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O SUS nos seus 20 anos: reflexdes num contexto de mudangas Twenty years of SUS: reflections in a context of changes Costa de Araiijo Souza Cirurgli-Dentista, Mestre em Odontologia, Enderego: Rua Joaquim Aaj Filho, 440, Lagoa Nova, CEP 59063~ tao, Natal, RN, Basil E-mail: georgia_odontoayahoo.com.br Iris de Céu clara costa Cirurgié-Dentisa, Professora Doutora do Programa de Pés-Gra~ ‘duagdo em Odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte ~ UFR Enderego: Av. Senador Salgado Filho, 1787, Lagoa Nova, > 59056- 600, Natal RN, Brasil. fE-mal:ris_edontoufmnayahoo.com.br Resumo A partir de uma breve retrospectiva sobre o direito 8 satide conquistado pelo cidadao brasileiro, este artigo tem como objetivo discorrer sobre o Sistema Gnico de Satide (SUS) ao longo da sua trajetéria de 20 anos, destacando em forma de andlise erftica os avangos conquistados na satide e os desafios a serem superados, Sao discutidas as teméticas do direito & satide como responsabilidade do Estado a partir da Conferéncia de Alma-Ata, da Constituigao Federal e das Leis Organicas da Satide; as diretrizes do SUS envolvendo as competéncias da Unido, do Estado e do Municfpio, Discute ainda a importancia da Estratégia Satide da Familia na consolidacao da Atencio Basica no Brasil, as dificuldades do proceso de regionalizacao ¢ o papel da gestao e da participagao social como bases para a construcao do SUS que queremos. Palavras-chave: Sistema Unico de Satide; Satide Pablica; Politica Nacional de Sade. Abstract Froma briefreview of the right to healthcare won by the Brazilian citizens, this article aims to discuss Sistema Unico de Satide s tem) throughout its trajectory of 20 years, providing accritical review of the progress achieved in health- care and the challenges to be overcome. It discusses the issues of: the right to healthcare as the State’s responsibility based on the Alma-Ata Conference, the Federal Constitution and the Organic Laws on Health; SUS guidelines involving the competences of the Union, States and Municipalities. It also approaches the importance of the Family Health Strategy for the consolidation of Primary Care in Brazil, the difficulties in the process of regional health planning, and the role of management and social participation as the bases for the construction of the SUS we want. Keywords: National Health System; Public Health; National Health Policy. National Health $ He salde Sec Sie Paul, vip... p.sosei. 20 Um Resgate Histérico do Direito & Saude como Responsabilidade do Estado 0 atual sistema de satide brasileiro vive um mo mento de intensos avancos, mas ainda de muitos desafios a serem superados. Podemos descrever como avancos 0 que se refere & oferta de diversos programas, projetos e politicas que tém apresentado resultados inegaveis ¢ exitosos para a populacao brasileira, que incluem a evolucdo das equipes do Programa Satide da Familia, do Programa Nacional de Imunizacées, do Sistema Nacional de Transplan. tes, sendo 0 segundo pats do mundo em niimero de transplantes, do Programa de Controle de HIVAIDS, reconhecido internacionalmente pelo seu progresso no atendimento as Doencas Sexualmente Trans- missiveis/AIDS, entre outros (Brasil, 2006b). Como desafios, podemos enumerar aqueles referentes aos problemas de implementacao, implantacao, finan- ciamento e gestao do Sistema Unico de Sattde (SUS), ato que, para ser compreendido, merece umaanélise mais detalhada, fazendo-se necessério um resgate do processo de construcio do sistema de satide no Brasil a partir da construgao do SUS. ‘Acriagio do Sistema Unico de Satide foi o maior movimento de inclusao social j4 visto na Histéria do Brasil e representou, em termos constitucionais, uma afirmacao politica de compromisso do Estado brasileiro para com os direitos dos seus cidadaos Grasil, 20070). A partir da Conferéncia Internaci nal sobre Cuidados Primérios de Sade, realizada ‘em Alma-Ata (Cazaquistao, antiga URSS), no anode 1978, ficou estabelecido num plano mundial, atra- vés do documento final deste evento, a Declaragio de Alma-Ata, a participacio efetiva dos Estados na satide do seu povo através da promocao de politicas de sadide que visassem o bem-estar fisico, mental ¢ social como direitos fundamentais dos seus habi- tantes, enfatizando-se principalmente os cuidados primérios. Evidenciou-se também que a satide é a ‘mais importante meta social mundial e que, para a sua realizagao, faz-se necesséria a integragao com 08 diversos setores sociais e econémicos (Ventura, 2003). Paralelamente a esse acontecimento his- t6rico da satide mundial, o Brasil passava por um momento de clamor coletivo por mudangas politi cas voltadas para a redemocratizacao do pais, que se intensificaram na década de 1980 por meio de manifestacdes populares pela eleigao direta de um presidente civil, e, no campo da sate, voltado para uma atencio abrangente, democratica e igualitéria, tendo como principais atores sociais os intelectuais, as liderangas politicas, os profissionais da saiide, os movimentos estudantis universitarios, os movimen tos sindicais, entre outros, o que culminou com oes: gotamento do modelo médico assistencial privatista vigente (Medeiros Jiinior e Roncalli, 2004). Nos anos seguintes, a populacao brasileira con. tinuou imersa em diversos conflitos sociais, com profundas desigualdades, alto indice de desemprego, grande contingente de miserdveis, enfrentamento de filas infindaveis na busca da assisténcia a satide, culminando com uma grande insatisfacdo popular. Nesse contexto, ocorreu em 1986 a 8* Conferéncia Nacional de Satide, que contou com uma intensa par ticipacao popular de mais de 4ooo pessoas, dentre as quais 1000 eram delegados com direito avoze a voto (Brasil, 1986). Essa Conferéncia se tornou um dos grandes marcos da satide no Brasil, podendo ser considerada como 0 marco inicial da Reforma Sanitaria brasi leira, Trouxe a tona temas como: a necessidade de ampliagao do conceito de satide e de um novo Sis tema Nacional de Satide, a separacio de “Satide” da ‘Previdéncia” ea orientacao da politica de financia- mento para o setor satide (Brasil, 1986). Seurelatério final ficou consolidado como um instrumento que veio influenciar as responsabilidades do Estado em assegurar o direito a sade para toda a populacao, garantindo condicdes de acesso e qualidade dos servicos, servindo de subsidio para a elaboracao da nova Constituicao de Satide do Brasil (Brasil, 1988), além de estabelecer como principal objetivo a ser aleancado um sistema de satide com atribuigdes € competéncias para os niveis Federal, Estadual ¢ Municipal, o que culminou na construgao do Sistema Unificado e Descentralizado de Satide (SUDS) como uma necessidade imediata e de transformagao pro: gressiva para o Sistema Unico de Sade (SUS). A Constituigao Federal e as Leis Organicas da Sade: um entendimento dessa relacdo Conforme descrito, a Constituigio Federal de 1988 consagrou a satide como “direito de todos e dever do Estado, garantida mediante politicas sociais e ‘econémicas que visam a reducao dorisco de doencac de outros agravos e possibilitando o acesso universal e igualitario as agées e servicos para promocao, pro: tecdo e recuperacao” (Brasil, 1988). Essa definicao conceitual adquire sua versio pratica com a insti tuicdo formal do SUS, quando no Capitulo II, artigo 198 da mesma Constituicdo, é relatado que as agdes €.08 servicos piblicos de satide integram uma rede regionalizada, hierarquizada e constituem um sis- tema tinico, organizado de acordo com as diretrizes: descentralizacdo, atendimento integral e participa 40 da comunidade. Assim, estava criado o Sistema Unico de Sadde, resultado de uma politica social e universalista, que tem a Constituigdo Federal e as Leis n® 8.080 en? 8.142, ambas de 1990, como sua base jurfdica, constitucional e infraconstitucional (Brasil, 20078) Lei n® 8.080, de 19 de setembro de 1990 - Lei Organica da Satide -, dispoe acerca das condicées para a promocao, protecdo e recuperacdo da satide, organizacao e funcionamento dos servicos corres: pondentes, mostrando de forma clara os objetivos do SUS, suas competéncias ¢ atribuigdes, assim como as funcbes da Unido, dos Estados e dos Municipios (Brasil,1990a). A Lei n® 8.142, de 28 de dezembro de 1990, dispoe sobre a participacao da comunidade nna gestdo do SUS e sobre as transferéncias inter- governamentais de recursos financeiros na érea da satide (Brasil, 1990b). Tais leis consolidam o papel do municipio como o principal executor das agdes de satide, caracterizando ampliacao do processo de descentralizagao que j4 havia sido exposto desde a 8% Conferéncia de Sade e que significava um avango e contraposi¢ao ao modelo ditatorial vigente rnaquele momento. 0 Sistema Unico de Sadde e suas Diretrizes: definindo competéncias da Unido, dos Estados e dos Municipios No nivel federal, a centralizagao da sadde tratava com distanciamento as questdes mais particulares de cada localidade, existindo um Gnico eixo nortea- dor para as ages de satide em todo o pais indistin- tamente. No entanto, a descentralizacao, entendida como forma de transferéncia derecursos edelegacao de fungdes entre os niveis de governo (Arretche, 2002), entra em vigor com o movimento de reforma ¢ estabelece que os servicos de satide podem ser melhor coordenados e atender de modo mais preciso aos anseios e necessidades dos usuarios através da municipalizacao. Uma das diretrizes do SUS, a descentralizacao tem sua aplicagdo através do financiamento a cargo das trés esferas de governo e a execucio de servigos por conta dos municipios. Esse processo de descen- tralizacao no Brasil envolve a transferéncia de servi 508, responsabilidades, poder e recursos da esfera fe deral para a municipal. Ao longo da década de 1990, foi verificada uma grande aceitacdo dos municipios pela municipalizacao, a qual pode ser explicada pelo interesse em aumentar a renda orgamentaria de suas receitas, 0 que é perceptivel quando, no ano de 2000, 99% dos municipios estavam habilitados no Sistema Unico de Satide (Arretche, 2002). Alguns municipios brasileiros dispéem de capital parao setor satide advindo quase que exclusivamente através desse repasse, no apresentando condicées de prover sua area territorial com todas as agoes ¢ servicos necessirios para a atencao integral de sua populacao. Por isso, aregionalizacao torna-se neces sdria para que as pessoas possam buscar solucdes aos seus problemas de satide nos municipios polo, mesmo que distantes do seu local de moradia. Através da descentralizacao, busca-se envolver todas as esferas do governo para que, juntas, fun- cionem no sentido de promover melhorias na situ: agao de vida e de satide da populagdo. Entretanto, um problema ocorre quando o repasse financeiro para estados e municipios nao ¢ administrado com responsabilidade e grande parte das financas nfo é aplicada no setor satide, recursos estes que poderiam ser investidos em contratacio e capaci taco de profissionais, materiais ¢ tecnologias de satide. Por isso, ao se propor a descentralizagao, seria conveniente discorrer sobre 2 capacitacao da gestio, o que inclui a correta aplicacao de recursos financeiros no setor satide, para que avancos reais nao sejam mera utopia A esse respeito, as Normas Operacionais Basi cas (NOB) 91, 93 € 96 ¢ as Normas Operacionais de Assisténcia 8 Satide (NOAS) tiveram um importante papel no processo de descentralizacao, na medida em que definiram competéncias, responsabilidades e condicdes necess4rias para que estados e municf pios pudessem assumir as condigdes de gestao no SUS (Viana e col,, 2002). Conforme afirmam Viana e colaboradores (2002), as andlises sobre o processo recente de descentrali zacao apontam, na area social, e, em especifico, na satide, a tend@ncia das varisveis microinstitucionais (poderes locais) terem respondido de forma mais di reta pelo (in)sucesso de determinadas politicas, evi denciando um grau de autonomia da gestao local Outra diretriz do SUS refere-se ao atendimento integral, com prioridade para as atividades preven tivas. Aintegralidade corresponde a um dos grandes desafios do SUS ¢ diz respeito a tratar cada pessoa como um ser indivisivel e integrante de uma comuni- dade; as acdes de promocio, protecdo e recuperacao da satide que formam um todo indivisivel que nao pode ser compartimentado; ¢ as unidades prestado. ras de servigo, com seus diversos niveis de atencio& saiide, Bésica, Secundéria e Tercidria, que formam uma unidade configurando um sistema capaz de prestar assisténcia integral (Brasil, 1990¢) ‘A integracao das aces remete 8 continuidade do atendimento e a0 cuidado dos usuarios em seus. diversos niveis, o que deve ser regulado palas unida- des prestadoras de servico. No entanto, essa integra cdo por diversas vezes e maneiras nao ocorre, seja por descompromisso daqueles que trabalham, por dificuldades impostas pelas unidades ¢, ainda, por ‘uma série de razées que deixam a populacao sem a devida atencao e continuidade de tratamento e sem A garantia dos direitos constitui-se na democra cia participativa em que os cidadaos influenciam .cimento dos seus direitos. na definicdo ¢ execucao das politicas de satide (asconcelos e Pasche, 2006). Essa participacao da comunidade na gestao do SUS, por meio do contro: Ie social, amparada pela Lei 8.142 de 1990 (Brasil, 1990b), diz respeito & representacdo dos usudrios no processo de participacao do fazer e pensar satide, seja nas Unidades de Satide, nos Conselhos ou nas Conferéncias de Satide que ocorrem oportunamente nas trés esferas de governo, 0 Sistema Unico de Satide, como responsavel por acées de promocio, prevencao e recuperagio de saiide, apresenta propostas legislativas completas para um sistema de saiide nacional. Porém, num pais com dimensdes territoriais continentais como o Brasil, que enfrenta uma série de desafios sociais, econdmicos, politicos, com inameras desigualdades, sua efetivago torna-se de dificil realizagao. Sao diversos os problemas a enfrentar, a comecar pela situagao de vida dos cidadaos. De acordo com o con ceito ampliado de satide da Organizacao Mundial de Sade, “sade é um estado de completo bem-estar fisico, doenca’, envolvendo questdes como emprego, lazer, educacdo, moradia, sancamento, entre outras (WHO, 1946). Muito embora esse conceito seja tomado como mera utopia, pois algum grau de doenca é compativel com o estado de satide, é imprescindivel considerar a participacao dos determinantes socioeconémicos no processo satide-doenca. Desse modo, é mister uma integragao entre o setor satide com diversos outros para se alcancar o estado de satide de fato ede direito ental e social e no somente a auséncia de Limitagées e Desafios a Enfrentar na Consolidacao do SUS Pode-se dizer que 0 SUS enfrenta uma problemati- zacdo dicotémica entre o que esté escrito e o que é realizado. A descrenga do povo brasileiro num sis: tema de satide para todos leva milhdes de pessoas a procurar por servigos, planos ou seguradoras de satide privados, pagando, por conseguinte, abusivos valores, especialmente para a populacdo de faixa etdria mais avancada que, em funcao do aumento da expectativa de vida ¢ dos agravos da terceira idade, 6 que mais necesita. Esse fato sustenta-se na perspectiva de que um dos temas com maiores demandas recebidas pela Agéncia Nacional de Satide Suplementar (ANS) consiste no aumento da mensali dade de operadoras e planos de satide (Brasil, 20076) Porém,o sistema de satide suplementar éimportante num pais com desigualdades sociais acentuadas, como o Brasil, onde existe uma grande concentra- 40 de renda, tornando-se necesséria a utilizacao do sistema privado por aqueles que possam, 0 qual tem estabelecido maiores parcerias com 0 SUS, em carter complementar de acdes, devido & insufici- éncia na disponibilidade e oferta de determinados servicos pablicos. Essa participacao do setor privado no SUS € mais pronunciada na atengao hospitalar ena oferta de servicos especializados de alto custo edensidade tecnolégica, que o sistema pablico nao péde aleancar devido & insuficiéncia de investimen- tos (Vasconcelos ¢ Pasche, 2006). A complexidade do SUS, as dificuldades locorre gionais, a fragmentacdo das politicas e programas de satide, a qualificagao da gestao e do controle social, a organizacao de uma rede regionalizada e hierarquizada de acdes ¢ servicos de satide tém se constitufdo em desafios permanentes na consolida- 40 do Sistema Unico de Satide. A dificuldade dos gestores para promover a integracdo entre estados, municipios e as redes assistenciais estatais com os servicos de abrangén- cia nacional tem levado a problemas no acesso aos servigos e a0 comprometimento da universalidade e integralidade (Vasconcelos, 2005). Assim, diversos usudrios nao usufruem do direito universal sadde. A existéncia de gestores mais preocupados com campanhas politicas eleitorais do que com a satide dos seus cidadaos leva a falhas graves no sistema e ‘omais prejudicado com isso é 0 préprio povo, Nesse sentido, amelhoriana gestdo reflete-se, consequen. temente, num melhor aporte financeiro do setor, com um equinime repasse de recursos, melhor utilizacao e aplicacao desse investimento, maior remuneragio salarial para os profissionais da satide, como possi- velestabelecimento de vinculos, hoje ainda bastante precarizados, gerando desmotivacao e desestimulo entre os servidores. Nao obstante, a precarizagao do trabalho de sagrada os profissionais da rede que, por diversas razées, nao recebem salérios justos, ndo tém vincu- los empregaticios nem direitos trabalhistas. Essa

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