You are on page 1of 47
LUCY Traduca: Lia Wyler a ©1990 by Jamaica Kincaid itulo Original: LUCY Direitos em lingua portuguesa, para o Brasil, adquiridos a Aitken & Stone Limited, por EDITORA OBJETIVA LTDA.. rua Cosme Velho, 103 — Tel: (021) 205-7824 — Fax: (021) 225-8150 Rio de Janeiro —CEP 22241080 ‘Capa: Luciana Mello Revisio: Henrique Tamnarpolsky nia Maria Oliveira Lima ‘Anna Paula Meireles Azevedo 194 1098765432 Para George W. S. Trow Sumdétrio 1 —Pobre visita, 1 2-Mariah, 9 3-A lingua, 23 4—Sem sentimentos, 45 5-Lucy, 73 af ? Pobre visita loa estrada, meapontavam um edificio importante, um parque, uma ponte que, quan- todos acharam um espetéculo. Em um devancio ter, todos esses lugares eram pontos de felicidade jos esses lugares eram botes salva-vidas para a que se afogava, pois me imaginava entrando e ‘eissoapenas—o entrar e sair—bastava para fazer que eu nao conseguia nomear. $6 sabia que ypouco uma tristeza, s6 que mais pesada. Agora que pareciam comuns, sujos, gastos, tantas eram as ‘entravam e saiam deles na vida real e me ocorreu seria a Gnica pessoa no mundo para quem seriam Esta nao foi a minha primei toda realidade endoseriaa diltima. A lingerieque Aipanclo era toda nova, comprada para a viagem, € ‘no carro, virando para cé e para lA para obter uma do cendrio que se descortinava, me apercebi do que as coisas novas podem nos fazer sentir. hum elevador, algo que nunca fizera antes, e vi-me mento, sentada a uma mesa, comendo alimentos «Je uma geladeira. No lugar de ondeacabara de chegar, ivera em uma casa, e minha casa ndo tinha geladeira. ‘estava experimentando — andar de elevador, estar mento, comer comida da véspera guardada na gela- deira — eram idéias tao boas que dava para imaginar que me acostumaria e até gostaria muito, mas num primeiro momento era tudo tdo novo que tinha que sorrir virando os cantos da boca para baixo. Dormi profundamente naquela noite, mas ndo foi ‘Porque me sentisse feliz e confortével — muito ao contrétio: foi porque nao queria absorver mais nada. ‘Aquela manha, a manha do meu primeiro dia, amanha que se seguira 4 minha primeira noite, foi uma manha ensolarada. Nioera um sol dourado e ofuscante desses que faziam as pontas de tudo se crisparem, quase amedrontadas, a que estava acos- tumada, mas um sol pilido, como se tivesse enfraquecido de tanto fazer forca para brilhar; mas ainda assim fazia um dia ensolarado, ¢ isso foi gostoso ¢ me fez sentir menos saudade de casa. Por isso, vendo 0 sol, me levantei e pus um vestido, alegre de madras —o mesmo tipo de vestido que usaria se estivesse em casa e fosse sair para passar um dia no campo. Estava redon- damenteenganada. Osol brilhava mas oarestava frio. Afinal era ‘meados de janeiro. Mas eu no sabia que o sol podia brilhar eo ar continuar frio; ninguém nunca me dissera isso. Que sensagio experimentei! Como posso explicé-la? Algo que sempre soubera —como sabia que a minha pele era 0 castanho de uma noz esfregada repetidamente com um pano macio, ou como sabia meu préprio nome — algo que encarava com absoluta certeza, “o sol esté brilhando, logo 0 ar est4 quente”, ndo era verdade. Nao me achava mais numa zona tropical, ¢ tal conclusio agora penetrava minha vida como uma corrente de 4gua que dividisse uma terra antes seca e firme e criasse duas margens, uma que representava 0 meu passado — tio familiar e previsivel que até a lembranga da infelicidade de entio me fazia feliz agora — a outra, o meu futuro, um vazio cinzento, uma paisagem marinha nublada em que a chuva caia e nao havia barcos a vista. Nao me achava mais numa zona tropical e sentia frio por dentro e por fora, a primeira vez que uma sensagiio dessas me sobrevinha. Em livros que lera— ver por outra, quandoa trama oexigia —alguém era acometido de saudades. Uma pessoa abandonava ‘uma situagéo pouco agradavel e i para outro lugar muito me- Ihore, em seguida, ansiava por voltar para onde naoera tiobom. Que impaciéncia me dava uma pessoa dessas, pois me fazia 2 sentir que eu tampouco estava numalsituagio muito agradavel, que vontade tinha de ir para outro lugar. Mas agora eu, tam- bém, sentia que queria voltar ao lugar de onde partira. Eu o compreendia, sabia qual era a minha posigio ali. Se tivesse tido que pintar um quadro do meu futuro entio, teria sido uma enorme mancha cinzenta rodeada de negro, muito negro, negris- simo. ‘Que surpresa era para mim, ansiar por voltar ao lugar de ‘onde viera, ansiar por dormir numa cama que jé no me cabia, ansiar por estar com gente cujo menor e mais natural gesto provocava em mim tal raiva qite eu queria vé-los todos mortos ‘40s meus pés. Ah, imaginara que com um tinico e breve gesto — sair de casa e vir para este novo lugar —pudesse deixar para tras, ‘como se fosse uma roupa velha descartada para sempre, meus Pensamentos tristes, meus sentimentos tristes e o meu descon- tentamento com a vida em geral como eu a via. No passado a idéia de estar na situagio presente fora um consolo, mas agora nio tinha nem isso para antegozar, por isso ficava deitada na cama e sonhava que estava comendo uma tigela de salmonete com figos verdes cozidos em leite de coco, preparado por minha av6,razio pela qual era tio gostoso, pois eraa pessoa queeu mais gostava no mundo e essas eam as coisas que eu mais gostava de ‘comer também, (© quarto em que me encontrava era pequeno e¢ junto a cozinha — o quarto de empregada. Estava habituada a quartos. pequenos, mas esse era um tipo diferente de quarto pequeno. O teto era muitoalto eas paredes emendavam com o teto, fechando ‘océmodo como um caixote— um caixote em quese despacham cargas para muito longe. Mas eu nao era carga. Era apenas uma moga infeliz morando num quarto de empregada, e nem ao menos era a empregada, Era a moga que cuida das criangas ¢ vai escola A noite. Porém, como todos eram simpaticos comig diziam que devia me considerar uma pessoa da familia e agir ‘como se a casa fosse minha. Acreditava que eram sinceros pois sabia que nao diriam uma coisa dessas a alguém que fosse realmente da familia, Afinal, ndo so da familia as pessoas que acabam virando uma pedra amarrada ao pescogo da vida? No iiltimo dia que passei em casa, minha prima — uma garota que conheci a vida inteira, uma pessoa desagradavel mesmo antes dos pais a forgarem a se tornar adventista do sétimo dia — me deu de presente de despedida a propria Biblia e me fez um ‘ sermaozinho sobre Deus, o bem eas béngios, Agora descansava ali diante de mim sobre a comoda, e lembrei que quando éramos criangas sentavamos debaixo da casa e nos aterrorizdvamos € atormentévamos mutuamente lendo em voz alta passagens do Livro das Revelages, efiquei imaginandose alguma vezna vida passaria um dia sem que as pessoas que deixara para trés, minha familia, aparecessem diante dos meus olhos de uma forma oude outra. Havia também um radinho sobre a cOmoda e eu o ligara. Naquele instante, quase como se quisesse resumir meus sent mentos, tocou uma méssica, em que 0 cantor dizia: “Ponha-se no meu lugar, a0 menos por um dia; veja se consegue suportar o horrivel vazio que sinto no peito.” Cantei essa letra de mim para mim muitas vezes, como se fosse um acalanto, e tornei a adormecer. Sonhei que erguia nas mos uma das minhas camisolas velhas de flanela, e ela era estampada com lindas cenas de criangas brincando com enfeites de Natal. As cenas na camisola eram tio reais que eu chegava até a ouvir as criangas rirem. Senti-me compelida a descobrir de onde viera a camisola e comecei a examiné-la feito maluca, procurando a etiqueta. Encontrei-a exatamente onde ficam as etiquetas, as costas,¢ li “Made in Australia”. Fui despertada deste sonho pela empregada, uma mulher que me informara na mesma hora em que nos conhecemos que nao gostava de mim, e me deu como razio, o meu jeito de falar. Achei que o motivo era outro, mas no sabia dizer qual. Ao abrir os olhos, a palavra “Austrélia” se interpds aos nossos rostos, e me lembrei que a Austrdlia fora colonizada comouma prisio para gente ruim, gente tio ruim que nao podia ser encarcerada no proprio pais. ‘As minhas horas de vigilia no tardaram a assumir uma rotina. Levava quatro menininhas A escola a pé, equando regres- savam a0 meio-dia, servia-lhes um almogo de sopa enlatada e sanduiches. A tarde lia para distraf-las e brincava com elas. ‘Quando estavam ausentes, estudava meus livros e, & noite, fre- giientava a escola. Era infeliz. Olhava o mapa. Havia um oceano entre mim e o lugar de onde vierd, mas teria feito diferenca se fosse apenas um copo d’agua? Nao podia voltar. La fora fazia sempre frio e todos diziam que era o inverno mais rigoroso que jé tinham visto; masa maneira com que diziam

You might also like