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3.3 Reconstruindo o discurso da prote¢do: um principio como parémetro para a aplicagéio das normas fundamentais trabalhistas “E depois do comego (© que vier vai comegar a ser o fim” (Depois do comega — Legido Urbana) A nogo de principio € cara a “ciéncia juridica’. Inscreve-se na légica racional pela qual 0 Direito € compreendido como mecanismo de realizagao da justiga e mesmo como horizonte final para uma sociedade "boa para todos’. O primeiro alerta necessério, portanto, ao introduzir esse estudo sobre a nogao que a protegao desempenha no Direito do Trabalho, é o de que estamos lidando com 0 discurso do capital. Ainda assim, é fundamental resgatar e potencializar a fungdo da protegao, recuperando a raiz da qual frutificam normas tipicamente trabalhistas, para uso transgressor do Direito do Trabalho, exatamente porque também ele é inscrito nessa légica perversa que buscamos superar. O desafio 6, pois, 0 de sustentar a necessidade de comprometimento do intérprete das normas trabalhistas com o contetido de protegéo que elas contenham, confrontando o discurso juridico com suas préprias premissas. A retomada da caminhada histérica que culminou na transigéo do feudalismo para o capitalismo na Europa e que permitiu a construgao de uma sociedade de trocas no Brasil, dé a medida da fungao que a protegao assumiu, quando da edigao das primeiras normas trabalhistas. La na génese do que hoje se compreende por Direito do Trabalho’ estava o reconhecimento da ** 0 reconhecimento do Direito do Trabalho, como ramo auténomo do Direito, data do inicio do século XX. Jé havia, entretanto, leis trabalhistas bem antes desse periodo histérico. Marx refere que a “legislag3o sobre o trabalho assalariado, desde sua origem cunhada para a exploracio do trabalhador e, a medida de seu desenvolvimento, sempre hostil a ele, fol iniciada na Inglaterra, em 1349, pelo Statute of Labourers de Eduardo Ill. A ele corresponde, na Franca, a ordenansa de 1350, promulgada em nome do rei Joao. As legislagdes inglesas e francesas seguem um curso paralelo e sio idénticas quanto ao contetido”. Houve preocupacio também em conter a organizacio dos trabalhadores. Um decreto de 14 de junho de 1871, Lei Le Chapelier, declarou toda coalisio de trabalhadores como um atentado a liberdade e 4 Declaragao dos Direitos Humanos, punivel com uma multa de 500 libras e privac3o, por um ano, dos direitos de cidadania ativa”. MARX, Karl. © Capital. Livro I. Sio Paulo: Boitempo, 2013, p. 809-12. 208 necessidade de prote¢do ao trabalhador, em vista da “questao social” °° que nao mais podia ser ignorada Essa protegao sintetiza o duplo carater do Direito do Trabalho, que ao mesmo tempo sustenta e tensiona o sistema do capital. A necessidade de protegao ao trabalhador se da, tanto pela protegao da mercadoria como forga de trabalho, que precisa se reproduzir constantemente para continuar sendo trocada no mercado; quanto pela protegéo do ser humano detentor dessa forga, que precisa se reconhecer como “sujeito” para continuar participando livremente da troca. E ainda, a proteg&o reivindicada pelo ser humano (individual e coletivamente) para que ele possa reforgar/desenvolver/construir a resisténcia & sua condi¢ao de mercadoria, contestando-a. © ponto de partida para identificar e compreender 0 que esté no principio do Direito do Trabalho ¢ a investigagao do conjunto de razdes pelas quais o Estado, em determinado momento histérico, fez concessées e admitiu um estatuto juridico que, mesmo de contrabando, deu voz a classe trabalhadora. Se 0 senso comum teérico admite que o principio da protegao seja esse elemento diferencial que toma o Direito do Trabalho um “Direito do Trabalho” (e nao do capital), entéo sua definigdo e seu modo de aplicago sao extremamente valiosos aqueles que pretendem promover um uso critico desse direito burgués A protegao que fez surgir 0 Direito do Trabalho e que a unanimidade da doutrina juridica reconhece como seu principio fundamental é a protegdo contra a exploragao econémica, mas foi também, desde o inicio, a protegao da légica do capital contra propostas alternativas de sociedade. E ainda 0 reconhecimento social de que a relagdo de trabalho implica uma troca objetivamente desigual: tempo de vida/forga fisica por remuneragao/valor monetario. ** Barbagelata, citando Louis-RenéVillermé, que escreveu em 1840, menciona que a miséria em que viviam os trabalhadores das indistrias de algodio, por exemplo, era tio grande que a metade dos filhos nio passava dos 29 anos de idade. BARBAGELATA, Hector-Hugo. Curso sobre La Evolucion del Pensamiento Juslaboralista. Montevideo: Fundacion de Cultura Universitaria, 2009, p. 30. A questio social foi formulada teoricamente como “a questio de como se pode obter remédio para os males e perigos gravissimos pelos quais a sociedade ¢ afligida” e “restabelecer estavelmente a paz entre os ricos e os pobres e entre os capitalistas (aos quais pertencem também os possuidores de lalifindios) e os operérios ou proletirios”. CESARINO JUNIOR, Antonio Ferreira. CARDONE, Marly A. Direito social. V. |. Teoria geral do direito social. Direito contratual do trabalho. Direito protecionista do trabalho. Sio Paulo: LTr, 1993, p. 61. 209 © Direito do Trabalho aparece historicamente como uma espécie de concessao do capital, que certamente nao o agrada em sua esséncia, porém se caracteriza como um "mal necessario". Esse “mal” centrado no reconhecimento da necessidade de protegao a quem trabalha tem como contetido resguardar 0 individuo em sua condigao de objeto e, ao mesmo tempo, de sujeito de uma relagdo juridica desigual, a fim de proteger também a sociedade do capital. Tudo © mais que a doutrina denomina como principios do Direito do Trabalho, so em realidade decorréncias, pardmetros impostos pela linha condutora da protecao. A linguagem do Direito do Trabalho é a linguagem da minimizagao dos efeitos nocivos que a troca desigual (dinheiro x tempo de vida), que o Estado permite e incentiva, provoca no homem que trabalha e na sociedade em que ele esta inserido. Por isso, é necessario compreendé-lo como um direito social. A dispensa de um empregado néo é fato individual, mas algo que, ao mesmo tempo afeta — podendo mesmo destruir — a vida de quem perdeu o emprego, de seus familiares e da comunidade em que ele esta inserido. A partir dessa compreenséo do que esta no principio, ¢ possivel perceber a necessidade de superar a dicotomia entre regra e principio, como condigo de possibilidade da realizagao dos direitos sociais trabalhistas. O que realmente esta no principio e legitima a construgéo de um conjunto especial de regras ndo pode ser ponderado, sob pena de perda da razdo mesma de ser desse microssistema™” Ainda, ao procurarmos definir o principio da protegao, é preciso compreender que ele em nada se confunde com a busca da igualdade. Ao contrario, 0 Direito do Trabalho reconhece e perpetua a desigualdade. Perseguir a igualdade entre os sujeitos da relagdo social que se estabelece entre capital ¢ trabalho implicaria comprometer a prépria possibilidade de existéncia dessa relagéo. Sé existe um Direito do Trabalho, porque ha no principio o *° Sem qualquer pretensao de aprofundamento ou mesmo de ado¢o dos pressupostos da respectiva teoria, nio ha como deixar de pontuar, aqui, a importincia que a nogdo “sistemitica” do Direito assume sob essa perspectiva. Para a “hermeniulica tépico-sistematica”, cabe ao intérprete buscar no sistema respostas adequadas e eficazes para o problema social enfrentado pelo Direito, a partir da percepgio de que as normas formam um sistema aberto, composto de microssistemas que identificam cada uma das areas da sua atuacio. A imporlancia, entio, esta justamente nessa nogio de “totalidade”, cujo didlogo com a compreensio marxista, embora limitado e parcial, parece-me presente. Sobre a teoria da interpretacio sistemitica do direito: FREITAS, Juarez. A Interpretacio Sistemitica do Direito, 4* edigio. Sio Paulo: Malheiros, 2004. 210 reconhecimento historico da necessidade de protegao ao trabalhador e, pois, da desigualdade objetiva entre quem figura o trabalho e quem figura o capital, nessa relagao social. valor igualdade, ao lado da liberdade, constitui a base da existéncia do Direito burgués e esta presente em todas as normas juridicas. Entéo, se no principio do Direito do Trabalho houvesse a igualdade, sequer seriam necessérias regras tipicamente trabalhistas. Bastaria o direito civil para regular a relagao social entre capital e trabalho. Portanto, o principio instituidor do Direito do Trabalho nao 6 0 da igualdade (formal ou material), mas o da protegao ao trabalhador em razéo da possibilidade/necessidade de “vender” tempo de vida. Sob essa perspectiva, nao se trata de considerar desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade para reduzi-la gradativamente, mas de proteger o trabalhador enquanto tal, mantendo-o em sua posigao original A igualdade dita material promove uma discriminagao positiva para aproximar materialmente os sujeitos e suas posigées na ordem juridica. As normas trabalhistas nao fazem nem objetivam isso, reconhecem e estimulam a da um desigualdade material na relagdo. Em uma linguagem usual, mantém * em seu lugar’ e com isso, facilitam a manutengao do préprio sistema. A protegéo opera como medida de reconhecimento do trabalhador como sujeito de direitos, enquanto ele continua a atuar em sociedade como “objeto de um contrat’. E exatamente por isso, esse sujeito de direitos - trabalhador tem lugar de fala e campo de atuagao radicalmente diversos daqueles outorgados aos patrées. O reconhecimento da relagao de trabalho como uma espécie sui generis de contrato se da historicamente para garantir ao trabalhador a sua condigao de sujeito, j que do contrario, ter-se-ia necessariamente de reconhecé-lo como mero objeto a disposicao do empregador™". Entretanto, como vimos anteriormente, 0 reconhecimento da relagéo social de trabalho como um contrato entre iguais ¢ apenas o mascaramento necessério da coisificagao que se impée na troca. Se ndo for “sujeito", o trabalhador néo pode se comportar como objeto. *! SUPIOT, Alain. Critique Du Droit Du Travail. 2° édition, Paris: Quadrige/PUF, 2007, p. 43, 214

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