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LELIA PARREIRA DUARTE ORGANIZADORA ESTUDOS CAMONIANOS Foyt U.F.M.G, - BIBLIOTECA UNIVERSITARIA HY AATUENUAN ANAC 6349179266 NAO DANIFIQUE ESTA ETIQUETA Centro de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais BELO HORIZONTE Atualidade de Camées Lélia Parreira Duarte* Camées é um poeta que oscila entre o portuguesismo e o universalismo, fato que justifica a atualidade do Poeta no mundo de hoje, quatrocentos anos apés a sua morte. Os Lustadas, por exemplo, se singularizam pelo sentimento de humanidade e “pela adogio de perspectivas complementares: coragem e medo, euforia herdica e tragédia ou elegia”, como diz o Prof. Jacinto do Prado Coelho.? O Poeta oscila entre essas extremidades e se coloca como elemento de tensfo que niio se define num tnico sentido e ultrapassa, por isso, o limite restrito de seu espago-tempo. Sua cosmovisio é abrangente e ele chega a incluir em sua obra conhecimentos da alma humana, de psicologia e de filosofia que serio desenvolvidos em estudos apenas no século XX. Os poemas de Camées muitas vezes expressam a vitéria do homem sobre si mesmo. As vezes, porém, ele tem momentos de reag&o violenta e mostra a amargura do ser que se mutila, ao renunciar & beleza sensivel e ao amor dum ente concreto, sé na rigidez do ascetismo encontrando refigio para a sua rentncia. Ao mesmo tempo em que aceita os preceitos classicos, portanto, ele percebe que ao submeter-se a uma cosmovisdo pre-estabelecida, © homem esté renunciando a prerrogativas que lhe sao inerentes e fundamentais. * Professora Assistente da Faculdade de Letras da UFMG, Mestre em Literatura Brasileira. 1. COELHO, Jacinto do Prado. . In: Ob. eit., pp. 33-46. —6— « O ser amado se caracteriza por isso mesmo como impossibi- lidade do outro enquanto outro. Idealizado, jé que nunca 6 real, presente, esse ser amado é subjetivado, incorporado ao ego e parece ser, afinal, uma tentativa frustrada de recuperagiio de si mesmo na figura do outro. O que frustra o sujeito nao é a falta do objeto do desejo, mas a constatago de que o eu 6, por natu- reza, uma falta irremedidvel, uma caréncia essencial. Assim, “o tema do amor impossivel esconde poeticamente a tematizagio do préprio eu”.3, O poeta reconhece que o objeto do amor lhe é proibido e revela, muitas vezes, uma aceitagio passiva frente a essa proibi- gio. Ha momentos, entretanto, em que ele revela sua frustragio e sua revolta diante do fato que se Ihe apresenta como consumado. A certeza de lhe ser interdito 0 objeto do amor aparece dialeti- vamente, tanto como uma reagio contra a agressividade, um entrosar-se na cultura, quanto como uma forma de desrecalcar essa agressividade. Nessa linha de pensamento, percebe-se o motivo da dupli- cidade constatada na obra de Camies: ele se submete 4 cosmo- visio universalizante, racionalista e platénica de sua época, repe- tindo o discurso ideolégico dominante e reprimindo a colocagio de questées. Logo em seguida, entretanto, ele faz as perguntas proibidas e revela uma agressividade que esta voltada, em prin- cipio, para ele mesmo, mas também para todo um sistema de idéias que é o da civilizacgio em que vive. Ha& poemas em que Camées se preocupa com o Mesmo e 0 Semelhante, com a adequag&o perfeita & “lei do Pai” e com a verdade mitica do eterno retorno. Um exemplo é “Alma minha gentil que te partiste” que, significativamente, 6 calcado em modelo petrarquista e segue a regra classica da imitag&o. Outro exemplo 6 0 da Cangiio n° 1, “Fermosa e gentil Dama, quando vejo”, anali- sada por Vera Lucia Casa Nova, neste volume, que demonstrou ser © poema uma met4fora da linguagem simbélica. Consciente de seu desejo e da interdic&o, o Poeta ultrapassa o imagindrio e chega ao mundo simbdlico da linguagem, revelando a consciéncia que 3. ANDRADE, Sénia Maria Viegas. . In: Estudos Camonianos. Belo Horizonte, Publ. do Centro de Estudos Portugueses da FALE/UFMG, 1982, pp. 27-44. —T tem dessa passagem, quando termina: “Engano com palavras o desejo”. O Poeta se conforma com a Lei e se insere na cultura. Ele o faz, entretanto, conscientemente. Percebe a opressao, sub- mete-se a ela, mas a desmitifica, denunciando-a: as palavras sio formas de enganar. O poema exemplifica e comprova entdo toda a teoria lacaniana da aquisigio da linguagem através da inter- digo do desejo primordial. Camées mostra-se, entéo, de forma ambigua: homem situado em seu tempo, ele aceita as imposigdes de sua cultura. Nao o faz, porém, alienadamente. Seu questionamento ou sua consciéncia de estar enganando o préprio desejo colocam-no em seu lugar de homem de atualidade. Como jé foi dito, Camédes transcende o Renascimento, anuncia o Barroco, assume a metamorfose arcddica e contribui para a revolucio roméntica, com o desassossego, a inquietagio mental, a auto andlise dolorosa, o antropocentrismo melancélico. Camées ultrapassa também o seu tempo dominado pelo Pla- tonismo e percebe-se como “simulacro” pois antecipa a subjeti- vidade moderna com a talentosa capacidade de perguntar e a angustiante incapacidade de responder. A idealizagio em Camées no conduz o sujeito, como em Plat&o, & superagio de si mesmo. © Poeta no deseja a morte como o limiar de um Bem, como o filésofo, mas ele a deseja como o fim de um mal. Em Camées, © desespero nfo é dialeticamente esperanca, como em Platao. A idealizagio do objeto nfo provoca uma transcendéncia, mas coloca o ‘sujeito em face de sua finitude e Ihe confere a cons- ciéncia moderna de que o homem é um ser para a morte. Essa é a grande atualidade de Cam6es no quadro cultural europeu ou universal, demonstrada nos trabalhos de que se compée este volume. Se o Poeta foi um homem do seu tempo, se ele soube caracterizar-se como um verdadeiro classico, um artista perfeitamente inserido no seu tempo e em seu contexto histérico, ele antecipa em alguns momentos 0 irracionalismo filoséfico con- tempor4neo, as teorias modernas relativas ao desejo e 4 linguagem e a angustia existencial que domina o homem consciente da atualidade.

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