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Leitura de LmMagens Lucia Santaella MELHORAMENTOS 10 Ensinar e aprender a ler imagens, eis ai uma proposta que pode conter algumas armadilhas contra as quais € preciso, de saida, nos precaver. Expandir o conceito de leitura A primeira armadilha que devemos evitar é aquela de se considerar que 0 ato de ler se restringe a seguir le- tra a letra os simbolos do alfabeto. “A leitura s6 pode se referir aos textos linguisticos de que o livro é 0 exemplar mais legitimo”, é o que alguns afirmam. Se assim realmente fosse, jamais poderiamos falar em “leitura de imagens”. Contrariamente a essa recusa, neste livro pretendo defender e demonstrar que ima- gens também podem e devem ser lidas. Para isso, 0 ponto de partida a ser tomado € 0 de dilatar sobrema- neira 0 que concebemos como sendo leitura. Assim, podemos passar a chamar de leitor nado apenas aquele que 1é livros, mas também o que 1é imagens. Mais do que isso, incluo nesse grupo o lei- tor da variedade de sinais e signos de que as cidades contemporaneas estio repletas: os sinais de transito, as luzes dos seméforos, as placas de orientagdo, os nomes das ruas, as placas dos estabelecimentos co- merciais etc. Vou ainda mais longe e também chamo de leitor o espectador de cinema, TV e video. Diante disso, nao poderia ficar de fora o leitor que viaja pela internet, povoada de imagens, sinais, mapas, rotas, luzes, pistas, palavras e textos. Nao se pode esquecer que hi, entre os estudiosos da leitura, uma reagao contraria a essa expansao no emprego do conceito de “leitura”. Alega-se que sao equivocadas as generalizacées da ideia de “leitura”, que s6 contém alusées metaforicas a processos que guardam pouca ou nenhuma relagio com a pratica de decifragdo letrada que a verdadeira leitura supde. Entretanto — e aqui estd meu argumento —, desde os livros ilustrados e, depois, com os jornais e revistas, o ato de ler passou a nao se limitar apenas a decifra- ao de letras, mas veio também incorporando, cada vez, mais, as s relag es entre palavra e imagem, entre Otexto, a foto € a legenda, entre o tamanho dos ti- pos graficos ¢ o desenho da pagina, entre o texto a diagramagio. Além disso, comi o surgimento dos grandes centros urbanos e a explosao da publicida- de, a escrita, inextricavelmente unida a imagem, veio crescentemente se colocar diante dos nossos olhos na vida cotidiana. Isso esta presente nas embalagens dos produtos que compramos, nos cartazes, nos pon- tos de énibus, nas estacdes de metré, enfim, em um grande nimero de situagdes em que praticamos 0 ato de ler de modo tao automatico que nem chegamos a nos dar conta disso. Diante de tudo isso, nao ha por que manter uma visdo purista da leitura restrita 4 decifragéo de le- tras. Do mesmo modo que, desde o livro ilustrado e as enciclopédias, 0 e6digo escrito foi historicamente sé mesclando aos desenhos, esquemas, diagramas e fotos, o ato de ler foi igualmente expandindo seu es- copo para outros tipos de linguagens. Nada mais na- tural, portanto, que.o conceito de leitura acompanhe essa expansao. E por isso que podemos afirmar que, fora e além do livro, ha uma multiplicidade de tipos de leitores, multiplicidade, alias, que vem aumentando histori- camente. Ha, assim, 0 leitor da imagem no desenho, na pintura, na gravura e na fotografia. Ha 0 leitor de jornal, revistas. Ha 0 leitor de graficos, mapas, siste- mas de notagées. HA 0 leitor da cidade, leitor da miri- ade de signos, simbolos e sinais em que se converteu acidade moderna, uma verdadeira floresta de signos. HAo leitor-espectador da imagem em movimento, no cinema, televisdo e video. A essa multiplicidade, mais leitura de imagens 12 SX recentemente veio se somar 0 leitor das imagens eva- nescentes do grafismo computadorizado e o leitor do texto escrito que, do papel, saltou para a superfi das telas eletrénicas. Na mesma linha de continuida- de, mas em nivel de complexidade ainda maior, hoje, esse leitor das telas eletrénicas est viajando pelas informagées nas redes dos computadores, um novo tipo de leitor que tenho chamado de “leitor imersivo”. ie O que é ler imagem? Embora seja muito grande a variedade de leitores, este livro esta dedicado apenas 4 leitura das imagens. E aqui encontramos outra armadilha da qual é neces- sario nos afastar. Como entender o conceito de leitu- ra, quando falamos em leitura de imagens? Existe uma expressio em inglés, visual literacy, que, embora soe esquisita, pode ser traduzida por “letramento visual” ou “alfabetizagao visual”. Se leva- da a sério, essa expressao deveria significar que, para lermos uma imagem, deveriamos ser capazes de des- membra-la parte por parte, como se fosse um escrito, de 1é-la em voz alta, de decodificd-la, como se decifra um cédigo, e de traduzi-la, do mesmo modo que tradu- zimos textos de uma lingua para outra. Embora essas metaforas tentem dar conta do que se pode fazer para ler uma imagem, creio que sao metaforas equivocadas, pois buscam transplantar para o universo da imagem processos que sao tipicos da linguagem verbal. Ora, a imagem é uma realidade muito distinta do verbo. Mas essa diferenga pode nos levar ao caminho contrario, a saber, 4 convicgaio de que s6 podemos ler imagens por meio de outras imagens, dispensando o corpo estranho dos comentarios verbais. A ideia nao éde modo algum absurda — entender e explicar ima- gens por meio de imagens. Entretanto, o que se tem letura de imagens 13 ai é umaatividade muito mais proxima da criacio ar- | tistica, pertencente ao campo da estética, do que de \ uma atividade didatica. Quando se trata de explicar as formas especifi- cas de representagao, de acesso e de conhecimento da realidade que as imagens suscitam, nada impede que as imagens sejam traduzidas na linguagem que utilizamos para nos comunicar, a saber, a linguagem verbal. Isso também nao quer dizer que as imagens precisem ser traduzidas verbalmente porque sofrem de uma debilidade em relagao ao verbal. O velho dito de que uma imagem vale por mil palavras é tao enga- noso quanto 0 seu oposto, quer dizer, que as palavras tém mais poder do que as imagens. Longe de estarmos diante de um combate entre tits — o verbal e a imagem —, a expressao linguistica + ea visual so reinos distintos, com modos de repre- sentar e significar a realidade préprios de cada um. Eles muito mais se complementam, de maneira que um nao pode substituir inteiramente o outro. Assim, quando utilizamos a linguagem verbal para falar so- bre como lemos as imagens, nao estamos impondo a elas um modo de ser que lhes é estranho, mas tratan- do de explicitar os tragos que as caracterizam na sua natureza de imagens. Ressignificada, | portanto, a_alfabetizagao visual _ significa aprender a ler imagens, desenvolver a ob- _Servagao de seus as) us aspectos ¢ tra¢ tragos ¢ “constitutivos, de- “fectar 0 que se se produz no interior r da propria ia imagem, “sein fugir para outros ‘pensamentos que nada tém a ver com ela. Ou seja, ‘significa adquirir os conheci- mnentos correspondentes e desenvolver a sensibilida- de necessiria para saber como as imagens se apre- . sentam, como indicam 0 que querem indicar, qual é o seu contexto de referéncia, como as imagens signi- ficam, como elas pensam, quais so seus modos espe- cificos de representar a realidade. > a desenvolv tematicamente ‘lades envolvidas na leitura de imagens, de modo a levar ao compartilhamento de signi! dos atribuidos a um corpo comum de informagées. Ainda bastante presas a ideia de que o texto verbal 6 0 grande transmissor de conhecimentos, as esco- las costumam negligenciar a alfabetizagio visual de s educandos. Entretanto, desde a invengao da fotografia, depois seguida de uma série de meios imagéticos — cinema, televisao, video -, e agora em plena efervescéncia dos meios digitais, com suas — computadores desktops, iPho- ai rodeado de imagens por todos os lados, em cada canto e minuto do seu cotidiano, isso sem considerarmos que, quando dormimos, continuamos a ver imagens nos sonhos. Diante disso, nada poderia ser mais plausivel, e irir na escola a importa i cognitive qu ‘que merece nos p de ensino e aprendizagem. ~ Embora a caracteristica primordial da imagem seja a de ser apreendida no golpe de um olhar, de chofre, tudo ao mesmo tempo, ela encerra complexi- dades que temos de aprender a explorar. £ para isso que este livro esté dedicado, nao sem antes darmos uma pincelada no conceito de imagem. variadas interfe O que é imagem? Uma das definigées mais antigas de imagem encon- tra-se no livro VI da obra A repiiblica, de Platao. Para esse filésofo, imagens, em primeiro lugar, sao as sombras, depois os reflexos que vemos na Agua ou na superficie de corpos opacos, polidos, brilhan- tes, e todas as representagdes desse género. Duas conclus6es podem ser extraidas desse conceito. Primeiro, ele se refere As imagens naturais e nao as imagens produzidas pelos seres humanos. Segundo, mesmo sendo natural, a imagem é um duplo, quer dizer, ela reproduz caracteristicas reconheciveis de algo visivel. Por razdes que sé se explicam no inte- rior de seu pensamento, Platao privilegiou as ima- gens naturais como ferramentas filosdficas, em de- trimento das imagens fi quer dizer, criadas ou recriadas por agentes humanos. De qualquer modo, uma das conclusdes que se pode extrair do conceito platénico de imagem - seu carater de duplo -, 6 também comum as ima- gens artificiais. Assim, estas costumam ser defi- nidas como um artefato, bidimensional (como em um desenho, pintura, gravura, fotografia) ou tri- dimensional (como em uma escultura), que tem uma-aparéncia similar.a_algo que esta fora delas ~ usualmente objetos, pessoas ou situagdes — e que, de algum modo, elas, as imagens, tornam re- conhecivel, gragas As relagdes de semelhanca que mantém com o que representam. Sendo assim definida, toda imagem implica uma moldura e um campo. Este é 0 territorio de inscrigao ou de ocupagao da imagem, enquanto a moldura, no seu sentido literal, refere-se As fronteiras desse cam- Po. Quanto a moldura, infelizmente, as coisas nao sao tao simples assim. Quase sempre a imagem se apresenta como um objeto que podemos isolar per- ceptivamente. A front cai entre a imagem eo mundo. : Existe um conceito literal , 0 segundo objeto acrescentado a imagem em si, a moldura-objeto, que pode ser de madeira, metal‘ou qualquer outro material capaz de cumprir a fungdo de colocar em destaque e mesmo de proteger as bordas da imagem. Mas existe outro sentido mais abstrato de moldura, que é a moldura- 16 -limite. Esta marca 0 contorno da superficie da ima- gem, separando-a do que nao ¢ imagem e definindo © seu dominio estrito. Voltarei a isso especialmente no capitulo sobre fotografia, pois nesta a moldura no seu sentido abstrato adquire um estatuto muito cla- ro, que se chama “enquadramento”. Por ora, vale considerar que a definigao de ima- gem, acima enunciada, funciona apenas como um ponto de partida, pois existem diferentes territrios da imagem, do que resiilfa uma polivaléncia concei- tual que vaza os limites de uma definigao tinica. Territorios da imagem A palavra “imagem” é ambigua e polissémica, em primeiro lugar, porque pode ser aplicada a reali- dades nao necessariamente visuais. Pode-se falar, por exemplo, em imagem musical, especialmente na misica contemporanea, eletroactstica, na qual se fala de imagem actstica. Em segundo lugar, mesmo quando nos restringimos ao territério da visualidade, ha, pelo menos, trés dominios princi- pais da imagem: 4. O dominio das imagens mentais, imaginadas e oniricas. Estas brotam do poder de nossas men- tes para configurar imagens. Elas nao precisam ter necessariamente vinculos com imagens ja percebidas. A mente é livre para projetar for- mas e configuragdes nao necessal jamente exis- tentes no mundo fisico; 2. O dominio das imagens diretamente percep- tiveis. Essas sao as imagens que apreende- mos do mundo visivel, aquelas que vemos di- retamente da realidade em que nos movemos e vivemos; 3. O dominio das imagens como Tepresentagoes vi- suais. Elas correspondem a desenhos, pinturas, gravuras, fotografias, imagens cinematografi- cas, televisivas, holograficas e infograficas (tam- bém chamadas de “imagens computacionais”), HA autores que aumentam esses dominios para cinco, incluindo também: 4. O dominio das imagens verbais, construidas por meios linguisticos, tais como as metafo- ras, descrigdes; 5. O dominio das imagens opticas, tais como es- pelhos e projecées. Essa polissemia da imagem teve sua origem no termo grego eikon, que abarcava todos os tipos de imagem, desde pinturas até estampas de um sclo, assim como imagens sombreadas, tidas como natu- rais, e espelhadas, chamadas de artificiais. Em meio a diversidade implicita nos varios terri- térios da imagem, interessa-nos neste livro o item 3, acima, o da imagem como representacio visual. Essa escolha se explica porque as imagens mentais envol- vem questées cognitivas e psicanaliticas e, ademais, sio estritamente visiveis. As imagens perceptivas esto diretamente ligadas as teorias da percep¢ao visual e, portanto, dizem mais respeito aos modos como a per- cepgao opera do que as imagens em si. As imagens ver- bais encontram seu campo de estudos na literatura e as imagens projetivas, na engenharia, na arquitetura etc. Imagens como representagées visuais As imagens s4o chamadas de “representagdes” por- que sao criadas e produzidas pelos seres humanos nas sociedades em que vivem. f claro que elas sio v7 18 também imagens percebidas, mas distinguem-se da- quelas que denominamos perceptivas porque, neste caso, 6a nossa percepgao que faz o mundo visivel na- turalmente aparecer a nés como imagem, enquanto as representagoes visuais sao artificialmente criadas, necessitando para isso da mediagio de habilidades, instrumentos, suportes, técnicas e mesmo tecnolo- gias. So essas imagens que mais se adequam as fina- lidades deste livro: ensinar e aprender a ler imagens. Como representagdes visuais, as imagens podem ser inscritas manualmente sobre uma superficie, pela utilizagao de instrumentos como lapis, pincel, tintas etc. Elas podem também ser capturadas por meio de recursos 6pticos, como espelhos, lentes, telescdpios, microsc6pios e cameras. Além disso, as imagens podem ser fixas, em mo- vimento e animadas. A imagem fixa é uma imagem congelada e opée-se, assim, 4 imagem em movimen- to. Esta significa a variagado da posicao espacial de uma imagem ou de uma sequéncia de imagens no decorrer do tempo. Exemplo tipico da imagem em movimento encontra-se no cinema, que resulta da gravacao de imagens fotograficas com cameras. Por meio do dispositivo técnico de projegio, os fotogra- mas sao acionados a uma velocidade de 24 (ou mais) imagens por segundo, criando a ilusao de movimen- to continuo devido ao fenémeno da persisténcia de visdo. Embora a imagem animada possa ser aplica- da ao cinema e ao video e usada como sinénimo de imagem em movimento, seu emprego tem sido mais frequente no campo da imagem digital, no qual o processamento computacional aumentou vertigino- samente a manipulagao de imagem a imagem, geran- do uma verdadeira coreografia de formas dinamicas. No Ambito das representagées visuais, podem ser considerados como imagens os diagramas, 0s mapas €, no terreno das imagens tridimensionais, também leitura de imagens 19 a arquitetura. Uma vez que tanto diagramas e ma- pas quanto imagens tridimensionais, sejam elas es- cultéricas ou arquiteténicas, trazem complexidades adicionais 4 questdo da imagem, irei me limitar neste livro as imagens bidimensionais fixas, com breves in- curs6es nas imagens em movimento. Venho colocando énfase no fato de que as ima- gens funcionam como duplos porque representam aspectos do mundo visivel por meio das relagdes de semelhanga que com eles mantém. Entretanto, nem sempre a imagem reproduz aspectos daquilo que é naturalmente visivel. Por isso, ha, pelo menos, trés’) modalidades principais de imagens. Primeiro, as ( imagens em si mesmas, que se apresentam como for- mas puras, abstratas ou coloridas. Segundo, as ima- | gens figurativas, que se assemelham a algo existente | no mundo, ou supostamente existente, como so as | figuras imaginarias, mitoldgicas, religiosas etc. Ha | ainda as imagens simbdlicas. Neste caso, embora | as imagens apresentem figuras reconheciveis, essas figuras tém por funcio representar significados que vao além daquilo que os olhos veem. O simbolismo adiciona camadas de significados que estio por tras das imagens. A diversidade da imagem como representacdo visual Mesmo restringindo a leitura das imagens a um s6 territdrio, o das representagdes visuais, grafei “ima- gens” no plural porque optei por trabalhar com tipos diversos de imagem para marcar os tracos que dife- Tenciam umas das outras. ° As imagens como Tepresentagoes visuais diferem de acordo com a finalidade a que se prestam. Elas po- dem ter por finalidade agugar e ampliar nossa capa- 20 como eu ensino cidade perceptiva, regenerar nossa sensibilidade vi- sual — uma das razées da arte, entre outras. Embora o fator documental seja preponderante na fotografia, ela também pode preencher outras fungGes, inclusive artisticas. Mas as imagens também podem servir 4 captura do nosso desejo por adquirir produtos vei- culados pela publicidade, para a qual as imagens sao imprescindiveis. Finalidade distinta é aquela a que as, ilustragées de livros se prestam, sobretudo a de cum- prir a tarefa de ilustrar as informagGes transmitidas pelo texto verbal. Ja as imagens no design devem ser indicadoras do modo como os produtos servirao ao uso a que se destinam. Embora haja outras formas de manifestagdo das imagens, as formas elencadas acima parecem cobrir 0 campo mais fundamental de suas express6es. Assim, comecaremos, no primeiro capitulo deste livro, por uma amostragem de algumas imagens da arte, fonte primeira das criagGes visuais. No segundo capitulo, passaremos para as imagens fotograficas, com algumas pitadas sobre a imagem em movimento do cinema e do video. Entio, iremos para os livros ilustrados. Qual é 0 papel que as imagens neles desempenham? Vamos buscar entender algumas das relagdes que se estabe- lecem, no universo do conhecimento, entre o texto informativo e a imagem. A seguir, as relacdes entre texto e imagem serao exploradas em um campo bem distinto dos livros ilustrados, a saber, 0 universo apelativo e persuasivo da publicidade. O quarto capitulo seré dedicado ao exame de algu- mas pecas de design, com passagens breves sobre 0 design de interface da internet. Todos os capitulos serao acompanhados por su- gestdes de como conduzir a pratica pedagégica. Como levar os educandos a agugarem seus olhares quando se colocam diante de uma imagem? Como saber diferenciar os tracos caracterizadores de cada tipo distinto de imagem? Toda imagem, no dominio das representacées vi- suais, apresenta miltiplas camadas: subjetivas, so- ciais, estéticas, antropolégicas e tecnoldgicas. Entre- tanto, a primeira lig&o a ser incorporada é que essas camadas esto contidas no interior da propria ima- gem. Apreendé-las todas é a finalidade almejada pela leitura da imagem. Grandes temas do estudo das imagens Antes de passarmos aos capitulos, vale a pena men- cionar os topicos mais fundamentais relativos 4 natu- reza da imagem sobre os quais os estudiosos tém se debrucado ao longo dos séculos. Entre temas que versam sobre as propriedades intrinsecas da imagem, suas fungdes antropoldgi- cas, sociais e cognitivas, seu contexto linguistico e suas manifestacdes em diferentes midias, ha uma discussio iniciada na Grécia antiga até hoje vigente: a oposicdo entre a naturalidade e a convencionali- dade da imagem. A ideia de que as imagens se assemelham, de ma- neira geral, a seus objetos de referéncia é nao somen- te senso comum, mas também foi compartilhada por fildsofos desde Platao, sem ser questionada por mui- to tempo. Uma vez que a relacao de semelhanca nao apresenta uma precisio légica, ha autores, como J. J. Gibson’, que buscaram uma definig&o optico-geomé- trica da semelhanga da imagem com a realidade. Essa tese da semelhanga, e consequente natura- lidade da imagem, tem dado guarida aqueles que se " GIBSON, 1954, p. 9-23. leitura de imagens 21 22 como ev ensino recusam a aceitar a possibilidade de leitura da ima- gem sob a alegaco de que nao hé nada a dizer sobre um tipo de mensagem que, por estar ancorada nas telagdes de semelhanga com aquilo que representa, ja parece naturalmente legivel. Dao municao a essa alegacao a rapidez e simultaneidade da percepcio da imagem, do reconhecimento e interpretagio do seu contetido. Nao se pode negar a existéncia de es- quemas mentais universais, comuns a todos os seres humanos, que presidem, entre outros tipos de cog- nico, a percepcao visual. Entretanto, deduzir disso que a imagem prescinde de aprendizado e leitura parece equivocado. O equivoco, segundo Joly, provém da confu- sao entre percep¢ao e interpretagdo.? Reconhecer os motivos inscritos na imagem nfo significa que tanto o contexto interno quanto o campo de refe- réncias desses motivos tenham sido compreendi- dos. Quando observamos as reprodugGes de ima- gens das grutas de Lascaux, fant4stico conjunto de inscrigdes rupestres localizado na Franga, por exemplo, 14 vemos figuras de animais desenhadas ha mais de 15 mil anos. Também reconhecemos os sdis, corujas e peixes dos hierdéglifos egipcios. Con- tudo, o simples reconhecimento n&o nos fornece as chaves para a interpretac&o dessas imagens. Certa- mente, esses exemplos s4o casos extremos que im- plicam investigagao e estudos suplementares que nos deem 0 acesso a interpretagdo de tais imagens, Entretanto, nos ajudam a compreender um quesito que toda leitura de imagem pressupée: interpretar uma imagem é um processo que se acrescenta ao mero reconhecimento. Ademais, ha outro aspecto a se considerar que neutraliza a convicgao na natura- lidade da imagem. 50 1996, P. 42. Em franca oposigéo as teses da semelhanca da imagem em relacao ao objeto nela representado, ha autores, por exemplo Nelson Goodman’, que apresen- tam uma concepgao extremamente convencional da imagem, defendendo, inclusive, que ela é tao arbitra- ria e dependente de convengGes quanto a linguagem verbal. Embora haja certamente distingdes no tipo e grau de convencionalidade, a imagem de um gato e a palavra “gato” seriam ambas convencionais. O autor’ chama a atengao aqui para o fato de que imagens sao representacdes visuais e, como tal, implicam conven- des de representagao que dependem nio sé de habi- lidades quanto do aprendizado de técnicas especificas. Buscando um equilibrio entre as duas posigées, encontra-se Gombrich*. No seu livro Arte e ilusdo, esse estudioso argumentou que a percepgao da repre- sentacdo visual nao se baseia somente em uma capa- cidade inata do homem, pois, por exemplo, a viso de espacos representados em perspectiva deve ser pri- meiramente aprendida. Apesar de concordar com as varias convencées envolvidas em quaisquer tipos de representagées visuais, Gombrich se posicionou con- trariamente a visio convencionalista de Goodman ao salientar o papel desempenhado pela semelhanga na imagem, concluindo que a oposi¢ao excludente entre natureza e convencio é falsa, pois ambas tém um pa- pel a desempenhar na imagem. Gombrich cita argumentos sobre a génese da lin- guagem a favor da no arbitrariedade das imagens.5 A evolucéo da natureza programou o ser humano biologicamente de tal forma que ele teve que apren- der o que Ihe é vantajoso para a sua vida e sobrevi- véncia. Como ocorre com os animais, a sobrevivéncia » GOODMAN, 2006. * GOMBRICH, 2007. 5 GOMBRICH, Ernest H. Image and code: Scope and limits of conventionalism in pictorial representation. In: STEINER, Wendy (org.). Image and code. Ann Arbor: University of Michigan, 198, p. leitura de imagens 23 24 como eu ensino do ser humano também depende de coisas e signos reconheciveis que lhe sfo de grande significado. Fo- mos programados a procurar objetos que nos sao necessérios e cujas configuragdes nos agradam mais do que outras. A nossa capacidade de reconhecer um objeto parece estar ligada a relevancia biolégica que ele tem para nds, o que faz que baste 0 objeto ter uma vaga semelhan¢a para provocar uma reacio positiva. Para saber mais sobre o conteudo desta introducado GIBSON, James J. A theory of pictorial perception. Audio-visual Communication Review, 1954, 2: P. 3-23. GOMBRICH, Ernest H. Arte e ilusdo. Sio Paulo: Martins Fontes, 2007. Edigio original: Art and illusion. Londres: Phaidon, [1960] 1968, . Image and code: Scope and limits of conventiona- lism in pictorial representation. In: STEINER, Wendy (org.). Image and code. Ann Arbor: University of Michigan, 1981, p. 11-42. GOODMAN, Nelson. As linguagens da arte: Uma abordagem a uma teoria dos simbolos. Tradugao de Vitor Moura e Desidé- rio Murcho. Lisboa: Gradiva, 2006. JOLY, Martine. Introdugdo a andlise da imagem. Tradugao de Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1996. MANGUEL, Alberto. Lendo imagens. Tradugio de Rubens Fi- gueiredo et al. S40 Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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