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Caminhando com dragées: em direcao ao lado selvagem* Tina IncoLo No ano cle 1620, ¢ filésofo e homem de Estado inglés Francis Bacon definit 6 plano do que seria um grande trabalho de ciéneia intitulselo “A Grande Ins: tsuragio”, dedicado ao rei James I, que recentemente havia nomeado Bacon como seu “Lord Chancellor". Esse trabalho nunca foi conclude, No set pré- logo, entretanto, Bacon acusava as formas tradicianais de conhecimento que continuamente misturavar a realidad do mundo com suas configuragies na mente dos homens, Se a mente fosse tio clara e uniforme como um espetho perfeito, entio, dizia Bacon, ely "relletiria as formas auténticas das coisas" Mas ela nao é. Deformada pelas fathas tanto inatas quanto adquiridas pelo instinto © pelo doutrinamento, a mente distorce as imagens que vém 3 tona pelos sentidos nao pode, por sis6, fxzer um relato verdadeira das coisas coma chs sao, Existe, entretanto, uma forma de superar essa limitagio, de acorco com Bacon, apelando-se aos fatos, “Os fatos”, escreveu, "tém como objetivo inhagdo, mas descobrir ¢ conhecer, propsem nao a formulacio de imitages e mmundos fabuloses. Para examinar e dissecar a natureza desse pré- prio mundo, temos que recorrer ans fatos para tudo”. ‘As palavras de Bacon tém, certamente, um sentido contemporaneo. A ciéncia de hoje continua a basear a sua legitimidade no recurso aos dades, que sito repetidamente verificados ¢ reverificadas, numa busca incessante pela verdad, por meio da eliminacio do erro. E a maior parte das ciéncias da mente © da ‘fects wealth aa Ponca Unksewsidade Catia do Rio Grande do Sul ~PUC RS en 12 ‘de oatuno de 2011 16) cultura, tais como a psicologta e a antropolosia, tem seguido as tendéncias desse mesmo empreendimento. Isto é, clas se ocupam da divisao entre o que Bacon chamou de mundo "em si”, a realidade da natureza que pode ser descoberta somente por meio da investigacio cientifica sistemdtica, € 08 vérios mundos Imaginérios que as pessoas de ifercintes épocas e lugares invocam c que, na sua ignordncia da eiGncia ¢ de seus métodos, assumem como sendo a realidade. Se os antropélogos se ocupam da anilise comparada dos mundos imaginérios, 6s psicélogos buscam 0 estudo dos mecanismos supostamente universais que governam essa construgio, Todos concorelam que os dominios da reatidade ¢ da imaginagio nao deve ser confiendidos, paisa prépria autoridade da cincia depende da sus promessa de revelar, por trés das ficgSes caseiras que a ima- ginagae pinta aos nossos alhos, os fates que realmente esto no mundo, Clavo aqqilo que {gue podemos estudlar a ficgdo assim como 0s fatos, para empres: ites antropélogos aincla chamam de relates “émicos” ¢ ndo “éticos", mas ‘misturar os dois seria permitir que 0 nosso julgamento fosse manchado pelo Bacon, “pois ndo devemos erro e pela ilusio. “Deus nas perdloe", como abrir mao, por um sonko da imaginacdo, de um padrao do rmumndo" Ev gostaria de argumentar nesta palestea que a injungio de Bacon, que a ciéncia moderna adotou como seu ntcleo, teve consequéncias duradouras para a vida ¢ ohabitar hurmano, liberando a imaginacio de suas amarras terrenas ¢ fazendo- as flutuar como uma miragem sobre a estrada que trifhamos em nossa vida material, Com nossas esperancas e sonhos banhados no éter da ilusso, a vida parece dimintir. Reduzida a fungdes microbiolbgicas ela nio da mais casa para 6 marsvilhoso ou o surpreendente. Na verdade, para quem for instrufdo em tumna sociedade em que a autoridacle do conhecimento cientifice reina de forma suprema, adivisio entre eealidade ¢ imaginagdo em dois dominios totalmente lexchisivos é tio enraizada que se tornou autoevidente, O problema, de acordo 449, tem sido como aleancar um ponto de acomodacio pasa um espaco para a arte © 2 literatura, com a nossa avali 605 dois dominios. Como podemos cr ‘ou para a religido, ou para as crengas e priticas dos povos indgenas em uma «economia do conhecimensta na qual husca pela natureza real das coisas tornou- se um prerrogativa exclusive da ciéncia zacional? Ainda sofremos com a nossa ‘imaginago que persiste em nossas mentes, ou toleramos a stra propensio & Fantasia como um deseo compensatério pelo encantamento em um mundo que, de outra forma, parou de nos cativar? Mantemos isso como um sinat de criatividade, como um simbolo de eivilizacio, como um respeito & diversidade cultural, ox: meramente para nosso proprio entretenimento? Tais quest6es si0 cendémicas e, ainda assim, uma coisa que esquecemos quando as colocamos , de acordo com a nossa experiéncia, dlividir a em debate de como é di realidade da nossa vida no mundo € do mundo onde vivemos das correntes meditativas da nossa imaginagio. Na verdade, o problema ¢ exatamente 0 poste do que 0 consideramos: nfo se trata de como reconciliar os sonhos da nossa imaginago com os padroes do muindo, mas de como separi-los, antes de. qualquer coisa Historicamente, essa reconciliagio foi lenta € ocorret a duras pena nos levantes religiosos da Reforma e dos comegos turbulentos da ciéncia moderma em que Bacon, junto com seu contemporaneo Galiley, empenharam-se muma torefa essencial, Mas 0 processo histérico é recapitulado atualimente na educagio de qualencer crinnga em idade escolar que é ensinada, sob pens de fracassar nos seus exames, a desconfiar dos sentidos, a confiar mais no intelecto do que na intuigdo e a considerar a imaginagio como uma fuga da vide real ¢ nfo como seu impulso, Quase que por definigéo, me parece, o imagindrio é iereal: € a nossa palavra para aquilo que nao existe. Nis, adultos, somos convencidos de que os dragdes sio criaturas da nossa imayinagio. Ainda assim, nenham de nés teria dificuldade em deserever win dragio, Ja vimos dragies em figuras de livros que liamos quando éramos crian- gas © também naqueles que lesnos para nossos filhos. Somos familiarizados com a sua aparéncia: corpos verdes € escamosos, rabos compridos ¢ partidos, natinas dilatadas e bocas lamejantes. Esses monstros habitam o terreno virtual da literatura infantil junto com uma série de outras criaturas de uma provincia :nquanto © semelhante. Alguns deles, claro, tém alguns colegas zool6gicos, cada vee mais popular Tyrannosaurus rex, talvez a coisa mais préxima de um Gragio que j4 viveu, esteja convenientemente extinto, outros animais ~ de cobras, crocodilos, tes05 2 lebes ~ ainda esto A nossa volta e ocasionalimente comprometent vidas humanas. Encontrados ao vivo e em cores, € bom que tenhamos medo deles, Os seus primas ficcionais, no entanto, nao nas déo nenhuma causa para alerta, porque as tinicas pessoas que eles podem comer sie tie imagingrias quanto eles préprios, Junto coma materia ce pesadelo, essa criaturas licant sequestradas ‘em uma zona de visées e aparigdes que é rigorosamente separada da vida real Nés acalmamos uma pessoa que acorda na terror, a ponto de ser consumide por um monstro, cor as palavras “nfo se preocupe, foi s6 um sonha". Assim, a fronteira entre o fato & a fantasmagoria, que tinha sido colocada em davids no momento de acordar, ¢ imediatamente restaurada, Entiio coma deverians entender a segutinte histéria que vem de A vida de Sao Benedito de Niirsii composta por Gregétiv, ¢ Magno, no ano 594 a.C.? A historia fats sols monge que encontrou um dragio. Esse monge era incansével: sta men 18 tava divaganda e ele estave fouco para fugit do ambiente confinado da vida monéstica, Sie Benedito, por sua ver, jf cansado da lamtiria do monge, orde- rou que ele partisse. Assim que ele pisou fora do recinto do monastério, no tentanto, 0 monge ficou horrorizado porque encontrou seu caminho bloqueado por um dragio com a hoca aberta. Convencido de que o dragio iria devoré-lo © tremendo de medo, ele gritou ¢ pediu ajuda aos seus itmios. Eles vieram correndo, Nenhurm deles, entretanto, podia ver nenhum dragio. Apesar disso, eles levarans 0 set colega renegado ~ que ainda tremia com a experiéncia — de volta ao monastério e, a partir daquele dia, ele nunca mais se desviow ou ppensou nisso, Foi gracas as oragiies de Sdo Benedito, conclui a hist6ria, que 0 mange viu ao seu caminho o dragio que anteriormente o havia seguido sem ue ele pudesse vé-lo Talver 0 monge dessa histéria moralista estivesse meramente sofrendo de pesa- dlelos. Os medievais, no entanto, nio estariam to prontamente tranquilizados quanto seus coleyas inodernas com a pereepcdo de que, nos seus encontros com drags ¢ outros monstros, o que eles de fato viam era apenas um sonho. E claro que eles nao seriam tio ingénuos de acreditar que os dragdes existem, no sentido especifico de existéncia invocado pelos modernos quando eles afirmam, so contrério, que os dragies ndo existern, Ndo & como se 0 monge da nossa hist6ria estivesse cara a cara com alguma criatura que, com 0 beneficio lo retrospecto cientifico, nds modernos pudéssemes reconhecer como uma espécie de réptil. Lembrem que os iemaos que vieram correndo no viram nenhum dragio, les nio viram absolutamente nada. qu eles viram, entre- tanto, como o relato de Gregério testemunha repetidamente, é que o monge cles virain 0 olhar de terror marcado em sua estava tremendo. Com certex face. E assim, quando © monge geitou para ser socorrido da boca do dragio, seus irmios compreenceram que ele estava em apuros, Eles ni reagiram a0 seu! surto ~ como psiquiatras modernos reagiriam aos delirios de um lunético sse fugindo de um hospicio ~ como idiossincrasia, possiveis aluci- nagbes induzidas por drogas, de uma mente febril ¢ inquieta. Em vez disso, eles imedistamente reconheceram a visGo do dragio na forms inarticulada de que esti monge. © monge chegou a0 ponto de ser consumido pelo medo e jf sentia os sintomas que acornpanham a dlesintegragéo pessoal. C) dragio no era causa objetiva do medo, ele eraa pripria forma do medo. Para os ireaos ds comunidades monésticas, essa forma seria absolutamente ‘convencional @ conhecida por tacos os submetidos a tina disciplina rigorosa cla mente © do corpo, Neste treinamento, as historias ¢ figuras de dragées ¢ de outros monstros igualmente horrorizantes cram wsadas ido como hoje para «viar uma zona de conforto e de seguranga, considerando tudo que poderia ser assustador como parte do domfnio da imaginacto, mas sim para instaurar ‘omedo nos novigos, para que eles pudessem reverenciar esse medo, reconhe- cer as suas manifestagoes ¢ ~ por meio de um regime de exercicios mental © corporal ~ superé-lo, Como forma manifesta de um sentimento humano fundamental, o dragio é a configuragio palpavel do que significa “conhecer” fo medo. Assim, na ontologia medieval, © dragéo existe, assim como 0 medo existe, Nio como um elemento do mundo natural, mas como um fenémeno da experiencia. Como tal, ele € t3o real quanto a expressio facial de quem sofre e quanto a urgéncia da voz do monge, mas, diferentemente da vor, cle rio pode ser ouvide nem visto, exceto por aguele que é acometido pelo medo, Por isso, quem foi buscar o monge nao vit nenhum dragio, Provavelmente, eles éestavam motivados pelo sentimento de compaixio, que, paraeles, na expresso da época, chamou a sua mente a imagem de uma figura santa que irradiava luz ‘Tanto santos como Grag6es, na imaginagio mondstica, eram construdos a partic de fragmentos de textos e de figuras, mostradas aos novigos ao longo de sua instrucdo. E, nesse sentido, para adotar um termo apto da historiadora Mary Carruthers, eles eram “figment”, isto 6, inventados ou ficcionais. Mas essas ficcbes da imoginagio nao ficavam num dominio separado da “vida real” e sim, para os pensadores medievais, eram formas externas da experiéncia humana incorporadas e vividas no espaco da ruptura entre o Céu e 0 Inferno, (© monge da histéria, @claro, estava dilacerado entre os dois dominios. Expulso cdo monastério por So Benedito, o diabo~ na forma do dragio ~ estava espe- rando por ele Id Fora. Socorrido na tiltima hora, cle foi readmitido, Assim, a hist6ria se desenrola por um caminko de movimento de dentro para fora e de volta para dentro, Desde a inicio da histéria, coma vimos, a mente do monge cera suscetivel a divagacées, De fato, existe uma reviravolta misteriosa no final clesse conto em que Gregério reconta que, por todo o tempo, 0 monge estava senda seguico pelo dragio sem de ato vé-lo, © que aconteceu io pisar fora do ‘monastério foi uma perda total dos sentidos, um tipo de desorientacao total que ocorre quando somos jogadios em um ambiente totalmente desconhecido, Foi como se 0 solo tivesse sido tirada de debaixo de seus pés. Ele entrou em pinico e, nesse momento, 0 drago surgiu diante dele, bloqueandy seu cami- rho, E assira ele paralisou e no péde mais continuar. A histéria conclui, na verdade, que Séo Benedito fez algo muito bom para o monge a0 expulsé-lo, suid porque permitiv que © monge pudesse ver o dragio que o havia per de forma invisivel ara os eseritores da tradico monastica, como narrativa demonstra de forma clare, 0 saber dependia do ver, e ambos seguiam trajetérias de movimento. Para entender o que eles queriam dizer, temos que pensar na Convencion, come 20) ‘explica Carruthers, “em termos de caminhos". O pensacor medieval, resumin- do, era um andarilho, alguém que caminhava e que viajava em sua mente de lugar para lugar, compondo pensamentas a medida que lin. Eu voltarei a questio dos caminhos, mas, antes disso, deixem-me apresentar outro exemple. Entre os Ojibwa, cacadores inligenas do norte eanadense, dizem que existe um pissaro que emite um som 3 medida que voa pelo eéu, que é 6 som do trovio, Poucos 0 viram e quem jé viu atribuiu a ele poderes excepcionais de uma visio reveladora, Tal relato, de acordo com o etnégrafo Irving Hallowell, foi de um menino de mais ou menos 12 anos de idade, Durante uma tempestace com trovoachs, Hallowell conta que esse menino saiu da sua barraca e viu um pissaro esttanho sobre as peda. Ele corre de volta& barraca para chamar os seus pais, mas quando eles voltaram ao local o péssaro havia desaparecido, O menine tinha certeza de que havia sido 0 pinési, © Passaro-Trovao, mas seus pais nfo estavam convencidos. Eles entraram em acordo € 0 relato do menino foi aceito, mas 66 clepois que um homem que havia sonhado corn o piissaro verificow a desctigdo lomenino, Claramente, 0 pinési no é um péssaro comum, assim como 0 drogio indo & nenhum séptil comum, Como o som do trovio, 0 Pissuro“Travao faz sia como um sentida nfo como um objeto do mundo nacural, me 60 forma manifesta do som que reverhera pela presonga s fendmeno da experiéncia. El atmosfera e assombra a consciéncia de todos que o ovvem. Assim como os irmios do monge, que, quando sairam do monastério, nio viramt 0 dragio, os pais do menino também nao testemunharam o pinési. Mas 1m totalmente femiliarizados com a forma convencional de vivenciar um trovio ©, nesse sentido, conheciam essa experiéncia. O Passaro‘Trovdo podlia ser uma “ficgd0" da imaginacio, mas de uma imaginacio saturadla com a totalidade da experi@ncia fenoménica, les es Lembremos que a observagio do menino, nesse caso, foi confirmada por um sonho, Bacon ficaria horrorizido com isso. Para nés, moderns, € mais comum «,comeertera, mis aceitavel que 0s sonhossejam confirrnacos pela observacao, Um caso bem conhecido, entretanto apécrifo, 8 histéria de como 0 qulmico crpente mordendo Angust Kekulé sonhou, numa noite de 1865, com uma s © rabo em um movimento de contorcionismo. Ele acordou com um conceito completamente formado na mente da estrutura da molécula de benzeno, composta por ur anel de seis étomos de carbono, Trabalhos subsequentes de laboratsrio pravaram que a conjectura induzida pelo sonho de Kekule era substoncialmente correta ¢ essa descoberta tornou-se um marco na quimica orgnica. E clare que o que Kekule realmente sentiu no momento em que acorcou nés niio podemos saber, mas temos certeza que depais que ele passous a focar na quimica, a serpente de Kehulé j tinha se esvaziado de qualquer forca afetiva ou experiencial que podis ter tido anteriormente, Naquele momento, js inks se tornado uma serpente “boa para pensar”, uma figura abstrata do pensamento, partictarmente apta para servie de recurso analégico para deci= frar a estrutura de uma realidade dada, Assim, a serpente ¢ 0 anel de benzeno ccaem em umn dos Jados da divisio ontolégica impermesvel entre imaginagio e realidade. E € isso que permite que eu possa representar metaforicamente ‘0 outro. De fato, a congruéncia entre a serpente € os anéis reforsa a divisio, fem vez de causer a sua raptura Para o povo Ojibwa, entretanto, seria diferente. Para eles, a verdade dos coisas seria encontrads e testada pela experiéncia pessoal. E por isso que a observagio cdo menino pade ser corroboreda pelo sonho desse homer mais velho. Na busca pelo conhecimento c pela experiéncia, 0s poderosos seres mais-que-humanos que habitam 0 cosmos Ojibwa, como o Pissaro-Trovio, no sio recursos ana \gicos, mas mterlocutores vitals. Esse cosmos € poliglota, urn hibrido de vozes pelus quiais diversos seres, em suas linguas diferentes, enunciam sua presenga, slo sentidos ¢ fazem seu efeito, Para levar a vida como um Ojibwa, voce tem ue se sintonizar com essas voaes, ouvir e reagir no que eles The dizer, Outra historia de Passaro-Trovio de Hallowell, contada por uma testemunha, como cle diz, ihustra perfeitamente a questio. A testemunha de Hallowell estava sentada em uma barraca cam sum senhor € sua esposa numa tarde em que havia rmuitas trovoadas. Em um momento, 0 homem virou para sti esposa. "Voce couviu o que disse 0 trovio?", perguntan, "Nao, néo peguel bem”, foi a resposta ‘Ao comentar a conversa, Hallowell observou que o senhor "estava reaginda a0 som do trovio da mesma forma que a um ser humano cwjas palavras ele rio tinha entendido”. Isso, entretanto, no foi como uma falha de traducéo. Nao foi como se o Péssavo-Trovlo tivesse uma mensagem para o senor, a qual ele nao entendex: por ter um fraco dominio do idioma do pissaro, Hallowell observa que “os Ojibwa aio esto sintonizados 0 tempo todo para receber as mensngens cada vez que uma trovoada acorre”, Esse homem especificamente havia conhecido 0 Passaro-Trovse durante os seus sonhos na puherdade ¢ desenvolveu uma relacdo préxima de tutelagem com o pinési, No contexto dessa relagdo, ouvir e responder ao trovio nio S30 tuma questio de traducio, mas de empatia, de se estabclecer uma relacéo de comunhio ¢ afeto, Resumindo, em abrir-se para o ser de outro. E, acima de tudo, durante os sonhos, em que os limites entre a vida e o ser sio apagadas, que corre a abertura. Tal exposicio, entsetanto, nao é algo com que tm cientista sobrio como Kekulé poderia imaginar. Para ele, o carminho para o verdadeizo conhecimento néo estava na abertura de um didlogo com seres do mundo 2 mais-que-humano, mas de uma Jeitura exata e literal dos fatos jf depositados 15, O objetivo, como diz Bacon, era escrever uma visio verdadeira dos passos do ctiador, marcados na obra da sua criaglo. Era uma questo de liberar os segredos da natureza, Pora tal, voc’ precisaria de uma chave, ou muitas cha ves, para liherar e destravar portas cepois de portas. A serpente de Kekulé ofereceu uma chave dessas, na forma de um anel, No seu livro O ensaiador {Il Saggiatore), de 1623, Galileu encontrou sua chave nos caracteres da ma- Lemitica, nos triéngulos, circulos e outras figuras geomeéticas que compéem 1 sua linguagem especial. ‘A filosofia é inscrita nesse grande livro, o universo", escreveu Galileu, “que permanece continuamente aberto 3 nossa imaginasio, mas que no pode ser entendiclo 2 menos que, primeiro, possamos aprender a linguagern ¢ reconhecer as letras com as quais este mundo é composto’ A ideia do livro do uni onsideravelmente antiga ¢ era corrente entre os pesquisedores medievais, assim como, consequentemente, toraourse cor rente com a ascensio da ciéncia moderna. Ela dependis de uma identidade entre a obra de Deus, na criagao do mundo natural, e da palavra de Deus, na composigio das escrituras, Com isso podemos retornar aos monges da era me- dieval para quem, como jé observed, a prética meditativa de leitura de textos cos era um processo de caminhada. Repetidamence, cles comparavam 5 a um terreno pelo qual se passava como cacadores numa trilha, Tina esses text “puxando” coisas que encontravam ou eventos que eles testemunbavam 20 longo dos caminhos. A palavra ems fatim para essa prética de se hasear ou puxar rreatise” e, em por- «lo texto era “tractare”, de onde vem a palavra em inglés" tugnés, “tratado’, no sentido de uma composigio escrita. Enquanto seguiam, as diferentes personagens que os monges encontravam em seu caminho (cujas historias estavam escritas nas paginas) falavam a eles com palavras de sabedoria c orientagio, as quais eles ouviam e com as quais eles aprendiam. Essas vores cram conhecidas como vocespaginarum, as vores das paginas. Na verdade, a prdpria leigura era utna pratica vocal: tipicamente, as hibliotecas mondsticas ressonavam com sons da leitura dos monges, murmurando as vozes das paginas pelas quais eles eram envolvidts, como se 08 autores estivessem presentes ¢ andiveis. Ler, no seu senticlo meclieval original, era ser aconselhado por essas ‘youes, assim como o senkor Ojibwa tera sido orientado pela vor-do seu mentor, © Pissato-Trovio, se ele tivesse entendido © que © péssaro havia dito! Enuulto pelas vozes das paginas, assim como o cagador esté envolto pelas vores dla terra, o leitor medieval era wm seguir da tradigio. Na sua pesquisa en- ciclopédlica sobre animais no mito, na lenda e na literatura, Boria Sax aponta «que a palavra em inglés “tradition” vem de “trade” — em portugues “troca", originalmente, significava “track”, ou “rastro”. “Estudar uma tradigio", au, cescreve Sax, "é rastrear uma criatura como se féssemos um cagador de valta 2 23 no tempo". Cada eriatura é sua hist6ria, sua tradigio, de modo que segui-la & realizar um ato de lembranga e de continuidade com os valores do ppassae do. Geralmente, 0 nome da criatura é sua histéria condensada, para que, no seu enunciado, a histéria seja continueda. Mas ela é continuaca também nas vocalizagées das proprias criaturss ~ se elas tinham alguma voz -, & na sua presenga visivel manifesta e na sua atividade. Como um né num emsranhado de descrigaes, histérias, chamados, visGes e outras cbservacées interligedas, neahurna ontologicamente superior as outras, ow era algum sentido mais “real” do que outras, qualquer criatura ~ poderfamos dizer ~ no 6 uma coisa viva, como a instancia de certa forma de estar vivo, mas cada qual, para a mente medieval, abriria um caminho para a experiéncia de Deus. E, com as letras ¢ Figuras do manuscrito que, de acorda com Isidoro de Sevilha, que escrevia no século XVII, permitia que os leitores ouvissem mais uma ver e retivessem @ meméria das vozes que no estavam mais presentes de fato, Assim, 0 livro da natureza estava espethado na natureza do livro: uma segunda natureza composta 0 de obras, mas de palavras, Para Isidoro, a leitura devia ser feita silenciosamente, mas nfo totalmente no siléncio, j que dependia de gestos da garganta e da boca porque, na épocs, n50 havia espace entre as palavras do manuscrito. A tinica forma de ler, entdo, era Tendo em vozaalta, seguinclo a linhas clas letras como seguitnos as linhos de urna pauta musical, deisando que as letras se destaquem da prépria performance. No século XVII e inicio do século XVII, entretanto, houve uma transformacio sradativa para uma leitura com os olhos apenas, no acompanhada pela vox ou esto, © que tornow isso possivel foi a divisio da linha do texto em segmentos rng tamanho de palaeras, cada uma das quais poderia ser lida isoladamente com cespagos entre clas, O medievalista paleontélego Paul Saenger demonstiou que, com essa leitura visual, as vores das paginas foram silenciadas. Enquanto tod uma biblioteca momistica lia em voz alta, o som ela vor dle um era suliciente para abafar as vozes dos outros. Mas todo aluno moderao sabe que, quando estamos (entando ler de forma sitenciosa, 0 menor barulho pode ser uma fon te de distragdo. Fot assim que 0 silencio passow a reinar no confinarento do monastéria, No mundo fora do monastério, entretanto, na sociedade laics, + Jeitura oral continuon a preclominar nos séculos XIV ¢ XV. Como observes » historiador da cognigio David Olson, foi a Reforma que anunciow a chave nas formas de leitura da leitura entre as linhas, ou seja, do sertih ins plicito, para a leitura nas linhas ~ ow da busca de revelacdes ¢ epifanins para a escoberta de um sentido literal embutido no texto e disponivel para yualquer tum que dispusesse da chave necessiria para extrat-lo, No inicio do séctslo XVI, Martinho Lutero convocou os [eitores a abendonar os sonhos © Fantasias que seus predecessores encontrararn na sua sintonia com as vozes que eles acreditavam falar-thes por meio das paginas dos ma- huscritos, estabelecenco uma separacéo entre as palavras c suas posteriores interpretagoes. E, a partir dat, foi um passo curto para estencler esse mesmo racincinio das palavras para as obras, isto é, para a leitura do livro da natureza Assim, Bacon, um século depois, pascow a insistir na distingio absoluta entre sonhos da imaginacio e padres do mundo, Eu gostaria de chamar a atengio de voces, em particular, pata trés corolérios dessa transico em relacdo a leitura do mundo natural. O primeiro tem a ver com a imaginagao do que ainda esti por vir. Lendo as vozes dt natureza, do mundo mais-que-humano, as pessoas ‘medicvais era aconsclhadas por elis e podiam encontrar nesses consethos, pa- ralelos ds suas experiéncias, um caminho para o futuro. Com uma sensibilidade sintonizada por um engsjamento pesceptivo intimo, eles podian contar no 86.0 que tinha se passado, mas também o que iria se passar, Mas tal evidéncia, como demonstra Olson, tem de ser claramente distinguida do tipo de previsso aspirada pela leitura cientifica do livro da natureza. A previsio no & a aber ture de uma camino para 0 mundo, mas.a fixagio, de anteino, de um ponto final. A medida que a evidencia é orientada por um didlogo com a natureza, 4 previsio extrapola os fates observiveis. Com base nesses fatos, trata-se de specular sobre 0 futuro e nia de ver o futur, O segundo corolirio diz respeito 3 performance. Bu ji tente: demonstrar como, para 0s Teitores medicuais, 0 sentido era gerado a partir da atividade vocal ¢ ere conhecer, nesse caso, eran totalmente i explicitamente kgestual da leitura em vou ales. F n como a mastigagio ea digesto~ uma ano caracterizago da pensamento como um processe de ruminagfo interligados, as sorta na antig Ruminar, podemos dizer, seria mastigar as coisas mais de uma ver, © glo raastiga seu pasto regurgitado ~e digeri seus sentices. Assim, as pessoas medievais, como vimos, liam o liveo da natureza da mesma forma, por meio de suas préticas de peregrinagio. Dessa forma, © conheciniento da nature era forjado no movimento, 3 media que se caminhava. Esse conhecimento era performativo, no sentide especifico de que esse era formaclo por meio das idas e vindas dos habitantes. A leitura como performance, resumindo, era a formagio dle palavras ea formvacdo do mundo, Como 6 ase dos Ojibwa ¢ do PéssaraTrovio claramente demonstra, na forma do suber que é performativa, qualquer frontei entre eu eo outro ou entrea mente eo mundo é proviséria ¢ fundamentalmente insegura, Na ciéncia consteufda n0 espirito de Bacon, entretarito, conhecer niio é ‘mats juntar-se ao mundo na performance, mas ser informado pelo que jé ests no ‘mundo, Em vex de buscar seguir as trilhas de um terreno familiar que se deslobra continuamente, cientista resolve mapear uma terra incégnits que jé ests pronta ~ isto 6, descobrir por meio de algumn processo de decadificagao 0 que existe de fato, Trata-se de obtencao do conhecimento, nfo pela leitura em voz alta (reading ‘out}, mas pela leitura a partir das palavras (reading off) E, a partir do momento aque @ leitura em vor. alta dew lugar ¢Teituras das palavras, o mundo cessou de ferecer conselhos ow avisos e tornou-se urn reposit6rio de dados que, por si 86, no prestam nenuiina orientagio do que deveria ser feito com eles, Dessa forma, 1 sabedoria assurniu um lugar secundrio diante da informagio. CO terceira corolirio nos traz.a ideia de que os animais e outros seres do mundo ‘mais-que-humano eram conhecides, na época medieval, por suas tradigbes, como um emaranhado de histérias, descrigoes ¢ observagdes. Rastrear um ani- ‘mal no livro da natureza era como seguir uma linha de texto. Mas a partir da introducia da divisio do texto em palavras ~ no livro da natureza ~ as eriaturas tamhém comegaram a aparecer como entidades dliscretas © no come Tinhas de transformagio, A natureza, entio, tomnou-se passtvel pars o projeto niio de rastreamento, mas de classificagio. As linhas foram quebradas, mas os objetos resultantes podiam ser organizados e dispostos com base nas suas semelhancas ‘ou diferengas, nos compartimentos de uma taxonomia. Podio-se falar, pela primeira vez, nos blocos de construgio da natureza em vez de sua tessitura € arquitetura. A natureza, resumindo, foi percebida como construida a partir de elementos ¢ nio tec a partir de linhas. Eas criaturas desse mundo natural nfo ceram mais conhecidas como tadigSes, mascamo espécies. Entrotanto, aquelas cviaturas que eram conhecidas apenas pelas suas tradigSes, e para as quais no havia nenhuma evidéncia que poderia ser encontrada nos fatos da natureza, foram clesconsideradas, Nio ha dragdes ou PAssaros-Trovio nas taxonomias ientificas. A questo nio é s6 que elas no existem no navo livro da natureza, mas que no podem existir, uma vee que sua constituicao histérica fiecional n5o se encaixa nesse projeto de classificagSo. Os dragoes, junto com outros seres sentida no nosso mundo, podem ser contados, que surgem, ou cuja presengs mas nio categorizados. E € claro que também no podem ser localizados de forma precisa, como mam mapa cartogréfico, Assim como cafram nos vios da taxonornia, eles também foram "empurradas para as periferias”, como colocou Michel de Certeau, de uma cartografia cientifica que no tem Tugar para os nentos citineririas dla vida O mesmo, & claro, vale para a experiéncia do também nao podem scr classificades ov medo ¢ para os sons do trovio, Ele mapeados, mas isso no os torna nem wm pouco menos reais para uma pessoa que sente 9 medo ou que entra no olho de uma tempestade. Parece ento que, a medida que as péginas perderam sua vox com © comezo da era maderna,o livre da natureza foi também influenciado. Ele nio mais nos 25 fala ou nos conta coisas. E, ainds assim, essa natureza supostamente silenciosa pode ser ~ ¢ geralmente é~ um lugar tio barulhento gue chege a ser ensurde- cedor. O filésofo Steven Vogel observa que o mundo da natureza é abundante de movimentos e de gestos, e muitos desses movimentos se manifestam como sons: pense numa trovosd, no sopra do vento, no gelo se quebrando, ou numa queda d'égua, numa drvore com suas folhas se movendo ou no canto dos passa 19s, Podemos admitir que, em um nivel, a conversa humana pode ser entendida como um gesto vocal, sendo que a voz manifesta a presenca humana no mundo, dda mesma forma que © canto representa a presenga do passaro e a trovoada manifesta a presenga do trovio, Nesse nivel, a voz, 0 canto @ a trovoada sic ‘ontologicamente equivalentes: a voz & 0 ser humano em sua manifestagiio so- nora, © canto € 0 pissaro e a trovoada 60 trovao. Ainda assim, nenhuma dessas coisas, sustenta Vogel, garante a conclusio de que as entidades naturais de fato conversim cont 0s seres humarios ¢ muito menos entre si. Isso por dus razdies principais. Primeiramente, a conversagdo exige que os participantes falem € respondam um de cada vez. Os humanos, de fato, falam e respondem aos sons cia natureza: eles ouver 0 canto dos passaros e tém sentimentos, inclusive de horror, pelo trovio, Mas a natureza, pergunta Vogel, responde a nés? "As enti- aces com quem falamos ¢ a quem respondemos na natureza, elas nos dia a sua atengio total, elas se envolvem conosco, respondem a0s nossos chemados?"” A resposta, ele esti convencid, € “no”, Os sons da natureza, ele sugere, sio mais como comandos co monarca que € surdo para seus siditos, mas que exige obediéncia deles. Em segunda luger, uma conversa, necessariamente, tem que ser sobre alguma coisa, Fla permite que seus participantes comparem as suas percepgses do mundo, numa tarefi comum de descoberts de como o mundo & de fato, Os inteslocutores humanos fazem isso, mas os plissaros, as frvores, (0s rios, o trovio e 6 vento nao o fazem, Nao & que eles sejam interlocutores ieresponsiveis; na verdade, eles nio sao interlocutores. Para Vogel, 0 siléncio da natureza significa que, nao importa quanto barulho la faca, ela ni se envolve nas conversas que nds estabelecemos, como se a natureza estivesse falando, mas ainda assim é uma ilusio. “Eu ja escutei com cuidado”, escreve Vogel, “e cu nao ougo nada”. Lembrem-se do senhor Ojibwa edo Péssaro“Tiovio, Ele achou que o trovéo estava falanco com ele, mas ndo pode compreender o que o trovio dizi. Isso foi uma falha de traducio, como Hallowell parece sugerir? Eu argumentei que, na verdade, foi uma falha de ‘empatia, Para Vogel, entretanto, se 0 senhor tivesse compreendido a fala do trovio, ele ndo teria sucesso na tradugio, nem na empatia com ele, Ele teria realizado um ato de ventriloguia. Enquanto o tradutor fala por outro no seu proprio idioma, o ventriloquo projeta suas préprias palavras em um objeto ‘mudo, ao mesmo tempo que cri a thisio de que é um objeto que esté falando pitra ele, Essa acusacio de ventriloquia, claro, & a fundagio para a repulsa cien~ tifica do antropomorfismo entre aqueles que clamam a empatia com criaturas nijo humanas ou sabe o que eles esto sentindo; so acusados de meramente sajeitos mudos. projetar seus préprios pensamentos e sentimentos sobre seus Euuma acusagio, contudo, que passou muito tempo sem ser desafiada, Em um debate importante concuzido nas péginas da revista cientifica Environmental Values, Nicole Klenk entrou pela porta do lado, Ela defende que os nao hu- :manos podem e, sim, respondem 4 vor, gestos e presenca bumanas, de forma «que faz sentido para eles e para nés. E verclade que 0s no humanos pocem no comparar as suas percepcdes do ambiente com os humanos num esforgo colaborative para estabelecer a verdade do que realmente existe, Mas insistir que as conversas s6 podem ser realizadas dessa forma, argument Klenk, € uma visio muita estreita da conversa, que excluiria bos parte daquilo que comumente chamamos de conversa no mundo humano. Para muitas pessoas, uma conversa, na maior parte do tempo, € uma questo de compreender o que os outros nos dizem ~ de “entender bem a his- A6ria", e nfo de verificar quio correta cla esté. Os seres humanos colocam em palavras 0 que a natureza esté dizendo e, nesse sentido, sio de fata tradutores ‘e nio ventriloquos, Para Klenk, isso é precisamiente 0 que acontece no trabalho cicntifico, Se nfo fosse assim, cla conclui, as interpretacées cientificas seriain eras ficgSes criadas pelo dislogo entre humanos e nfo o resultado de uma interagio cuicaclosa com ~e de uma observagao de —os componentes do mundo natural. Nesse ponto, eu acredito que Klenk errou, Porque se 0 argumento da citncia é precisamente o de que se trata de uma pritica de conhecimento especializado, portanto, cla procura verificar se a hist6ria esté correta e nio simplesmente se foi entendida. Desde a €poca de Bacon, a ciéncia tem in tido na descoberta da verdade literal do que estd no mundo €, portanto, na separagio rigorosa entre o fato ea interpretagéo. Lendo 0 que esti nas linhas do livro da natsireza e néo entre 2s linhas, a tinica coisa que us cientistas no fazem € 0 que Klenk diz ser sua priacidade: “ouvie as wozes dos seres com 05 quis interagem’, De fato, poderiamos argumentar que os cientistas fazenn de tudo para evitar ouvir, uma vee que isso interferitia ow comprometeria a objetividade dos seus resultados. Endo, eu digo, existe urn paralelo real, na constituigo moderna, entre o livo da natureza © a natureza do livro, como um trabalho completo cujo contedido pode ser lide por alguém com a experiéncia para decifré-lo, O paralelo reside na ideia de que ambos devem ser lidos em siléncio: no como parte de uma conversa, mas como registro de resultados que, em suas formas objetivas ¢ (27 objetificadas, viraram snas costas para nés, apresentando apenas suas super ficies externas © opacas para nossa vistoria. Como cientistas, devernos ser produtores de conhecimento e, nese empreendimento, o mundo fornece nossos materiais. Nos pesquisamos como exploradores e colhemos os frutos. E nessa colheita = que ¢ subsequentemente processada e, como costumamos dizer, “analisada’ ~ esta producso do conhecimento, Assim, 0 conhecimento € criado como um tipo de sobreposigao sobre a parte externa do ser. Tendo silenciado © mundo, encontramos 0 conhecimento no siléncio do livro. De fato, 0 proprio conceito do humano, na sti encarnacao moclerna, expressa 0 dilema de uma criatura que 6 pode conhecer @ mundo do qual ele faz parte cexistencialmente deixando esse mundo. Também na nossa experiencia como habitantes que se deslocam pelo mundo e no vagam por sua superficie «x- cerna nosso conhecimento ni é consteuido como um acréscimo externo, mas cresce e se descarola 2 partir de dentro de nosso ser terreno. Nas crescemos 9 mundo 8 medida gue o mundo eresce em nbs ‘Tilvez. esse atersamento do saber no ser resida no ceme de uma sensibitidade gue podemos chamar de "religiosa". Nao foi também em nome da religide que 0s lideres da Reforma insisticam na transformagio da relagio entre o saber & © ser no seu contririo? No seu destaque da verdade literal das palavras ¢ dos trabalhos, a religiio dos reformistas foi ultrapassada pela prdpria cigncla que eles afrouxaram. Porque na concorréncia com os fatos 2 ciéncia certamente zganha ca religiio perde, deixando o mistério de por que as pessoas — incluindo imuitos cientistas, isso deve ser dito ~ aderem tenazmente 3s representacées de realidade que sio demonstravelmente falsas. Ainda assim, questées sobre 0 que pode methor representar 0 mundo (se a religido ou se a ciéncia) estio mal colocadas, porque a real concorréncia esté em outto lugar. Trata-se da questdo de se as nossas formas de saber e imaginar estio reverenciadas em um com promisso existencial com 0 mundo em que nas encontramos. Compararmos religido e cigacia nos termos de suas respectivas parcelas de uma realiclade da qual estamos totalmente desligados. Mas se elas ndo estiverem ~ se, como 0 antropélogo Stuart McLean argumenta, houvesse uma continuidade essencial entre os “atos humanos de imaginagao” “os processos de formagio ¢ transfor- magio do universo material” —ento precisamos nos perguntar, em vez diss: «qual a natureza desses compromissos? Como podem o saber e a imaginagio nos deixar ser, assim como as criaturas em torno de nés simplesimente serem? Nio existe nenhum dragio. Esse & 0 titulo de um dos grandes cléssicos da lite- ravura infantil, de autoria de Jack Kent, Ele contaa hist6ria de um menino, Billy Bixbee, que acorda numa manha ¢ encontra um dragio em seu quarto, Trata-se de urn dragiio bem pequeno, que sacode o rabinho de forma muito amigivel Billy desce com o dragso para o café da mani e apresenta-o a sua mie. "Drago no existe”, declara ela fiememente, ¢ continua preparando suas panquiecas. Billy senta-se & mesa de café da manhé; © dragio senta sobre ela. Sentar sobre 1 mesa nao é algo permitido na casa de Bixbee, mas nao havia nada a ser feito, lima vez que, se 0 dragio no existe, nfo hd como pedirlhe para descer da mesa. O dragio esti com forne e come a maior parte das panquecas, mas Billy no se importa, Sua mae continua a ignorar a nova chegada e 0 dragio comeca a crescer. Ele cresce e cresce. Em breve, ele ocupa a maior parte do corredor € 1 mie de Billy tem dificuldade para limpar a casa, j4 que ela s6 pode possar de tum quarto ao outro pelas janelas, Todas as portas estio bloqueadas. O dragio cresce e cresce ~ agora ele tem 0 tamanho da casa, Entio a casa € suspensa de seus alicerces e carregada pelas ruas nas costas do dragio. O pai de Billy, a0 chegar do trabalho, fica surpreso a0 ver que sua casa sumiu. Um vizinho aponta 1 diregao por onde a casa foi. No final da histéria, a fatniia é reunida mais uma vez e, nesse momento, a mic de Filly relutantemente reconhieve que talvez os rages existam. Imediatamente, o dragio comega a encolher até que, mais ume vez, ele assume urn tamanho gerenciével. “Tudo bem, eu nfo tenko problemas com dragSes desse tamanho”, admite a Sra, Bixbee, enquanto senta em uma poltrona confortével e acaricia 2 cabeca do dragio. ‘A moral da histéria, claro, é que problemas inicialmente pequenos ~ se nés tivermios medo de reconheeé-los ou de falar 0 seu nome por medo de infringir as norinas da condute racional ~ podem crescer até o ponto em que a vida social ordindria no possa ser sustentada. Eu acho que, atualmente, existe um deagio em nosso meio, ¢ ele esté crescendo até ponto em que se torna cada is ciffcil levarrnos vidas sustentaveis, Este dragdo habita a ruptura que Ji que temos dele, Nés sabemos, com base ramos entre o rmundo e a imagi ra experitneis, que a ruptura é insustentavel e, ainda assim, somos relutantes em reconhecer sua existéncia, j4 que, se fizéssemos isso, confrontariamos a racionalidadle cientifica aceita, Fu acredito que tal reconhecimento jé é devido hha muito tempo. Nesta palestra sugeri, assim como os estudos do monasticis- ‘mo medieval e das chamadas ontologias indigenas poderiam sugerit, formas alternativas de leitura ¢ de escrita, que podem nos conduzir, mais uma vez, a ‘nos aconselhar com as vores das piginas e com o mundo ao nosso redor. Quvir 6 sermos aconselhados pelo que eles nos contam e cicatrizar a ruptura entre co ser ¢ 0 saber. Essa cicatrizacio deve ser o primeiro passo rumo a uma forma ais aberta e sustentivel de viver, Talvez, assim, 0 dragio encolha. (29

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