ charneca. Aqueles a substituir estas, devido a crescente im- portincia da exploragao da cortica ¢ da lenha, que as novas condigdes de transporte possibilitaram, e favorecidos pela diminuigao dos pinhais proximos da Borda d'Agua. A substi- tuigdo processouse passando a produzir-se lenhas ¢ madeiras que tomaram o lugar que, até entdo, af tinha, a producdo de carvao, motivada pelas dificuldades de transporte. Alongando-se pelas linhas de comunicagao especialmente transporte fluvial e caminho de ferro, assistiu-se nesta época ao desenvolvimento de vinhas novas. Esta vinha, acompanhada de um povoamento, veio modificar uma grande parte desta rea ocupada até af por charneca e pattis. A comparagio entre os esbocos de cartas agricolas do final do século passado e de cartografia dos anos 40 deste século, mostram esta trans- formagao, Apesar do alongamento da extensio cultivada, a disposicao da sequéncia das culturas mantém-se, relativamente idéntica & anterior, apenas alterada por uma nova organiza- ao espacial em relacdo aos niicleos antigos povoamento, pro- vocada pelo caminho de ferro, pela politica de fixagio de mao de obra e pelo novo povoamento gerado. 0 caminho de ferro propiciou, pelas facilidades de transporte que oferecia uma valorizagao das terras adjacentes & linha, expandindo-se a cultura da vinha ¢ a sementeira de pinhais. No seu relato- rio agricola, Paulo de Moraes regista a importancia da dis- tancia e dos custos de transporte para as espécies arbéreas da seguinte maneira: «em idénticas circunstancias produtivas, © valor dos pinhais diminui na razio directa da distancia a que eles se acham dos centros de consumo e da importancia destes» (*). Tendo em conta um conceito de distancia baseado no custo © no tempo de transporte, poderemos compreender a bal alonga-se pela estrada que liga Paulo de Morses, op. eit, p. 300, Andlise Espacial 549 real importancia do caminho de ferro, neste caso de transfor- macio agricola, surto da agricultura nesta area, apés a implantacao do caminho de ferro, traduz-se pois por uma modificagtio do modo de uso do solo tanto nas culturas como na estrutura social e até nas formas das exploragdes agricolas. Processa-se uma conquista dos terrenos «improdutivos» para o cultivo, 0 que se manifesta por uma valorizago e investimento nos grandes dominios de propriedade por parte dos capitalistas agrarios, A

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