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Impresso no Brasil, junho de 2011 Titulo original: The Ethics of Authenticity Copyright © 2010 by Charles Taylor. “Todos of direitos reservados. Os direitos desea edigfo pertencem a E Realizagdes Editora, Livraria e Distribuidora Leda. Caixa Postal: 45321 - 04010 970 - So Paulo SP. “Telefax: (5511) 5572 5363 @erealizacoes.com.br + wwwerealizacoes.combr Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Psicossocioio @a Gerente editorial Bete Abreu Flos reparagio de texto TEMA? \DEAL DE AUTENTIC' Ror enacted eed AL DE AUTEN CIDADE Revisdo ‘Ana Tavares Luciane Helena Gomide Capa e projeto gréfico Mauricio Nisi Gongalves/ Estidio & Diagramacao ‘André Cavalcante Gimenez / Estidio £ Pré-impressio e impressio Cromosete Gréfica e Editora Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reproducdo desta edicdo por qualquer meio ou forma, seja ela cletrénica ou mecdnica, fotocépia, gravagdo ou qualquer outro meio de reprodugio, sem permissio expressa do editor A ETICA DA AUTENTICIDADE Charles Taylor TRADUGAO DE TALYTA CARVALHO MEE Realizagsex mame Ecitora| Capitulo 2 | 0 Debate Desarticulado és podemos entendé-lo através de um livro recente € muito influenté nos Estados Unidos: The Closing of the American Mirid, de Allan Bloom. O livro em si foi um fenémeno notivel: uma obra ide um académico teGrico da politica sobre o clima de opinido en- tre os estudantes da atualidade manteve-se por meses na lista dos best-sellers do New York Times, para grande surpresa do autor. E tocou num ponto fraco. : | Ele tomou uma posiglo critica severa em relaglo& juventude ins- ttuida de hoje. © principal aspecto que notou em sua perspectiva a respeito da vida foi a accitagio um tanto quanto fécil do relativis- mo, Todos possuem os préprios “valores”, e sobre eles é impossivel discutiz, Mas, como Bloom notou, esta ndo era apenas uma posigdo epistemologica, uma visio acerca dos limites do que a razdo pode es- tabelecer; também era o sustentar de uma posicéo moral: ndo se deve ‘contestat os valores dos outros, Isso € problema deles, a escolha de vida deles, ¢ deve ser respeitado. O relativismo estava parcialmente fandamentado em um principio de respeito métuo. Em outras palavras, o relativismo €em si uma ramificagio de uma forma de individualismo, cujo principio € algo assim: todo mundo tem o direito de desenvolver a propria maneira de viver, fandamentada no proprio sentido do que é realmente importante ou de valor. As pessoas sio convocadas a serem verdadeiras consigo ‘A Gtica da Autenticidade | © Debate Desarticulado mesmas ¢ a buscar a prépria autorrealizacéo Em que isso consiste, cada um deve, em tiltima instdncia, determinar por si mesmo. Ne- nhum outro pode ou deve tentar ditar seu contétido, Essa posigio é bastante comum hoje. Reflete 0 que podertamos chamar de individualismo da autorrealizagdo, 6 qual é amplamen- te disseminado em nossos dias e adquiriu forga especialmente nas sociedades ocidentais a partir dos anos 1960, Ble foi selecionado ¢ utido em outros livros influentes: The Galtunal Contradictions of Capitalism, de Daniel Bell; The Culture of Narcissism e The Minimal Self, de Christopher Lasch; e A Era do Vazio, de Gilles Lipovestky, © tom de preocupasio é audivel em todos eles, embora talvez de forma menos marcante em Lipovetsky. Segue, grosso modo, as l- thas que jé destaquei sobre o tema 1. Esse individualismo envolve ‘um centramento no self* e um desligamento concomitante, ou mesmo ignordncia, de questées e preocupagées mais importantes que tzans- cendem 0 self, sejam elas religiosas, politicas ow histéricas. Como consequéncia, a vida é estreitada ou nivelada.? E a preocupaczo ca- racteristicamente transborda para a terceira érea que descrevi: esses autores esto preocupados com as consequéncias politicas possivel- ‘mente desastrosas dessa mudanga na cultura, Agora hé muito com 0 que coricordo nas crticas que tais autores fazem da cultura contemporénea, Como explicarei logo mais, penso que o relativismo defendido abertamente hoje é um engano profundo, = Optamos por deixar o termo self no original sem traduzilo, eguindo = twadugoes anteriores de Charles Taylot (NT) . * Basa imagem ocorre em Bloom, The Closing of the American Mind, Nova York, Simon and Schuster, 1987: “A perda dos livros os fez mais nivelados = estreitos. Mais exteitos, pois nfo possuem o que é mais necessério, uma bese real para instisiasio com o presente e consciénca de qee hi alternativas isto, Bes estio tanto satsfeitos com 0 que é e desesperencosos por jama:s ‘excapar dist...) Nivelados, porque sem as interpretapées das cosas, sem a poesia ou a atividade da imaginagéo, suas almas so como espelhos, ndo da natureza, mas do que exté ao redor” (p. 61). ‘mesmo em alguns aspectos autoestultficantes, Parece verdadeiro que ltura da autorrealizacio levou muitas pessoas a perderem de vi ocupagdes que as transcendem. E parece dbvio que adquiriu mas triviais e autoindulgentes. Isso até pode resultar em um tipo de ibsurdo, enquanto novos modos de conformidade surgem entre pes- as que esto esforgando-se para serem elas mesmas, e, além disso, povas formas de dependéncia, uma vez que pessoas inseguras sobre puas identidades voltam-se para todo tipo de guias e autoproclama- Mas hi algo que nao obstante quero me opor no impulso dos ar- gumentos que esses autores apresentam, Isso aparece claramente em o termo. Décadas atras, isso foi definido brilhantemente por Lionel rilling em um livro influente, no qual ele capturava essa forma mo- € a distinguia das anteriores. A distinggo é expressa no titulo livro, Sincerity and Authenticity, e seguindo seus passos usarei 0 mo “autenticidade” para o ideal contemporaneo. ‘© que quero dizer com ideal moral? Quero dizer um quadro de pmo seria um modo de vida melhor ou mais elevado, onde “melhor” g “mais elevado” sdo definidos ndo em relagdo ao que possamos dese- ir ou precisar, mas sim oferecer um padrao do que devemos desejar. A forga de termos como “narcisismo” (no vocabulétio de Lasch), ,pu “hedonismo” (na descricdo de Bell), € implicar que nao hé ideal {moral algum em curso aqui, ou, se hd, na superficie, que deve ser ‘visto como uma pelicula de autoindulgéncia. Como Bloom coloca, ; i A Etca da Autenticdade | 0 Debate Desartcuiado 2 grande maioia dos esudenes, embors eles qusram tanto quanto aulguer outro ter boa opinigo de si mesmos, escent de gue et ceupada com a propria catia seus relacioamentos,Hé era re torica da autorrealizagio que dé um revestimento de glamour a essa ‘vida, no entanto eles podem ver que ndohé nada particularmente no- bre a respsto del, “Sobrevivencilsmo”tomou o lugar do herotimo como a qualidade admicada* NA6 tenho diividas de que isso descreveralgumas, talver varias, pessoas, mas é um grande equivoco achar qué nos concede um insight para a mudanga em nossa cultura, para o pader desse ideal moral - 0 qual precisamos entender se quisermos explicar até mesmo a razio pela {qual é usado como um revestimento hipécrita pelo autoindulgente. © que precisamos entender aqui é a forca moral por trés de no- «ges como a autorrealizagao. Uma que vez que tentamos explicar isso simplesmente como um tipo de egofsmo, ou uma espécie de relaxa- mento moral, uma autoindulgéncia no que diz respeito a uma época anterior mais exigente e mais dura, nés jé estamos no caminho errado. Falar de “permissividade” ndo € suficiente, A frouxidio moral existe, ¢ nossa época nao esté sozinha nisso. O que precisamos explicar € 0 que € peculiar ao nosso tempo. Nao se trata apenas de as pessoas sacrifi- carem seus relacionamentos amorosos, € 0 cuidado de seus filhos, na busca de sua carreira. Algo nesse sentido talvez sempre tenha existido, [A questo € que hoje muitas pessoas sentem-se convocadas a fazer isso, acham que devem fazer isso, pensam que sua vida seria de algum modo desperdigada ou incompleta caso nao fizessem isso. Portanto, o que se perde nessa critica é a forga moral do ideal de autenticidade. Ele esté, de alguma maneira, sendo implicitamente des- creditado junto com suas formas contempordneas. Isso no seria tdo ruim caso pudéssemos nos voltar para a oposigio em busca de uma defesa, No entanto, icaremos decepcionados. Que a defesa da auten- ticidade assuma a forma de um tipo de relativismo suave significa que “Bloom, op. cit, p. 84. defesa enfética de qualquer ideal moral esté de algum modo fora de jag. Pois as implicagdes, como eu acabei de descrever, sio de algumas formas de vida de fato sio mais elevadas que outras, € a lrura da tolerdncia para com a autorrealizacZo individual se esqui- dessas reivindicagées. Isso significa, como tem sido apontado com .quéncia, que ha algo contradit6rio e autodestrutivo nessa posigao, “que 0 préprio'relativismo é alimentado (pelo menos em parte) por ideal moral. Contudo, de maneira consistente ou nfo, essa é a sicdo geralmente adotada. O ideal se reduz ao nivel de um axioma, 10 que néo se desafia e também nunca se exp8e. ‘Ao adotar o ideal, as pessoas na cultura da autenticidade, como 10 denominar isso, dao apoio a certo tipo de liberalismo, que tem ido abragado por muitos outros também. Trata-se do liberalismo da tralidade. Um de seus principios bésicos € de que uma sociedade 1 precisa ser neutra a respeito de questdes sobre 0 que constitui vida boa. A vida boa € o que cada individuo busca, a sua propia aneira, ¢ 0 governo precisaria de imparcialidade, bem como no que iz respeito a todos os cidadaos, caso tomasse partido nessa questo.’ {uito embora diversos dos escritores dessa escola sejam opositores spaixonados do relativismo suave (Dworkin e Kymlicka entre eles), 0 do de sua teoria é bani para a periferia do debate as discusses respeito da vida boa, resultado é uma desarticulagio extraordindria sobre um dos desis constitutivos da cultura moderna. Seus oponentes 0 apressam, ‘seus simpatizantes nao conseguem falar a respeito. Todo o debate T Ver John Rawls, A Theory of Justice, Cambridge, Harvard University Pres, 1971, € “The Idea of an Overlapping Consensus, in: Philosophy and Public Affaire, 17, 1988; Ronald Dworkin, Teking Rights Seriously, Londees, Duckworth, 1977, ¢ A Matter of Principle, Cambridge, Harvard University Press, 1985; também Will Kymlcka, Liberaliom, Community and Culture, (Oxford, The Clarendon Press, 1989, « Berev sobre iso extensamente em Sources ofthe Sef, Cambridge, Harvard University Press, 1989, capitalo 3, ‘A ftica da Autentcidade | © Debate Desarticulado conspira para colocé-lo & sombra, para torné-lo invisivel. E tem con- sequEncias negativas. Mas, antes de prosseguir nisso, quero mencio- nar dois outros fatores que conspiram para intensificar o siléncio, Um deles ¢ a sustentacao do subjetivismo moral em nossa ci ta, Com isso qué®6 dizer a visio de que as posigdes morais nio esto de forma alguma baseadas na razio ou na natureza das coisas, mas sio, em tiltima instancia, adotadas por cada um de nés porque nos encontramos atraidos por elas. Nessa visio, a razdo no pode julgar putas Claro, vocé pode apontar’a alguém cestas conse- disputas morais uéncias de tal posicio sobre a qual ele pode nao ter pensado. Assim, 0s criticos da autenticidade podem apontar para os possiveis resul- tados politicos e sociais de cada pessoa que busca a autorsealizacio. Contudo, se seu interlocutor ainda parece se ater a posicéo original, nada mais pode ser dito para contradizé-lo, ‘Os motivos para essa visio sio complexos e v4o muito além das raz6es morais para o relativismo suave, embora 0 subjetivismo for- nega de maneira clara um suporte importante para esse rélativismo. Obviamente, muitas pessoas inseridas na cultura contemporinea d: i tao felizes por defender esta compreensfo do papa (ou ndo papel) da razlo. O que talvez seja mais surpreendente é que suitos dos seus grandes oponentes também 0 esto, os quais sio, por isso, levados a0 desespero ainda mais pela reforma da cultura con- tempordnea, Se a juventude realmente ni0 3 Ti Smas.c ‘ue tanscendem o self, entio, o que se pode dizer a ela? E claro, hé criticos que afirmam existir normas,na razio.? acham que existe uma coisa como a natii@ia Fimana, e que uma “comipfeensio disso ind mastrar que alguns modos de vida Go ci certo erminados modos sio elevados ou melhores OO 7 Ver em especial Alasdair Macintyre, After Vir, Note Dame, Univesity of Notre Dame Press, 1981, e Whose Justice? Which Rationality, Notre Dame, University of Nowe Dame Pres, 1988, BA subjetivismo moderno, pelo contrario, tende a ser muito critico a Meistoteles, ¢Feclaiiia que sua “biologia metafisica” é ultrapassada ¢ Bimpletamente inacreditavel nos dias de hoje. ‘No entanto, filésofos que pensam assim normalmente tém sido mentes do ideal de autenticidade; enxergam-no como parte de saida equivocada das normas enraizadas na natureza humana. do tinham motivo algum para articular do que se trata; enquan- aqueles que o sustentaram tém sido desencorajados a fazé-lo com Bequéncia por suas visdes subjetivistas. ‘Um terceiro fator que obscureceu a importincia da autenticidade ncias sociais. Isso, em geral, tem esquivado de invocar ideais mo- ce tende a recorrer a fatores supostamente mais duros e realistas suas explicagbes. E, assim, as caracteristicas da modernidade que 10 focado aqui, o individualismo e a expansio da cazo instru- tal costumam ser contabilizados como subprodutos da mudangq cial: por exemplo, como avangos da industrializagdo, ou maior mo- Bbilidade ou urbanizacao. Certamente ha relagdes causais importantes jserem delineadas aqui, mas as consideragdes que as invocam nao aro marginalizam inteiramente a questo da possibilidade de essas sudancas na cultura ¢ na perspectiva deverem alguma coisa a0 pr6- Brio poder inerente como ideais morais. A resposta implicita é geral nite negativa.* E claro que as mudancas sociais, que devem gerar a nova pers- ectiva, precisam elas mesmas ser explicadas, 0 que envolverd certa corréncia a motivagées humanas, a menos que suponhamos que a Co, pam cao masa vl «rrp negative @ bastante ex Gin fa Lat too pode Ge nda conte, Man das cer Git oc do arias opera implement sobre prema are, Eno apra du ovata de lcs dos grandes fndadores da cin 0 Gal como Weber o gual reconheiao papel crucial dat dis mori vl fiat na his. A ttica da Avtentiidade 1 © Debate Desarticulado industrializagdo ou o crescimento das cidades tenhiam acontecido teiramente em um ajuste de auséncia de espirito. Precisamos de algu- ma nogdo do que impeliu as pessoas a mover-se firmeinente em uma diregio - por exemplo, em diregdo 4 melhor aplicagao da tecnologia a produso, ou em diego a melhores concentragées de pessoas. En- tretanto, © que costuma ser invocado séo motivagées nfo morais. Com isso quero dizer motivages que podem acionar as pessoas com- pletatnente sem conexio com qualquer ideal moral, como defini an- teriormente. Portanto, ndo raro encontratfos essas mudancas sociais explicadas em termos de desejo por uma’ maior riqueza, ou poder, ou por meios de sobrevivéncia ou de controle sobre os demais. Embora todas essas coisas possam ser tecidas na forma de ideal moral, elas necessitam no o sex, ¢, portanto, tal explicagdo € considerada sufi- cientemente “dura” ou “cientifica”, Mesmo onde a liberdade individual e a expansio da razio ins- trumental sao vistas como ideias cuja atragao intrinseca pode aju- dar a explicar sua ascensio, essa atragdo é frequentemente enten- dida em termos no morais, Isto 6 o poder dessas ideias é muitas vezes entendido nio em relagZo & sua forga moral, mas apenas por causa das vantagens que parecem conceder ts pessoas, independen- temente de sua perspectiva moral, ou mesmo se possuem uma pers- pectiva moral. A liberdade lhe permite fazer 6 que ques, ¢ a maior aplicagdo da razGo instrumental oferece mais do que vocé quer, 0 que quer que isso seja” 7 0 individualism tem sido usado, de fato, em dois seaidos bem diferentes. Em um é um ideal moral, uma facta do que venho discutindo. Em outro, é um fenémeno amoral, ago como © que queremos dizer com egoismo. ‘A sscensdo do indvidualismo nesse sentido costuma ser wi fenBmeno de repartigh, no qual perda de um horizonte tradicional dei mera anomia em seu despertr,¢ todos se afastam por si mesmos ~ por exemplo, em slgumas favelas desmoralizadas ¢impulsionadas pelo crime formadas por camponesesrecentementeurbanizados no Terceiro Mundo (od ba Manches- ter do século XIX). &, com certeza, catastréfico confundir esses dois tipos 30131 0 resultado de tudo isso foi o aumento da escuridao acerca do fal moral da autenticidade. Criticos da cultura contemporanea dem a menosprezé-lo como um ideal, até mesmo confundindo-o mm um desejo nio moral de fazer 0 que se quer sem interferéncia. defensores dessa cultura so forgados 4 desarticulagio a esse speito pela propria perspectiva. A forga geral do subjetivismo no so mundo filos6fico e o poder do liberalismo neutro intensifi- m: a sensagio. de que esses problemas ndo podem e néo devem discutidos. E entdo, para completar, as ciéncias sociais pare~ m estar dizendo a nés que, para entender tal fenémeno como a picura contemporénea da autenticidade, ndo deveriamos recorrer fais coisas como ideais morais em nossas explicagdes, mas per- tudo em termos de, digamos, mudangas recentes nos modos .* ou novos padrées de absorgao da juventude, ou de du ranga de afluéncia. Isso importa? Acho que sim, e muito, Muitas das coisas que os os da cultura contemporanea atacam sao formas degradadas ou avocam, mas na realidade nao representam uma realizagio au- (1) disso, Relativismo suave é um caso em questio. Bloom ue ele possui uma base moral: “A relatividade da verdade nio é insight teético, mas sim um postulado moral, a condigao de uma jedade livre, ou assim [os estudantes] a enxergam”."" No entanto, F ic individualismo, que poseuem causas € consequéncias fundamentalmente diferentes. Razio pela qual Tocqueville cuidadosamente distingue “indivi- isaliemao" de “egolsmo”. 8 Ver David Harvey, Te Condition of Post modernity, Oxford, Blackwell, 1989, Bloom, op it, p-25. A Etca da Autenticidade | © Debate Desartculado Uma argumentagdo patecida pode ser feita para aqueles apelos autenticidade que justificam ignorar tudo 0 que transcende o self: rejeitar © passado como irrelevante, ou negar as exigéncias da cida- dania, ou as responsabilidades de solidariedade, ou as necessidade do ‘meio ambiente, De igual modo, justificar em nome da autenticidade tum conceito de relacionamentos como instrumental para a autorrea- lizagio individual também deve ser visto como uma autoestultifica- ‘fo travestida. A afirmagio do poder de eécolha como win bem em si ‘mesmo a ser maximizado é um produto desviante do ideal. Agora, se algo nesse sentido é verdadeiro, entSo importa poder dizé-lo. Pois, entdo, tem-se algo a ser dito, com toda a razdo, para as pessoas que investem a vida nessas formas desviantes. E isso pode fa- zer diferenga em sua vida. Algumas dessas coisas podem ser ouvidas, A articulagio aqui tem um propésito moral, nio apenas de cortigir 0 que podem ser visdes erradas, mas também de tomar a forga de um ideal, pelo qual as pessoas jé vivem, mais palpével, mais vivida para clas; ¢, ao torné-la mais vivida, capacité-las a viver de acordo com ela de uma maneira mais plena e integral, (© que estou sugerindo € uma posigio distinta tanto dos incenti- vadores quanto dos criticos da cultura contempordiiea. Ao contrétio dos incentivadores, néo acredito que todas as coisas sio como deve- iam ser nessa cultura, Nisto tendo a concordar com os criticos. Mas, 20 contrério destes iltimos, penso que a autenticidade deveria ser levada a sério como um ideal moral, Também discordo de diversas posigées intermediérias, que afirmam haver algumas coisas boas nes- se cultura (como maior liberdade para o individuo), mas que elas ve- sham a custa de certos perigos (como um enfraquecimento do sentido de cidadania), de modo que a melhor politica € encontrar 0 ponto de negociagdo ideal entre vantagens e custos. quadro que estou oferecendo é o de um ideal que se degradou, mas que é bastante vilido em si, ¢, de fato, gostaria de dizer, inegavel pelos modernos. Portanto, ndo precisamos de uma condenagio radical gpto para tornar parte disso plausivel no que vem a seguir, Deixe-me de uma adoragdo acritica; nem de uma negociagio cuidadosa- e equilibrada, © que precisamos é de um trabalho de recupera- fo, através do qual esse ideal possa ajudar a restaurar nossa pratica Para ir adiante, vocé tem que acreditar em trés coisas, todas con ersas: (1) que a autenticidade é um ideal valido; (2) que vocé pode ljscutir racionalmente acerca de ideais e da conformidade das ages a es ideais; e (3) que esses argumentos podem fazer diferenga. A pri- ira convicgo choca-se com o maior impulso da critica a cultura da itenticidade, a segunda envolve rejeitar o subjetivismo, e a terceira .incompativel com aquelas consideragoes da modernidade que nos presos numa cultura modema pelo “sistema”, seja ele definido 10 capitalismo, sociedade industrial ou burocracia. Espero estar ar pelo ideal. F A érica da autenticidade é algo relativamente novo e peculiar & cultu- - Nascida no final do século XVII, desenvolveu-se de formas ores do individualismo, como o individualismo da racionalidade sada, iniciado por Descartes, no qual a exigéncia € de que cada pense de maneira autorresponsével por si mesma, ou 0 individua- politico de Locke, que pretendia tornar a pessoa e sua vontade an- bres as obrigagbes sociais, Mas a autenticidade também tem estado, ‘alguns aspectos, em conflito com essas formas anteriores. E um pro- do perfodo romintico, que era critico da racionalidade desengajada fe um atomismo que no reconhecia os lagos da comunidade. Uma maneira de descrever seu desenvolvimento é ver seu marco 1na nogo oriunda do século XVIII de que os seres humanos so de um senso moral, um sentimento intuitivo do que é certo >. O propésito original dessa doutrina era combater uma vi- rival de que saber 0 certo ¢ o errado era uma questo de calcular téonsequéncias, em particular aquelas relacionadas a recompensas ‘eastigos divinos. A nogdo era de que compreender certo e errado O éra uma questo de puro célculo, mas estava fincada em nossos imentos. A moralidade tem, em certo sentido, uma voz interna, 10 desenvolvimento dessa doutrina, iniciamente na obra de Francis Hutche- son, baseandorse nos escritos do conde de Shaftesbury, e sua relagfo adversa 3 eoria de Locke, eu diseuti em large medica em Sources ofthe Self, capitulo 8. ‘Attica da Autentcidade | As Fontes da Autentcdade A nogao de autenticidade se desenvolve com base em um des- locamento do acento moral nessa ideia. Na visio original, a voz interior é importante porque nos diz qual é a coisa certa a ser feita. Estar em contato com nossos sentimentos morais importaria aqui como um meio a fim de agir corretamente. O que estou denomi- nando de deslocamento do acento moral vem’ tona quando estar em contato assume um significado moral independente e crucial. Torna-se algo que temos de atingir para’ sermos seres humanos verdadeiros e completos. . Para entender o que hé de novidade isso, temos de ver a ana- logia com visées morais anteriores, em que estar em contato com alguma fonte ~ Deus, digamos, ou a Ideia do Bem ~ era considerado fundamental para ser plenamente. Apenas agora a fonte com a qual temos de nos conectar esté no fundo de nés. Isso faz parte da virada subjetiva massiva da cultura moderna, uma nova maneira de inte- rioridade, na qual chegamos a pensar em nés mesmos como setes ‘com profundidade interior. De inicio, a ideia de que a fonte est no interior nao exclui nosso ser relacionado a Deus ou as Ideias; pode set considerado nosso préprio caminho para eles. Em tim sentido, pode ser visto apenas como uma continuagio e intensificagao do de- senvolvimento inaugurado por Santo Agostinho, que vio caminho para Deus como pasando através da prépria consciéncia reflexiva de nés mesmos. As primeiras variagBes dessa nova visio eram teistas ou, pelo menos, pantefstas. Iss0 ¢ ilustrado pelo escritor filos6fico mais im- portante que ajudou a trazer essa mudanga, Jean Jacques Rousseau. Penso que Rousseau € importante no porque ele inaugurou a mu- dangas eu argumentaria que essa grande popularidade € oriunda em parte por ele articular algo que jé estava ocorrendo na cultu- ra, Rousseau frequentemente apresenta.o problema da moralida- de como aquele em que nés seguimos uma voz da natureza den- two de nés. Essa voz costuma ser abafada pelas paixtes induzidas nossa dependéncia das demais, das quais a paixio-chave é 0 mor préprio” ou orgulho. Nossa salvacdo moral advém da recu- 1¢d0 do contato moral auténtico com nés mesmos. Rousseau até Rousseau também articulou da maneira mais influente uma ideia eitamente relacionada. Trata-se da nogéo do que quero denomi liberdade autodeterminante E a ideia de que sou livre quando Gecido por mim mesmo 0 que me diz respeito, em vez de ser moldado pt influéncias externas, E um padrio de liberdade que obviamente i além do que foi denominada liberdade negativa, na qual sou li- para fazer 0 que quero sem interferéncias de outrem porque isso mmpativel com meu ser moldado ¢ influenciado pela sociedade e s leis de conformidade. A liberdade autodeterminante exige que .. Eu menciono isso aqui ndo porque é fundamental para a auten- idade. Obviamente, 0s dois ideais sio distintos. No entanto, desen- glveram-se em conjunto, por vezes nas obras dos mesmos autores, sua relagao tem sido complexa, as vezes em desacordo, as vezes es- 5 € essa foi uma das fontes das formas desviantes da autenticidade, 10 argumentarei. Voltarei a isso posteriormente. 30 sentimento da existencia desprovido de qualquer outro afeto € por sis lum sentimento precioso de contentamentoe de paz que bastaria para tomar cesta existencia queria e doce para quem soubesse afastar desi todas as im= pressdes sensuais e terzestres que vém sempre nos distrair e perturbar a sa dogure. Mas a maioria dos homens agitados por paixdes continuss conhe- ‘ce pouco este estado, ¢ como #8 0 experimentou imperfeiramente durante alguns instants, 26 guarda uma ideia obscura e confusa que mio thes faz seati o seu encanto.” Lee Réveries du Promeneur Solitaire, V« Promenade, In: Onwores Completes, v. 1, Pris, Gallimard, 1959, p 1047. ‘A ftica da Autentcdade 1 As Fontes da Autenticdade A libetdade autodeterminante tem sido uma ideia de enorme po- der na nossa vida politica. Na obra de Rousseau ela assume uma forma politica, na nogo de um contrato social declarado ¢ fundado numa vontade geral, precisamente porque a forma de nossa liberdade comum nio pode aceitar oposigio nenhuma em nome da liberdade. Essa ideia foi uma das fontes intelectuais do totalitarisme modemo, comegando, pode-se talvez argumentar, com os jacobinos. E, embora Kant tenha reinterpretado essa nogdo de liberdade em termos pu- ramente morais, como autonomia, ela retorna a esfera politica com ‘uma vinganga em Hegel e Marx. . Mas, voltando ao ideal de autenticidade: ele se torna crucialmen- te importante em razéo de um desenvolvimento que ocorreu apés Rousseau e que associo a Herder ~ uma vez mais seu maior e primeiro articulador em vez de seu ctiador. Herder passa adiante a ideia de que cada um de nés tem um jeito original de ser humano. Cada pessoa tem a propria “medida”, na sua maneira de dizer? Tal ideia entrou profundamente na conscincia moderna, E também € novidade. An- tes do final do século XVIII ninguém pensava que as diferengas entre os seres humanos tinham esse tipo de significado moral. Hé certo modo de ser humano que é 0 meu modo. Sou convocado a viver deste modo, e néo imitando o de outro alguém. Mas isso confere uma nova importincia a ser verdadeiro para si mesmo, Se no sou, eu perco 0 ropésito da minha vida, perco o que ser humano é para mim. Essa € a poderosa ideia moral que chegou a néa. Ela concorda im- portancia moral crucial com um tipo de contato comigo mesmo, com minha natureza interior, que é vista como em risco de ser perdida, em parte através de presses em direco 4 conformidade externa, mas também porque, ao assumir uma posicio instrumental em relagio a 3 sJeder Mensch haat ein eigenes Mass, geicheam eine cigne Stimmung al- ler seiner sinnlichen Gefihle zu einandes” Herder, Ideen, vil. i Herders ‘Smtlche Werke, v. XULEd, Bemard Suphan, Belim, Weidmann, 1877-1913, p.291.15 ¥. mesmo, posso ter perdido a capacidade de ouvir essa vor inte- ior. E, assim, aumenta grandemente a importancia desse autocontato 10 introduzir o principio da originalidade: cada uma de nossas vozes em algo exclusivo a dizer. Nao apenas no devo encaixar minha vida is demandas da conformidade externa; niio posso sequer encontrar 0 modelo pelo.qual viver fora de mim mesmo. Apenas posso encontré- dentro de mim, Ser fiel a mim significa ser fiel a minha prépria originalidade, e ys0 € uma coisa que s6 eu posso articular ¢ descobrir, Ao articular so eu também me defino, Estou realizando uma potencialidade que propriamente minha, Essa é a compreensio por tras do ideal moder- de autenticidade e dos objetivos de autorrealizacdo e autossatisfa- ‘io nos quais séo usualmente expressos. Esse é 0 pano de fundo que nfere forca moral a cultura da autenticidade, incluindo suas formas is degradadas, absurdas ou triviais. £ 0 que da sentido a ideia de fazer suas préprias coisas” ou “encontrar sua propria realizagao”. ‘A Etica da Autenticdade | Hovizontes nescapavels de Deus, ou alguma outra coisa dessa ordem importa crucialmente, x posso definir uma identidade para mim que néo é banal, A auten- ticidade ndo é a inimiga das demandas que emanam além do self; ela supe tais demandas. ‘Mas, se € assim, hi algo que se pods dizer para aqueles que es- ‘Ho paralisados nos mais banais modos da cultura da autenticidade. A razio no € impotente, Claro, nfo chegamos muito longe aq apenas mistramos que algumas questdes autotranscendentes sio in- dispensaveis [questdo (b) citada]. Ndo mostrathos que qualquer uma em particular deva ser levada a sério. O argumento até aqui € ape- ‘nas um esboso, ¢ espero levé-lo (s6 um pouco) adiante nos capitulos subsequentes. Por hora, quero voltar 2 outro problema, (a), sobre haver alguma coisa autodestrutiva em um modo de realizago que nega nossos lagos com os outros. A ENCA “DA AUTEUTCIDADE. CHARLES TAYLOR Capitulo 5 [ A Necessidade de Reconhecimento (2) Outro eixo comum da critica & cultura contemporinea da autenticidade € que ela encoraja tim entendimento puramente pessoal de autorrealizacdo, tornando, assim, as diversas associagées comu- nidades nas quais a pessoa adentra puramente instrumentais em seu significado, No sentido social mais amplo, isso 6 antiético para qual- ‘quet compromisso forte com uma comunidade. Em especial, torna a cidadania politica, que é 0 sentido de dever e alianga com a sociedatic politica, cada vez mais periérica.' No nivel mais especifico, incentiva uma visio de relacionamentos na qual estes devem secvir a realizagdo pessoal. O relacionamento é secundério para a autorrealizagio dos parceiros. Nessa visio, vinculos incondicionais, designados a durar para sempre, fazem pouco sentido. Um relacionamento pode durar até a morte, se continua servindo seu propésito, mas no ha sentido (em declarar a priori que deva ser assim. Essa filosofia foi articulada num livro famoso de meados dos E anos 1970: Voot no pode levar tudo consigo quando parte na jornada da meia- dade. Voo8esté indo embors. Afastindo-se das exigénciasinstitucio- ais e da agenda de outras pessoas. Afastando-e das valorieagdes ¢ atribuigBes externas, Voce esté abandonando paps e indo em diresdo * Bove argumento € vigorosamente apresentado em R. Bellah etal, Habits of the Hear. A Etica da Autentcidade | A Necessdade de Reconhecimento 20 self Se eu pudesse dar um presente a todo mundo que parte nesta, jornade, seria uma tenda. Uma tenda para provisoriedade. O dom das +aizes portites(..) Para cada um de nés hé a oportunidade de surgi renascido, autenticamente ‘nico, com uma capacidade ampliada de ‘amar a nés mesmos ¢ acetar os demais (...) Os prazeres da atitodes- coberta estio sempre disponfveis. Embora os entes amados entrem € saiam de nossa vida, a capacidade de amar permanece.* A autenticidade parece mais uma vez ser definida aqui de uma ‘maneira que foca no self, que nos distancia de nossas relagdes com os demais. E isso foi dimensionado pelos criticos que citei anteriormen- te. Alguém pode dizer qualquer coisa sobre isso de maneira racional? Antes de esbocar 0 sentido do argumento, é importante ver que © ideal de autenticidade incorpora algumas nogées de sociedade ou, ppelo menos, de como as pessoas devam viver juntas, A autenticidade & ‘uma faceta do individualismo moderno e uma caracteristica de todas, as formas de individualismo, que nao apenas enfétizamn a liberdade do individuo, mas também propdem modelos de sociedade. Nao con- seguimos enxergat isso quando confundimos os dois sentidos bastan- te distintos de individualismo que jé discriminei, O individualismo de anomia e desagregacao evidentemente nao possui ética social assoc da a ele; entretanto, o individualismo como principio’ moral ou ideal deve oferecer alguma opinido a respeito de como o individuo deveria viver com os outros. Assim, os grandes filésofos individualistas também propuseram modelos de sociedade. O individualismo lockeano nos deu a teoria da sociedade como contrato. Formas posteriores ligadas a nogGes de soberania populat. Dois modos de existéncia social estio bastante e evidentemente ligados com a cultura contemporinea da autorrea- lizagio. O primeiro & baseado na nogio de dieito universal: todos deveriam ter 0 direito e a capacidade de serem eles mesmos. Isto é 0 * Gail Shechy, Passages: Predictable Crises of Adult Life. Nova York, Bentams Books, 1976, p. 364, $13 (itiico no original) 52153 _que sustenta o relativismo suave como um princ{pio moral: ninguém wsem 0 direito de criticar os valores de outrem. Isso inclina aqueles jimbuidos dessa cultura na direcio de concepgSes de justiga proces- I: 0 limite na autorrealizagio de qualquer um deve ser a medida sntiva de uma igual chance nessa realizagio para os outros.? Em segundo lugar, essa cultura coloca uma grande énfase em re- icionamentos na esfera intima, especialmente nos relacionamentos yamorosos. Estes so vistos como sendo o principal [écus de autoex- loracdo ¢ autodescoberta ¢ entre as formas mais importantes de sutorrealizagdo. Tal visdo reflete a continuidade de uma tendéncia na eultura moderna que esté velha hé séculos e coloca o centro de gra- vidade da vida boa no em alguma esfera superior, mas no que quero ;chamar de “vida ordinaria”, isto é, a vida de produsio e da familia, do trabatho e do amor que importa aqui: o reconhecimento de que nossa identidade exige mhecimento dos outros. ' Escrevi anteriormente sobre o modo como nossas identidades so Hformiadas em didlogo com os demais, em concordéncia ou conflito ‘com seu reconhecimento de nés. De certo modo, podemos dizer que a lescoberta e articulagdo desse fato em sua forma moderna ocorreram estreita ligagio com o desenvolvimento do ideal de autenticidade. Podemos distiiguir duas mudangas que juntas tornaram inevi- vel a preocupacdo moderna com a identidade e o reconhecimento. /A primeira é o colapso das hierarquias sociais, que costumavam ser ya base para a honra. Estou usando “honza” no sentido do antigo re- jme no qual ela é intrinsecamente ligada a desigualdades. Para que alguns tenham honra nesse sentido é fundamental que nem todos a ytenham, Este € 0 sentido em que Montesquieu a usa na sua descrigao io obstante, ela ainda reflete outra coisa R.Bellah etal. Observe ligagdo entre esse tipo de individualismo ea justiga rocestual em Habit, p. 25-26 ‘ Discuti toda essa virada da cultura moderna extensamente em Sources of the Self, em especial no capiealo 13. A ttica de Autentcidade | A Necesidade de Reconhecimento de monarquia. A honra é, de maneira intrinseca, uma questo de “preferéncia”.’ £ também o sentido que usamos quando falamos de honrar alguém, ao dar a essa pessoa uma recompensa fidblica, diga- mos The Order of Canada.‘ Obviamente esta nao valetia a pena se amanha decidissemos oferté-la a todos os adultos canadenses, Em oposicao a essa nogo de honra, temos a nogio moderna de dignidade, agora usada em um sentido universalista e igualitério, em que falamos da inerente “dignidade dos seres humanos” ou da dignidade cidada. A premissa subjacente aqui € que todos tomam ~ Parte nisto.? Tal conceito de dignidade é 0 inico compativel com uma sociedade democrética, ¢ era inevitével que 0 antigo concei- to de honra fosse marginalizado, Mas isso também significou que as formas de reconhecimento igualitério fossem essenciais para a cultura democrética, Por exemplo, que todos deveriam ser chama- ddos de senhor, senhora ou senhorita - em vez de algumas pessoas sendo chamadas de cavalheiro ou dama, e outras apenas por seu sobrenome, ou, ainda mais degradante, por seu primeito nome - foi considerado crucial em algumas sociedades democréticas, tal como 08 Estados Unidos. E, mais recentemente, por motivos similares, se- nhora e senhorita colapsaram para Ms." A democracia originou uma Politica de reconhecimentos iguais, que adquiriu formas variadas lontesquicu, “La Nature de 'Honneur Est de Demander des Préféraces et ses Distinctions”. In: De Esprit des Lots, lveo I, capitulo vi ‘ Medatha de hona a0 mérito mais elevada do Canad (N..) 7 0 significado desse movimento da *honra” para “dignidade” é dsctido de ‘maneira muito interessante por Peter Berger em seu *On the Obsolescence of ‘the Concept of Honour”, In: Stanley Hauerwas e Alasdair Macintyre (eds), Revisions: Changing Perspectives in. Moral Philosophy, Notre Dame, Univer: sity of Notre Dame Press, 1983, p. 172-81. "Na lingua inglesa hd trés opgdes de pronomes de tratamento para se refecir. as mulheres: Mrs. refereste ao tialo dado a uma mulher casada egeralmenteé ‘raduzido para o portugués como “senhora”; Mis refee-se mulher nfo cass- ct, traduzido por “senhorita”; por fim, Mi, pronome ulizado para referiese ‘uma mulher independentemente de seu estado civ, ou sea, configura uma ‘a0 longo dos anos e que, agora, volta na forma de demandas pelo status igual de culturas e de géneros. Mas a importincia do reconhecimento foi modificada e inten- ssificada pelo entendimento da identidade emergente com o ideal de wutenticidade. Isso também é, em parte, uma ramificagao do declf- io da sociedade hierérquica. Naquelas sociedades antigas, 0 que -agora chamarfamos de identidade de uma pessoa era, em grande medida, estabelecida por sua posicao social, Ou seja, o pano de fundo que dava sentido ao que a pessoa reconhecia como impor- tante era em grande parte determinado por seu lugar na sociedade € por qualquer papel ou atividades associados a ele. A chegada de uma sociedade democritica nao pée fim a isso, porque as pessoas nda podem se definir por seu papel social. No entanto, o que de- cisivamente mina essa identificaco derivada socialmente é 0 pr6- . prio ideal de autenticidade, Conforme emerge, por exemplo com y: Herder, ele me convoca a descobrir minha prépria maneira original de ser. Por definigéo, néo pode ser derivado socialmente, mas deve ser gerado interiormente. De igual modo, nao existe algo como geragao interna, entendida monologicamente, como tentei argumentar acima. O meu descobrir a minha identidade nao quer dizer que a trabalho em reclusio mas que a negocio através do didlogo, parcialmente exposto, parcialmen- te internalizado, com outros. E por isso que o desenvolvimento de um ideal de identidade gerada intesiormente dé uma nova e crucial * importéncia ao reconhecimento, Minha prépria identidade depende crucialmente de minhas relagdes dialégicas com 0 outros. © ponto em questéo nao é de que essa dependéncia dos ou- tros surge com a era da autenticidade. Uma forma de dependéncia sempre esteve 14. A identidade derivada socialmente era por sua ‘opsio neutra de catament. Em portuguésndo vemos tal opgio neutra quando se trata do estado cvilstemos apenas “senhora” e“seahorita”, (N.T) A ttica da Autentcidade | A Necessidade de Reconhecimento natureza mesma dependente da sociedade. Mas, na era anterior, ‘© reconhecimento nunca surgiu como um problema. O reconheci- mento social foi embutido a identidade detivada socialmente pelo préprio fato de que estava baseada em categorias sociais que todos aceitavam sem questionamento. O problema acerca da identidade derivada interiormente, pessoal e original é que ela nao aprovei- ta esse reconhecimento a priori. Deve-se conquisté-lo pela troca, ¢ pode fracassar, O que surgiu com a Idade Moderna nio & a neces- sidade de reconhecimento, mas as condigGes nas quais isso pode fracassat. E é por isso que a necessidade'agora & recombecida pela primeira vez. Em tempos pré-modernos, as pessoas nfo falavam de “identidade” ¢ “reconhecimetito”, no porque elas ndo tinham (0 que chamamos) identidades ou porque estas nao dependiam do re- conhecimento; ao contrério, elas eram entdo muito problemsticas para serem tematizadas como tal. Nao surpreende podermos encontrar algumas das ideias seminais acerca da dignidade do cidado e do reconhecimento universal, mes- ‘mo que ndo nesses termos, em Rousseau, um dos pontos de origem do discurso moderno de autenticidade. Rousseau é um critico feroz da honra hierdrquica, das “préférences”. Em uma passagein significativa do Discurso sobre a Desigualdade, ele destaca o momento inevitével em que a sociedade toma 0 caminho da corrupgio e da injustica, quando as pessoas comecam a desejar a admiragdo preferencial Em contraste, na sociedade republicana, onde todos podem compartilhar igualmente levando em consideragao a atengio piblica, ele vé a fonte ” Rousseau descreve as primeiras assembleias: “Cada um comega a ver 0s outros a querer ser visto ¢ a estima publica teve um prego. Aquele que cantava ou dangava melhor; 0 mais bonito, o mais forte, o mais hdbil ov 0 ‘mais eloquente se tomou 0 mais considerado, e ete fo o primeizo passo para 4 desigualdade, ¢ a0 mesmo tempo para o vicio.” Discours sur Origine et les Fondements de UInégalté parmi le Hommes, Pati, Granier Flammarion, 1971, p.210, da saiide."” Entretanto, o t6pico do reconhecimento recebe seu pri- ‘meiro tratamento mais influente em Hegel." A importancia do reconhecimento é agora universalmente reco- ahecida de uma forma ou de outra; em um plano pessoal, estamos todos cientes de como a identidade pode ser formada ou malformada ‘em nosso contato com outros significantes, No plano social, temos uma continua politica de reconhecimento igualitério. Ambos foram moldados pelo crescente ideal da autenticidade, e o reconhecimento "desempenha um papel essencial na cultura que surgiu ao redor dela, No nivel pessoal, podemos ver quanto uma identidade original precisa ¢ € vulnerdvel ao reconhecimento dado ou sustentado por ou- stros significantes, Nao é surpresa que, na cultura da autenticidade, os relacionamentos sejam vistos como a chave da autodescoberta ¢ da autoconfirmacao, Relacionamentos amorosos nao sio importantes apenas em razio da énfase geral na cultura moderna sobre as satisfa- ‘ges da vida ordindria, Eles também so cruciais porque so a prova Eda identidade gerada interiormente. No plano social, a compreensio de que identidades s4o formadas em didlogo aberto, ndo moldadas por um roteiro social predefinido, fez a politica do igual reconhecimento mais central ¢ estressante. Na tealidade, elevou consideravelmente suas apostas. Reconhecimento igual néo é apenas o modo apropriado para uma saudével sociedade "democratica. Sua recusa pode infligit danos Aqueles para os quais ele ' Ves, por exemplo, a pussagem em “Considerations sur le Gouvemement de Pologne” em que ele descreve 0 antigo festival pblico, no qual todas as pessoas partcipavam, em Du Contrat Social, Pars, Gamies, 1962, p. 345, ¢ também a pessagem pacalelaem “Lene & D'Alembert sur les Spectacle, ibidem, p, 22425. 0 principio crucial ee de que nio deveria haverdivsfo entre artistas eespectadores, mas que tado devera ser visto por todos, “Mas, cnfim, quis secdo os objeto desss espetdculos? © que se mostra nels? Nada, e quiserem. 1) coloquem os expectadres como espetéculoyfagam com que cles propriossejam os arres deixem que cade um se vea ese gote nos outros, que todos fiquem mais unidos.” "Ver The Phenomenology of Spirit aptalo 4, ‘A Gtica da Autentcidade | A Necessdade de Reconhecimento € negado, de acordo com uma visio moderna amplamente difundida. A projegio de uma imagem inferior ou degradante sobre outrem pode realmente distorcer ¢ oprimis, na medida em que ¢ interidfizada. Nao somente o feminismo contemporaneo, mas também as relages raciais € as discusses do multiculturalismo sao sustentadas pela premissa que nega o reconhecimento como uma forma de opressio. Pode-se questionar se esse fator foi exagerado, mas é claro que o entendimen- to da identidade e da autenticidade introduzii uma nova dimensio na politica de igual reconhecimento, que agora opera com algo como sua répria nogdo de autenticidade, ao menos no que se refere a dentincia de outras distorges induzidas envolvidas. Tendo em mente a compreensio do reconhecimento desenvolvida 10s sltimos dois séculos, podemos ver por que a cultura da autentici- dade vem atribuindo precedéncia aos dois modos de vida coletiva que jf mencionei: (1) no nivel social, o princfpio crucial & 6 de equidade, que requer as mesmas chances para todos desenvolverem a prépria jdentidade, que inclui - como agora podemos entender com maior clareza - 0 reconhecimento universal da diferenga, em quaisquer que sejam os modos em que isso seja relevante para a identidade, seja de género, racial, cultural ou concernente & orientacio sexual; , (2) na esfera privada, os relacionamentos amorosos formadores de identida- de tém uma importéncia crucial. A pergunta com a qual iniciei este capitulo talvez possa ser colo- cada desta maneira: pode um modo de vida que é centrado no self, no sentido que envolve tratar nossas associagées como meramente instrumentais, ser justficado levando em consideragao 0 ideal de au- tenticidade? Agora talver possamos reformulé-la ao perguntar se tais modos favorecidos de viver coletivamente permitirdo esse género de ser de uma maneira desvinculada. (1) No nivel social, pode parecer que a resposta é um nitido sim. Todo reconhecimento das diferengas parece pedir que aceitemos al- gum prinefpio de justiga processual. Nao exige que reconhecamos 58159 forte alianca para com uma repiiblica cidada ou qualquer outra rma de sociedade politica. Podemos “relaxar”, contanto que tra- mos todo mundo igualmente, De fato, pode até ser afirmado que qualquer sociedade politica fundamentada em alguma nogio forte ide bem comum ird, por si mesma, por esse prdprio fato endossar a vvida de algumas pessoas (aqueles que apoiam essa nogio de bem co- mum) sobre os demais (aqueles que buscam outras formas de bem), e, isso, negar igual reconhecimento. Algo assim, vimos, € a premissa sfandamental de um liberalismo da neutralidade, o qual possui muitos snsores hoje. Mas isso é simples demais. Mantendo em mente o argumento capitulo anterior, temos de perguntar o que est4 envolvido em seconhecer verdadeiramente as diferengas. Isso significa reconhecer ,0 valor igual de diferentes maneiras de ser. E este reconhecimento de igual valor que uma politica de reconhecimento identitério requer. ,Contudo, o que fundamenta a igualdade de valor? Vimos anterior- {mente que o mero fato de as pessoas escolherem diferentes maneiras le ser ndo as faz iguais; tampouco o faz 0 fato de elas se encontrarem nesses diferentes sexos, ragas,culturas. A mera diferenga ndo pode ser jem si mesma o fundamento do valor igualitétio. Se homens ¢ mulheres so iguais, nfo € porque sao diferentes, Porque passam por cima das diferencas de algumas propriedades, ‘ou complementares, as quais sio valiosas, Eles sio seres ca- de raciocinar, amar, recordar ou de reconhecer dialogicamente, ‘Unir-se em um reconhecimento miituo de diferengas ~ isto é, do igual valor de identidades diferentes ~ exige que compartilhemos mais do que a crenga nesse principio; temos que compartilhar também alguns de valor que as identidades referidas conferem como iguais, hhaver algum acordo substancial sobre valor, ou entdo o princf- ‘pio formal de igualdade serd vazio uma fraude. Podemos expressar spoio ao reconhecimento igualitério, mas néo compartilharemos uma A ttica da Autentcidade | A Necessidade de Reconhecimento Reconhecer diferencas, como autosselecionadas, requer um horizonte de significado ~ neste caso, um que seja compartilhado. Isso ndo mostra que devemos pertencer a uma sociedade politica comum; do contrério, néo-reconhecérfamos os estrangeitos. E ndo mostra por si que devemos levar a sétio’a sociedade politica em que ‘estamos. Mais necessidades a serem atendidas. Mas j& podemos ver como 0 argumento pode ir: como desenvolver e cuidar das coisas em comuf de valor entre nés se torna importante, e uma das manciras cruciais com que fazemos isso € compartilhando uma vida politica participativa. As préprias demandas de feconhecer a diferenca nos levam além de mera justiga processual. (2) E quanto aos nossos relacionamentos? Podemos vé-los como instrumentais as nossas realizagées , portanto, fundamentalmente ‘como tentativas? Aqui a resposta & mais fécil. Certamente no, se cles também formario nossa identidade, Se as intensas relagées de autoexploragdo serdo formadoras de identidade, entio no podem set, por principio, tentativas ~ embora possam, alas,” de fato romper- se nem meramente instrumentais. As identidades na realidade mu- dam, mas as formamos como a identidade de uma pessoa que parcialmente e vai completar essa vivéncia. Nao defino uma identida~ de para “eu em 1991”, mas, em vez disso, tento dar sentido a minha vida como foi e como ewa projeto mais adiante com base no que ela. foi. Minhas relagdes definidoras de identidade no podem ser vistas, teérica ¢ adiantadamente, como dispenséveis e destinadas & substitui- sao. Se minha autoexploragio assume a forma de tais relacionamen- tos em sétie ¢ em prinefpio tempordrios, entdo nao é minha identida- de que estou explorando, mas alguma modalidade de diversio. Considerando 0 ideal de autenticidade, pareceria que ter re- lacionamentos meramente instrumentais é agir de uma mancica Exclamagio poética ou ltedria que expressa sofimento, preacupagio ou pena. (N.T.) ‘autoestultificante. A nogdo de que se pode buscar a realizacao des- a maneira parece iluséria. Em alguma medida, da mesma forma se pode escolher a si mesmo sem reconhecer um horizonte de ificado além da escolha. De qualquer maneira, isso é 0 que esse argumento incompleto sugetiria. Nao posso afirmar ter estabelecido conclusées s6lidas aqui, as espero ter feito algo para sugerir que o escopo do argumento ional € muito maior do que frequentemente se supe, e, portanto, "que essa exploracdo das fontes da identidade tem algum propésito.

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