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Da regra as estratégias* — Bu gostaria de que fuléssemos do interesse que 0 se- nnhor manifestou em sua obra pelas questoes de parentesco e de transmissio, desde 0 “Béarn’ ¢ os “Trés estudos de etnolo- gia cabila” até 0 Homo academicus. © senhor foi o primeiro a abordar sob uma pesspectiva propriamente etnol6gica a ‘questao da escolha do conjuge no interior de uma populacto francesa (cf. “Celibato ¢ condi¢io camponesa”, Etudes Rurales, 1962, € “As estratégias matrimoniais no sistema las estratégias de reprodugao", Annales, 1972) e a sublinhar a correlagio entre 0 modo de transmissao de bens, desigual, nesse caso, € a logicas das aliancas. Toda transacio matrimonial, dizia 0 se- thor, deve ser entendida como “resultado de uma estratégia” © pode ser definida ‘como um momento em uma série de trocas ‘ateriais € simbdlicas [1 que depende em grande parte da posicdo que ess troca ocupa na hist6ria matrimonial da familia” R_— Minhas pesquisas sobre 0 casamento no Béarn foram, para mim 0 ponto de passagem, € de aiculago, entre a etnologia ¢ a sociologia. De saida, havia concebido esse traba- Iho sobre minha propria regito de origem como uma espécie de experimentacio epistemol6gica: analisar como etnélogo, ‘num universo familiar @ nfo ser pela distincia social), as prati- is matrimoniais que’ eu. havia estudado num universo social * Entrevista coin P Lamaison, publicada em Terrains 8 4, waren de 1985. * PIERRE BOURDIEL muito mais distante, a sociedade cabilay significava me dar uma ‘oportunidade de objetivar 0 ato de objetivacio © 0 sujeito objetivante, de objetivar 0 etnblogo nao apenas enquanto indi- Viduo soctalmente situado, mas também enquanto cientsta ‘que tem como oficio analisar 0 mundo social, pensi-lo, e que or isso deve se retirar do jogo, seja porque observa um mun- do estranho, onde seus interesses no estio investidos, seja Porque ele observa seu proprio mundo, mas retirando-se do jogo, tanto quanto possivel. Em suma, eu queria menos obser- var 0 observador em sua paticularidade, 0 que em si nio apresenta grande interesse, do que observar os efeitos que a situagio de observador produz sobre a observacdo, sobre a descrigao da coisa observada, descobrr todos os pressupostos inerentes 4 postura 4e6rica enquanto visio externa, afastada, distante ou, simplesmente, no pritica, no envolvida, nao investida, E me pareceu que era toda uma filosofia social, pro- fundamente falsa, que resultava do fato de 0 etndlogo nao ter nada ver" com aqueles que ele estuda, com suas priticas, com suas representagdes, a no ser estudé-las: ha um abismo centre procurar entender 0 que sio as relagdes matrimoniais entre duas familias para casar da melhor maneira possivel filo ou a fitha, investindo nisso o mesmo interesse que as pessoas de nosso meio investem na escolha do melhor esta- belecimento escolar para seu filho ou filha, € procurar enten- der essas relagdes para construir um modelo te6rico, A mesma ‘coisa € valida quando se trata de compreender um ritual Assim, a anilise tedrica da visto te6rica como visio exter- rma, € sobretudo sem nenhum alvo pritico em jogo, foi com certeza © principio da muptura com aquilo que outros chama- Fiam de ‘paradigma” estruturalista: foi a consciéncia. aguda, que eu nio adquiri somente pela reflexio tedrica, do descom- asso entre 0s fins tedricas da compreensio te6rica € os fins Priticos, diretamente interessados, da compreensio pritica, que me levou a falar de estratégias matrimoniais ou de cos. ‘umes sociats do parentesco em vez de regras de parentesco. Essa_mudanga de vocabulirio manifesta uma mudanca de Ponto de vista:/trata-se de evitar tomar como principio da DA REORA As ESTRATEGIAS 7° pritica dos agentes @ teoria que se deve construir pam explici-a) P.— Mas, quando Lévi-Strauss fala das regras ow dos mo- delos que reconstruimos para explicé-la, ele ndo se opde real mente a0 senhor nesse ponto. R. —Na verdade, parece-me que a oposigio € mascaradla pela ambigitidade da palavra regra, que permite fazer com que desapareca © préptio problema que tentei colocar. nunca se sabe exatamente se por regra entende-se um principio de tipo juridico_ou_quase juri menos conscienie- mente produzido € dominado pelos agentes, ou um conjunto -repulades betas que ve impdem a todos ules laridades objetivas que se impoem a 1a “que niram um jogo.pE a um desses dois sentidos que se faz referencia quando se fala de regra do jogo, Mas também & Possivel ter em mente um terceiro sentido, 0 de modelo, de principio construido pelo cientista para explicar 0 jogo, Acho ‘que; escamoteando essas distingoes, come-se o risco de cair em um dos paralogismos mais funestos das ciéncias humanas, aquele que consiste em tomar, segundo a velha formula de Marx, “as coisas da logica pela logica das coisas”. Para escapar disso, ¢ preciso inscrever na teoria 0 principio seal das estate. | gias, O01 Seja, 0 senso pritico, ou, se preferimmos, o que os sportistas chamam de “sentido do jogo", como dominio pratt “eo da Togs ou da necessidade imarente de ums jogo, que se quire pela experiéncia de jogo ¢ que funciona aquém da onsciéncia ¢ do discurso G semelhanca, por exemplo, das técnicas corporais), Nogdes como a de habitus (ou sistema de isposigoes), de senso pratico, de estratégia, estio ligadas ao “eslorgo pata sain do objeivismo estutunlists sem cir no sabe igtivismo. F por isso que no me reconhero naquilo que Levi. Strauss disse recentemente a propésito das pesquisas sobre 0 que cle chama de "sociedades domésticas”. Embora eu nao possa deixar de admitir que isso me diz respeito, jé que con- tiibuf para reintroduzir na discussio te6rica em einologia uma dessas sociedadles onde os atos de roca, matrimoniais ou ou- tos, parecem ter como “sujelto” a casa, a maysou, 0 oustau; & também para formular a teoria do casamento como estraté- gia, \ 4 ea PIERRE BOURDIEU P. — O senhor esti fakndo da conferéncia Marc Bloch sobre “A ctnologia € a historia", publicada pelos Annales ESC (@® 6, novembro-dezembro, 1985, pp. 1217-1231), onde Lévi- Strauss critica 0 que ele chama de “espontancismo"? R.— Sim. Quando ele fala dessa esitica do estruturalismo que se repete (im pouco por toda parte e que se inspica num, espontaneismo e num subjetivismo de moda" (tudo isso no & muito gentil), € claro que Lévi-Strauss visa de maneira pouco compreensiva — @ 0 minimo que se pode dizer — a um con- junto de trabalhos que me parece participar de um outro “uni- verso te6rico", diferente do dele, Sem falar no feito de am ‘gama que consiste em sugerir a exist@ncia de uma relagio entre 0 pensamento em termos de estratégia € 0 que se de- signa em politica como espontaneismo. A escolha das palavras, sobretudo na polémica, nl € inocente, © conhecemos o descrédito que se vincula, mesmo em politica, a todas as for- ‘mas de erenga na espontancidade das massas, (Dito isto, entre parénteses, a intuiglo politica de Lévi-Strauss ndo € inteira- mente enganosa, uma vez que, através do habitus, do senso pritico ¢ da estratégia, sio reintroduzidos o agente, a ago, a pritica € talvez sobretudo a proximidade do observador com 8 agentes e com a priitica, a recusa do olhar distante, que na deixam de ter afinidade com disposicoes © posigdes no s6 tebricas, mas também politicas,) O essencial é que Lévi-Strauss, fechado desde sempre (penso em suas observagdes sobre a fenomenologia no preficio a Mauss) oa alternativa do subje~ tivismo © do objetivismo, s6 pode perceber as tentativas de superar essa alternativa como uma regressiio ao subjetivismo. Prisioneiro, como tantos outros, da,alternativa do individual ¢ do social, da liberdacle e da-necessidade, etc., ele 86 pode ver nas tentativas de romper com 0 “paradigma” estruturalista um, retomo a um subjetivismo individualista e, por essa via, a um jracionalismo; segundo ele, 0 “espontanefsmo” substitui a cestrutura por Suma média estatistica que resulta de escolhas feitas com toda a liberdade ou que pelo menos escapam a ‘qualquer determinacdo externa’, e ele reduz o mundo social a “tum imenso caos de atos criadores surgindo todos na escala individual e assegurando a fecundidade de uma desordem per- manente” (como nado reconhecer aqui a imagem ou o fantasma, DA xen AS ESTRATECIAS 8 do espontaneismo de maio de 1968 que evocam, além do con- ceito utilizado para designar essa corrente tebrica, as alusGes a moda € @ criticas “que se repetem por toda pante”?). Em suma, porque estratéyia para ele € sindnimo de escolba, escolha cons- Ciente ¢ individual, guiada pelo célculo racional ou por moti- vagdes “éticas e afetivas", e porque ela se opde a cougio © a norma coletiva, cle s6 pode expulsar da ciéncia um projeto teorico que na realidade visa reintroduzir 0 agente socializado (€ nfo o sujeito) e as estratégias mais ou menos “automticas” do senso pritico (© nao os projetos e cilculos de uma cons- ‘ign. P,— Mas, para o senhor, qual € a funca0 da nogio de esirtegia? — RA nogao de extratégia ¢ 0 insrumento de uma raptura com 0 ponto de vista objetvista e com a acto sem agente que © esituturalisimo supe (recorrendo, por exemplo, a nosio de inconsciente). Mas poce-se recusar a ver a estratégia como 0 produto de um programa inconsciente, sem fazer dela o proxt to de um cflculo consciente e racional. Hla € produto do senso, prético como sentido do jogo, de um jogo social particular, his- foricamente definido, que se acquire desde a infaneia, patil pando das atividades socais, em particular no caso de Cabilia, Suttos lugares com certeza, dos jogos infantis, O om jogador {que é de algum modo 0 jogo feito homem, faa todo instante 0 Que deve ser feito, 0 que 0 jogo demanda e exige. Iss0 supe tima invencio permanente, indispensivel para se adaptar 25 sinvagdes indefiidamente variadas, aunca perfeitamente ident cas, O que nao garante a obedigncia mecinica 3 regra explicit, codificada (quando cla existe). Descrevi, por exemplo, as tstratéyias de jogo duplo que consistem em “legalizar a situa- Gio’, em colocarse 2o lado do diteto, em agir de acordo com Interesses, mas mantendo as aparéncias de obediencia as regras © sentido do jogo néo é infaivel; ele se distibui de manera dlesigual, tanto numa sociedade quanto numa equipe. As vezes, ele faa, especialmente nas siwagdes tigicas, quando entao se pela aos sabios, que em Cabilia em geral também sio poets, fesabem tomar liberdace com a regraofiial, que permite salvar © essencial daguilo que a regea visava a garantr Mas essa liber= 82 PIERRE BOURDIEU dade de inveng2o, de improvisagao, que permite produzit a infinidade de lances possibilitados pelo jogo (como no xadre2), em 05 mesmos limites do jogo. As estratégias adaptadas quan- do se trata de jogar o jogo do casamento cabila, no qual a terra ea ameaca de partilha ndo intervém (dlevido a indivisio na par tha igual entre os agnatos), nfo conviriam no caso de se jogar 9 jogo do casement beamts, no qual & precio selva antes de tudo a casa e a terra Pereebese que no se deve colocar 0 problema em termas de ‘epontancidade € coagio, tberdade e necessidade, indivkhuo socal ‘habs como sentido do jogo & jogo socal incarporaco, transforma |) doem natureza. Nada € simulaneamente mais livre € mais coagido do | que a'agio do bom jogador. He fica naturalmente no lugar em que a bola vai cai, como se a bola © comandasse, mas, desse modo, ele ccomanela a bola, © habitus como social inseito no compo} no individo Diok6gico, permite produzir a infnidade dle atos de jogo que estio insaros no jogo em estado de possibildades e de exigencias objtivas, as coaes € as exigéncias do jogo, ainda que ndo estejam reunias ‘num o6digo de regras, impBem-se aqueles e somente ques que, POT terem 0 sentido do jogo, io & 0 senso da necessack imanerte-do jogo, estio preparados para percebélas e realiz-as. Iso se tanspe facimente para 0 easo do casamento. Como mostel no caso clo Péarn ede Cabila, as estratégias matrimonias sio produto nao da obecliencia 2 regr, mas do sentido do jogo que eva a “escolher’ 0 methor partido possvel considerando 0 jogo que se tem, iso €, 0s trunfos € a5 catas ruins (as mocas particulamente), ¢ a arte de jogar que se pens a regm explcta do jogo — por exemplo, os intertitos e as preferéncas ‘em matéria de parentesco on as leis sucess6rias — que define © valor das catas Guapazes & mocas, primogénitos ¢ cagulas). Eas regular

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