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LETRAS CLASSICAS,n. 5, p. 299:305, 2001, O Hino Homérico a Apolo. Introduga ‘radu, comentérios e notas de Luiz Allberto Machado Cabral. $40 Paulo / Campinas: Atelié Editorial / Editora da Unicamp, 2004. 362 p. ISBN: 85-268- 0589-4. Nio é improvavel que, a0 se de- frontar coma simpética capa desse livro, tum leitor qualquer pense com os seus bo- tes: “Hino homérico a Apolo” ~ mas por que homérico,e node Homero? Afi- nal, se 0 autor é Homero, como parece dizer 0 adjetivo, por que nfo estampar ra capa "Hino a Apolo”, e logo abaixo: “Eoomero”, como costumamos fazer com conome de quem compo a obra? Seria zo mimo estranho se éssemos: “Divi- na Comédia Dantesca’, e no “Divina Comédia’, de Dante. Homero € ou no €0 autor dese hino? Uns dizem que sim, outros que ino. Embora seja pouco provivel que esse mesmo leitor encontre hoje algum estudioso da matéria que diga que sim, que fol Horvero quem comps © hino, teoricamente no se pode negar que Homero seja de fato 0 seu autor. Para Tucidides, que conhecia 0 hino € que 0 tinha como um documento relevante, ringuém mais sengo Homero compuse- r20"Hino a Apolo”, do qual ele cita al- gums versos (em nenhuma outra parte © historiadorcitatrecho em versos tio lon- go), justamente os versos em que o poe- ta far referénciaasi proprio como o.cego origindrio de Quios. £ difcil saber se a crenga de que Homero era cego surgiu depois que 0 hino Ihe foi atribuido ou se jdlera a doutrina corrente sobre o autor, ‘mas uma coisa &certa: virios elementos formais aproximam o nosso hino ~ € 0s ddemais 32 hinos que comporiam no fu- turo a coletinea dos chamados “hinos hhomeéricos" —dos dois poemas épicos que se costumava (e se costuma) atribuir a Homero, a Mada e a Odisséa. Aexemplo desses poemas, os hi- nos io compostos num metro conheci- do como heximetro dactitco, porque consiste de seis pés ou unidades métri- as, sendo cada qual ou um déctilo (uma sflaba longa e duas breves) ou um cespondeu (dus silabas longas). A inte ragio desses dois pés confere ao verso hexamétrico grande flexbilidade e va- siedade, das quais se valeu uma longa tradigo de aedios e rapsodbos, isto €, po- tas inseridos numa tradigdo oral que ‘nfo compunham com 0 auxilio da es- rita, para os quais cada performance era ‘uma oportunidade de recriar 0 poema dentro dos horizontes estritamente tra- dicionais de sua arte. Ndo se pode afit- ‘mar com absoluta certeza que 0s poe~ ‘mas épicos, tal como nos legou a tradt- ‘¢80 e tal como os podemos ler hoje em dia, prescindiram da escrita em seu pro- cesso de transmissfo, mas o que impor- ta destacar € que os hinos homéricos, Resenhas, entte eles 0 "Hino a Apolo” da tradu- 0 de Luiz Alberto Machado Cabral, partilham com a poesia épica arcaica desse meio tradicional de composigo e s0 por isso chamados “homeéricos”. E contra 0 pano de fundo dos poemas em verso hexamétrico de Homero (e de Hesiodo) que se deve ler os hinos, como elementos que com- ‘Oem um quadro abrangente da relagéo entre deuses e mortais representada na épica, Estreito também, supde-se, & 0 contato entre a performance dos poe- mas épicos e dos hinos; 0 préprio ‘Tucidides, na passagem a que jé fle men 0 (3, 104, refere-se a0 hino a Apolo como “proémio”, e na Antighidade ha coutras referéncias a0 hino como preli- dio A récita de outros poemas, sobre euja nnatureza ainda pairam dividas, mas en- tre eles figurariam muito provavelmen- te os poemas épicos. Como diz Luiz Alberto, numa passagem curiosamente repetida em dois momentos diversos de sua introdugio (pp. 21 ¢ 95), "pressu- pSe-se, logicamente, que os Hinos Ho- iméricos eram performances de proémios, dirigidos a um deus e A audiéncia em tum determinado festival, como uma in- troducao ao recital épico propriamente dito”. Em apoioa Tucidides, o Certame de Homero e Hesiodo, obra que narra a dispuca (imagindria) por precedéncia en- sxe 0s dois poetas, nfo declara simples- ‘mente que Homero & 0 autor do hino, nnas descreve ainda oestrondoso suces- soque foia performance de Homeroem Delos. Aportando em Defos para o fes- tival pan-ifnico, o poeta postou-se jun- to20altar dos chifres erecitox seu hino, 40 que 0s joni Ihe concederam foros de cidadao ¢ os délios the grafaram o oema num paine! banco eo consagra- ram no templo de Artemis. O autor do CCename toma 0 cuidado de sublinhar que foi no templo de Artemis, ndo no de Apolo, como seria mais natural numa hhino enderegado aesse deus, que. hino foi consagrado, quem sabe para evitar 0 anacronismo (ao qual entretanto su- cumbe o nosso hino) de situar Homero ‘num templo cujaestrutura era recente, datado da segunda metade do século 6° ac Outros, porém, no se mostra- vain tio certos da autoria homérica. O documento mais contundente, ali, um, cescblio 8 segunda Nemeia de Pindaro, no s6 nega implicitamente que o hino seja obra de Homero, mas o atribui a outro poeta, Cinetos de Quios. Vale a pena citar a passagem por extenso: ““Homéridas’ era © nome dado antigamente aos membros da famfia de Homero, que cambém carcavam sua poe- sin em sucessio. Mas posteriormente fi dado também aos rapsodos cuja descen- dencia ndo remontava mais a Homer. De particular eminéncia eram Cinetos ¢ seus adeptos, que, dizem, compuseram, ‘its dos versos ¢ os inseriram na obra de Homero. Esse Cinetos era de uma fa- tna de Quios, e, dos poemas que trazem -300- LETRAS CLASSICAS, n. 5, . 299-305, 2001, ‘nome de Homero, foi ele que excreven 0 Hino a Apoloe the atribuiu a autora (hos kai tn epigraphomenén Homérou poiématén ton eis Apolléna gegraphds hhumnon anatetheiken autéi).” Ouseja, de acordo com oescblio Cinetos escreveu o Hino a Apolo e 0 fez passar como obra de Homero. Um caso, portanto, de pseudepigrafia, numa épo- ca (final do século 6° 2.C,) que come- ava a demonstrar um interesse até en ‘to pouco comum em confer a indivi- duos de carne € oss0 a autoria de obras consagradas pela tradigao. Nisso Cinetos nfo estaria sozinho; ficou famo- 800 eas de Onomécrito, que, segundo Herédoto, se incumbira de reunir em colegao ¢ editar os oréculos de Museu ~ mas fol pego a forfé-los e caiu no desfavor dos atenienses. © jovem Pitdgoras também adotara a prética de ‘compor poemas sob o nome de Orfeu. Parece-me que a esse respeito Luiz Alberto entendeu o contrério do que di- zem as palavras do escblio pindético,tal- vex porque prefira ler, seguindo a liso de alguns, anatethethen hawt6i“atribui a si proprio", endo autdi, no excélio cita- do. Segundo ele (pp. 85-6), “um escoliasea de Pindaro (Nem. Il, 1) afit- rma que o rapsodo de Quios, Cinetos, verteu por escrito 0 Hino a Apolo, atc buido a Homero, apresentou-se como seu autor [..] [Cinetos] publicou uma versio escrita de um Hino a Apolo e ten- tou faz8-lo passar como sendo de sua pr6pria autoria, mas néo conseguiu por- que o Hino jé era bastante difundido pelo mundo grego”. Na verdade a ati- tude de alguns poetas nessa época era a inversa: nfo adotar como seu o que era de outro, mas tentar inseris © que era proprio sob nome alheio. (Em tempos modemos, talvez 0 caso mais famoso seja ode James MacPherson ea sua “tra- dugo” dos Poemas de Ossian.) O autor do Catdlogo das Mulheres te provavel- mente seguido o mesmo desfgnio a0 anexar 0 seu poema & parte final da “Teogonia de Hestodo (cf. M. L. West, CQ 49 [1999], 364-82). E um fragmento do mesmo Hesfodo (fe dub. 357 M.-W/), também «ele a0 que tudo indica forjado, insiste no fato de te sido Homero quem compas 0 Hino a Apolo em Delos: “Aquela primei- ra ver em Delos, quando eu e Homero / ‘cantamos,alinhavando nosso canto em novos hinos, / de Febo Apolo da espeda dourada, filho de Leto”. Recorrendo, ‘como outros jé sugeriram, & auroridade de Hesfodo, o autor desses versas (opré- prio Cinetos?) talvez buscasse isentar de culpa o poeta que forjou o Hino « Apolo, cexibindo o testemunho €aspalavras im- parciais de um concorrente. Seja como for, quer esse Cinetos de Quios tenha realmente existido ou ni, 0 fato € que, de todos os poemas atribuidos a Homero, 0 Hino a Apolo € © Gnicoem que o poeta fala sobre si prs prio. Cito a passagem na tradugio de Liz Alberto (comento‘a traducio como sum todo mais adiante), versos 166-73, ~301- Resenbas quando o poeta despede-se das donzelas de Delos. “B.av6s todas, adeus! E mais tar de leribrai-vs de mim, quando um dos varées que vi- ‘er sobre a tera, a vaguea, 0 vir aqui pbs tanto padecer, vos perguntar “Mogas, qual & para ws 0 mais doce dos aedos {que s6i aqui vos visitas, ¢ qual ‘mais vos delicia?” ‘és todas, undnimes, respondei com distinc: “Eo homem cego, que habita a pétrea Quios; pois sio seus cantos sempre os Estes versos compéem o trecho final do que alguns estudiosos defendem ser 0 Hino a Apolo Détio (vx. 1-178, ou ainda vv 1-181), isto 6, a primeira parte do Hino a Apolo em geral, de que a se- ‘gunda seria Hino a Apolo Pico (vv. 179 ‘ou 182-546). Outros contestam essa di- visfo, negam que os dois hinos tenham sido (como dizem os primeitos) sobre- postos com maior ou menor destreza, € sustentam a unidade original da compo- sigho. O debate é antigo, ¢ até hoje ha defensores de peso de ambas as dout nas. Quem primeico suger a bipar do hino foi David Ruhnken, em 1782, rum apéndice a seu Homeri Hymns in CCererem (e nfo em 1871, na sua Epistola Critica, como pretende Luiz Alberto, se- sguindo outros). A primeira impressio, de fato, de quem lé o hino, é que hé dois enredos diversos, um centrado em Delos, outro em Delfos, unidos de for- ‘ma um tanto canhestra pelo poeta. Mas ‘os que propdem a separacio original dos hhinos nao slo unsnimes acerca de qual dos dois ¢ cronologicamente anterior, seo primeito (Wilemowitz) ou 0 segun- do (M. L, West), e portantose um cons- tituia “seqiéncia” do outro. O melhor estudo sobre a estrutura do Hino a Apolo, porém, 6 de um partidério da unidade da obra, Andrew Miller, em seu livo From Delos to Delphi (Leiden, 1986), que Luiz Alberto cita em sua bi- bliogratia, mas do qual néo faz uso, até conde posso ver, em sua introdugio € comentarios. Outras duas grandes au- séncias bibliogréficas ~ a primeira das

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