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6 A ECONOMIA DOS BENS SIMBOLICOS A questio da qual vou tratar esteve sempre presente, descle meus primeiros trabalhos de emologia sobre a Cabilia até minhas pesquisas mais recentes sobre o mundo da arte e, especificamente, sobre 0 funcionamento do mecenato nas sociedades moderas.' Gostaria de tentar mostrar que podemos, com mesmo instrumen- sal, pensar sobre coisas tio diferentes como os desafios de honra uma sociedade pré-capitalista ou, em sociedades como a nossa, 2 atuacio da Fundacao Ford ou da Fundacao da Franga, as trocas ‘geragdes no interior da familia e as transagdes nos mercados de bens culturais ou religiosos etc. Por razdes evidentes, os bens simblicos sto espontanea- ente alocados, pelas dicotomias comuns (material/espiritual, cor- So. espitito eic.), no pélo espiritual e, assim, freqllentemente con- ssderaddos como fora do alcance de uma anilise cientifica. Eles se situem em um desafio, a0 qual gostaria de responder com 0 © Exe teto€a wanscricio de dois cuss do Colége de France, ofeyecidos na Faculdade < Antrapolaga e Sociologia da Universidede Limire-Lyon I,m Fevereiro de 1994 157 apoio de rabalhos muito dispares: em primeito lugar, as aniilises que fiz clo funcionamento da economia cabila, exemplo acabado de economia pré-capitalista, fundacla sobre a recusa do econdmico, Ro sentido que the atribuimos; em seguida, as pesquisas que realizei, em momentos e em lugares diferentes (Cabilia, Béarn etc), sobre 0 funcionamento da economia doméstica, isto é, sobre as focas, no interior da familia, entre os membros da unidade doméstica ¢ entre as geracées; as andlises, nunca publicadas, do que chamo de economia da oferenca, isto é, 0 tipo de transagio Que se instaura entre a Igreja e os figis; ¢, ainda, os trabalhos sobre @ economia de bens culturais, através das pesquisas que fiz sobre © campo literirio ¢ sobre a economia burocratica. Partinclo dos dlados que pude obter na anilise desses universos sociais, fenome- nicamente muito diferentes, e que munca foram comparados como ‘ais, gostaria de tentar resgatar os principios gerais de uma econo- mia dos bens simbélicos, Afirmei ha algum tempo, em um de meus primeitos livros, com a intrepidez somada & arogincia (e ignorincia) da juventude (mas foi talvez por ter ousaddo que posso fazer 0 que faco hoje... ue © papel da sociologia era o de construir uma teoria geral da economia das priticas. O que pareceu a alguns adeptos do fasi-rea ding (enue os quais, infelizmente, hi muitos professores) uma ‘manifestagio de economicismo, sublinhava, ao contrario, a vontade de arrancar do economicismo (marxista ou neo-marginalista) as ‘economias pré-capitalistas € setores inteiros das cconomias dlitas apitalistas, que nao funcionam inteiramente de acorelo com a lei do interesse como busca da maximizagio do lucto (monetirio). O- universo econdmico € feito de varios mundlos econdmicos, dotados de “racionalidades" especfficas, que supdem e exigem, 20 mesmo tempo, disposicdes “razodveis” (mais do que racionais), ajustadas as regulariaces, inscritas em cackt um deles, &s *tazdes priticas’ que os caracterizam. Os mundos que’ vou descrever tém em comum a ctiagto de condigdes objetivas para que os agentes sociais tenham ai interesse no “desinteresse”, o que parece paradoxal 158 Retrospectivamente, percebi que, na minha compreensio cla economia cabila, utilizei-me, de maneita mais inconsciente do que consciente, da conheciniento pritico que tinha, como todo mundo (todos nés temos em comum um passado no universo da Familia), da economia doméstica para entender essa economia que freqiientememte contradiz a experiéncia que possamos ter da economia do cilculo. E, inversamente, tenclo compreendido essa economia ndo-econdmica, pude voltar & economia doméstica ou A economia da oferencla, com um sistema de questoes que nao Poderia ter construido, acredito, se tivesse dedicado minha vida & sociologia da familia. A dédiva e 0 “toma la, da ca” De forma resumidla, ji que mo posso supor que se conheca © que disse em Le sens pratique, voltarei a algumas anilises desse livro, tentando recuperar alguns prineipios gerais da economia simbolica. Comecando pela anilise da troca de dadivas, da qual relembrarei rapidamente o essencial, Mauss descreveu a troca de dlidivas como seqliéncia descontinua de atos generosos; Lévi- Strauss definiu-a como uma estrutura de reciptocidade que trans- cendia os atos cle toca, nos quais a dlidiva remete A sua retzibuicao, Quanto a mim, observei que o que faltava nessas duas anslises era © papel determinante do intervalo temporal entre a dadiva ¢ a retribuiglo, o fato de que, em praticamente todas as sociedades, admite-se tacitamente que nao se devolve no ato o que se recebeu — © que implicaria uma recusa. Depois, perguntei-me sobre a fangao desse intervalo: Por que € preciso que a retiibuicao seja dlferida e diferente? F mostrei que o intervalo tinha como fungio colocar um véu entre a eédiva e a retsibuigao, permitindo que dois ates perfeitamente simétricos parecessem atos singulares, sem relagao. Se posso definir minha dAdiva como uma déciva gratuita, generosa, que nao espera retribuigao, é porque existe um risco, por menor que seja, de que mio haja retribuicao (sempre lid ingratos), 159 logo, um suspense, uma incerteza, que permite a existéncia, como tal, do intervalo entre o momento em que se di € 0 momento em. que se recebe. Em sociedades como a sociedade cabila, a pressto € de fato muito forte, ea liberdade de nfo retorno ¢ infima. Mas a possibilidade existe ¢, por isso, a certeza nao & completa, Portanto, tudo se passa como se o intervalo de tempo, que distingue a troca dle didivas do “toma li, df ca’, It estivesse para permitir que quem. «ti defina sua diciva como uma dadiva sem retorno — ¢ a0 que retribut, de definir sua retribuicao como gratuita ¢ niio determinada pela cidiva inicial Na realidade, a verdade estrutural que Lévi-Strauss desven- dou nao € ignorada. Recothi na Cabilia iniimeros provérbios que dizem mais ou menos que o presente é um infortinio porque, no final das contas, € preciso retribui-lo. (O mesmo acontece com a palavra dada ou 0 desafio.) Em todos 0s casos, 0 ato inicial € um atentado a liberchade cle quem o recebe. Ele contém uma ameaga: obriga a retribuigio, © A retribuigao com acréscimo; isto é, cria obrigacées, é um modo de reter, criando devedores. Mas essa verdade estrutural é como que recalcada coletiva- mente. $6 podemos compreendler a existéncia do intervalo tempo ral se tivermos a hipstese de que quem a e quem recebe colaboram, sem sabé-lo, com um trabalho de dissimulacao que vist negara verdade da toca, o “toma Ii, da cé", que significa a anulagao da troca de dfdivas, Estamos aqui diante de um problema dificil: se a sociologia se atém a uma descric3o objetivista, reduz a twoca de dlidivas ao “toma Ii, di cf” © deixa de poder mostear a dliferenga entre uma troca dle dadivas e uma ago de crédito, Assim, © importante na toca de didivas € que, através do intervalo de tempo interposto, os dois trocadores trabalham, sem sabé-lo ¢ sem. estarem combinadlos, para mascarar, ou recalcar, a verdade objetiva do que fazem, Verdacle que 0 soci6logo desvenda, mas correndo 2 CLP. Bourdon Je sens patign, Pals, Min, 1980, pp. 19018 © isco de descrever como cilculo cinico um ato que se quer desinteressado ¢ que € preciso tomar como tal, em sua verdade vivida, ¢ que o modelo teGrico também deve perceber ¢ do qual deve dar conta ‘Temos af uma primeira propriedade ca economia das trocas simbélicas: trata-se de twocas que tém sempre verdades duplas, dificeis de manter unidas. f preciso levar em conta essa dualidade. De forma mais geral, 6 podemos compreencer a economia dos bens simbélicos se aceitamos, dle saida, levar a sério esta ambiglida- de que nao € criada pelo pesquisador, mas que estd presente na propria realidade, essa espécie de contradicio entre a verdade subjetiva e a realidade objetiva (@ qual a sociologia chega através da estalistica ¢ 0 etndlogo através da anilise estrutural). Essa dualidade torna-se possivel, ¢ pode ser vivida, através de uma espécie de Jedeception, de avtomistificacao. Mas essa self-deception individual @apoiada por uma self-deception coletiva, um real desconbecimento coletiva’, cujo fundamento se inscreve nas estruturas objetivas G@ ogica da honra, que comanda todas as ocas — de palavras, de mulheres, de homicidios etc.) e nas estruturas mentais', excluindo a possibilidade de pensar e de agir de outro modo, Se os agentes podem ser, simultaneamente, mistificadores de si proprios e dos outros, ¢ mistificados, € porque eles foram imersos, desde a inffincia, em um universo no qual a troca de didivas € socialmente instituida em disposicées € crengas € eseapa, assim, 20s paracloxos que criamos artificialmente quando, como Jacques Derrida em um livro recente — Passions*—, coloca- mo-nos na légica da consciéncia e do livre arbitrio de um individuo isolado, Quando esquecemos que quem di € quem recebe esto preparados inclinadlos, por tocio um trabalho de socializagao, a entrar sem intenc2o nem célculo de lucro na troca generosa, cuja 3. Bion, p19 4. Bien, p35 Gobee 0 senso de hone, 0 m9. © Pais Campion, Paps, 1985. Logica se impoe a eles objetivamente, podemos concluir que a dlidiva gratuita nao existe, ou que € impossivel, jf que 86 podemos imaginar os dois agentes como calculistas, tendo como projeto subjetivo fazer © que fazem objetivamente, de acordo com modelo Iévi-straussiano, isto é, uma troca que obedece a logica da reciprocidade, Reconhecemos af outra propriedade «a economia das trocas simbélicas: 6 o tabu da explicitagdo (cuja forma, por exceléncia, (© prego). Dizer do que se trata, declarar a verdade da troct 08, como dizemos, as vezes, “quanto custou" (quando damos um’ presente, retiramos a etiqueta do preco...), € anular a troca, De ppassagem, vemos que as condlutas, das quais a roca de daclvas € paradigma, colocam um problema bem dificil para a sociologia, que, por definicto, explicita: ela € obrigada a dizer 0 que € dado e que deve permanecer tacito, nao dito, sob o risco de ser destruido ‘enquanto tal Podemos encontrar uma verificagao dessas andlises ¢ uma comprovagio desse tipo de tabu da explicitagto que encobre @ economia das trocas simbélicis, em uma descriclo dos efeitos produzidos pela introducio do prego. Assim como podemos util: zara economia das trocas simbélicas como analisador da economi da troca econémica, também podemos, inversimente, pedir @ ‘economia da troca econémica que sirva de analisador da economia das trocas simbélicas. Portanto, 0 prego, caractertstica propria di economia das trocas econémicas, por oposigao A economia de ens simbélicos, funciona como uma expressio simbolica de consenso sobre a taxa de troca envolvida em toca troca econdmiet Esse consenso @ respeito da taxa dle troca esté presente tambdit fem wma economia das trocas simbélicas, mas os termos ¢ condigdes af sto implicitos. Na troca de dadivas, 0 prego cleve fl implicito (como no caso da etiqueta): nao quero saber a verde sobre o prego ¢ nao quero que 6 outro saiba. Tudo se passa com c nos puséssemos de acordo para evitar de nos pormos explicit nente de acordo a respeito do valor relativo das coisas trocadas, 1 toda definicno prévia, explicita, dos termos da troca, isto é, do prego (0 que, como observa Viviana Zelizer, traduzse ‘em um tabu sobre 0 uso da moeda em certas trocas — nfo se da 1um salério ao filho ou & esposa € © jovem cabila que pede um salério a0 pai é motivo de escfindalo), A linguagem que utilize tem conotacdes finalistas © pode dar a impressio de que as pessoas fecham os olhos deliberadamente; de fato, seria preciso dizer que “tudo ocotre como se”, Recusar a logica do prego & um modo de recusar 0 cilculo e © caleulismo. O fato de {que o consenso a respeito da taxa de troca seja explicito sob a forma de prego & 0 que torna possivel tanto o caleulismo quanto a previsibilidade: sabemos onde estamos. Mas € 0 que também armuina qualquer economia das trocas simbélicas, economia das coisas sem preco, no seu duplo sentido. (Falar do prego de coisas sem prego, como as vezes somos obrigados a fazer, pela necessidade de anilise, é introduzir uma contradi¢io nesses termos.) © silencio a respeito da verdade da troca é um silencio compartilhado. Os economistas que apenas concebem a acio racional, calculada, em nome de uma filosofia finalista ¢ intelectua- lista da aco, falam de common knowledge: uma informacto € common knowledge quando podemes dizer que todos sabem que todos sabem que todos possuem essa informago ou, como tam bém se diz, que se trata de um segredo de Polichinelo. Poderiamos Ficar tentados a dizer que a verdade objetiva da troca de dadivas & em certo sentido, common knowledge: sei que sabes que, quando te dou algo, sei que retribuiras etc. Mas, 0 que € certo, é que esse segredo de Polichinelo é tabu. Tudo isso deve ficar implicito. Ha uitas mecanismos sociais objetivos € incorporados em cada agente que fazem com que a proptia idéia de divulgar esse segredo (dizendo: basta de representar, deixemos de apresentar trocas 5. EY. Zelizer. Pricing the priceless cbild. Nova York, ase Books, 1957; The social meaning of money. Nosa York, Basle Books, 1954 163 reciprocas como se fossem diclivas generosas, isso é hipocrisia etc.) seja sociologicamente impensivel. Mas falar, como tenho feito, de common knowledge (ou de self-deception), & permanecer em uma filosofia da consciéneia e agir como se cada agente fosse habitado por uma dupla conscién- cia, uma conseiéncia desdobrada, divicida contra si mesma, cons. Gientemente reprimindo uma verdade da qual tem conhecimento (nao invento nada: basta ler Ulises e as sereias, de Jon Elster). Nao podemios dar conta dle todas as condlutas duplas, sem duplicidade, a economia das trocas simbélicas, a io ser abandonando a teoria da acto como produto de uma consciéncia intencional, de um projeto explicito, de uma intencto explicita ¢ orientada por um objetivo explicitamente colocado (particularmente, aquele que a anilise objetiva da troca aponta). A teoria da agio que proponho (com a nogio de habitus) implica em dizer que a maior parte das agdes humanas tem por base algo diferente da inteneio, isto 6, disposigdes aclquiridas que fazem com que a agio possa ¢ deva ser interpretada como orientada em directo a tal ou qual fim, sem que se possa, entretanto, dizer que ela tena por principio a busca consciente desse objetivo ( af que 0 ‘tudo ocore como se” € muito impor tante). O melhor exemplo de disposicio 6, sem divide, 0 sentido do jogo: 0 jogacor, tendo interiorizado profunclamente as regulari dades de um jogo, faz 0 que faz no momento em que € preciso fazé-lo, sem tet a necessidade de colocar explicitamente como finalidade o que deve fazer. Ele nao tem necessidade de saber conscientemente 0 que faz. para fa78-lo, ¢ menos ainda de se petguntar explicitamente (a nao ser em algumas situagées eriticas) (© que 0s outros podem fazer em resposta, como faz crer a visio do jogo de xadrez ou de bridge que alguns economistas (especial- mente quando aderem 2 teoria dos jogos) atribuem aos agentes. Assim, a troca de didivas (ou de mulheres, de servigos ete), concebida como paridigma da economia de bens simbélicos, 164 opde-se a0 “toma li, ci cA” da economia econdmie: tem como principio um sujeito calculista, mas um agente social- mente predisposto entrar, sem intencao ou célculo, no jogo da toca. E nesse sentido que ela ignort ou recusa sua verdace objetiva de troca econdmica, Outro modo de demonstra-lo est. em que, nessa economia, ou deixamos 0 interesse econdmico em estado implicito, ou, se o enunciamos, é através de cufemismos, isto 6, em uma linguagem de secusa, O eufemismo € 0 que nos permite clizer tuclo, dizendo que nao o dizemos; o que permite nomear o inominével, isto 6, em uma economia de bens simbéli- cos, 0 econémico, no sentido usual do termo, o “toma la, da c€” Disse “eufemismo”, poderia ter dito “conformagao”. O traba- Iho simbdlico consiste em, sinultaneamente, colocar-se em forma e exibir as formas. O que 0 grupo exige € que exibamos as formas, que honremos a humanidade dos outros, atestando a nossa pro- Nao existe sociedade que ceixe de honrar aqueles que a honram aparentando recusara lei do interesse egoista, O que se exige nao € que fagamos inteiramente © que € necessirio, mas sim que, pelo menos, mostremos sinais de que nos esforcamos por fazé-lo. Nao se espera dos agentes sociais que eles se conformem perfeitamente, mas sim que cles ajam em conformidade, que mostrem sinais visiveis de que, se pucessem, respeitariam as regras (€ assim que entendo a ‘1 hipoctisia € uma homenagem que © vicio presta virtude”). Os eufemismos priticos sto uma espécie de homenagem pria, afirmando nosso “ponto de honra espiritualista’ maxima que prestamos & ordem social € aos valores que a ordem social celebra, mesmo sabendo que ela esta destinad a ser ridiculasizadla. A alguimia simbotica Essa hipocrisia estrutural impoe-se especialmente aos domi- nantes de acordo com a maxima “noblesse oblige’. Para os cabilas, 1 economia econdmica, tal como a praticamos, é uma economia 165 de mulheres. Os homens dedicam-se a questées de honra, que impedem qualquer concessao a Logica da economia econdmica. 0 homem honrado nao pode dizer: "Tu me devolverés antes do plantio"; ele deixa vago 0 prazo de pagamento, E tampouco: “Tu me dais quatro quintais de trigo em troca do boi que vou te ‘emprestar”. Ao passo que as mulheres dizem a verdade dos precos ¢ dos prazos; elas podem se pesmitir dizer a verdacle econémica ji que, de qualquer modo, estio exclufcas (pelo menos como sujet tos) da economia das trocas simbdlicas. O que € também vilido nas nossas sociedades. Verse-i, por exemplo, no néimero da revista Actes de la Recherche dedicado & “economia doméstica’” que, com freqiiéncia, os homens esforcam-se para fazer com que as mulheres facam o que eles nto podem fazer sem se rebaixat, como perguntar 0 prego, [A recusa da economia cumpre-se em um trabalho objetiva: mente votado 2 transfiguragto das relagdes econdmicas, espectal- mente das relagdes de exploracto Chomem/muiher, irmao mais yelho/irmao mais novo, patro/empregaclo etc), transfiguracio pelo verbo (através do evfemismo), mas também por atos. Existem, cufemismos priticos. A troca de dadivas constitui-se gragas a0 intervalo de tempo (Fazemos 0 que fazemos, sob a aparéncia de nao fazéslo). Os agentes engajados em uma economia de trocas simbélicas gastam uma parte considerivel de sua energia na claboracao desses enfemismos. (Essa é uma das razdes porque a economia econ6mica é muito mais econdmica. Quando, por exem- plo, ao invés de dar um presente “pessoal”, isto é, adequado a0 ‘gosto do destinatirio, acabamos, por preguica ou comodicade, por preencher uum cheque, economizamos o trabalho de pesquisa que supe a atenco € 0 cuidado necessirios para que o presente seja adequado A pessoa, a seus gostes, que chegue no momento certo 6 CEP. Bowden, ep. eu, p. 318. >. “Ueconome dea maton, Aces dee Rcterc Scene Soles 1/82 eg de 1990). e ete, ¢ que seu “valor” nao seja diretamente redutivel ao valor em dinheiro.) A economia econdmica , portanto, mais econdmica, na medida em que permite economizar 0 trabalho de construcao simbéliea que objetivamente leva a dissimular a verdade objetiva da pritica (© exemplo mais interessante dessa espécie de alquimia simbélica seria a transfiguragao das relagdes de dominacio ¢ de exploracao. A troca de déclivas pode se dar entre iguais, contribuin- do para reforcar a "comunhao", a solidariedade, através da comu- nicagio que cria os lagos sociais. Mas pode também dar-se entre agentes real ou virtualmente desiguais, como no potfaich que, 2 rer nas descrigdes dele feitas, institui relagées de dominagto simbdlica duradouras, relagdes ce dominagio fundadas na comu- nicagio, no conhecimento € no reconhecimento (no sentido du- plo). Entre os cabilas, as mulheres trocam constantemente peque- nos presentes cotidianos que tecem as relagdes sociais sobre as quais se apoiam muitas coisas importantes telativas, principalmen- fe, & reprodugao do grupo, ao passo que os homens sto os responsiveis pelas grancles trocas lescontinuas, extra-ordinarias. Entre os atos comuns € 0s alos extraordindrios de troca, dos quais o potlaich € 0 exemplo limite (como ato de dar para além das possibilidacles de setribuigto, 0 que coloca aquele que recebe ‘em estado de devedor, de dominado), hé apenas uma diferenga de grau. Na dadliva mais igualitiria, existe a possibilidade do efeito de dominacao, Ena dédiva mais desigual esti, apesar de tudo, implicito um ato de roca, um ato simbélico de reconhecimento da igualdade na humanidade, que s6 tem valor entre aqueles que possuam as categorias de percepgao que Ihes permitam perceber a toca como troca € de ter interesse no objeto da troca, $6 um trobriandés bem socializado recebe as esteiras € as conchas que devem ser reconhecidas como dadivas € suscitar seu reconhect mento; do contririo, no ha nada a fazer, isso nao Ihe interessa Os alos simbdlicos sempre supdem atos dle conhecimento € de reconhecimento, atos cognitivos por parte daqueles que sto seus destinatirios. Para que uma troca simbélica funcione, é preciso que ambas as partes tenham categorias de percepsao ¢ de idénticas. Isso vale também para os atos de dominacio simbdlica que, como vemos claramente no caso da dominacio ulina®, s40 exercidos com a cumplicidade objetiva dos clomi- mados, na medida em que, para que tal forma de dominacao se instaure, é preciso que o dominado aplique aos atos do dominante (ea (odo seu sex) estruturas de percepeao que sejam as mesmas que as que o dominante utiliza para prochuzir tais atos. ‘A dominagio simbélica (€ um modo de defini-la) apdia-se no desconhecimento, portanto, no reconhecimento, dos principios em nome dos quais ela se exerce. Isso vale para a dominacio masculina e também para certas relagoes de trabalho, como aque- las que, nos paises arabes, vinculam ao seu senhor o khan espécie de meeiro que recebe a quinta parte da colheita, ou, conforme Max Weber, para 0 empregado rural (por oposic20 a0 operirio rural). © sistema do quinto s6 pode funcionar em socie- dades que ignoram os limites do mercado ou do Estado, se 0 meeizo de algum modo “domesticado”, isto é, vinctilado por lacos que no sao 0s juridicos. Para vinculi-lo, é preciso encantar a relacao de dominagao ¢ de exploracio, de modo a transformé-la em relagko doméstica de familiaridade, através de uma série continua de atos acequados « transfiguré-la simbolicamente, eufe- mizando-a (sesponsabilizando-se pelo filho, casando a filba, dan- do-lhe presentes etc.) Em nossas sociedades, e até no centro da economia econd- ‘mica, éncontramos ainda a l6gica da economia de bens simbdlicos ea alquimia que transforma a verdade das relagdes de dominacao no paternalism. Outro exemplo seria a relagto entre os irmlos 8, P, Bourdieu. “La domination masculine”, Actes de la Recherche ow Sciences Sociales 84 (eetembra de 1950), pp. 3 mais velhos € mais mogos, tal como ela se apresenta em certas iradigdes (os “irmaos mais novos da Gasconha”): nas sociedades com diteito de primogenitura, é necessirio (pode-se dizer, era necessirio) que o irmao mais mogo se submeta, o que significa, com frequéncia, que renuncie a se casar € se torne, como diz. 0 cinismo nativo, “um empregado sent salério” (ou, como dizia Galbraith, a respeito da dona de casa, um “eripto-criado” — enpto-servand), que ame os filhos do irmio mais velho como se fossem seus (locos 0 encorajam), ou que parta, aliste-se no exército (os mosquetciros), torne-se guarda ou carteito. © trabalho de domesticagto (aqui, do imo mais novo), necessirio para transfigurar a verdade objetiva de uma relagio, € criagao de todo 0 grupo, que © encoraja © recompensa. Para que a alquimia funcione, como na troca dle ckidlivas, & preciso que seja sustentada por toca a estrutura social, logo, pelas estruturas men- tais € disposigdes produzicas por essa estrutura social; é preciso que exista um mercado para as agdes simbélicas conformes, que haja recompensas, lucros simbélicos, com freqténcia conversiveis ‘em lucros matetiais, que se possa ter interesse pelo desinteresse, que aquele que tata bem seu empregado seja recompensado, que dele se diga: “ um homem honesto, um homem honrado!” Mas ‘essas relacdes permanecem ambiguas, perversas: o kbammes sabe muito bem que pode atingir seu patrao; se ele se vai, fingindo que 6 patrio 0 maltratou, faltou com sua palavra (a mim, que tanto fiz por ele..”), a desonra recai sobre © patio. Do mesmo modo, © pairao pode invocar as faltas € os exros do kbamms, se esses so conhecidos de todos, para despedi-lo mas se, exasperado porque seu khamnnes Ihe roubou azeitonas, ele for levaclo a esmagi-lo, humill-lo além dos limites, a situaigao volta-se a favor do fraco. Esses jogos extremamente complexos, de um extraordindrio refina- mento, desenrolam-se diante do tribunal do juizo da comunidade, que também utiliza principios de percepgao e de avaliacao identi cos aos dos envolvidos © reconhecimento Um dos efeitos dla violencia simbolica é a transfiguragao das relagdes de dominacao € de submissiio em relagdes afetivas, a transformagao do pacer em carisma ou em encanto adequaco a suscitar um encantamento aletivo (por exemplo, nas relacdes entre patroes ¢ secretdrias). O reconhecimento da divida tomna-se reco- nhecimento, sentiment duradouro em telagio a0 autor do ato generoso, que pode chegar 3 alei¢lo, a0 amor, como vemos com particular clareza nas relagdes entre geragdes. Aalquimia simbdlica, tal como acabo de descrevé-la, produ, em proveito daquele que cumpre com esses atos de eufemismo, de transfiguracto, de conformagio, um capital de reconhecimento que the permite ter efeitos simbélicos. £ o que chamo de capital simbélico, atribuindo assim um sentido rigoroso ao que Max Weber designava pela palavra carisma, conceito puramente descritivo, que ele tomava explicitamente — no inicio do capitulo sobre a religito em Wirtschaft und Gesellschaft — como equivalente 20 «que a escola durkheimiana chamava de mari O capital simbaico uma propricdade qualquer — forga fisica, riqueza, valor guerrei- ro — que, percebida pelos agentes sociais dotados das categorias de percepgao ¢ de avalincao que Ihes permite percebé-la, conhe- cé-la e reconhect-ta, torna-se simbolicamente eficiente, como uma verdadeita forga méigica: uma propriedade que, pot responder as “expectativas coletivas’, socialmente constitufdas, em relagao as crengas, exerce uma espécie de acto 2 dlistincia, sem contato fisico. Damos uma ordem e ela & obedecida: € um ato quase magico. Mas é apenas em aparéncia uma excecito a lei de conser vacio da energia social. Para que o ato simbélico tenha, sem gasto visivel de encrgia, essa espécie de eficicia magica, € preciso que um trabalho anterior, freqlentemente invisivel e, em todo caso, esquecido, recalcado, tena produzido, naqueles submetides ao ato de imposicio, de injungao, as disposigdes necessarias para que cles tenham a sensacao de ter de obedlecer sem sequer se colocar a questao da obediéneia. A violencia simbélica é essa violencia que textorque submissdes que sequer sao percebidas como tais, apoiary dose em “expectativas coletivas’, em crengas socialmente ineulea- das, Como a teoria da magia, a teoria da violencia simbélica apéia-se em uma teoria ca crenga ov, melhor, em uma teoria da producio «a crenga, do trabalho de socializagao necessario para prodluzir agentes dotados de esquemas de percepeio € cle avalia- ‘Glo que hes fardo perceber as injungoes inscritas em uma situacdo, ‘ou em um discurso, © obedecé-las |A crenca de que falo nao é uma crenga explicita, colocada explicitamente como tal em relagio & possibilidade de uma nlo- renga, mas uma adesio imediata, uma submissio doxica As injungdes do mundo, obtida quando as estruturas mentais daquele fa quem se dirge a injuncflo estio de acordo com as estruturas ‘envolvidas na injuncio que the & dirigida. Dizemos, nesse caso, que a coisa estava dada, que nao havia o que fazer. Diante do idesafio 4 honra, ele fez o que devia fazer, 0 que em tal caso faz lum homem honrado de verdade, e ele o fez. cle maneiza particular- mente satisfat6ria (ja que ha sutilezas no modo de satisfazer a uma injuncio). Aquele que responde As expectativas coletivas, que, sem qualquer eilculo, ajusta-se de imediato as exigencias inseritas em ‘uma sitwacio, tira todo o proveito do mercado de bens simbélicos. Tira proveito da virtude, mas também proveito do desembarag da elegincia, F ele € tanto mais clogiado pela consciéncia comum: por ter Feito, como se fosse natural, algo que era, como se diz, a {iniea coisa a fazer, mas que cle poderia nao ter Feito. hima caracteristica, importante: esse capital simbélico é ‘comum a todos 03 membros de um grupo. Dado que € um ente percebido, existente na relacdo entre propriedades que os agentes dletém e as categorias de percep¢ao (alto/baixo, masculino/femini- no, grande/pequeno etc.) que, enquanto tais, constituem € cons: tiroem categorias sociais (os do alto/os de baixo, 0s homens/as mulheres, os geandes/os pequenos) funclacas na unio (alianga, comensalidade, casamento) ¢ 10 (0 tabu do contato, das unides desiguais etc), ele esta vincu grupos — ou a nom de grupos, de familias, cls, tribos — € &, ao mesmo tempo, instrumento e alvo de estratégias coletivas que v ilo ou ampli-lo © de estratégias individuais que visam adquiti-lo ou conservé-lo, através da uniio aos grupos que o detém (pela troca de didivas, comensalidade, casamento etc.) através cht separacio dios grupos dlesprovidlos, ou pouco providlos, dele (as etnias estig- matizadas),” Nas sociedades diferenciaclas, uma das dimensdes do capital simbélico & a identicade éinica que, junto com o nome, 1 cor da pele, 6 um percipi, um ente percebido, que funciona como capital simbélico positive ou negativo. clo que as estruturas de percepgao e de avaliagao sto, no essencial, produto da incorporagao de estruturas objetivas, a estru- tura de distribuicao do capital simbdtlico tende a cemonstrar grande estabilidade. E as revolugdes simbélicas supdem uma revolugio mais ou menos radical dos instrumentos de conhecimento e das categorias de percepgio.” Assim, a economia pré-capitalista apoia-se fundamentalmen- te em uma recusa do que nds consideramos como a economia, 0 que obriga a ter como implicita uma série de operages ¢ de representagdes sobre essas operigdes. A segunda propriedade, correlativa, é a transfiguragio de atos econdmicos em tos simb licos, transfiguragtio que pode se realizar praticamente, como na troca de didivas, por exemplo, na qual a ddiva deixa cle ser um objeto material para tornar-se uma espécie de mensagem ou de simbolo adequado 2 criagaio de um Lago social. Terceira proprieda- de tipo muito especial produz-se e acumula-se um tipo especial de capital, que chamei cle capital simbélico e que ica surgi em uma relagio social entre as $i ha lle tenttedeitteaias tas tact op. ott, pp. 242-243. aa so, GP Boh tile de opt 20 172 ptopriedades possuidas por um agente © outros agentes dotados de categorias de percepeiio adequadas: ente percebido, consirufdo, de acordo com categorias de percepcio especificas, 0 capital simbélico supde a existéncia de agentes sociais constitudos, em seus modos de pensar, de tal modo que conhecam € reconhecam (© que lhes € proposto, ¢ creiam nisso, isto é, em certos casos, rendanlhe obediéncia e submissio. O tabu do caleulo ‘A constituigao da economia como economia, progressiva- mente feita nas sociedades européias, acompanha a constituigio nnegativa de ilhotas ce economia pré-capitalista que se perpetam no universo da economia constituido como tal, Esse proceso corresponde 2 emergencia de um campo, de um espaco de jogo, lugar de um jogo de tipa novo, cujo principio é a lei do interesse material. Instaura-se no centro do mundo social um universo no interior do qual a lei da dadiva retribufda torna-se a regra explicita ce alirmada prblicamente, de maneira quase cinica. Quando se trata de negécios, por exemplo, as leis da familia sto suspensas. Sendo ‘011 niio meu primo, vocé sera tratado por mim como wm comprador qualquer; nao ha preferéncia, privilégio, excegto, isengio. Para os cabilas, a moral dos negécios, do mercado, opde-se 8 moral cla boa-fé, da do bit niya Ghomem de boa fé, inocente, honrado), 0 que impede, por exemplo, que emprestemos dlinheiro a juros a alguém cha familia, O mercado € 0 lugar do célculo ou até da astiicia diabélica, cle transgressdo diabslica do sagrado. Ao contririo de tudo 0 que é exigido pela economia de bens simbélicos, af um gato € chamado de gato, o interesse de interesse, 0 Jucro de lucro, Af acaba 0 trabalho de eufemizacio que, entre os cabilas, impunha-se 21é no mercado: as relagdes de mercado estavam elas proprias imersas (embedded, como diz. Polanyi) em relagdes sociais (nao se comercia de quakquer modo € com qualquer um; em caso de venda ou de compra, cercamo-nos de fiadotes, escolhidos entre pessoas 173 conhecidas ¢ reputadas por sua honra), ¢ 86 progressivamente logica do mercado se autonomizou, de certo modo, desprenden- do-se de tock essa rede de relagoes sociais m: encantadus cle dependéncia. ‘ou_menos No final desse proceso, por um eleito de inversto, a economia doméstica passa a ser a excegao. Max Weber diz em algum logar que iis os negocios econdmicos sao concebidos cle acordo com 0 modelo das relagoes de parentesco a sociedades nas quais as préprias relagoes de parentesco sto concebidas le acordo com o modelo das relagoes econdmicas. O espitito de cflculo, {4 reiteradamente recaleaclo (ainda que a tentagio do cilculo nunca estivesse ausente, entre os cabilas como alluires), afirma-se progressivamente, 3 medida que se desenvolvem as condigoes favordveis a seu exercicio € a sua afirmagao priblica. & emergencia do aparica confessar a si préprios e confessar publicamente que eles tém interesses © desprender-se do desconhecimento coletivamente ‘ampo econdmico mar 0 de um Universo no qual os agentes socials podem muntico, no qual podem ndo apenas que la estio para faze-los, isto é, para se comportar de maneira interessada, calcular, obter lucro, acumular, explora." fazer negécios, mas confessar coma ago das trocas monetirias € do espirito de calcul, a economia doméstica deixa de fornecer © modelo de todas as relagdes econmicas. Ameagada em sua l6gica espectfi constituicao cla economia ea genera 1 pela economia mercantil, ela tende cada Ti, Podeos ler bade Emile Henvenise, be socabuaive des instanton indo européen pre ni, Mitut, 1969, especialmente 0 prime volume), como urna anise do Troceao aravés do qual of concedos furdamentis do pensamento econdmico #2 [iSprendem progresivamente da gang de sgneagbes mio econtmieas amie, pottice.religesas ena qual eaten mersos (por exemplo, cmp © res). Pome Lilacs (Hisove ef concionce de cla, Pas, Minit, 1974, p266) observa, a feonseno pogresia da evoncxnia pola como disiplina autdinom, tmando por Cres crema enquo economia, € ela mesma iia dinensto do processo de Setonombgae. do compo ccondinio. © que quer dizer que exsiem condles Tires esovas de possblitdade deta cenes, que & preciso explicit, pam evar ‘nora ones desehpretensa Teoria pura" 174 | vex mais a afitmar explicitamente sua Logica especifica, a do amor. Tevando a oposigio a seu limite, em beneficio da clareza da demonstragao, podemos assim opor a logica das trocas sexuais domésticas, que mo tem prego, 2 I6gica das relagdes sexuais mercantis, que fem um prego de mercado explicito € sho sancio~ nadas pelas trocas monetirias. As mulheres domésticas, que m0 tam utilidace material nem preco (tabu do cileulo ¢ do crédito), sao exclufdas da circulagao mercantil (exclusividade) € objetos € sujeitos de sentimento; por oposicto, as mulheres ditas venais Gs prostiutas) tem um prego de mercado explicito, fundado na moetla eno cflcilo, nao sendo nem objetos nem sujeitos de sentimento, vendem seu corpo como objeto.” VYemos que, contra 0 reducionismo economicista 2 Gary Becker, que reduz a0 caleulo econdmico o que por definiga0 nega e desafia 0 célculo, a unidade doméstica leva a perpetuar em seu seio uma légica econdémica muito especifica. A familia, como Unidad integrada, € ameagada pela légica da economia. Agrupa- mento monopolista definide pela apropriagio exclusiva de uma Gategorin ceterminaca de bens (@ terra, o nome etc), la ¢ Simultaneamente unida e dividida pela propriedade. A légica do universo econmico citcundante introduz no interior da familia © vere do cilculo, que corréi os sentimentos. Unida pelo patrimd- tio. a fania é lugar de uma competicie pelo patriménio © pelo poder desse patriménio, Mas essa competigao ameaga continua TD De waando com Cecile Hoigard Liv Plata, mits pros dizem que, 20 conto BS a secapera, prefer petit du, a veda pia do eof ave Pete sees de sera met, 4 prosuigao em hots que, nt media emt Ue se Elgar © enconto lie, com 20 gu de euemizasdo,exge BAN Pree Pcteapocde exorgo de apartacis, de evlemismor no primero cso, tats eer gs brows, rics, lant co ques pviem pensir em xtra cof 2 ce creer ao paaso que, o» enconos en as, apartment ms sa de peson, o vivid camo tito imal inant por € precio [be Tore ae reveue cata ucressoda nele,¢ 2 iberdade na altenagto, que oferece sae pensar am ona ca, desparce em proveto de wna acho se aoa pauce da aniagizlade des amores no-riseenirios (C. Hogar € Teun mcte roatiion, money andl Tove. Universy Pork, Pennsylanis versity Press, 192), 175 | | mente destruir esse capital, arruinando o fundamento de sua perpetuate, isto €, a unidade, a coesto, a integracio; € ela impoe, assim, condutas dlestinaclas a perpetuar o patriménio, perpetuando a unidade clos herdeiros, que se dividem por causa dele, No caso da Argélia, mostrei que a generalizacao das trocis monetirias € a constituigto correlativa dla idéia “econdmica” do trabalho como trabalho assalariado — por oposicao 20 trabalhio como ocupacio ‘ou funcio com um fim em si mesmo — trazem consigo a genera- lizagio de disposigbes calculistas, que ameagam a indivisto dos bens de tarefas sobre as quais repousa a unidade familiar; de fato, nas sociedades diferenciadas, 0 espirito de cilculo © a lgica do mercado corroem © espiito de solidariedade e tendem a substituir as decisdes coletivas da unidade doméstica ou do chefe da casa pelas decisdes indivicuais do individuo isolado, privilegiando o desenvolvimento de mercados separados de acordo com as dife- rentes categorias de idade ou de sexo (os teen-agers) constitutivas dias unidades domésticas. Seria preciso relembrar aqui a andlise do sistema de estraté- gias de reproducio, estratégias encontradas, sob formas diferentes € com pesos relativos diferentes, em todas as sociedades, cujo principio é essa espécie de conatus, de pulsio da Familia, da casa, para perpetuar-se, perpetuanclo sua unidade contra os fatores de divisio, especialmente contra os que silo inerentes & competigéo pela propriedace que funda a unidade da familia. Como corpo dotado de um espirito corporativo (a esse titulo, votado a servir de modelo arquetipico para todos os grupos desejosos de funcionar como corpos — por exemplo, as fraterni- Hes @ as sororities das universidades americanas), a familia esté submetida a dois sistemas de forgas contraditérios: por um lado, Forgas da economia que introcluzem as tensdes, as contradicoes € 0s conflitos que evoquei, mas que, em certos contextos, impéem também a manutengao de uma certa coesio ¢, por outro lado, Forgas ce coesio, parcialmente vinculadas ao fato de a reprodugto do capital, sob suas diferentes formas, dependler, em grande parte, da reproducio da unidade familiar. Isso & particularmente verdadeiro em relago a0 capital simbélico & a0 capital social que 86 podem se reproduzir pela reprodugio da unidade social elementar que é a familia. Na Cabilia, intimeras familias que tomperam com a unidade da propriedade & das tarefas decidiram manter uma fachada indivisa, para salvaguar- dar a honra € © prestigio da grande familia solidaria. Assim também, nas grandes familias burguesas das sociedades modernas desenvolvidas, ¢ até nas categorias as mais distantes do modo de reprodugao familiar existentes nas corporagbes, os agentes econd- micos abrem um espaco considerével, em suas estratégias © suas priticas econdmicas, 2 reprodugio de lagos domésticos ampliados, ‘0 que & uma das condicoes de reprodugio de seu capital. Os grandes tém grandes familias (creio que essa é uma lei antropol6- gica geral), @m interesse particular em manter relagdes do tipo da familia extensa e, através dessas relacoes, uma forma especifiea de concentragao de capital. Dito ce outro modo, apesar de todas as forcas de fissdo que se exercem sobre ela, a familia permanece um dos lugares de acumulagao, de conservacio € de reproducto de diferentes tipos de capital. Os historiadores sabem que as grandes imilias resistem As revolugdes (como mostram, entre OULEOS, OS trabalhos de Chaussinand-Nogaret). Uma familia muito extensa tem um capital muito diversificado de modo que, desde que a coesio familiar se mantenha, os sobreviventes podem se ajudar na restauragao do capital coletivo. HG, assim, no proprio interior da familia, um trabalho de reprodugio da unidade doméstica, de sua integracao, trabalho encorajado € sustentado por instituigdes como a Igreja (Seria preciso averiguar se 0 essencial do que chamamos de moral — especialmente a cristl, mas também a laica — nao encontra seu fundamento na visto unitiria da familia) ou © Estado, Este contri- bui para criar ou reforcar essa categoria ce construgiio da realidade, que é a idéia de familia", através de instituigdes como 0 registro de familia, as alocagdes Familiares € todo 0 conjunto de agdes, simbélicas ¢ materiais, freqiientemente acompanhadas de sangées econdmicas, cujo efeito é reforgar em cada uin de seus membros o interesse pela manutengio da unidade doméstica, Essa agaio do Estado nao € simples ¢ € preciso ser sutil, levar em conta, por exemplo, o antagonismo entre direito civil, que com frequieneia trabalha na direcao da divisto — o eéxtigo civil causou imensos problemas aos moradores clo Béarn, que lveram clficuldades em perpetuar a familia fundada no direito da primogenitura nos limites de um céligo juridico que exigia a partilha igualitéria, e tiveram de inventar toclo tipo de artimanha para contornar as leis e perpetuar a casa contra as forcas de divisao introduzidas pelo diteito — ¢ 0 direito social, que valoriza certos tipos de familia — as familias monoparentais, por exemplo — ou que sanciona como universal, através de sua ajuda, uma visto particular da familia, tratada como familia “natural” Seria preciso, ainda, analisara logica das trocas entre gercoes, ‘caso particular ca economia das trocas simbélicas no interior da familia, Para tentar dar conta da incapacidade dos contratos privados de assegurar a alocagao intergeragdes dos recursos, os economistas construiram © que chamam de modelos de geracdes imbricadas: temos duas categorias de agentes, os jovens € 05 velhos, os jovens do period (2) serio velhos em (#+1), os velhos clo periodo () tero desaparecido em (#1), ¢ haverit uma nova geracio; como podem ‘os jovens transferir temporalmente tuma parte da riqueza que produ- riram, para utilizé-la na velhice? Os economistas sao interessantes porguie tém um genio da espécie imagindria, no sentido luusserliano do termo, e porque constroem modelos formais que fazem girar no vazio, oferecendo assim instumentos formidaveis para destruir evidencias e obrigar a por em questio coisas que aceitamos tacita- mente, até quando parecem paradoxais. 13. C10 esprit de faa, ness colesinea, pp. 24135 178 Os economistas apéiam-se nessa andlise das relagdes entre geragoes para afirmar que a moeda é indispensiivel ¢ que sua i no tempo permite aos jovens utilizar a moeda que Jaram hoje quando forem velhos, jf que os jovens do perfodo seguinte continuaraio a aceité-la, O que implica dizer (como dizia Simiand, em um belo ensaio) que a moeda é sempre fiduciaria ¢ que sua validae esti fundada em uma cadeia de crengas duradouras a0 longo do tempo. Mas, para que as trocas entre geragdes continnem apesar de tudo, € necesséria também a intervencao da légica da divida como reconhecimento e a consti- 5 de um sentimento de obrigacio ou de gratidao. As relagoes entre as getacdes sao um dos lugares por exceléncia da transfigu- raglo do reconhecimento da divica em reconhecimento, piedade filial, amor. (As trocas situam-se sempre na l6gica da dlidiva —e no na do crédito — ¢ os empréstimos entre pais € filhos excluem antecipacho de um interesse, ¢ até os prazos dle reembolso 40 gos) Atualmente, com a phifia ameacada pelas rupturas da coabitagio provocadas pelas migragées vinculadas ao tabalho pela generalizacio do espirito de cflculo (necessariamente egots- ta), © Estado retomou o tema da unidade doméstica na gestio das trocas entre geragdes € a “terceira idade” & uma dlessas invengdes coletivas, que permitiu transferir para o Estado a gestao dos velhos, até entao deixada & familia ou, mais precisamente, 0 Estado substituiu a gestio direta, no seio da familia, das trocas entre as geragdes, pot uma gestio dessas trocas assegurada por ele, que efetua a cobranca e redistibuico dos recursos destinados 203 velhos (outro exemplo de caso em que © Estado oferece uma solucao ao problema do free rider) tui O puro eo comercial Volto & economia dos bens culturais, Reencontramos af a maioria das caracteristicas da economia pré-capitalista. A comecar pela recusa do econémico: a génese de um campo artistico ou de 19 um campo literério € a emergéncia progressiva de um mundo econdmico as avessas, no qual as sangdes positivas do mercaclo sio ou indiferentes ou até negativas.'* O best-seller nao € auto- maticamente reconhecido como obra legitima € sucesso comer cial até pode ser valorizadio negativamente. Inversamente, 0 artista maldito (que é uma inveneao hist6rica: assim como a propria idéia de antsta, ele nao existiu sempre) pocle ver em sua maldigio contemporinea o sinal de uma vitéria futura, Essa visto da arte (que atualmente perde terreno, a medida que os campos de produgio cultural perdem sua autonomia) foi inventada 20s pou- os, junto com a idéia do artista puro, que no tem outro objetivo seniio a arte, que é indiferente aos valores do mercado, a0 reconiuecimento oficial, 20 sucesso, 2 medida que se instituia um mundo social inteiramente especifico, no qual o fracasso economi- co podia ser associado a uma espécie cle sucesso ou, em todo ce no parecer desde logo com um fracasso irremediivel, (Um dos problemas dos artistas nto reconheciclos ¢ que esto envelliecendo 60 de convencer os outros, e convencer-se, de que seu fracasso é lum sucesso € que cles tém uma possibilidade razofvel de sucesso, jf que existe um universo no qual se reconhece a possibilidude de ter sucesso sem vender livros, sem ser lido, sem ser encenado etc.) um mundo as avessas, no qual as sangdes negativas podem «se tornar sangoes positivas, do qual, evidentemente, a verdade dos pregos é sistematicamente exclufda, Toda a linguagem ¢ eufemis- tica, Conseqiientemente, uma das principais dificuldades que a sociologia encontra relere-se A escolha das palavras: se dizemos produtor’, assumimos um tom reducionista ¢ efetivamente anula- mos a especificidade desse espago de produ produgao como as outras; se dizemos “criador", caimos na ideolo- gia da “criagao", na mistica do artista tinico, que por definicao escapa 2 ciéncia, ideologia tio potente que basta adoti-la para assumir 0 ar de artista — e obter todos os tipos de proveito io que nao é uma Ti. GIP Bowrcleu, Zs gles de ary, ap cit, p. 201 3. simbélico. (Voce escreve em uma revista: “Eu, como criador, detesto 08 socidlogos reducionistas” etc., e voc passa por artista, ‘ou por filésofo... Essa € uma das razdes pelas quais tal revista ou tal jornal reiteradamente denunciam “o empirismo sociolégico”, “o socidlogove’”, “0 territ6rio do socidlogo" ete.) Bssa_ideologi profissional extremamente potente esti inserita em uma linguagem {que exclui 0 vocabulirio da economia mercantil: 0 eomerciante de quadros, com freqiéncia, inttula-se diretor de galeria; editor é um eufemismo para comerciante de livros ou comprador da forga de trabalho literaria (no século XIX, 0s escritores freqiientemente se comparavam a prostitutas..). A relagao entre 0 editor de vanguard e 0 autor é, de fato, semelhante 2 relagio entre o padre © 0 sacristao, que descreverci em seguida. O editor diz para um jovem autor com dificuldacles no fim do més: "Veja o exemplo de Beckett, ‘ele nunca tocou em um centavo de seus direitos autorais!” O pobre escritor poe-se no seu lugar, ele niio tem certeza de ser Beckett © tem certeza de que, diferentemente de Beckett, ele tem a baixeza de pedir dinheito... Aqui também podemos reler A educagdo sentimentaé. o senkior Arnoux & um personagem ambiguo como comerciante de arte, metade comerciante, metade artista, € tem cou os artistas uma relagao meio sentimental, meio patronal. Essas telages de exploragio suave s6 funcionam se sito suaves. Sto relagdes ce violencia simbélica que 86 podem se instaurar com a cumplicidade daqueles que a sofrem, como as relagdes domésticas, (© dominado colabora com sua prépria exploragao através de sua afeigio € de sua admiracao. © capital do artista é um capital simb6lico e nada & mais parecido com as disputas de honra entre os cabilas do que a8 disputas intelectuais, Em varias dessas disputas, o que est aparen- temente em jogo (ter razio, triunfar com argumentos) esconde questbes de honra, Desde as mais frvolas (nas dlisputas para saber fo que se passou em Sarajevo, & Sarajevo que esté em jogo?) até as mais “sérias’ (como as disputas de prioridades). Esse capital simbélico de reconhecimento é um percipi suposto nas crengas das 181 pessoas engajacias no campo. Isso foi claramente demonstradlo por Duchamp que, como Karl Kraus em outras ocasides, fez verdadei- ros experimentos sociolégicos. Ao exibir um urinol em um musev, ele tornou evidente o efeito de constituic2o que opera a consagra- ‘cao de um lugar consagracio — e as condligdes sociais de surgimen- to desse efeito. As condigdes nao sA0 86 essas, mas era preciso que ‘esse ato fosse realizado por ele, isto €, por um pintor reconhecido como pintor por outros pintores ou outros agentes do mundo artistic com o poder de dizer quem é pintor, que fosse realizado em um museu que 0 reconhecia como pintor e que tinha o poder de reconhecer seu ato como um ato artistico, era preciso que 0 meio anistico estivesse pronto # reconhecer esse questionamento de seu reconhecimento. Basta observar, a contrario, o que aconte- ‘ceu com um movimento artistico como as “Artes incoerentes!” ‘Tratava-se de artistas que, no Final co século XIX, fizeram uma série de atos artisticos depois refeitos nos anos 60, especialmente pelos artistas conceituais. Como as “expectativas sociais” das quais falava Mauss no estavam presentes, como ‘os espiritos nao estavam preparados", como se diz, eles nito foram levados a sério — em parte, porque eles mesmos nao se levavam a sétio € porque, dado © estado do campo, cles ndo podiam considerar ow apresentar como alos artisticos 0 que, sem dtivida, consideravam simples brincadeiras de aprendizes. Pocleriamos dizer entao, retrospectiva- mente: Yejam, eles inventaram tuclo! © que é falso ¢ verdaceiro Fis por que € preciso tratar com muita prudéncia as questoes de precursores © precedentes. As condigdes sociais para que esses artistas parecessem, € aparentassem, fazer © que pareciam estar fazendo a nossos olhos, ainda no estavam dadas. Portanto, eles nao 0 faziam, O que quer dizer que, para que Duchamp pucesse bancar Duchamp, era preciso que 0 campo estivesse constituido de modo a que se pudesse bancar Duchamp. 75. , Grojnonski "Une avantgarde sans avancée les ncoirens, 082-1889" Acts la Recheree en Sciences Sociales 40 (1981), pp 75-05 Seria preciso, ainda, tomar a dizer a respéito do capital simbélico do escritor ou do artista, a respeito do fetichismo do nome de autor ¢ do efeito magico da assinatura, tudo o que Foi dito 4 respeito do capital simb6lico tal como ele funciona em outros niversos: como percipi, cle se apdia na crenga, isto é, mas categorias de percepgio ¢ de avaliacio vigentes no campo. ‘Ao dissociar 0 sucesso mundano € a consagcacio especifica e a0 assegurar lucros especificas ao desinteresse daqueles que se idobram a suas regras, 0 campo artistico (ou cientifico) cria as condigoes de constituigio (ou de emergéncia) de um genuino interesse pelo desinteresse (equivalente ao interesse pela genero- ‘sidade nas sociedades onde a honra € um valor importante). No mundo artistico, como mundo economico as avessas, as “loucuras” mais antieconémicas sto, de certo modo, “sacionais", jf que o clesinteresse é af reconhecido e recompensado. O risa dos bispos |A empresa religiosa obedece, no essencial, aos principios {que resgatei na anilise ca economia px€-capitalista. Como n0 €as0 da economia doméstica, da qual ela € uma forma transfigurada (com 0 modelo de troca fraterna), a caracteristica paradoxal da economia da oferenda, da benemeréncia, do sacrificio, revela-se de modo especialmente visivel no caso da Tgreja catélica contem- porinea: de fato, essa empresa com dimensdes econdmicas, fur dada na recusa do econdmico, esti mergulhada em um universo rho qual, com a generalizagio cas trocas monetirias, a procura da maximizagao do lucto tornou-se o principio da maior parte das priticas cotidianas, cle modo que qualquer agente — religioso ou hnto-religioso — tend a avaliar em dinheiro, ainda que implicit mente, o valor de seu trabalho e de seu tempo. Um sactist2o, um coroinha, é um homo oeconomticus mais ou menos distargado; cle sabe que gasta cerca de meia hora para enfeitar 0 altar com flores 183

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