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ROLAND BARTHES O RUMOR DA LINGUA A DIVISAO DAS LINGUAGENS A nossa cultura esté dividida? De maneita nenhuma; todas as pessoas, na nossa Franga de hoje, podem compreender um programa de televisio, um artigo de France-Soir, a ordenacio de um jantar de gala; muito mais, pode-se dizer que, de parte um pequeno grupo de intelectuais, todos consomem esses produtos culturas: a parti- cipagio objetiva é total; ¢, se a cultura de uma sociedade fosse definida pela citculagéo dos simbolos que nela se cumpre, a nossa cultura se mostraria tao homogénea e cimentada como a de uma pequena sociedade etnogrifica. A diferenca & que s6 0 consumo & geral na nossa cultura, nao a produso: todos entendemos o que ouvimos em comum, mas nem todos falamos 0 que ouvimos; os “gostos”estio divididos, por vezes até opostos de maneira inexord- vel: eu gosto daquele programa de miisica cléssica que é insupor- tével para o meu vizinho, enquanto nio posso suportar as comé- dias populares que ele adora; cada um de nés liga 0 aparelho no momento em que o outro desliga. Em outras palavras, esa cultu- 16 | Des tinguagens edo el | +2 do nosso tempo, que parece tdo geal, 0 pactfica, vo comu , repousa na divisio de duas atividades de linguagem: de um lado a escuta, nacional, ou, se preferitem, os atos de inteleoga0s do outro, se ndo a palavra, pelo menos a participagio criativa e, para set ainda mais preciso, a linguagem do desejo, que, esta sim, permanece dividida. De um lado, escuto; gosto (ou ni gosto) de outro; com- preendo me entedio; & unidade da cultura de massa cortesponde «em nossa sociedade uma divisio nao s6 das linguagens, mas da pré- pria linguagem. Certos lingiistas — embora s6 lidando, por estatuto, com a Iingua € no com o discurso ~ tiveram o pressentimento dlessasituagdo: eles sugeriram ~ sem que fossem até agora seguidas — que se distingam francamente duas gramticas: ativa ou gramética da lingua como é falada, e uma gramética passiva ou gramética da simples escuta. Levada, * por uma mutagio translingtifstica, a0 nivel do discurso, essa divi- sio daria bem conta do paradoxo da nossa cultura, unitéria por seu cédigo de escuta (de consumo), fragmentada por seus cédigos de producio, de desejo: a “paz cultural” (nenhum conflito aparente no nivel da cultura) remete & diviséo (social) das linguagens. Cientificamente, tal divisio tem sido até agora um pouco censurada, Certamente, os lingiistas sabem que um idioma nacio- nal (o francés, por exemplo) abrange certo mimero de esp: ‘mas a especificagao estudada foi a especificacio geogréfica (diale- tos, regionalismos, falares), no a especificagao social; por certo que a postulam, mas minimizando-a, reduzindo-a a “maneiras” de jargdes, sabires); e, de qualquer modo, pensam, a.unidade idiomética se reconstitui no nivel do locutor, provido de uma linguagem prdpria, de uma constante individual de palavra, que se chama idioleto: as espécies de linguagem no seriam mais do que estados intermediérios, flucuantes, “divertidos” (pertencentes n7 | O rumor da lingua | .um tipo de folclore social). Essa construgao, que tem origem no século XIX, corresponde bem a certa ideologia - de que o préptio Saussure no estava isento ~ que poe de um lado a sociedade (0 idioma, a lingua) e de outzo o individuo (0 idioleto, o estilo); en- tre esses dois pélos, as tensdes s6 podem ser “psicolégicas”: consi- dera-se que 0 individuo luta para fazer valer a sua linguagem — ou para nao ficar completamente sufocado pela linguagem dos outros. ‘Além disso, a sociologia da época nfo péde caprar 0 conflito no nt- Saussure era mais sociélogo do que Durkheim Jingiiista. Foi a literarura que pressentiu a diviséo das linguagens (mesmo permanecendo psicoldgica), mais do que a sociologia (nao é de espantar: a literatura contém todos os saberes; é verdade que num estado néo-cientifico: € uma Méthesis) © romance, desde que se tornou realista, encontrou fatal- | mente em seu caminho a cépia das linguagens coletivas; mas, em geral, a imitagdo das linguagens de grupo (das linguagens sociopro- fissionais) foi delegada por nossos romancistas a personagens secun- divas, a figurantes, encarregados de “fixat” o realismo social, 20 pas- so que o heréi continua falando uma linguagem intemporal, cuja “ransparéncia” e neutralidade devem supostamente concordar com a universalidade psicolégica alzac, por exemplo, entretanto, quando cle as reproduz, enquadra-as, como virtuosismos de li trechos erifaticamente relatados; marca-as com um indice pitoresco, folk Nucingen, cujo fonetismo é escrupulosamente reproduzido, ou a linguagem-de-comadre da senhora Cibot, porteira do primo Pons; hh, entretanto, em Balzac, outra mimesis da linguagem, mais interes- sante, primeiro por ser mais espontinea, depois, por set mais cul- tural do que social: & a dos ddigos de opinido corrente, que Balzac alma hum: tem consciéncia aguda das linguagens so rico; so caricaturas de linguagens: assim é 0 jatgio do st. de 18 cendossa freqitentemente quando incidentalmente comenta a his- téria que esta contandos se, por exemplo, Balzac introduz em sua hisedria a silhueta de Brantéme (em Sur Catherine de Médici), Brantéme falaré de mulheres, exatamente como a opinido co- mum (a dé) espera de Brantome que honte o seu “papel” cultu- ral de “especialista” em histérias de mulheres — sem que se possa izmente, que Balzac esteja consciente de fato da pré- pria atitude; porque ele pensa estar reproduzindo a linguagem de Brantéme quando de fato apenas copia a cépia (cultural) dessa linguagem. Essa suspeita de ingenuidade (alguns dirdo: de vulga- ridade), néo se pode levanté-la contra Flaubert; este nao se deixa levar & reprodugéo de simples tiques (fonéticos, léxicos, sincéti- os); ele venta pegar, na tis e mais difusos, e captar 0 que se poderia chamar de figuras de discurso; e, sobretudo, se nos referimos ao livro mais “profundo” de Flaubert, Bouvard e Pécuchet, a mimesis ¢ sem fundo, sem artimo: as linguagens culturais ~ linguagens das cincias, das técnicas, das classes também: a burguesia ~ slo citadas (Flaubert nfio se deixa iludir por elas), mas, por um mecanismo extremamente sutil e que taco, valores de linguagem mais su- somente agora comeca a ser desmontado, o autor que copia (con- trariamente a Balzac) fica de algum modo irteconhecivel, na me- ida em que Flaubert nunca dé a ler de maneira clara se ele proprio se torna definitivamente exterior ao discurso que ele “toma em- prestado”; situagdo ambigua que toma algo iluséria a andlise sar- triana ou marxista da “burguesia” de Flaubert; porque, se Flaubert, burgués, fala a linguagem da burguesia, nunca se sabe a partir de que lugar essa enunciagéo se opera: um lugar critico? Distante? “Viscoso”? Na verdade, a linguagem de Flaubert ¢ utdpica e ¢ isso que faz a sua modernidade: acaso nao estamos aprendendo (da lingtiistica, da psicandlise), precisamente, que a linguagem é wm 9 | Orumer de tinge | lugar sem exterior? Depois de Balzac e Flaubert — para ficar sé com 0s maiores -, em face desse problema da divisio das linguagens, podese citar Proust, porque se encontra em sua obra uma verda. Icira enciclopédia da linguagem; sem voltar ao problema geral dos signs obra de Proust — que G. Deleuze tratou de maneita.no- tel ~e pate no ir além da linguagem articulada, encontram-se se autor todos os estados da mimesis verbal, isto é, pastichos caertiados fe carta de Gisele, que mima a dissertao escolar 0 Didrio dos Goncot ic i : Guorde Bn ace eo ane por endoson igang ao mesm« ef i “ mewmo eno cs terial e social (0 senhor medial Chatlus, ‘mantes), uma linguagem de classe (Frangoise € 0 pul na vee dade reproduzida principalmente em raxio da sua Fangio pos sta), um catdlogo de anomatia lingtsticas (a inguagem defo mante, “meteco”, do diretor do Grande Hotel de Balbec), 0 ie Tanamence oi doso de fendmenos de aculturagio (Francoise con pela linguagem “moderna” da filha) ¢ de didspora ling @ linguagem Guermantes “propaga-se”), uma teoria as ctimologias ¢ do poder fundador do nome como significan- te; a esse panorama sutil e completo dos tipos de discurso nfo falta nem mesmo a auséncia (voluntétia) de certas linguagens: o narra- dor, seus pais, Albertina nfo tém linguagem propria Qualquer que seja o avanco da literatura na descrigao das linguagens dh. dis tense entreanto os limites da mines cera: por um lo, a linguagem relatada néo chega a sair de is ta (poderfamos dizer: colonial) Gas lingagens excepcion oie guagem do outro & enquadrada, o autor (afora talvez 0 caso de Flaubert) fala dela em situagéo de exterrtorialidade; a dvisio d linguagens é muitas vezes reconhecida com tal perspicdcia quea 120 | Das linguages deel | sociolingstica poderia até invejar esses autores “subjetivos", mas cla permanece exterior a0 descritor: em outras palavras, contra- riamente ao que é ponto pacifico na ciéncia moderna, relativista, ob observador nio diz a sua posicio na observacdo; a diviséo das in~ guagens para em quem a descreve (quando nfo a denunca) ¢ por ‘outro lado, a linguagem social reproduzida pela literatura perma nnece untvoca (sempre a divisio das gramdticas denunciada no inl- cio): Frangoise fala sozinha, nés a entendemos, mas ninguém, no Iivro, Ihe dé a éplica; a inguagem observada é monol6gica, nun- (no sentido préprio do rermo) 0 re- ca é tomada numa dialética sultado é que os pedagos de linguagens sao tratados como outtos santos idioletos—e nfio como um sistema total e complexo de pro- dugto de Ninguagens. Voltemo-nos para o tratamento “cientifico” da questo: como a citncia (sociolingtifstica) vé a divisio das linguagens? Evidentemente no é de hoje que se postula uma ligacio en- trea divisio das classes socais ea diviséo das linguagens: a diviséo do trabalho gera uma divisio dos éxicos; pode-se até dizer (Greimas) aque um léxico é precisamente 0 recorte imposto 3 massa semén- ica pela pritica de determinado trabalho: no ha éxico sem ur > batho correspondente (nao cabe fazer excesso pata o léxico geral, mais do que 0 léxico “fora do trabalho”); 0 Jevantamento sociolingiistico seria entéo mais ficil de ser eferua- do nas sociedades eenogréficas do que em nossas sociedades his- séricas ¢ desenvolvidas, onde o problema é muito complexos entre rnés, realmente a divisio social da linguagens parece percurbada st smultaneamente pelo peso, pela forga unificadora do idioma nacio- nal e pela homogencidade da culnura dita de massa, como jf foi st getido; uma simples observagio fenomenoldgica basta, entrerantoy para atestaravalidade das separagbeslingsticas: basta sar um ins- “universal”, que no ya | Oremor de lingua | tante de sett préprio meio e propor-se como tarefa, mesmo que fos- se por uma ou duas horas, no apenas ouvir outras linguagens que nfo a nossa, mas também participar tio ativamente quanto poss{- vel da conversacio, para perceber, sempre com embarago, &s vezes com dilaceramento, a enorme estanqueidade das linguagens no in- terior do idioma francés; se essas ling (exceto sobre “o tempo que estd fazen gua, compreendida por todos, mas no nivel dos discursos (obje- to que comesa a aleancar a lingifsti ‘ns no se comunicam de ordem interlocutéria: de uma linguagem para outra, hd incutio- sidade, indiferenga; na nossa sociedade, a linguagem do mesmo nos basta, nao temos necessidade da linguagem do outro para vi- ver: basta a cada um a sua linguagem, Fixamo-nos na linguagem do nosso cantio social, profissional, e essa fixacéo tem valor neu- r6tico: petmite-nos uma adaptagao softivel a0 despedagamento da nossa sociedade. Evidentemente, nos estados hist6ricos da socialidade, a diviséo do trabalho nao se reftata diretamente, como wim simples reflexo, na divisio dos léxicos e na separagio das linguagens: hd uma come- plexizagéo, superdeterminagio ou contrariedade dos fatores. E, ‘mesmo em paises relativamente iguais em desenvolvimento, po- dem persistir diferengas provindas da hist6ria; estou persuadido de que, comparada com outros paises que nfo sto mais democriticos do que ela, a Franea ¢ particularmente dividida: hé na Franca, tal- ver pot tradigao clissica, uma consciéncia muito viva das identi- dades e das propriedades de linguagem; a linguagem do outro é percebida segundo as arestas mais vivas da sua alteridade: dat as tio fieglientes acusagtes de “jargio” e uma velha tradicio de ironia contra linguagens fechadas que sfo pura e simplesmente lingua- gens outras (Rabelais, Moliére, Proust), | Das ingens edo estilo | Em face da divisao das linguagens, dispomos de alguma tenta- tiva de descricio cientifica? Sim, e é evidentemente a sociolingtifs- tica. Sem querer abordar aqui um processo em regra dessa discipl na, temos de assinalar, entretanto, certa decepeao: a sociolingiiistica nunca tratou do problema da linguagem social (como linguagem dividida); houve por uma parte aproximagies (a bem dicas e indiretas) entre a macrossociologia ¢ a macrolingiiistica, pondo-se em relacionamento 0 fendmeno “sociedade” com ofe- némeno “linguagem” ou “lingua”; houve por outra parte e, se assim se pode dizer, na outra ponta da escala, algumas tentati crigdo sociolégica de ilhas de linguagem (speech communities): lin- guagem das prisbes, das pardquias, formulas de cortesia, baby-talks a sociolingiifstica (e sobre esse ponto é que & possivel sentir-se de- cepcionado) remete & separagio dos grupos sociais na medida em que lusam pelo poder, a divisio das linguagens nao é pensada como um fato total, pondo em causa as proprias ratzes do regi- izagdo, até mesmo da hist6ria, mas apenas como o atributo empirico (de modo algum simbéli- co) de uma disposigéo meio sociolégica, meio psicolégica: o de- sejo de promogdo — vis4o no minimo estreita, que no responde a nossa expectativa, A lingiistica (¢ no mais a sociologia) teria feito melhor? Ra~ ramente ela estabeleceu relagdo entre linguagens grupos s ‘mas procedeu a levantamentos histéricos sobre vocabular cos dotados de certa autonomia (de certa figura) social ou insti- tucional: é 0 caso de Meillet para o vocabutlétio religioso indo-eu- ropeu, de Benveniste, cuja iltima obra sobre as instituigbes indo- ccuroptias é propriamente admirdvel;¢ 0 caso de Maroré, que tentou fundat, hé cerca de vinte anos, uma verdadeira sociologia histérica do vocabulitio (ou lexicologia); é, mais recentemente, o caso de me econémico, da cultura, da ci Jean Dubois, que descreveu 0 vocabulitio da Comuna. A tenta- tiva que melhor mostra o interesse ¢ os limites da lingiistica s6- cio-histérica ¢, talvez, a de Ferdinand Brunor; nos tomos Xe XI de sua monumental Histoire de la langue frangaise des origines & 1900", Brunot estudou, minuciosamente, a linguagem da Revolucio Fran- esa. O interesse € 0 seguinte: o que é estudado é uma linguagem nfo um conjunto de tiques verbais destinados a“ a linguagem (como acon- tece freqiientemente hoje), mas uma linguagem que se elabora no préprio movimento de uma prdxis politica; donde o cardter mais produtivo do que representativo dessa linguagems as palavras,sejam clas podadas ou promovidas, ficam ligadas quase magicamente a uma eficécia real: ao abolir a palavra, acredita-se abolir o referen- te; interditando a palavra “nobreza’, € a nobreza que se pensa in- terditar; 0 estudo dessa linguagem politica poderia fornecer um bom parimetto para uma andlise do nosso préprio discurso polf- tico (ou polirizado?): palavras efetivadas, marcadas por um tabu ou tum contratabu, palavras queridas (Nagao, Lei, Pétria, Comsttui- $40), palavras exectadas (Tirania, Aristocrata, Conjuragéo), poder exorbitante de certos vocébulos, no entanto “pedantes” (Consttui- ao, Federalismo), “xaducbes” terminol6gicas, criagbes substitutivas (lero ~> padralhada, religito —» fanatismo, objeto religioso —> bue ‘gigangas do fanatismo, soldados inimigos ~> vis satdites dos déspo- 1as, impostos —> contribuictio, empregado doméstico —> homem de confianea, alcagiiete > investigador de polica, atores > artistas, etc.), conotagdes desenfreadas (revoluciondrio acaba por significar expedite, acelerado; dia-se clasificar livros revoluci Quanto ao limite, & 0 seguinte: a andlise s6 atinge o léxicos € bem «Pais, Armand Colin, 1937. | Da linguagnse deel | verdade que a sintaxe do franeés foi pouco tocada pelo abalo revo (que na realidade se esforgou por vigt-la¢ por manter izet que a lin- lucion: 0 uso cléssico); mais que isso, talvez, poder-se- gisica no dispée ainda dos meios para analisar essa estrutura fina do discurso que se situa entre a “construcio” gramatical, de- masiado frouxa, ¢ 0 vocabulério, por demais estrito, e que corres- ponde sem diivida & regio dos sintagmas imobilizados (por exem- plo: “a pressio das massas revolucionérias"); 0 lingiista ¢, entdo, levado a reduzir a separagio das linguagens sociais a fatos de léxi- co ou mesmo de moda. ‘Assim, a mais candente das situagées, a saber, a opacidade ‘mesma da relagio social, parece escapar & andlise cientifica tradi- ional, A razdo fundamiental, parece-me, ¢ de ordem epistemols- gica; diante do discurso, a lingtistica parou, se assim se pode di- er, num estgio newtoniano: ela ainda nao operou a sua revolu- fo einsteiniana; néo teorizou o lugar do lingtiista (da referéncia observadora) no campo da observagio. E essa relativizacio que € necessdrio primeiro po: £ tempo de dar um nome a essas linguagens sociais recorta- das na massa idiomtica e cuja estanqueidade, por mais que a te- hamos sentido, de inicio, como existencial, acompanha, através de todas as trocas, todos os matizes € as complicagdes que é licito conceber, a divisio e a oposigao das classes; chamemos essas lingua- gens de grupo de socioletos (por oposigdo evidente a idioleto, ou falar de um s6 individuo). O cardter principal do campo sociole- tal é que nenhuma linguagem Ihe pode ficar exterior; toda palavra € fatalmente incluida em determinado socioleto. Essa injungao 25 | Orumor da linge | tem uma conseqiiéncia importante para o analista: ele préprio é envolvido no jogo dos socioletos. Dirio que, em putros casos, essa situacdo no impede absolutamente a observagio cientifica: & 0 caso do lingiiista que deve descrever um idioma nacional, isto é um campo a que nenhuma linguagem escapa (nem mesmo a sta); ‘mas precisamente: o idioma ¢ um campo unificado (s6 hé uma tinica ingua francesa), quem fala dele nao ¢ obrigado a nele estat si- tuado. Em contrapartida, o campo socioletal se define por sua divi- so, por sua secessio inexpive, e é nessa divisio que deve ocortet a andlise, Disso resulta que a pesquisa socioletal (que ainda néo existe) ndo pode ser comecada sem um ato inicial, fundador, de ava- ‘iagio (quiséramos dar a entender essa palavra no sentido critico que Nietsche soube lhe dar). Isso significa que niio podemos despejar to- dos os socioletos (todos os falares socials), quaisquer que sejam, qual- quer que seja 0 seu contexto politico, num vago corpus indiferen- Gado, cuja indiferenciacio, igualdade, seria uma garantia de obje- tividade, de cientificidade; temos de recusar aqui a adiaphorta da ciéncia tradicional, temos de aceitar ~ ordem paradoxal aos olhos de muitos — que sejam os tipos de socioletos que comandem a ané- lise, € no o inverso: a tipolagia ¢ anterior a definigao. Precisemos ainda que a avaliagdo néo pode reduzir-se & aprecidpdo: cientistas muito objetivos se atributram o direito (legitimo) de apreciar os fatos que descreviam (é precisamente o que fez E. Brunot com a Revolucio Francesa); avaliar & um ato nao subseqtiente, mas fun- dador; nfo é um procedimento “liberal”, mas, a0 contrério, violen- 10; a avaliagéo socioletal, desde a origem, vive 0 contflito dos grupos € das linguagens; a0 colocar 0 conceito socioleral, 0 analista deve dar conta, imediatamente, ao mesmo tempo da conttadigio social € da fratura do sujeito sdbio (remeto aqui & anélise lacaniana do “sujeito suposto saber”). 126 | Das linguagent edo elo | Logo, nao é possivel uma descrigdo cientifica das linguagens sociais (dos socioletos) sem uma avaliacio politica fundadora. Assim como Aristételes, na Retdrica, distinguia dois grupos de provas: as provas interiores a tékne (éntelbnoi) e as provas exteriones a sékbne (dekbnoi), sugito distinguisem-se desde a origem dois grupos de socioletos: os discursos no poder (a sombra do poder) ¢ os discur- sos fora do poder (ou sem poder, ou ainda sob a luz do nao-poder); recorrendo neologismos pedantes (mas como fazer de outro modo’), chamemos aos primeiros discursos encndticos e aos segun- dos, discursos acniticos. Certamente, a relagio de um discurso com 0 poder (ou com o fora do poder) é muito raramente direta, imediata: a lei profbe, por certo, mas o seu discurso jé é mediatizado por toda uma cultura ju- ridica, por uma ratio que quase todos admitem; e sé a fabulosa fi- gura do Tirano poderia produzir uma palavra que colaria instan- taneamente ao seu poder (“o Rei ordenow que..”). De fato, a line guagem do poder é sempre dotada de estruturas de mediagio, de condugio, de transformagao, de inversio (assim o discurso da ideologia, cujo cardter invertido com relagao ao poder burgués foi indicado por Marx). Assim também, o discurso acrdtico nem sem- pre se faz declarativamente contra o poder; para tomar um exem- plo particular e atual, o discurso psicanalitico nao esté diretamente ligado (pelo menos na Franga) a uma critica do poder, € no entan- to podemos alinhé-lo entre os socioletos acréticos. Por qué? Por- que a mediagao que intervém entre o poder e a linguagem nao & a, mas de ordem cultural: retomando uma velha nogio aristotélica, a de déxa (opiniao corrente, geral, “provavel”, mas nio “verdadeira’, “cientifica’), diremos que é a déxa que é mediagio cultural (ou discursiva) através da qual 0 poder (ou 0 nio-podes) fala: o discurso encrético € um discurso conforme & 27 | Ormor de lingua | xa, sulbmisso aos seus cbdigos, que sio, eles préprios, as linhas estruturantes da sua ideolo pre, em graus diversos, contra a déxa (qualquer que sj serd um discirso pana-doxal). Essa opinio no exclui os matizes no interior de cada tipo; mas, estruturalmente, a sua simplicidade permanece valida enquanto poder € o néo-poder esto cada um no seu Iu- 215 nFo pode ser (provisoriamente) percurbada seno nos casos raros em que hd mutagao de poder (dos lugares do poder); assim acontece com a linguagem politica em periodo revoluciondrio: a linguagem revoluciondria provém da linguagem acrética preceden- te; a0 passar para o poder, conserva o caréter acrético enquanto hé lta ativa no seio da Revolusio; mas, logo que essa se consolida, que © Estado se instala, a antiga linguagem revolucionéria torna-se por sua vez déxa, discurso enctitico O discurso encrético ~ jé que submetemos sua definigio & mediagao da déxa — nao ¢ apenas o discurso da classe no poder; classes fora do poder ou que tentam conquisté-lo por vias reformis- tas ou promocionais podem assumi-lo —ou pelo menos recebé-lo com consentimento. A linguagem enerdtica, sustentada pelo Es- tado, estd por toda parte: é um discurso difuso, disseminado e, por im dizer, osmético, que impregna a8 trocas, os ritos socias, os lazetes, 0 campo sécio-simbélico (sobretudo, evidentemente, nas sociedades de comunicagéo de massa). Nao s6 o discurso encritico nunca se dé por sistematico, mas constitui-se sempre como uma eposicdo ao sistema: os dibis de natureza, universalidade, bom sen- $0, clareza, as resistencias antiintelectualistas tornam-se as figuras tdcitas do sistema encrético. Mais, é um discurso pleno: nele nda hd 4ugar para o outro (donde a sensacio de sufocamento, de pegajo- sidade que pode provocar naqueles que nao participam dele). En- fim, se quisermos nos refetir ao esquema de Marx (‘A ideologia € 128 | Das linguagene do el | uma imagem invertida do real”), 0 discurso encritico ~ sendo plenamente ideolégico ~ apresenta o real como a inversio da ideo- logia. E, em suma, uma linguagem nao marcada, producora de lesignar-lhe uma intimidaggo amaciada, de maneira que é di sazos morfoldgicos — a menos que se consiga reconstituir com ri- gor € precisio (0 que é um pouco uma contradigio nos termos) 4: figuras do amaciamento. Ea propria natureza da déxca (difisa, ple- na, “natural”) que torna dificil uma tipologia interna dos sociole- tos encriticos; hd uma atipia dos discursos do poder: esse género desconhece espécies. Os socioletos acriticos sio indubitavelmente mais ficeis e mais interessantes de estudar: s4o todas as linguagens que se elabo- ram fora da déxa e sio por isso mesmo recusadas por ela (0: lamente sob 0 nome de jargdes). Ao analisar 0 discurso encré 0, sabe-se mais ou menos, de antemfo, 0 que se vai encontrar (razio pela qual, hoje, a andlise da cultura de massa e ‘mente marcando passo); mas o discurso acritico é, em linhas ge- rais, o nosso (0 do pesquisador, do intelectual, do escritor); ana- lisé-lo € analisar-nos a nés mesmos enquanto falamos: operacio sempre arriscada € que por isso mesmo seré preciso empreender: que pensam o marxismo, ou o freudismo, ow o estruturalismo, ou a ciéncia (a das ciéncias ditas humans) — na medida em que cada uma dessas linguagens de grupo constitui um socioleto acritico (para-doxal) ~, que pensam eles do seu préprio discurso? Essa in- terrogacio, que jamais é assumida pelo discurso do poder, é evi- dentemente 0 ato fundador de toda anélise que pretende no se exteriorizar ao seu objeto, A rentabilidade de um socioleto (afora as vantagens que a pos- se de uma linguagem dé a todo poder que se busca conservar ou conquistar) ¢ evidentemente a seguranca que proporciona: como 129 | Orumor de lingua | todo cerco, o da linguagem exalta, garante todos os sujeitos que esto dentro, rejeira e ofende os que esto fora. Mas como age um socioleto do lado de fora? Sabe-se que hoje jé nfo existe arte da per- suasio, jé nio hd retérica (senao envergonhada); note-se a propé- sito que a retérica aristovélica, fundamentada na opinido da aioria, era, de direito, ¢, por assim dizer, voluntariamente, de- claradamente, uma retérica endoxal, portanto encritica (razio pela qual, por um paradoxo que ¢ apenas aparente, o aristotelismo ainda pode fornecer conceitos muito bons para a sociologia das comunicagées de massa); 0 que est4 mudado ¢ que, na democra- cia moderna, a “persuasio” ¢ sua tébhne jd nao sio teorizadas, porque o sistemédtico ¢ censurado e porque, sob o efeito de um mito pro- priamente modemo, 2 linguagem é reputada “natural”, “instrumen- tal”, Pode-se dizer que num tinico movimento a nossa sociedade recusa a retdrica ¢ se “esquece” de teorizar a cultura de massa (esque- cimento flagrante na teoria marxista posterior a Marx). Em verdade, os socioletos nao se ligam a uma rékbne de per- suasio, mas todas comportam figuras de intimidagao (ainda que 6 discurso acrético parega mais brutalmente terrorista): fruto da divisao social, testemunha da guerra do sentido, todo socioleto (encrético ou acritico) visa a impedir 0 outro de falar (isso tam- bém se dé com o socioleto liberal). Assim, a diviséo em dois gran- des tipos de socioleto nfo faz. mais do que opor tipos de intimida- 40, ou, se preferirem, modos de pressio: o socioleto encrético age por opressao (do excesso endoxal, daquilo a que Flaubert chama de Burrice [Bérise]); 0 socioleto acrdtico (estando fora do poder, deve recorrer & violéncia) age por sujeigdo e pde em bateria figu- ras ofensivas de discurso, destinadas mais a constranger 0 outro do que a invadi-lo; ¢ o que op6e essas duas intimidagées é, ainda uma ver, o papel reconhecido ao sistema: 0 recurso declarado a um sis- 130 | Das inguagns edo etl | tema pensado define a violéncia acrética; a perturbagéo do siste- ‘ma, a inversio do pensado em “vivido” (e nfo-pensado) define a re- pressio encrdtica: hd uma relagio invertida entre os dois sistemas de discursividade: patente/oculto. idativo apenas para aque- les que dele estdo exclufdos (em razio da sua situagéo cultural, so- cial): coage também aqueles que 0 compartilham (ou melhor, tém- no em partilha), Isso resulta, estruturalmente, do fato de que 0 so- no nivel do discurso, é uma verdac Boas, Jakobson deixou bem claro que uma lingua se define néo pelo que permite dizer, mas pelo que obriga a dizer; da mesma for- ‘ma, todo socioleto comporta “rubricas obrigatbrias”, grandes formas estereotipadas fora das quais'a clientela do socioleto nao pode falar (no pode pensar). Em outras palavras, como toda lingua, 0 socio- leto implica o que Chomsky chama de competéncia, em cujo seio as variagbes de performance tornam-se estruturalmente insignifican- tes: 0 socioleto encritico nfo é afetado pelas diferengas de vulgari- dade que se estabelecem entre os seus locutores; ¢, no outro lado, todos sabemos que o socioleto marxista pode ser falado por imbe- cis: a lingua socioletal néo se altera ao sabor de acidentes indi duais, mas tio-somente se se produz na histéria uma mutagdo de discursividade (Marx e Freud foram desses mutantes, mas a partir de- les a discursividade que fundaram nada mais faz. que repetir-se). gua; na esteira de Para concluir essas poucas observagoes, situadas ambiguamen- te a meio caminho entre 0 ensaio e 0 programa de pesquisa, per- mita-se ao autor lembrar que, a seus olhos, a divisio das linguagens sociais, a socioletologia, se quiserem, estd ligada a um tema apa- 131 | Orumor de lingua | Fentemiente pouco saciolégico, que tem sido até agora dominio re- servado dos te6ticos da literatura; esse tema é 0 que hoje se chama de exerinara, Em nossa sociedade de linguagens divididas, a escrituna ‘oma-se um valor digno de instituir um debate e um aprofunda- mento te6rico incessantes, porque ela constitui uma producio da inguagems indivisa. Tendo perdido qualquer ilusio, hoje sabe. mos bem que nio se tata, para o escttor, de falar a“linguagem- Povo", de que Michelet tinha saudade; nao se trata de alinhar a «scritura com a linguagem da maioria, pois, numa sociedade alie- nada, a maioria nfo € 0 universal, e fla esa lingagem (o que se faz na culeura de massa, onde se anda na busca estatistica do maior iimero de ouvintes ou de telespectadores) é também falar uma Hinguagem particular ~ ainda que seja majoritéria. Sabemos que iguagem no pode reduzir-se & comunicacdo simples, é todo jeto humano que se engaja na palavra e se constitui através dela, Nas venativas progrenias da modernidade, a esritura ocupa tum lugar eminente do em funcio da sua clientela (muito redu- ida), mas em fungao da sua pritica: & porque ataca as relacdes do Sujeito (Sempre social: haverd outro?) e da linguagem, a distibuigao ultrapassada do campo simbdlico ¢o processo do signo, que aeseri. fur aparece como uma prtica de contnadivsto da lingvagens: ima- gem sem divida ut6pica, em todo caso mitca, jf que vai etn busca do velho sonho da lingua inocente, da lingua adamica dos primnei- tos romanticos. Mas no procede a historia, segundo a bela mets fora de Vico, em espiral? Néo devemos retomar (0 que nfo signifi a repetit) as antigas imagens para dar-lhes contetidos novos? Une civilisation nouvelle? Hommage & Georges Friedmann. © 1973, Gallimard. 132 = A GUERRA DAS LINGUAGENS Na minha regio, que ¢ 0 Sudoeste da Franca, terra tranqiila de modestos aposentados, estando um dia a passear, pude ler, em algumas centenas de metros, & porta de trés casas, trés tabuletas diferentes: Cio bravo. Cio perigoso. Cio de guarda. Essa regiéo, como se vé, tem um sentido muito agucado da propriedade. Mas rndo reside af 0 interesse; estd no seguinte: essas trés expressbes constituem uma s6 ¢ tinica mensagem: Nao entrem (caso contritio, setio mordidos). Em outras palavras, a lingiifstica, que s6 se ocupa com as mensagens, apenas poderia dizer a respeito algo de muito simples banal ela nfo xgotaria, nem de long, o sentido desas expresses, porque o sentido estd na sua diferenca: “Cio bravo” é agressivos “Ciao perigoso” & flante6pico; “Cao de guarda” € aparen- temente objetivo, Em outra palavas ainda, através de uma mesma mensagem, lemos trés escolhas, trés envolvimentos, trés mentali- dades, ou, se preferitem, trés imaginérios, trés dlibis da proprieda- de; pela linguagem de sua tabuleta — por aquilo que eu chama- 133 | Orumor de lingue | 1a de elite e cultura de massa, vanguarda e tradi¢ao constituem formalmente cédigos diferentes colocados num mesmo momento, segundo a expressio de Merleau-Ponty, em “modulagéo de coe- xisténcia’; é esse conjunto de cédigos simultdneos, cuja pluralida- de foi reconhecida por Jakobson®, que é preciso estudar; e como um cédigo nao é mais do que determinada maneira de distribuir uma colegio fechada de signos, a andlise retérica deveria ligar-se diretamente nfo & sociologia propriamente dita, mas antes a essa jgica, ou sociologia das formas de classificagio, que Dur- ¢ Mauss jé postulavam. is s4o, apresentadas répida e abstratamente, as perspectivas gerais da andlise retérica. E uma andlise cujo projeto nao é novo, mas a que os desenvolvimentos recentes d: ¢ da teoria da informacio dao renovadas possibilidades de explo- ra¢io; mas, principalmente, ela requer de nés uma atitude metodo- 6gica talvez nova, pois a natureza formal do objeto que pretende estudar (a mensagem literétia) obriga a descrever de man nente ¢ exaustiva o cédigo retdrico (ou os cédigos retéri tes de pér em confronto este ou estes cédigos com a sociedade ¢ a Histéria que os produzem ¢ os consomem. Coléquio Goldmann, 1966. Excerto de Littérature et socidsé. © Ed. do Institut de Soci Université Libre de Bruxell M6 O ESTILO E SUA IMAGEM eco-lhes que me permitam partir de uma consideragao pes- soal: hé cerca de vinte anos, a minha pesquisa diz respeito & lingua- gem literdria, em que eu possa me reconhecer plenamente nem 0 papel do critico, nem do lingiista. Quisera valer-me dessa siuagio ambigua para tratar de uma no¢io impura, que €a0 mesmo tempo uma forma metaférica e um conceito teérico. Essa nogéo é uma ima- _gem. Nao creio, com efeito, que o trabalho cientifico possa avangar \, sem uma imagem do seu objeto (¢ sabido, nada mais resolutamen- te metaférico do que a linguagem dos mateméticos ou a dos ge6- grafos); € ndo creio tampouco que a imagem intelectual, herdei- ra das antigas cosmogonias pitagoricas, a uma sé ver espaciais, mu- sicais ¢ abstrata, seja desprovida de valor tebrico, que a preserva da continggncia, sem desvié-la exageradamente para a abstragio. E pois uma imagem que quero interrogar, ou, mais exatamente, uma ? Qual a imagem do estilo que me molesta, qual aquela que descjo? 7 | Oramor de lng | Simplificando muito (€ 0 direito da visio), parece-me que estilo (deixando & palavra o sentido corrente) sempte foi tomado ‘num sistema binério, ou, caso se preferis, num paradigma mito- liégico de dois termos; esses termos, bem entendido, mudaram de nome e até de contetido segundo as épocas ¢ as escolas. Tomemos duas dessas oposigées, A primeira, mais antiga (cla ainda dura, pelo menos, com fre- liéncia, no ensino da literatura), é aquela entre 0 Fundo e a For- ‘ma; ela provém, como se sabe, de uma das primeiras clasificagées da Ret6rica cléssica que opunha Res e Verba: de Res (ou materiais demonstrativos do discurso) dependia a Jnventio, ou busca do que se podia dizer a respeito de um assunto (quaestio); de Verba depen- dia a Elocutio (ou transformagao desses materiais em forma ver- bal), que era, em linhas gerais, 0 nosso estilo. A relacio do Fundo com 2 Forma era uma relacéo fenomenoldgica: era reputada a Forma como a aparéncia ou a vestimenta do Fundo, que dela era 2 verdade ou 0 corpo; as metéforas ligadas & Forma (ao estilo) eram, pois, de ordem decorativa: flguras, cores, nuances; ou, entio, essa relacdo da Forma com o Fundo era vivida como uma relagéo expressiva ou alética: tratava-se, para o literato (ou o comentarista), de estabelecer uma relacio justa entre o fundo (a verdade) ¢ a forma (@ aparéncia), entre a mensagem (como conteido) ¢ o seu medium (© estilo), e que entre esses dois termos concéntricos (um estando ‘no outro) houvesse uma garantia reefproca. Essa garantia constituiu © objeto de um problema histérico: a Forma pode disfercar o Fun- do, ou deve subordinar-se a ele (a ponto de jé nao ser ento uma Forma codificada)? E esse debate que opée durante séculos-a re- ‘rica aristotdlica (depois jesultica) & retérica plat6nica (depois pas- caliana). Essa visio permanece, apesar da mudanga terminolégica, quando consideramos 0 texto como a superposicéo de um signi- 48 | Dae inguegent edo elo “ficado ¢ de um significante, sendo entio o significado fatalmente vivido (falo aqui de uma visio mais ou menos assumida) como uum segredo que se esconde atrés do significante, ‘A segunda oposicio, muito mais recente, de ares cientificos, tributdria em grande parte do paradigma saussuriano Lingua/Fala (ou Cédigo/Mensagem), & a que se estabelece entre a Norma e 0 Desvio. O estilo é visto, entéo, como a excegio (codificada, entretan- to) de uma regra; cle é a aberrago (individual e, no entanto, institu ional) de um uso corrente, que ora é visado como verbal (se se de- fine a norma pela linguagem falada), ora como prosaico (se se ope a Poesia a “outa coisa”), Assim como a oposigéo FundForma im- plica uma visio fenomenolégica, a oposi¢éo Norma/Desvio impli- ca uma visio finalmente moral (soba espécic de uma légica da en- doxa): ha reducao do sistemético ao sociol6gico (0 cédigo € aquilo que € garantido estatisticamente pelo maior mtimero de usudrios) € do sociolégico a0 normal, lugar de uma espécie de nacureza so- cial a literatura, esparo do estilo, ¢ porque ela ¢especificamente «esse espago, assume entéo uma funco xamanica, bem descrita por Lévi-Strauss na Introdugi @ obra de M. Mauss ela ¢ 0 lugar da ano- alia (verbal), tal qual a sociedade o fixa, reconhece ¢ assume hon- rando os seus esctitores, exatamente como o grupo etnogréfico fixa a extranatureza no feiticeiro (4 maneira de um abscesso de fi- xaco que limita a doenga) para poder recuperd-la num processo de comunicago coletiva Gostaria de partir dessas duas visbes, menos para destru-las do que para complicé-las. ‘Vejamos primciro a oposicfo entre o Fundo e a Forma, entre 0 Significado e 0 Significante. Ninguém duvida de que ela comporta vas | O rumor da lngus | uma parte, irredutivel, de verdade. A Andlise estrucural da narra- tiva em suas aquisigdes e suas promessas es inteiramente funda- mentada nessa convicsio (e na prova pritica) de que se pode transformar um texto dado em uma versio esquemética, cuja me- talinguagem j4 nao é a linguagem integral do texto original, sem que a identidade narrativa do texto seja alteradas para enumerar fungées, reconstituir seqiiéncias ou distribuir actantes, par as cla- ras, em suma, uma gramética narrativa que jd nao é 2 gramética da lingua vernacular do texto, é preciso descolar a pelicula estilis- tica (ou, mais geralmente, elocutéria, enunciadora) de uma ca- mada de sentidos segundos (narrativo: com relagéo aos quais os tacos estilisticos so sem pertinén fazemo-los variar sem que a estrutura seja alterada, Balzac dizer de um inquietante ancido que “conservava nos labios azulados um riso fixo e parado, um riso implacivel e zombeteiro como o de uma caveira” vem exatamen- tea mesma fungao narrativa (ou, mais precisamente, seméntica) que se transformamos a frase e enunciamos que o ancio tinha em si algo de fiinebre e fantéstico (esse sema ¢ irredutivel, visto ser fancionalmente necessério 4 seqUiéncia da histéria). O erro, entretanto, seria ~ e aqui é que temos de modificar a nossa visio do Fundo e da Forma ~ parar de certo modo prematu- ramente a subtracgo do estilo; o que essa subtragio (possivel, como se acabou de dizet) desnuda néo é um fundo, um significado, mas ‘uma forma, um outro significante, ou, caso se prefira, um vocdbulo mais neutro, outro nivel, que jamais é0 siltimo (pois o texto sem- pre se articula sobre cédigos que nfo esgota); os significados so formas, sabemo-lo desde Helmsley, melhor ainda desde as recentes hipéteses dos psicanalistas, dos antropélogos, dos fildsofos. Ao ana- lisar, recentemente, uma novela de Balzac, cteio que pude por em evidéncia, fora mesmo do plano es ico, de que nao trate, ¢ fie 150 | Das inguaense dee | cando no interior do volume significado, um jogo de cinco cédi- gos diferentes: acional, hermenéutico, sémico, cultura e simbél as “citagGes” que o autor (ou, mais exatamente, 0 performador do texto) extrai desses cédigos esto justapostas, mescladas, superpos- tas no interior de uma mesma unidade enunciativa (uma tinica frase, por exemplo, ou, mais geralmente, uma “lexi, ou unidade de Jeitura), de modo que forme uma tranga, um tecido, ou ainda (eti- mologicamente) um texto. Eis um exemplo: o escultor Sarrasine std enamorado de uma prima-dona que ele ignora ser um castrados ina estava armada rapta-a e a pretensa cantora se defende: deum punhal. ‘Se te aproximares, dise ela, ‘serei obrigada a eravar- te esta arma no coragio’.” Haverd, por detrds do enunciado, um sig- nificado? De forma alguma; a frase € como trangado de varios (0 da lingua francesa), um cédigo ret6rico (antonomésia, incisa do inguit, apéstrofe), um cédigo acio- nal (a defesa armada da vitima € um termo da seqiéncia Rapeo), um cédigo hermenéutico (0 castrado engana sobre seu sexo fin- gindo defender a sua virtude de mulher) ¢ um cédigo simbélico (2 faca ¢ um simbolo castrador). Ento ndo mais podemos ver o texto como a composicao bi- ndria de um fando e de uma forma; 0 texto nao € diiplice, mas muil- tiplo; no texto s6 ha formas, ou, mais exatamente, 0 texto, em seu conjunto, ndo é niais do que uma multiplicidade de formas — sem fando, Dir-se-d metaforicamente que o texto literdrio é uma es- tereografia: nem melddica, nem harménica (ou, pelo menos, no sem mediagio), é resolutamente em contraponto; mistura vozes em um volume, ¢ nao segundo uma linha, ainda que fosse dupla. ‘Sem diivida, entre essas vozes (esses cédigos, sistemas, formas), algumas estado mais warticularmente ligadas & substincia verbal, ao jogo verbal (a lingiistica, a retSrica), mas trata-se de uma dis- 151 | O rumor de lingua | tingZo histérica que s6 tem valor para a literatura do Significado (que é, em geral, a literatura que estudamos); porque basta pensar Mm certos textos modernos para ver que, nesses textos, o signifi- cado (narrativo, légico, simbélico, psicolégico), sendo ainda mais fagidio, jd nao hé nenhuma possibilidade de opor (mesmo ma- tizando) sistemas de formas a sistemas de contetidos: o estilo é tum conceito histérico (¢ ndo universal), que sé tem pertinéncia para as obras histéricas. Terd ele, no seio dessa literatura, uma fun- fo definida? Creio que sim. O sistema estilstco,'que é um sistema Como outros, entre outros, tem uma fungio de naturalizagao, ou de familiatizacéo, ou de domesticagao: as unidades dos cédigos de contetido sio, de fato, submetidas a uma descontinuidade grossei- 12 (as ages séo separadas, as notagées caractetiais e simbélicas so disseminadas, a marcha da verdade ¢ fragmentada, retardada); a lin- ‘guage, sob as espécies elementares da frase, do periodo, do pars srafo, superpée a essa descontinuidade semantica, que se fundamen- tana escala do discurso, a aparéncia de uma continuidade; porque, embora a linguagem seja ela propria descontinua, a sua estrutura € téo antiga na experiéncia de cada homem que ele a vive como ver- dadeira natureza: nao se fala do “fluxo da palavra”? Que fd de familiar, de mais evidente, de mais natural, do que uma fras. O estilo “forra” as articulagées semanticas do contetido; por via me- ton{mica, ele naturaliza a histéria contada, inocenta-a. Voltemo-nos agora para a segunda oposigéo, a da Norma 20 Desvio, que é, na realidade, a op gem, pois que o estilo (ou efei ‘mensagem aberrante que “surpreende” o cédigo. Ainda aqui, te- 152 | Das linguagens edo elo | mos de apurar a nossa viséo, partindo da oposigao mais do que a destruindo. Os tragos de estilo séo inegavelmente tirados de um cédigo, ou pelo menos de um espago sistemético (essa distingio parece necessdtia se se quer respeitar a possibilidade de um multicédigo, cow ainda a existéncia de um significante cujo espago é regulado e, to, de um paradigma insaturével): 0 estilo é uma discancia, uma diferenga; mas com relagio a qué? A referencia é co mais das veres, implicita ou explicitamente, a Iingua falada (cha- mada “corrente”, “normal”). Essa proposigg0 me parece 20 mes- ‘mo tempo excessiva e insuficiente: excessiva porque os cédigos de referéncia (ou de diferenca) do estilo sfo numerosos ¢ porque @ lingua falada nunca é mais do que um desses cédigos (que nio hé nenhuma razio, alids, para privilegiar fazendo dela a lingua prin- cops, a encamasio do cédigo fundamental, a referéncia absoluta); insuficiente porque, quando a ela se remete, a oposicio entre 0 falado ¢ 0 escrito nao ¢ explorada em toda a sua profundeza. Uma palavra a respeito deste dltimo ponto. Sabe-se que 0 objeto da lingiifstica, aquele que Ihe determi- na simultaneamente o traball &a frase (sejam quais forem as dificuldades para defini-l): para além da frase, no ha lin- gilstica, porque entao € o discurso que comega e as regras de com- binacéo das frases so diferentes das dos monemas; mas, aquém, ino hd tampouco lingiistica, pois acredita-se nao encontrar en- to mais do que sintagmas amorfos, incompletos, indignos: s6 a frase, pensa-se, dé garantia de organizagio, de estrutura, de unida- de, Ora, a linguagem falada, que é também, nao esquegamos, a linguagem interior’, é essencialmente uma linguagem subfrdsica; no entanto, rertabelecer 0 texto, (Nota do editor francés) 153 | Orumor da lingus | pode, por certo, comportar frases acabadas, mas esse acabamento no € exigido para 0 éxito ¢ a rentabilidade da comunicagio, isto 6 pelo cédigo do género: falamos continuamente sem acabar as nossas frases. Ougam uma conversa: quantas frases cuja estrucura ca ou ambigua, quantas subordinadas sem principal \Gio € indecifrével, quantos substantivos sem verbos, adversativos sem correlatos, etc.? A ponto de ser abusivo falar ain- dda de “frases’, mesmo para declaré-las incompletas ou mal-forma- melhor falar, de maneira mais neutra, de sintagmas cuja congregagio esté por descrever. Abram, pelo contrério, um livro: nao hd nenhuma frase que nao seja ferminada, por uma sobrede- terminago de operadores, a0 mesmo tempo estruturais, rftmicos € pontuacionais. Donde, de diteito, du: lavra vocal e uma lingiistica da marca escrita. Ao restabelecer essa distingéo em sua profundidade, nada mais farfamos do que seguir as recomendagées da filosofia, que da hoje & fala e & escrita uma ontologia diferente; é diz ela; por um abuso paradoxal que a giifstica nunca trata sendo da escrita (da linguagem frisica), 20 mesmo tempo que pretende que a forma canénica da linguagem seja a fala, de que a escrita no seria mais do que a “transcticio”. Falta-nos, como se sabe, uma gramética da lingua falada (mas essa gramética seria possivel? Nao seria a préj gramatica que se apaga nessa divisio da comunicacé em que dispomos apenas de uma gramatica da frase. Essa carén- cia determina uma nova distribuiggo das linguagens: hé as lingua- gens da frase e as outras. As primeiras sio todas marcadas por um caréter injuntivo, uma rubrica obrigat6ria: o acabamento da frase O estilo é evidentemente uma dessas linguagens escritas e 0 seu 154 | Desa dele | trago genérico (aquilo que o liga ao género do escrito, mas ainda io 0 distingue de seus vizinhos) é que obriga a fechar as frases: por sua finitude, por sua “limpeza”, a frase se declara escrita, a rho de seu estado literdrios a frase ¢ j, em si, um objeto est co: a auséncia de rebarba, na qual ela se realiza, é, de certo modo, o primeio crtéio do estilo; vemos iso por dois valores propriamente estilisticos: a simplicidade e 0 cunho; ambos sio efeitos de limpeza, uum litético, 0 outro enfitico: se tal frase de Claudel (“A noite esté to calma que me parece salgada’) 20 mesmo tempo simples e cu- hada, é porque realiza a fase em sua plenitude necesséria ¢ sufi- ciente. Isso pode ser posto em relagio com varios fatos histéricos: primeiro, certa hereditariedade gndmica da linguagem esctita (sn- tencas divinatérias, fErmulas religiosas, cujo fechamento, tipicamen- te filsico, assegurava a polissemia); em seguida, o mito humanista da frase viva, eflivio de um modelo orginico, a uma s6 vez fecha- do e gerador (mito que se exprime no tratado Do sublime); enfimn, as tentativas, a bem dizer poueo eficazes ~ de tal modo a literatura, mesmo subversiva, esté ligada a frase —, levadas a feito pela moder- nidade para fazer explodir o fechamento frisioo (Lance de dados, de ‘Mallarmé, hiperproliferacéo da frase proustiana, destruigio da frase tipogrifica na poesia moderna). oe “A fase, no seu fechamento e limpeza, mostra-se-me, pois, como a determiriacio fundamental da escrita. A partir do que mui- tos eddigos escitos so possiveis (a bem dizer, mal especificados): escrita erudita, universitéria, administrativa, jomalistica, etc., cada tuma podendo ser descrita em fancio de sua cliente de seu léxico ¢ de seus protocolos sintéticos (inversbes, figuras, cléusulas, tragos que marcam todos a identidade de uma escrita coletiva por sua presenga ou por sua censuta). Entre todas essas escritas, © antes mesmo de falar de estilo no sentido individual em que comu- 155 | Orwmor da lingus | ‘mente se entende a palavra, hi a linguagem lizeréria, escrita ver- dadciramente coletiva de que seria necessétio recensear os tragos sistematicos (¢ no apenas os tragos hist6ricos, como até agora se Nido é tudo. A escrita literdvia nfo deve se situada apenas em relago as suas vizinhas mais préximas, mas também aos seus mo- delos. Entendo por modelos nfo fontes, no sentido filolégico do termo (notemos de passagem que o problema das fontes tem sido colocado quase exclusivamente no plano do contetido), mas pat- terns sintagmaticos, fragmentos tipicos de frases, f6rmulas, se qui- identificével, mas que fazem parte de uma coletiva da literatura. Exrever é, entéo, deixar vir asi esses modelos ¢ trangformd-los (no sentido que essa palavra tomou.em lingitfstica). Assinalarei liveemente a esse respeito trés fatos, tomados a uma experiéncia recente. O primeiro é um testemunho: tendo tra- balhado durante bastante tempo uma novela de Balzac, suxpreen- do-me agora a transpor espontaneamente em circunstincias da vida fragmentos de frases, formulagbes safdas espontaneamente do texto de Balzac; nio ¢ 0 caréter memorial (banal) do fendmeno que me inceressa; é a evidéncia de que escrevo a vida (é verdade na ‘minha cabega) através das formulas herdadas de uma escrita an- terior; ou ainda, mais precisamente, a vida ¢ aquilo mesmo que vem jé cons terdria: a escrita nascente é uuma escrita passada, O segundo fato é um exemplo de transforma- 40 externa; quando Balzac escreve: “Eu estava mergulhado num 156 | Dat lnguagens ed ei | desses devancios profundos que atingem a todos, até a um homem {frivolo, no meio das festas mais tumuleuosas”, a frase, se excetuamos ‘a marca pessoal (“Eu estava mergulhado”), nfo passa da transfor- magéo de um provérbio: A festas sumnultuosas, devaneios profiundos, em outras palavras, a enunciacio literdria remete, por transforma- © primeiro contetido da frase é ou- cdo, a outra estrutura sintat «ra forma (aqui, a forma gnémica) o estilo se estabelece num tra- balho de transformaco que se exerce nao sobre idias, mas sobre formas; restaria identificar, bem entendido, os esterest cipais (tal como o provérbio) a partir dos quais a linguagem literd se inventa e se engendra, O terceiro fato € um exemplo de trans- formasio interna (que 0 autor gera a partir de sua prépria formula) em dado momento de sua estada em Balbec, o natrador prow: no tenta conversar com o jovem ascensorista do Grande Hotel, mas este no Ihe responde, diz, Proust, “seja espanto por minhas palavras, atengio a seu trabalho, respeito & etiqueta, problema de audicéo, respeito pelo lugar, medo do perigo, preguiga da inteli- géncia ou instrugdes do diretor"; a repeticéo da mesma formula sintética (um substantivo e seu complemento) é evidentemente uum jogo, o estilo consiste, envio: 1) em transformar uma subor- dinada virtual em sintagma nominal (porque ndo ouvisse bem tor- na-se 0 problema de audigéo); 2) em repetit 0 mais longamente possivel essa mesma formula transformacional através de conteti- dos diferentes. Dessas trés observag6es precérias, e como que improvisadas, eu quisera simplesmente tirar uma hipétese de trabalho: considerar os 3s como transformagées, devivadas quer de férmu- las coletivas (de origem inidentificdvel, ora literéria, ora pré-literé- ria), que, mediante jogo metaférico, de formas idioletais; nos dois casos, o que deveria dominar o trabalho estilistico é a busca de mo- 157 | Ormor de lingua | delos, de patterns, estruturas frdsias, clichés sintagmaticos, inicios ¢ fechamentos de frases; ¢ 0 que deveria animé-lo € a convicgio de que o estilo é essencialmente um procedimento citacional, um compo de vestigios, uma memeéria (quase no sentido cibernético do termo), uma heranga fundada em cultura e no em expressi- vidade. Isso permite situar a transformagao a que se alude (e con- seqtientemente a estilistica transformacional que se pode desejar): cla pode certamente ter alguma afinidade com a gramética trans- formacional, mas dela difere num ponto fundamental (aquele em que a lingustica, implicando fatalmente determinada visdo da linguagem, volta a ser ideolégica): os “modelos” es podem ser assimilados a “estruturas profundas”, a formas univer- icos nao sais nascidas de uma légica psicoldgica; esses modelos séo apenas petiges, nao fundamentos; citagbes, nao expressdes; esterestipos, nao arquétipos. Para voltar aquela visio do estilo de que falava no infcio, ditei que, para mim, ela deve consistir em vero estilo no plural do tex- to: plural dos niveis semanticos (cédigos), cujo trangado forma o texto, ¢ plural das citagdes que se depositam num desses eédigos a que chamamos “estilo”, ¢ a que preferitia chamar, pelo menos como primeiro objeto de estudo, linguagem literdria, O problema do estilo s6 pode ser tratado com relacéo ao que eu chamaria ain- da de folhado do discurso; e, para continuar com as metéforas ali- mentates, resumirei essas poucas propostas dizendo que, se até agora se vit 0 texto sob as espécies de um fruto com carogo (um damasco, por exemplo), a polpa sendo a forma ea améndoa, o fun- 158 | Das Binguagens edo exile | do, convém de preferéncia vé-lo agora sob as espécies de uma ce- bola, combinacéo superposta de peliculas (de niveis, de sistemas), cujo volume nao comporta finalmente nenhum miolo, nenhum carogo, nenhum segredo, nenhum prinefpio irredutfvel, sendo 0 pr6prio infinito de seus invéluctos — que nada envolvem a ndo ser © préptio conjunto de suas superficies. Coléquio de Bellagio, 1969. Publicagao em inglés, Literary Soyle: a Symposium, Ed. Seymour Chatman, © Oxford University Press, 1971. 159

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