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Introdugao ao Planejamento Municipal Ladislau Dowbor Ed. Brasil nse, 1987 Escrito em 1987, portanto hi 25 anos atrs, este pequeno livro responde a uma época ‘em que, saindo da ditadura, 0 pais buscava visdes mais democriticas de gestio, De certa forma, enfientava-se 0 desafio da gestiio democritica local, enquanto no plano nacional estava se gestando a Constituigdo de 1988, que viria abrir o pais para visbes mais modernas, Lido hoje (2012), apresenta uma série de ingenuidades, mas continua tual no essencial: a construgdio de formas mais democriticas ¢ participativas de esto, 0 resgate do planejamento, a construgio de visdes sistémicas. Dada a época, foi escrito ainda na era da maquina de esctever, ¢ o texto que aqui apresentamos foi simplesmente digitalizado, para facilitar 0 acesso. Ladislau Dowbor Sao Paulo, 9 de novembro de 2012 Esta obra foi elaborada com apoio do Centro de Estudos e Pesquisas de ‘Administragiio Municipal — CEPAM. © CEPAM deseja que este trabalho reforce o debate sobre o tema, estando aberto a sugestdes, contribuigdes e criticas. Este trabalho contou com a ajuda da equipe de planejamento do CEPAM: Carlos Corréa Leite, Maria do Carmo Meirelles Toledo Cruz, Liicia Maria Vidigal Lopes da Silva, Luiz Patricio Cintra do Prado Filho, Rosingela Vecchia ¢ Rubens Sardenberg. Agradecemos a colaboragdo dos promotores do planejamento na Prefeitura Municipal de Penipolis: Carlos Alberto Bachiega, Carlos Pereira Briz, Eunice Barrinha Braz, Jodo Carlos D'Elia ¢ Mario Mendes Raucci. Ea imensa paciéncia de Carla, Marcia, Mara, Marinez e Ronaldo. Nao hé nada mais prético, que uma boa teoria. Pawel Sulmicki Apresentacao trabalho que segue tem raizes praticas: aplicamos em Penapolis uma proposta simplificada de planejamento municipal, que deu bons resultados, e pareceu-nos itil apresentar aqui as suas linhas, A ideia central é que © municipio precisa, mais do que de esquemas complexos de planejamento, de um sistema claro de organizagio de informagio econdmica que permita ao prefeito tomar decisdes coerentes baseadas num conhecimento real da si- tuacao. Por outro lado, a informagiio ¢ ordenada do ponto de vista do impacto junto a populacdo, criando a transparéncia, que ¢ indispensivel para uma participacao efetiva da comunidade. Brasil soffeu, nas iltimas décadas, um processo centralizador extremo, tanto or parte do Estado, como por parte das grandes empresas ¢ do sistema financeiro, Ficou esmagada, nesse processo, a presenga do municipio nas decisdes sobre o desen- volvimento. A prefeitura se tomou um érgiio que asfalta ruas e constr6i pragas. Trata-se de inverter o processo. Um municipio constitui o espago de vida de seus habitantes, que tém de poder participar nas decisdes. A prefeitura tem de conquistar um espago de interveng3o mais amplo, que corresponda a um desenvolvimento econdmico moderno. A equipe de planejamento municipal do CEPAM tem trabalhado neste sentido, buscando instrumentos priticos. Depois de uma apresentagio mais ampla das necessidades do planejamento e da descentralizagdo, estuda formas priticas de ordenamento da informagio econdmica do municipio, de sistematizagao da informagao sobre 0s recursos financeiros, aspectos organizacionais do planejamento municipal, € as formas de dinamizagao da participagao comunitéria, No anexo do presente trabalho, apresentamos virios casos que ilustram a proposta. O Ieitor interessado em aprofundar a questo pode contatar simplesmente 0 grupo de planejamento do CEPAM, avenida Prof. Lineu Prestes, 913, Cidade Universitria, So Paulo. Encontrara gente tio imteressada em aprender quanto ele. Acrise das solucées universais Todos nés buscamos, de uma forma ou outra, soluedes universais. E grande parte dos conflitos que presenciamos deve-se a esta nossa exagerada tendéncia para a simplificagav. A realidade & que somente solugdes globais e simplificadas tendem a transformar- se em forea social, pois andlises mais complexas e que levam em conta mais fatores diluem-se em tomo das sutilezas © especificidades do proceso analisado: resultam ‘muitas opinides e pouca forga. E este 0 caso, evidentemente, da simplificagao que se fez, e que se faz muito ainda, em tomo do" wrcado" e do "planejamento", como sistemas completos de regulagaio econdmica, Devemos dizer, desde jé, que nio colocamos 0s dois termos no mesmo nivel. A medida que se toma mais complexo o conteiido técnico do nosso crescimento econdmico, ¢ que produgiio se tora mais socializada, 0 espago do mercado, como mecanismo racionalizador do conjunto do sistema, se reduz bastante. E o planejamento ocupa, sem diivida, um espago crescente, inclusive nas préprias empresas. Mas nao ¢ isso que esti no centro das nossas preacupagdes, € sim 0 fato de nenhum dos dois poder pretender constituir a "pedra filosofal" da racionalidade econémica. O que esti na ordem do dia nao é se a solugao correta € 0 mercado ou o plano, € sim como estes dois elementos, combinados com outros, devem articular-se para assegurar a regulagio dos nossos processos econdmicos. Acomplexidade dos processos econémicos ‘A simplificagdo resulta, sem divida, de uma certa impoténcia. Os processos econdmicos evoluiram muito nos quarenta anos de pos-guetra, tomaram-se mais complexos, enquanto os nossos instrumentos tedricos ainda constituem frageis ex- tensdes das grandes escolas europeias de outros tempos. Nao é preciso ir muito longe para ver a que ponto a nossa realidade esti fora dos parimetros simplificadores dos neoclissicos ou dos monetaristas modernos. Para ja, todo 0 nosso sistema financeiro se tornou mundial, € uma nagao, os Estados Unidos, delem a moeda-base, 0 délar. Em outros termos, temos uma moeda internacional cuja emissdo é controlada por uma nagao, com todo o poder politico de intervengio sobre os mecanismos econémicos que isto significa espago mercantil também se mundializou. Mas, com a aceleragdo do ritmo de desenvolvimento tecnologico, 0 "leque” se abriu, ea concorréncia nio se di — é 0 rminimo que se pode dizer — sempre entre iguais. A guerra pela ocupagao do espago eco- némico mundial, travada pelas empresas multinacionais com 0 apoio dos seus respectivos governos, tem pouco a ver com o bucdlico padeiro de Adam Smith. ‘A remuneragio dos agentes econdmicos, elemento chave das construgdes tedricas tradicionais, também mudou profundamente. Hoje, a remuneragao varia mais em fungdo do sistema econémico do que do aporte produtivo, © mesmo médico, com uma capacidade cientifica determinada, ganhara 15 mil délares por més se estiver na drea da medicina de luxo de um pais rico ou de um pais pobre, 500 délares se estiver na esfera da medicina popular, seja estatal ou privada, 5 mil délates se for contratado pela Organizagiio Panamericana da Satide, ou 200 délares se estiver num programa de ‘cooperagio chinés, A evolugao das telecomunicagdes e, particularmente, da telemitica, permite que hoje qualquer estabelecimento financeiro jogue com alteragdes de pregos de matérias-primas ¢ com variagdes de taxas de cdmbio a0 nivel intemacional, levando em segundos a gigantescas transferéneias internacionais, das quais esto excluidos paises ou empresas que nfo podem financiar ramificagdes mundiais. proprio nivel de produgio em Areas-chave da economia leva a que duas ou trés ‘empresas as vezes cubram toda a necessidade de consumo de um pais. Como evitar 0 efeito monopolistico? Hoje, a prépria teoria do monopélio, ou a da concorréncia monopolistica, torna-se muito insuficiente na medida em que, ao efeito de controle de pregos ou de matéria-prima, se acrescenta 0 peso politico da grande empresa e a estratégia de aliangas intemacionais do grupo a que pertence. Sera preciso lembrar quiio profundamente foram afetadas todas as economias, ¢ particularmente as economias subdesenvolvidas, pela decisio politica dos norte- americanos em elevar a sua taxa de juros, ou pelas variagdes do prego do petréleo — com todos os seus efeitos sobre os custos de produgdo — nos titimos anos? Os parimetros mudaram, Hoje, em qualquer municipio, eruzam-se linhas de forgas dos processos econémicos intemacionais, levando, por exemplo, toda uma regido a se ver invadida pela cana-de-agucar, ou pela soja, ou pelo gado. As reorientagdes produtivas correspondem reorientagdes da estrutura social: 0 camponés policultor & substituido pelo béia-fria, ou simplesmente levado a emigrar, transtornando toda a ‘organizagtio econémica e social de uma regifo. Os limites da agao do mercado O problema no se resolve no ser contra ou a favor do mercado. E preciso entender que a propria discussio em tomo do mercado, a criagio das estatais, © peso da intervengao do Estado na area da politica de conjuntura — pregos, taxas de cdmbio, taxas de juros, saliios, politica fiscal e de crédito — ¢ 0 uso de mecanismos de planejamento resultam da insuficiéneia crescente do mercado como mecanismo regulador. Se o mercado preenchesse as suas fuungdes reguladoras tradicionais, nfo se estariam utilizando sistemas complementares cada vez mais complexos. A confianga exagerada num instrumento que deixou de ser adequado ou suficiente leva a perigosas regresses a0 laissez-faire, laissez-passer, do século pasado, sem atentar para o fato de que as condigdes de vida da "mio invisivel” hi tempo jé deixaram de cexistir para um conjunto de setores, A tendéncia nos Estados Unidos, nestes anos 80, foi, sem divida, caracterizada pela "desregulamentagiio", com relativa redugio dos controles do Estado, Mas essa redugdo nao levou, de forma alguma, ao reforgo dos mecanismos de mercado: "Uma ‘onda de fusdes ganhou os Estados Unidos, a Inglaterra ea Alemanha, desde que a destegula-mentagio foi encorajada pelos dirigentes destes paises. Nos Estados Unidos, onde a tradigdo antitruste & a mais forte, a divisto antitruste do departamento da justiga ¢ a comissio federal do comércio foram reduzidas a impoténcia, O valor de fusdes de ‘empresas passou de 12 bithdes de délares em 1975 para 83 bilhes em 1981 e 122 bilhdes om 1984.) Assim, a redugdo do espago de regulamentagao piblica ndo se transforma numa volta a0 pasado — concorréncia livre no mercado —, ¢ sim num reforgo de controle centralizado do mercado pelas grandes empresas. E caracteristico que a redugao do papel do Estado coincida com a eliminagao das leis antitruste que asseguravam a fluidez do mercado. “Fase F-Cinmont¢ Joa C ee 1985.92, igh Le Chb des Den Cent ces vrs de la concentraton — Le monde Diplomat, Hoje, no mundo capitalista, as vendas das 200 maiores empresas particulares sao da ‘ordem de 3.000 bilhdes de délares, representando 26% do produto mundial (sem os paises socialistas).” Em outros termos, quando nao é organizada pelo Estado, a economia é organizada pelos grandes grupos. O que néio existe mais é mercado que néio seja "organizado", em que prevalega simplesmente o prego ¢ a qualidade do produto. A acelerada reducdo do papel do mercado como regulador da economia nao se deve apenas — longe disso — a monopolizagio da economia pelos grandes grupos multinacionais. © conteiico tecnolégico cada vez mais complexo dos processos produtivos torna muito dificil a entrada de novas empresas, a ndo ser através de acordos de transferéncia de tecnologia. A elevada escala de producao exige a organizagio € orientagao do consumo através da publicidade e do crédito ao consumidor. Os elevadissimos investimentos de infiaestrutura exigem planejamento prévio do seu uso produtivo, ¢ nao é em fungdo dos altos ¢ baixos da oferta e procura da energia que se constroem ou se deixam de construir ‘gigantescas hidroelétricas ou centrais nucleares. Cerca de um tergo do comércio mundial se faz hoje simplesmente fora do mercado, com pregos e qualidade fixados administrativamente, através do comércio intra-empresarial, ligando matriz-filial ow filia-filial do mesmo grupo. As préprias opedes econémicas fundamentais de determi- nados paises — o Japao na frea eletrocletrénica, a Alemanha na area de maquina- ferramenta, a Suica na mecénica de precistio e quimica — resultam nao das flutuagdes do mercado ou de vantagens comparadas, ¢ sim de opgdes politicas corretas relativamente 4s tendéncias de longo prazo da economia mundial, e que levaram esses paises a realizarem 0s investimentos de pesquisa e desenvolvimento necessétios. Na realidade, a presenga do mercado como mecanismo regulador se redu e se altera em varios sentidos: primeiro, eria-se 0 que poderiamos chamar de "mercado administrado", em que assistimos no ao simples emperramento dos mecanismos de mercado pela monopolizagio, ¢ sim ao ordenamento planejado do espago econdmico dos diversos grupos; segundo, a presenga do mercado passa a se diferenciar profndamente segundo as freas econémicas, com forte predominncia nas éreas da pequena producdo de bens de consumo diario, e virtual desaparecimento nas areas de bens de capital ¢ investimento pesado ou infraestruturas econémicas, bem como nas areas-chave da economia, Enfim, é preciso notar o recuo generalizado e a faléncia do mercado como elemento regulador ¢ racionalizador nas dreas da infraestrutura social, particularmente 2 Fuse F. Clanmoat Jo Cavanagh op. da satide, educagdo e habitagio, onde se comprovou ser no s6 inoperante, como nocivo e fator de atraso, © mereado, como mecanismo regulador fundamental, encarregado de assegurar que milhdes de atividades econémicas que desempenhamos de forma independente levem a constituigao de sistemas econémicos coerentes, jd no desempenha a sua funcdo, J4 no corresponde, simplesmente, ao nivel de desenvolvimento das nossas forcas produtivas fato de deixar de ser o elemento regulador fundamental nao significa, entretanto, que deixe de ser indispensavel. E 0 que se constatou nas economias planificadas, Evolucao da planificagao centralizada Ha uma forte tendéncia para considerar os paises que aplicam o planejamento central da economia um conjunto rigido de sistemas burocréticos. Esta visio resulta, simplesmente, da nossa ignordncia relativamente ao que se passa nos paises socialistas, Se atentarmos para a forma como foi organizada a construgio do oleaduto do Alasca, envolvendo centenas de empresas numa atividade plurianual, ¢ terminando nao s6 no dia como na hora prevista, € 0 projeto de gasoduto transiberiano nia Unido Sovie tica, veremos que as técnicas de planejamento utilizadas sdo rigorosamente semelhantes. Sabe-se de antemao os montantes de energia transportada, as empresas que a utilizarao, 6 investimentos complementares que serio realizados. Nenhum pais se langa em investimentos deste montante sem assegurar que todos os elos da cadeia técnica estejam previstos. E ninguém espera milagres por parte da mao invisivel. O planejamento de longo prazo assumiu um papel decisivo, ainda que discreto, na organizagio dos equilibrios intersetoriais do sistema capitalista, através das grandes empresas, Era natural que as economias socialistas, que surgiram em paises pobres e subdesenvolvidos e que se concentraram inicialmente nas grandes obras de infra- estrutura que o desenvolvimento modemo exige, tivessem adotado, na primeira fase, formas muito centralizadas de planificagao econémica. Isto é exigido tanto pelo tipo de investimento, que tem impacto ao nivel nacional ¢ tem de obedecer a uma visio 5 Nee etd, aera do menopio & amplanets insists, os nesimentos complements em cai, ead pola ‘soln sue eapresetads por Hinshman come mecansmoexponinen de eur cconimise,constisem nsec de ‘resent enero da grand enema rear snlersclrial save do planejamento epee ons para ‘lsc enpesrl consi ais clea taf do mead que ag humane de “eed ‘Natio global, como pelo grande esforgo de financiamento exigido: num pais pobre nenhuma empresa regional, e menos ainda privada, assumiria investimentos deste porte Imaginar que tudo se planifica desta forma nos paises socialistas é to pouco realista como imaginar que nos Estados Unidos tudo se organiza como 0 oleoduto do Alasca. A planificagdio socialista € um sistema de regulagéio profimdamente diferenciado segundo os setores, © 0 préprio sistema evolui profundamente, acompanhando as etapas de desenvolvimento destes paises. Em termos muito gerais, podemos dizer que a planificagao socialista atravessou um periodo muito centralizado na fase das grandes obras, particularmente voltadas para as infraestruturas energéticas e de transportes, siderurgia, metalurgia, quimica pesada e outras indistrias de base. Na fase de constituigdo de setores intermediarios da indistria ¢ da agricultura criaram-se os complexos industriais ¢ agroindustriais, descentralizados, e hoje o enriquecimento do tecido econdmico, com milhdes de empresas voltadas para o consumo individual, levou a uma regulagdo que se realiza por contratos interempresariais, A empresa que no assegura qualidade ¢ prego simplesmente nao teré contratos, € 0 Estado intervém apenas na coeréncia do conjunto. © resultado hoje é um conjunto diversificado de sistemas de regulacdo, que evolui rapidamente. As transformagdes que ocorrem na Unitio Soviética desde a década de 60 sto, neste sentido, muito earacteristicas, Ha, seguramente, tanta consciéneia nos paises socialistas de que um sistema centralizado de decisto é insuficiente, sejam quais forem as técnicas utilizadas, como ha consciéncia, nos paises capitalistas, de que o mercado constitui hoje um instrumento parcial e muito insuficiente de alocagio racional de recursos. Esta € a problemitica que enffentamos, ¢ no hi davida de que os adeptos da estatizagaio generalizada e da planificagdo central, como os adeptos da total liberdade de mercado e da privatizagao generalizada, esto simplesmente fora da realidade Planejamento e descentralizacao Uma das transformagdes fundamentais do planejamento & a descentralizagdo. Esta implica que as decisbes sobre a utilizago de recursos sociais nao sejam tomadas de forma centralizada por um grupo de técnicos, e sim que sejam tomadas a0 nivel local ou pelas préprias pessoas que deverdo gerir os recursos, Ha uma certa confusto, criada particularmente pelo Banco Mundial, que identifica descentralizagio ou privatizacio. E importante salientar que a relagio de propriedade nem sempre é essencial para o tipo de mecanismo de gestio econdmica. Muitas empresas estatais regem-se perfeitamente por mecanismos de mercado, tanto nos paises capitalistas como nos socialistas, ¢ um plano dispe de muitos mecanismos para orientar a producdo de produtores privados O fato de empresas pertencerem ao Estado no significa de modo algum que tudo pertence a uma entidade central, da mesma forma ‘que no se pode dizer que as empresas nos paises capitalistas pertencem todas a uma entidade global chamada "o capital”, Ao analisarmos a estrutura do ensino privado ¢ do ensino puiblico no Brasil, constatamos que o ensino privado é bastante mais centralizado: concentra-se na prestagdo de servigos as camadas ricas busca as regides mais ricas do pais, com muito maior mimero de alunos por professor do que o ensino puiblico. Constatamos igualmente que um dos maiores problemas gerados pela centralizagio, que é a formacdo da chamada macrocefalia urbana — gigantescos centros urbanos que centralizam as atividades econémicas do pais —, enquanto imensas regides se veem semiabandonadas, constitui uma caracteristica da economia privada, ¢ nfo das economias que utilizam 0 planejamento como forma dominante de regulagdio, A propriedade privada ou social da produgao tem, sem divida, influéncia decisiva em termos de para quem se faz o desenvolvimento: em proveito de elites ou da populagdo em geral. Mas niio hé nada na propriedade social que predetermine a centralizagio, ou na propriedade privada que leve a descentralizagdo. O que se apresenta como tendéncia geral, pelo contririo, ¢ que o sistema capitalista avanga para uma crescente centralizagdo, enquanto o sistema planificado evolui para a descentralizagao. Maior papel que as relagdes de propriedade jogam hoje as relagdes técnicas de produgao. E interessante constatar que a produgdo de cereais, que se presta bem para a mecanizagdo ¢ o gigantismo das unidades de produclo, se realiza nos Estados Unidos ¢ na Unido Soviética em unidades bastante semelhantes. Trata-se de empresas agricolas muito mais do que de "agricultura familiar", com engenheiros, muito apoio ci ntifico © vinculagdo direta com a agroinddstria. Entretanto, tanto nos paises capitalistas como nos socialistas, a agricultura intensiva que exige muitos cuidados, como a horticultura, se realiza dominantemente em pequenas unidades privadas de produgio, Os cinturdes verdes das grandes cidades so constituidos por lotes 10 individuais na Alemanha Federal e na Alemanha Oriental, tia Pol6nia ou na Unido Soviética Gigantescos projetos, como Tiaipu, estio na Srbita estatal, tanto nos paises socialistas como nos paises capitalistas, simplesmente porque as relagdes técnicas das infra-estruturas energéticas no condizem com iniciativas descentralizadas de érbita social ou privada. ‘Uma tentativa que se tomou um anti-exemplo histérico foi a de descentralizar a produedo siderirgica na China, no tempo do "grande salto”. Ha atividades que nao se descentralizam, pelas proprias relagdes técnicas que presidem a sua execugao."* Na tealidade, nem todos os setores podem ser "regulados” pelos mesmos mecanismos, ¢ 4 medida que a tecnologia tora cada vez mais diferenciados os subsistemas técnicos de produgao, reduz-se o espago das solugdes universais, Enfrentamos hoje uma hierarquizagao das atividades econémicas, e esta hietarquizagio exige a articulagdo de formas diversificadas de regulag’ Articulago dos mecanismos de regulacao Podemos dizer que hoje a regulagao das atividades econémicas se dé através de ‘quatro mecanismos: 0 mercado, o planejamento, a politica de conjuntura do Estado a participagaio comunitaria, Segundo o sistema adotado, capitalista ou socialista, o peso dado a cada um dos mecanismos sera diferente. Mas sera diferente também segundo o nivel de desenvolvimento atingido pelo pais, ¢ os diferentes setores da economia serio mais ‘ou menos regulados por cada um destes mecanismos. Por que “regulagdo"? Porque & um conceito que permite integrar os diversos instrumentos de que dispomos — mercado, politica de conjuntura do Estado, planejamento e participagio comuni ia — na fung2o que procuram desempenhar: assegurar a alocagio racional de recursos e adequar 0 esforgo econdmico as necessidades sociais. E para definir estes mecanismos, os conceitos de "mercado" © "plano" stio demasiado estreitos. O conceito de "regulagio" desenvolvido inicialmente pelos economistas franceses nos parece itil, j que marca bem esta nossa necessidade ampla de "regular" o funcionamento da economia, “Esa lagen ao lo estes, A evolu teenolipca ect stl ebvindoposiiidads de produsiedescenraizada em ‘umeronus ress, como a etree, hielciedade, ck as outa, Wn Ao propormos o estudo das formas como os diversos mecanismos se articulam, pretendemos reduzir um pouco a visto excessivamente ideolégica de cada um deles ‘© "bom", para alguns, seria 0 mercado, sendo os outros mecanismos excreseéncias nocivas que "atrapalham" a mao invisivel; para outros, a solugao & 0 Estado ¢ os mecanismos centrais de controle, ficando 0 mercado visto como um elemento de caos ‘ou de desorganizacao; o desenvolvimento comunitério para outros ainda, na linha do small is beautiful, onde o planejamento local e participative se apresenta como "solugdo" para conter a desorganizacdo econémica e politica crescente; 0 planejamento central enfim, visto como eixo fundamental de racionalizagao da atividade econémica, com muitas ilusdes sobre o seu potencial técnico. £ tempo de pensarmos na articulagdo racional desses e de outros eventuais mecanismos de regulagdo, deixando a parte o debate sobre qual seria globalmente "o melhor". E claro que aqui, ao entrarmos no estudo do planejamento municipal, interessa-nos particularmente a participag3o comunitiria, seja ela designada como auto-plangjamento, planejamento local, espaco local, planejamento descentralizado ‘ou outro terme. E preciso entender que um elemento essencial ao planejamento municipal é justamente a definigdo dos limites da sua intervengdo, frente aos outros mecanismos de regulagao Esses mecanismos so, na nossa concepeao, fundamentalmente complementares. Complementares, mas cada um no seu lugar. Conhecemos demais os desastres que 0 planejamento central representa ao tentar meter-se em producdo de séries curtas de ‘camisas ou outros bens de consumo popular, deixar aos mecanismos de mercado grandes investimentos de infraestruturas econémicas, montar gigantes burocriticos centralizados — privados ow estatais — para resolver problemas de satide, ou tentar substituir atividades que sé so produtivas em grande escala, por iniciativas comunitirias. Entender planejamento municipal é, portanto, ter bem presente o limite desta interveng2o ¢ entender sua relagdo com outros niveis de regulagao. © mercado, ames de tudo, esti hoje quase desaparecido como mecanismo regulador nas areas sociais, da educagiio, da saiide, bem como da cultura. Nas areas de investimentos pesados, tanto nas infiaestruturas econdmicas como na indistria pesada, deixou de ser um elemento regulador significative, ¢ podemos utilizar 0 conceito de "mercado organizado” ou "mercado administrado”. Nas areas de produgio de bens de consumo bisicos continua muito significativo. 12 A politica de conjuntura do Estado, também chamada politica econdmica de curto prazo, assegura intervengdo reguladora essencialmente sobre a area financeira: politica de pregos, politica salarial, politica fiscal, politica cambial, politica de crédito e politica monetiria. Hoje este instrumento passa por imensas dificuldades para racionalizar a sua intervengo, na medida em que o sistema financeito nos paises capitalistas se internacionalizou, reduzindo de maneira muito significativa 0 seu alcance ao nivel nacional, sobretudo nos paises dependentes. 0 planejamento central deve articular os esforgos de crescimento da economia para assegurar a harmonia do conjunto. Em termos priticos, um pais utiliza planejamento para definir a sua voeagdo geoeconémica, as estratégias de desenvolvimento de longo prazo com seus componentes setoriais (agricultura, indistria, infraestruturas econdmicas ¢ sociais), os seus planos de investimento (os famosos planos quinquenais ou quadrienais), ¢ finalmente planos anuais de produgao, cornos seus balangos financeiros e técnico-materi s A. participagdo comunitéria @ 0 planejamento descentralizadopermitem assegurar a racionalidade de um conjunto de atividades econdmicas que estio diretamente ligadas ao espago de vida do habitante: 0 bairro e sua urbanizagaio, a escola, as inffaestruturas culturais e de lazer, a savide, a pequena produgdo local, servigos pessoais, setores que nem a grande empresa privada nem a intervengaio estatal jamais conseguiram atender adequadamente, ja que ninguém consegue melhor idemtificar necessidades e racionalizar 0 uso correspondente dos recursos que a comunidade interessada, E ébvio que a prioridade dada a cada um desses mecanismos responde a interesses politicos, ¢ nao s6 A racionalidade "técnica": as multinacionais ¢ as grandes liberdade do mercado", pela simples razio de dominarem 0 mercado: os grupos privados que empresas dominantes querem que tudo seja realizado segundo a dominam politicamente 0 Estado defendem a extensio da sua politica econémica, que se materializa em subsidios e outras vantagens para eles, enquanto os grupos que nao tém influéncia sobre a decisio estatal querem um Estado mais "neutro", o planejamento é defendido por quem quer adequar o desenvolvimento e a alocagao de recursos as necessidades piblicas, mas no caso de um Estado "privatizado" como é 0 Estado brasileiro, o planejamento transformou-se em simples instrumento de acesso bolsa de recursos piblicos; finalmente, a extensio da participagtio comunitiria e do planejamento descentralizado é defendida por quem quer democratizar a sociedade, assegurando maiores beneficios para a base da populagio brasileira, 13 Assim, a articulagdo dos diversos mecanismos obedece frequentemente mais a interesses politicos do que a escolhas de adequagio técnica, Um exemplo: os microprojetos financiados pelo salério educagdo sobem uma longa escada da escola para a Secretaria da Educacao do municipio, a Secretaria da Educagao do Estado, 0 Ministério em Brasilia, refazendo 0 mesmo caminho apés varias avaliagdes, num prazo que varia entre seis ¢ oito meses. Trata-se de projetos de aumento de salas de aula ou conserto de um telhado de escola, que nunca deveriam sair das mios das tinicas pessoas que podem apreciar a sua utilidade: a propria escola, eventualmente a comissio de pais ou a Secretaria municipal. Mas é Brasilia que "concede" o recurso, em detrimento da racionalidade da sua utilizagao. Quando falamos em planejamento municipal estamos, portanto, colocando um problema geral e importante de racionalizagio das formas de gestio da nossa economia ¢, particularmente, o problema da hierarquizagdo das atividades e das, decisis. Problema técnico € politico ao mesmo tempo, € que constitui um elemento fundamental da democratizago da nossa sociedade 14 Aimportancia da descentralizagao Agravidade da situacao Por tris do problema da descentralizagdo esti o problema basico da nossa sobrevivéneia econdmica. Muitos nfo tém visio da gravidade da situagio que cenfrentamos neste fim de século. Sem diivida, os paises capitalistas desenvolvidos e 0s paises socialistas conseguiram grandes avangos. Mas 0 que ocorre com 0 mundo subdesenvolvido, o Terceiro Mundo ao qual pertencemos? Alguns dados precisam ser lembrados. Em 1987 somos 5 000 milhdes de habitantes no planeta. Cerca de 1 200 milhdes vivem em paises desenvolvidos. © restante, 3 800 milhes, vive em paises pobres. Sao trés quartos da populagiio mundial. A populagdo dos paises ricos aumenta atualmente cerca de 7 milhdes de habitantes por ano. A dos paises pobres, 77 milhdes. O grande problema que enfrentamos, neste fim de século, é 0 problema da pobreza Esta pobreza se manifesta de modo particular nos paises capitalistas subdesenvolvidos, que contam em 1987 com cerca de 2 600 milhdes de habitantes, ‘com um ritmo de aumento da ordem de 50 milhies por ano. Uma anilise fria deste mundo subdesenvolvido revela cerea de 800 milhdes de pessoas vivendo em estado de pobreza absoluta, um nimero similar de subnutridos, centre 10 e 12 milhdes de eriangas com menos de cinco anos que morrem de fome por ano, cerca de 800 milhdes de analfabetos, cifta que aumenta cerca de 7 milhdes por ano, De forma geral, um pouco mais de dois bilhes de pessoas vivem em estado de miséria, Todas estas ciffas sfo crescentes ¢ se encontram nos relatérios nada extremistas da FAO, UNICEF, Banco Mundial e outros. AS raizes desta situagdo catastréfica stio mais pol jcas do que econdmicas. O mundo produz atualmente cerca de 2.500 délares de bens e servigos por pessoa e por ano, © que significa que, no caso de uma reparti¢ao um pouco mais justa, haveria cespaco para uma vida digna e normal para toda a populagao do planeta. No préprio Brasil, onde a produgao anual por habitante é da ordem de 1.800 d6lares, uma repartigao mais justa permitiria assegurar um nivel de vida confortavel 15 para a totalidade da populagdo. A realidade € que a metade do produto social & consumida por 10% das familias mais ricas do pais. Apesar de sermos um dos paises mais bem dotados para a agricultura do mundo, temos cerea de 80 milhdes de subnutridos. Somente o Haiti, a Bolivia e Honduras tém uma mortalidade infantil mais elevada que a nossa, Cerea de 60% da nossa mio-de-obra sio analfabetos ou semiletrados. O essencial do aparelho produtivo industrial esta concentrado em trés ‘ou quatro cidades, 0 éxodo rural desestrutura a populagio camponesa ¢ transforma as cidades em aglomerados cada vez menos controkiveis. Desequilibrios e formas de regulacao Por que esses desequilibrios tio graves? Se atentarmos para a forma de regulagdo econémica e social dos paises capitalistas desenvolvidos, constatamos que constitui um sistema relativamente sofisticado. Por uma parte, apesar da existéncia de grandes empresas, no conjunto a propria amplitude das atividades econémicas assegura uma relativa fluidez dos mecanismos de mercado. Nas ‘reas de infraestrutura, de bens de capital e de eixos de desenvolvimento tecnologico, ‘0 mercado exerce fungao reguladora limitada, mas a planificagdo empresarial de médio € longo prazo permite uma coeréncia bastante elevada. A capacidade de intervengaio reguladora do Estado, através de politica de crédito, de pregos, de cdmbio, ete., & muito desenvolvida, e permite um bom controle de conjuntura. Finalmente, a comunidade ou 0 municipio constitui uma unidade de decisio muito respeitada, e sabe-se. inclusive, que & Os paises socialistas esto num processo de diversificagdo dos instrumentos de regulagdo. das atividades econémicas, conforme vimos no primeiro capitulo. O planejamento econdmico desempenha evidentemente 0 papel central, assegurando, ‘em particular, a coeréncia inter-setorial das grandes decisdes que tém impacto de longo prazo sobre a economia do pais. E impressionante ver capitais no congestionadas, > Eiwico pense comet, que ets mess pros quando istalas cmp dps fom essa dos wocemo inion in eter ea. 16 estrutura industrial descentralizada, servigos sociais acessiveis a toda a populagio, ‘qualquer que seja a parte do terrtério ou grupo social. O lado negativo era — e ainda & ‘em boa parte — a centralizagdo das decisdes, com a burocratizagiio das pequenas atividades de produgdo e de servigos, como padarias, pequenas fibricas de confec¢ao, etc, Isso foi em grande parte remediado pela descentralizacao, 0 recurso aos mecanismos cde mercado para estes setores, a generalizacio do sistema de relagdes contratuais entre ‘empresas, No caso de alimentos basicos ¢ de medicamentos essenciais, utiliza-se 0 mercado subsidiado, segundo a saudivel concepgdo de que algumas coisas nao podem faltar a ninguém. Finalmente, a comunidade — bairro ou municipio — desempenha hoje um papel regulador intenso em todas as decisdes que exigem conhecimento da situagao local e controle dos interessados. Regulacio e subdesenvolvimento Os paises capitalistas subdesenvolvidos estio em situagdo muito particular. Nao dispdem nem dos mecanismos de planificagio dos paises socialistas, nem dos mecanismos de mercado e de controle social dos paises capitalistas desenvolvidos, ‘enquanto a politica de conjuntura do Estado se vé atropelada por interesses privados nacionais e transnacionais que puxam para lados diferentes. Um problema que esté no centro do drama ¢ do caos econdmico em que vivem ‘os paises subdesenvolvidos capitalistas, com as suas inflagdes, fome, ditaduras militares, ete., é 0 desta insuficiéncia de mecanismos efetivos de regulacio da economia. O mercado, como regulador, se vé profindamente limitado pela monopolizacio muito elevada de uma série de setores-chave da economia, particularmente dos servigos econémicos. O mercado no € descartado, mas os seus mecanismos so deslocados em fungdo dos interesses dos grandes grupos. Os produtores de tomate, por exemple, constituem uma faixa de pequenos e médios agricultores com atividades reguladas por mecanismos de mercado competindo entre si, 0 que reduz 0 prego de venda do produto, Mas a compra ¢ a transformagao esté na mao de alguns grupos, como a CICA, onde domina o sistema de mercado administrado. E 0 caso igualmente dos produtores de fumo, relativamente a um gigante como a Souza Cruz. As grandes ‘empresas transformadoras de tabaco defendem o livre mercado, mas para os seus fornecedores. A propria transformagto é altamente monopolizada. 17 © mercado é assim deslocado para dreas bem definidas da atividade econdmica Globalmente, niio tem forca para assegurar a coeréneia do conjunto das atividades ‘econdmicas planejamento central, como instrumento de regulagdo a0 nivel do Estado, praticamente nao existe. Ainda que quase todos os paises subdesenvolvidos disponham de "planos", a atividade econdmica nao obedece aos planos nem na érea privada nem na rea estatal, O planejamento, na realidade, é visto com desconfianga, inclusive com profundo preconceito ideolégico quando tenta ser eficiente. Tem mais fungio de promogao politica do governo que apresenta o plano, do que de ‘ordenamento das atividades econémieas. A participagdio comunitiria e 0 espago municipal foram, em geral, esmagados tanto pela centralizagao financeira, como pela centralizacao administrativa. A politica econémica de curto prazo se vé diretamente afetada pelo fato de o Estado ser dependente da economia capitalista mundial. Dominam as opgdes vinculadas & balanga de pagamentos, a divida, a0 financiamento externo, as taxas de cambio, as remessas de lucros, ete, As politicas de impacto interno, como as de pregos € de salirios, sio determinadas em fungaio da necessidade de atrair financiamentos externos, de satisfazer as empresas transnacionais instaladas no pais, de manter a ‘competitividade-dos produtos exportados. As decisdes historicas de politica econdmica do pats, como a Instrugdo 113 da SUMOC, sto relativas a como o pais se insere na economia dominante internacional, e nilo especificamente de estabelecimento de equilibrios internos. Assim, os quatro principais mecanismos de regulagao econémica sto deficientes ‘ou nao existem, ou ainda stio submetidos a interesses que coincidem apenas parcialmente com os interesses da populagao. Na auséncia de mecanismos internos suficientemente fortes, predomina como mecanismo regulador a forga das empresas transnacionais, que definem parametros de ‘comportamento econémico para o pais, em fungaio de um processo de acumulagao cuja légica € internacional. E caracteristico que um pais como o Brasil, que tinha todas as condigdes para uma opedo ferrovidria em termos de transportes, € de hidroeletricidade em termos de energia, tenha optado pelo transporte rodoviiirio, 0 mais caro, € pelo petréleo, nfo renovavel, em fungaio das necessidades de desenvolvimento do grupo de empresas transnacionais do automével nos anos 50. A regulagdo através das empresas transnacionais no deve ser subestimada e constitui, na realidade, um sistema regulador especifico: planejamento do 18 desenvolvimento de longo prazo, organizagao da influéncia politica, sistema de apoios internacionais, adequagtio da politica econémica do Estado as suas necessidades, definigao de linhas de desenvolvimento tecnologico de longo prazo. Tudo isso tem hoje pouco a ver com a "mao invisivel” Nenhum pais fica com uma economia sem regulagto. O que caracteriza a ‘economia subdesenvolvida ¢ o fato de a regulagao se dar dominantemente através de interesses externos organizados, ainda que haja ampla faixa de coincidéncia de interesses entre as orientagdes das transnacionais e as elites locais. Uma industrializagao centrada no automével particular pode nao responder as necessidades basicas da populagdo, mas corresponde aos anseios de conforto das camadas mais ricas, Isto pode ser dito de outra forma: a regulagdo através do mecanismo dominante constituido pelas empresas transnacionais responde a apenas uma parte dos anseios em termos de regulagio da nacionais. E problema-chave que se coloca para 0 p: sua economia, em funcao das necessidades da populagdo, € 0 de recuperagao da autoridade sobre os mecanismos internos da regulaglo, A estatizagio, a nacionalizagao, ou ainda a utilizagdo do planejamento central nao trardo respostas adequadas enquanto forem utilizadas no quadro de um proceso de acumulagao mundial.® 0 reforgo da economia local significa portanto muito mais do que um small is beautiful. Significa a recuperagdo da autoridade da populagdo sobre o seu préprio desenvolvimento, numa das suas dimensdes essenciais E importante salientar que nao se transforma a economia apenas agindo no nivel local, do bairro ou do municipio. © desenvolvimento local encontra o seu espago ao transformar outros mecanismos de regulagao, de forma que o apoiem: planejamento central, assegurando as infraestruturas; politica econmica do Estado, assegurando os meios financeiros; 0 mercado, assegurando um sistema organizado de espago ‘econémico para a produgao local Descentralizagdo, participagao e planejamento significam, em iltima instancia, © ‘gradual reencontro da economia com as necessidades gerais da populagao. "Nose waa evidetement, de sonar com avangua A interdependéni ostiv, mas quando os termes dorelsionamet ‘so defied foe pcs do ads A Faguern dos sans ino de roulgto iuta a eign de ‘oie mac mpeinnimtnio o d ren exer © bls a, a ‘unl O Virtua rcaso das plicas de "juda ao desenvolvimento” ests evidentomentsrlaionado com eta touliienca ‘Semosanismos otros de repay, 19 0 potencial da descentralizacao potencial da descentralizagio e, particularmente, do planejamento municipal, se manifesta em varias dimensdes do desenvolvimento: econémica, financeira, tecnolégica, administrativa e, sobretudo, politica No plano econémico ha uma racionalidade evidente em se assegurar que os proprios beneficidrios das iniciativas econémicas garantam o seu controle. & quem esti construindo uma casa que sabe em que momento estaré precisando de telha, cimento, madeira, mio-de-obra, e em que quantidade, Nao ha computador ou modelo de avaliagdo de projetos capaz de substituir 0 conhecimento da realidade, ou a motivacao da populacZo local, e assegurar que as realizagdes correspondam aos seus interesses. Além disso, a decisto local se di com 0 conhecimento dos fatores de produciio existentes. Uma grande empresa produtora de lcool estar interessada na disponibilidade de mio-de-obra e no seu baixo custo, ¢ assim chega a prever a viabilidade da instalagao de uma usina, Ja 0 municipio levard em conta 0 fato de que a monocultura leva a um emprego intensivo, mas apenas alguns meses por ano, 0 que significa que no conjunto a producao da forga de trabalho do municipio sera menor, € a comunidade ficari mais pobre. Ou ainda, poderi promover atividades complementares, como culturas de ciclo curto, para assegurar o pleno emprego da miio-de-obra durante 0 ano todo. Este ordenamento das atividades econémicas, em fumgao dos fatores subutilizados, deve ser realizado por quem tem uma visio do conjunto dos interesses da comunidade, dos recursos disponiveis, do nivel de utilizagao que seria socialmente desejavel, Ao lado do enfoque de subutilizagao de recursos, hi 0 enfoque das prioridades: ‘as empresas que se instalam buscam a sua logica de lucro, e no levam em conta 0 que o municipio ou a comunidade mais necessitam numa escala local de prioridades, H& municipios com situagdo dramética em termos de alimentagio, outros em termos de acesso a agua, outros ainda na dea de saiide. Quem pode assegurar que 0 conjunto das iniciativas que se tomario a nivel de cada individuo que busca o seu lucto corresponderi efetivamente ao que globalmente se deseja para o municipio? E, obviamente, o proprio municipio, organizado de forma participativa. 20 No plano financeiro, trata-se de assegurar que o excedente criado ao nivel do municipio fique no municipio, e que seja racionalmente wtilizado. A tendéncia natural das forgas do mercado & que os recursos financeiros se dirijam para onde tém maiores oportunidades de aplicacao Iucrativa. E isso representa em geral a sua orientagao para municipios mais desenvolvidos, onde as infraestruturas existentes asseguram economias externas — mio-de-obra formada, redes de transporte, sistemas de estocagem ¢ comercializacao, etc., além da existéncia de um mercado maior. resultado € que municipios mais fracos financiam os mais fortes, mum processo de polarizagao que leva ao éxodo rural, a ruptura cidade/campo, ¢ a tantas ‘outras manifestagdes do subdesenvolvimento. Quando um municipio se "dissolve" no espago econémico nacional, deixando que agéncias financeiras de Sao Paulo — que na pritica sio as que dominam — decidam o que ser feito com recursos financeiros de cada localidade, elevam-se os cursos burocraticos, j4 que cada decisio tem de passar pelas matrizes distantes e, sobretudo, a utilizagao de recursos se realiza em funedo dos grandes grupos com ‘quem o banco tem interesses majorititios e de longo prazo, coincidam ou no com os interesses imediatos da populagao local. Outro campo de grande importincia é 0 da tecnologia. Hoje em dia, as opedes tecnolégicas tomaram-se essenciais em termos de escolha de estratégia de dcsenvolvimenio. f ébvio que, quindo a decisio é tomnda por critérios sctorinis, predomina a solugao "padrio” para todas as realidades, quer a ago seja decidida pelo Estado, quer por empresas privadas, A SABESP implanta 0 mesmo "pacote" tecnolégico em municipios grandes ou pequenos, porque desenvolve o seu plano de racionalidade global — economia pela padronizacdo de equipamento, por exemplo — para todo 0 Estado, ¢ busca facilidade de gestiio em termos globais. Ao nivel de um municipio pequeno ou médio, é natural que as solugdes deixem simplesmente de levar em conta as condigdes particulares, elevando os custos. Ao nivel local pode aparecer como sendo economicamente mais racional a construgdo de uma pequena barragem hidroelétrica, com a constitui¢ao de um sistema local de irrigacdo de terras subutilizadas, do que a soluc2o regional que se preocupa apenas com a redugao do custo unitério de produgdo da unidade de energia ou com a possibilidade de passar os contratos para grandes empreiteiras nacionais. conjunto de tecnologias alternativas, tecnologias "doces" com suas diversas denominagdes, nao sto automaticamente mais rentaveis do que as solugdes "grandes" € de tecnologia mais sofisticada, A vantagem & que stio mais maledveis, mais 2 lexiveis, e podem se adaptar melhor a especificidades locais. Por isso dependem vitalmente do reforeo do espago local de decisio econémica Um produtor de equipamento grande e sofisticado, que trabalha para todo 0 pais, busca as solugdes "médias" que permitirio aplicagao mais generalizada. As préprias vinculagdes internacionais levam a que estas solugdes sejam as vezes as mais exportiveis. Como fica, frente a esse tipo de solugio técnica, um municipio que tem uma camada significativa de produtores rurais ¢ industriais de pequena ¢ média escala? A ampla gama de tecnologias altemativas hoje existentes constitui um recurso suplementar importante para a dinamizagao do desenvolvimento, mas necessita de um espago de decistio econémica descentralizada e participativa. Tecnologia altemnativa implantada sob forma de "pacote” é t20 pouco produtiva quanto a tecnologia pesada, Outra dimensdo do planejamento municipal é a racionalidade administrativa que cle permite. Antes de tudo, 0 municipio, a comunidade ou um bairro constituem espagos socialmente identificados, ou espagos participativos. Nas diversas areas profissionais sabe-se quem € quem, quem é competente e quem nao é, hd uma dimensio geral nas coisas que permite que sejam compreendidas e dominadas pela propria comunidade. Quem de nds ja niio sentiu a sua impoténcia como individu da grande empresa ‘que opera em nivel nacional, ou da grande maquina administrativa estatal? A empresa expulsa a mao-de-obra, elimina a base alimentar local, polui os rios, ¢ 0 individuo se sente como espectador de uma dimenso que Ihe escapa. Trata-se, sem divida, ¢ no aspecto mais rigoroso, da perda de uma parcela da cidadania, Uma decisto federal ou estadual que leva ao alagamento de uma regio, ou ‘a sua invastio pela cana — como resultado de subvencdes do Estado — & uma decisio de "racionalidade" nacional, buscando reforgar a producao de energia, Nao ha possibilidade de uma administragao racional dos recursos enquanto no houver capacidade por parte do municipio, da comunidade, de negociar o ajuste da racionalidade nacional com a racionalidade local. Isto é tio pouco subversivo que ‘corte no apenas nos paises socialistas, como na maioria dos paises capitalistas desenvolvidos. Na realidade, € preciso recuperar a racionalidade da decisio local. Nao ha computador que substitua conhecimento direto que um bom administrador tem do seu campo de trabalho. Os complicados dossiés de pedidos de financiamento que viajam de qualquer municipio até So Paulo para serem examinados por economistas 22 treinados em célculo de taxas de retorno, nunca atingitam 0 nivel de eficiéncia de um bom gerente que sabe com quem trabalha e nas miios de quem esta pondo o dinheiro. No sistema centralizado em que vivemos hi um gigantesco custo buroeritico de seguimento de milhdes de pequenas decisdes locais. De certa forma, os custos administrativos das grandes empresas refletem 0 mesmo problema que viviam hi vvinte anos as burocracias socialistas, quando toda decisto local tinha que passar por instineias cemtrais. E importante compreender que 0 problema da centralizagdio excessiva é no Brasil, tanto um problema estatal como empresarial. A empresa privada & uma érea produtiva, mas sobretudo de servigos como as grandes redes bancérias, nfo deixa nada a desejai as burocracias piblicas. Em outros termos, a divisdo hoje passa em parle apenas entre o setor privado ¢ 0 setor estatal. Mais importante se tornou a divisdo ante o aparelho central, incluindo os grandes monopdlios nacionais, as multinacionais e as estatais, com o apoio politico centralizado a0 nivel federal por um lado; e 0 conjunto das iniciativas locais ‘comunitirias, privadas ou nio, que se moldam as necessidades reais do espago de sua implantagao. ica essencial. O Enfim, o problema da descentralizagio tem uma dimensio polit aumento do espago de decisio local significa um aumento de decisdes em que os individuos da comunidade sabem de que se trata, quem é responsivel, quais sio os interesses em jogo, Para o individuo nfo interessa apenas que as iniciativas econémicas tomadas correspondam as suas necessidades. O individuo encontra na construgdio. das condigdes da sua vida e na organizagio do seu cotidiano uma dimensio importante da sua existéncia, Em outros termos, 0 cidadao tem o direito de contribuir para a orientagao do seu desenvolvimento. De certa forma, a descentralizagio hoje representa a devolugio do espago de deciso a0 cidadao, que antigamente ele tinha ao ser proprietirio da sua unidade agricola, do seu posto de artesio, Hoje, esta participagdo é necessariamente muito Jimitada, tanto na grande empresa privada como na administracdo estatal centralizada, A produgiio se faz em grande escala, as decisdes sto técnicas, em geral sequer compreendidas pelo cidadao. Mas a to necesséria dimensio participativa esti sendo recuperada através do espago de residéncia e de convivio que representam 0 municipio, o bairro, a ‘comunidade, 23 Devolver uma dimensio significativa decisto local implica devolver ao cidad3o um espago onde ele pode moldar o mundo no qual vive. Recuperar 0 espago de decistio local significa recuperar a dimensto politica da economia, ¢ com isto a dimensio politica do cidadao. O que pode significar uma cidadania que nao intervém sobre a criagao de suas condigdes de vida. 24 Os recursos disponiveis Planejar € promover de maneira ordenada o desenvolvimento dos recursos existentes. E o planejamento municipal & particularmente importante, pois alm da necessidade geral de planejamento — por razdes que jd vimos do enfraquecimento do mercado como mecanismo regulador — é preciso levar em conta que 0 municipio passivo frente as grandes forgas econémicas nacionais se vé simplesmente engolido por dinimicas que the escapam. Ninguém vai pedir desculpas a um municipio que se deixou invadir por uma monocultura qualquer, permit que as terras fossem esgotadas, 0 agricultor transformado em trabalhador temporirio, ficando 0 municipio empobrecido e desarticulado; perguntardo apenas por que ele niio teve capacidade de defender os seus interesses. Defender os interesses € promover o desenvolvimento municipal, numa visio de longo prazo, entendendo que é o lugar de ida dos filhos, dos netos, a quem é preciso deixar algo melhor: é este problema que enfrentamos. E ébvio, entretanto, que se trata de dinamizar 0 que jé existe, ¢ nao de inventar uma visdo futura idealizada, desgarrada da realidade. Planejar é, antes de tudo, ter os pés no chao, entender a dindmica existente para entao intervir. O primeiro passo é uma sélida avaliagdo dos recursos existentes. No Brasil, por ‘exemplo, dos 850 milhdes de hectares que compreendem o territério nacional, temos cerea de 450 milhdes de hectares de boa terra pronta para cultivo. Segundo o iiltimo censo agricola, estamos cultivando apenas 50 milhdes de hectares,’ pouco mais de 10%. Enquanto isso, no pais temos algo como 25 milhdes de trabalhadores desempregados ou subempregados. O resultado é que cerca de 80 milhdes sio subnutridos, num dos paises mais bem dotados em recursos naturais ¢ humanos. Esta situagdo, ao nivel de pais, resulta de um acimulo de subutilizagio de recursos em milhares de municipios. E cabe a cada municipio analisar como se manifesta coneretamente esta deformagiio no seu territério. Em termos priticos, a pergunta que se deve fazer em cada muni seguinte: quais so os recursos disponiveis ¢ como estio sendo utilizados? Clas emporiis a coltras permanente erecta crea de 30 miles de hectares 25 Os recursos naturais © primeiro passo & a avaliagdo dos recursos naturais. E surpreendente a que ponto as administragdes municipais desconhecem 0 estoque de recursos existentes. A prefeitura muitas vezes se preocupa com a administrago puramente urbana, sem amizagaio do seu potencial de riqueza. O recurso mais dbvio € a terra. E evidente que nao hi terra "disponivel”: toda a rea € normalmente apropriada por diversos agentes econdmicos, Entretanto, 6 necessirio avaliar esta apropriagao e confionti-la com o uso que esta sendo dado. Essas avaliagdes sto relativamente simples de fazer € consistem no que se chama de andlise do solo ¢ do seu uso, Ha terras mais ou menos férteis, eritério tenico fundamental, A esse critério & preciso acrescentar uma avaliago econémica: quais, terras estdio melhor situadas em termos de acesso a vias de transporte, de mercado, de ‘gua para irrigagiio e para pecuéria, etc, Essa avaliagdo permite entao ter uma ideia do potencial agricola do municipio. Esse potencial, por sua vez, & confrontado com 0 uso real, 0 qual pode ser classificado segundo a intensidade. Ha as culturas intensivas, como a horticultura, em que 0 valor extraido por hectare é muito elevado. Em seguida, as culturas extensivas, particularmente de grdos e, de forma geral, as culturas temporirias, que se renovam ‘em cada ano (arroz, feijdo, etc.). Varias culturas permitem um uso mais racional do solo através do cultivo associado (milho com feijao, por exemplo) ou do cultive duplo, Em termos de intensidade de uso do solo, vém em seguida as culturas permanentes (café, laranja, etc.), que podem ser relativamente mais econdmicas em mfo-de-obra_ permanente, mas que exigem mio-de-obra tempordria em grande ‘quantidade no period da safra, causando instabilidade de trabalho. Nenhum proprietério diz que a sua terra est parada e considera "pasto” qualquer terra onde haja gado, Na realidade, no Brasil hi uma média de trés hectares por animal, 0 que significa realmente terra jogada fora. & preciso avaliar qual a capacidade local de sustento de gado por hectare ¢ determinar, em fungao disso, a subutilizagdio da terra, Duas outras formas de subutilizagao da terra so 0 pousio ¢ a reserva florestal. Ambas podem ser necessérias ou constituir uma forma disfarcada de evitar 0 uso produtivo do solo. Finalmente, hi a gigantesca subutilizago da terra, que consiste em simples especulagao. © Brasil ainda é um dos poucos paises no mundo em que se utiliza terra 26

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