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MARIA IRENE RAMALHO DE SOUSA SANTOS, Faculaage 60 Lees oa Univers oe comers A DOENCA DO POETA 259 a ponderacdo dos verses de avango para o estudo de metstors Riteite" Cael sobre os poomas a dowhce na obra de Femando Que steroves sestanca doenter, Pessoa shguante poota modernists Dowmme a cabers bem conhecida a adverténcia poetica de Alberto a Casiro na décima quinta composigao de O guardador de rebannos: 4s auaro cangoos ove rararn-se de tudo 0 4) Moen’ a todo 0 ue eu smo ‘Sio do conirario Jo que eu sou Escravi-as estando doente (Pessoa, 1981148) Podera, com efeito, entender-se que os quatro poemas seguintes —na perploxidado dos seus desejos © saudades na cedéncia ao modo poético-metaférico— se afastam do sconeeito directo das coisas», que, no dizer de Alvaro de Campos, «caracteriza a sensibilidade de Casiro» (2). Incapaci- tado, pela sdoengas, de =ser todo $6 0 [seu] exterior, ou de aceitar singelamente que studo é como & @ assim é que é», ou {62 se dizer, na nitidez azul do seu olhar de girassol, t€0 sim- plesmente como o levantar-se 0 vento», ou, em suma, na incapacidade momantnea de «nao ser posta» e de -ver S60 {) Embora me tanna seride desta edicto pare a alaboragao do meu tuablitor hes tanscngaee envend soguir & actalgaeae orosratics pro= ‘of Mari Altra Seo (Seiko, 108631-30 ‘ recordagao’ so meu mesire Ceetron Peston, 1961 260 Maria reng Ramalho e Sousa Santos visivels, Caeiro & nesses quatro poemas forcado a recorrer as ‘estratégias tradicionalmente posticas da metatorizacao da realidade, assim implicitamente admitindo, ele também, 0 mistério do universo, analogicamente exprimindo, com toda a clareza, 0 desejo (da compreensio) de ser ou a saudade (do sentido) do todo do mundo. Valera a pena recordar aqui fa integra as consequéncias deste pastageiro achaque de Caviro (9): ‘Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois ‘Que vom a chiar, manhazinna cado, pela estrade, E que para do onde velo volta depol ‘Quase’® nowinha pela mesma estrada Eu néo tinha que A’minha valhice nao tin ‘Quando ou ja nao E ou Mleava virado @ partigo no fundo de um berranco. No meu prato que mistura de Naturezal As minnas ims 28 pla ‘As companhoras das Tontes, as santas ‘A auem ningusm reve E cortam-as @ vom & nossa mesa E nos hots 0s nbspedes ruldosos, {Que chegam com correlas tondo mantas Pade *Salada~, descuidosos ‘Som pensar que axigem & Terfa-Mee ‘Asua treseura @ os gous Thos primeiros, ‘As primeiras verdes patavras que sla 1, ‘As primeiras cousas vivas e irieantos Que Nos vie Quando as dues descoram oo cimo dos montes Verde e slagado surgiu E’no ar por onde a pomba apareceu © arcovtis se exbate Quem me dora que eu fosse 0 pé da estrada E'que os pee dos pobres me estivessem pisando. Quem me dera que eu fosse os rios que correm E quo as lavadelras astivessem a minha beta Quem me dera que eu fosse os choupos & margem do rio E tivesse $6.0 cau por cima ¢ a agua por balro. ‘Quem me deva que eu fosse 0 burro do molto E que ele me batosse e me estimasse. Antes isso que ser 0 que atravassa a vida Olnando para tras de sie tendo pene. 7k SE RS SRE oe onal ia rcs mmr amegae et ops Ses noha Memormanair go SEES LS ae a arat © tar quando pate na relve Nao sel que cousa mo lombra, Lombra-me a vor da criada voiba Contandovme contos de fadas. E ce como Nossa Senhora vestida de mendiga Andava 8 noite nas estradas Sacarrendo as criangas maltratadas. ‘Se eu 1a nfo posso crer ue isso 6 verdace, Para quo bato 0 luar na relva? A leltura atonta dos poomas leva-nos faciimente a concluit que, -estando doentes, Caciro perde a =clara simplicidade/ 7E saiide em existir/Das arvores e das plantas», esquece — ou, ditla Fernando Pessoa (dito) ele-préprio, , ou seja. de Pensar significagdes acultas para os ocultos mistérios das coisas (4). Dosejar para a propria vida o sem sentido do carro ‘de bois partido @ sem rodas, virado no tundo de um barranco nndo pode ser apenas, como o poeta argumenta noutro lugar, para melhor fazer sentir «aos homens falsos/A existéncia ver~ dadeiramente real; 6 antes tentar exprimir a impossibilidade de eer 86 a propria vida, 6 denunclar aquola «consciéncia da Inconsciéncia da vidae que Bernardo Soares cizia ser ~o mals, antigo imposto & inteligncian, é, no fim de contas, assumir a Irrecusdvel condigao humans, que é por isso também postica, do sdesassossego», que em Bernardo Soares se projecia nos sintervalos dolorosos» do seu ventre-ser»(). ( consenso da critica pessoana parece reconhecer —até pela atengao que Ihe tem vindo a dedicar desde a edigao di ‘Atioa de 1962— que 0 Livro do desassossego & essencial para ‘© entengimenta da =complexa personalicade pottica de Fer- nando Pessoa» (Seixo, 1986:14) N&o, decerto, porque traga algo de novo que permita esclarecer aspectos menos convin= Contes da nossa compreensdo geral do poeta, mas porque, como sugeriu ja Eduardo Lourenco, o Livro do desassossego scomporta todos 0s textos de Pessoa» na sua espantosa © detinitiva desmitficagao da heteranimia (Lourengo, 1986:90-9). ‘A dispersa e descentrada tractura-de-ser a que chamamos ‘modernidade poderd ser sentida, ou sofrida, porventura como sdoenga» (sddi-me a imaginagao nao sei como, mas 6 ela {que dei») (®, mas jamais poderé ser dita, ou re-presentada, a () GF, Esta tarde 9 rovonda calun, -Deslombro incerta passtdos Se qucerem ave oy torha um nisi, esta bem, PSbacarlas(Paseoe. 7084/14, 500, 4,800), Sobre Casto, sver sem op pliowe smademnaede poetics, ck Pimanta, 1978 28s. ESRe Be vores digo, que ae flores sorseme (Pessoa, 198188) nest parégrto fomeio tumbert para 0 Livro: do desassossago (Pesso8, Soaay eg Fra). '8)"Gi Passagom das horas (Poscoa, 1981287), A Doenga do Poeta 261 262 Maria Ireng Ramalho de Sousa Santos nao ser pela obliqua evocagao da propria auséncia: «sou os arredores de uma vila que nao ha, 0 comentario prolixo a um livro que se nao escreveu. Nao sou ninguém, ninguéms. (Pessoa, 1982:1,80) Laboratorio de ser, que na consciéncia modernista nao pode ser sendo slaboratorio de linguagem=(’), © Livro do desassossego ensala de varias formas a experiencia Iiteralmente desconcertante da irrepresentabllidade caracto- Fistica do desmembrado sujeito moderno, a que a ficc4o da ‘auséncia heteronimica na sua desmultiplicagao genialmente responde em Fernando Pessoa. No deliberado tracasso de se cconstituir como uma totalidade linguistica @ textual, explicita @ repetidamente assumida que & a sua natureza intervalar € Interrompida, 0 Livro do desassossego diz-se—sujelto ausente em mundo incerto de nada intacto, nem 0 “nada»— os intersticios do mero gosto fragmentacio de «palavrar. Se 4 realidade nao ¢ linguisticamente representavel e comunicé- vol a nao sor pola tautologia —uma espiral ¢ uma espiral dizer sora sempre «mentira» (-uma espiral é uma cobra sem ‘cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma+) e dizer-se ‘a mentira suprema(®), «Porque ¢ tao vivo em nds 0 Imperteito» (ago eu dizer Wallace Stevens, posta modernista ariericano contemporaneo de Pessoa), «6 nosso o prazer de mentir em palavras falhas e sons obstinados» (2), Menos bem-humorado {que Stevens (ou menos resignado, ou menos «realista-), Pes- ‘Soa, em suas varias ficgdes reais de ser, ndo cesar de pos- tular «diferencas» entre as quais se possa ir imaginando o que nao 6 possivel fixar na «realidades. Como no poema de Alvaro ‘de Campos, em que nem a vagarosa mintcla de camara lenta ‘com que o poeta observa e se observa (e que alias 0 «pre ‘ocupas) Ihe permite encontrar-se e negar realmente (apesar do «sim» do ditimo verso aqui citado) & negagao primeira: Uma divergencia insintiva. Hd ontre quem sou e estou Uma'citerenca de verbo Que corresponde & realidade, Bovagar.. Sim, devagar. (Pessoa, 1981-320) () ta tormulgpao pego-a emprestada a 1058 Gi (Gi, 64 &28). 0} © passo sable o sgosto da plavtars (cas palavras sao pare mim corpos focavese) 8 8 sdolnicko a6 expla, que inaumente 0, usa ncontram-eerespectvamente i iniio o |ylume e'no tm 11a. Cro ‘do sesnssorsogo (besten TaB2" "oy 261-280), "Fe dos tres. uitmas verses G0. poem ote that, In his bernees. doight/Sines the inpertest $0 ‘orn ua. ites in Hnwog words and stubborn aounass (Steven 1911158). ‘O'techo:do pours jogs cor & sconfursox entra oe verbos [nomatanas © fratalos prez wean Yo an oar aren, he Poms af Our ‘A doenga do poeta —de que 6 sintoma maior a esquiva Indeterminagao da linguagem— teré de entender-se nesta ppessoana radical descoincidéncia de si e do mundo que ¢ 0 fundamento mesmo da heleronimia, génese de toda a obra de Pessoa e expressio original da sua (e nossa) modernidade Entre mim @ o que em mim/E o quem eu me suponho,/Corre tum rio sem fim, I8-se num poema de Fernando Pessoa; @, no Livre do desassossego, esse «supor- 6 explicitamente enten- ido como «doengar, como aquela inquietagio de corpo © alma de que Caciro (-saudavels) & naturalmente inocente & ‘que Ricardo Reis — qual «insciente» jogadar de xadrez— arti- ficialmente rejeita: ) de ser como os «grandes montes a0 crepusculo> e de ter a sua «inconsciéncian, «sem criterio... nem desassossogos.... A saudade impossivel da paz imensa da Naturezas, do seu ssossego afastado:, ¢ a expressio possivel da unidade para sempre perdida na incerta fragmentaridade do eu e do mundo, a expressao possivel do sentido de ser para sempre estilhacado na consciéncia da consciéncia. € a experiencia em negative da pavorosa lucider deste existir —como auséncia esquecida de si— que o Livro 40 desassossego incessantemente evoca, num discurso sem- pre paradoxal, por Vezes hesitante, de aproximagées e recuos, de saberes © ignorancias, de memérias © esquecimentos: ‘Tudo que existe existe talvez porque outra coisa existe. Nada 6, tudo coexiste: talver assim seja certo. Sinto que eu nao existiria, nesta hora —que nao existiria, ao menos, do modo fem que estou existinda, com esta consciéncia presente de mim, que por ser conscidncia © presente ¢ neste momento inteiramente eu—se aquele candeeiro nfo estivesse aceso além, algures, farol no indicando nada num falso privilegio de altura. Sinto isto porque nao sinto nada. Penso isto porque isto é nada, Nada, nada, parte da noite e do siléncio e do que com eles eu sou de nulo, de negativo. de intervalar, espaco entre mim e mim, coisa esquecimento de qualquer deus...» (1) ‘Como poderia ao posta door sé a cabega? Se tudo edoenga incuravel> se, «de facto, nunca estamos doentes sendo em gerals, ao posta por exceléncia da auséncia onto- légica do eu —que sabe nao poder estar doente senao sendo todo doente, «ideias e tudo»— havia por forga de doer também 0 universo. «Déi-me tudo por nao ser nada», Ié-se num poema (09, Gt Ene o sano @ 0 sonhos (Pessoa, 1961108), « anda Poseoa gaol vss" Z11-2%2"Parn a tormutagaa nscente/agndor do taores ver tg ao. ecm de Adoies Ou sara Goe cor, us 4 thereon 18ers 6 201) ‘A Doenga do Posts 263 264 Marcia irene Ramalno de Sousa Santos de Fernando Pessoa; ¢ por isso até a poesia haveria de doer 20 nosso poeta primeiro da despragmatizacao, da incomuni- cacao, do siléncio: «Nao falo a lingua das realidadess, diz Bernardo Soares, convalescente de longa doenga (podia ser Alvaro de Campos, ou Fernando Pessoa, ou Caeiro -doente- [nfo] falar...; @ um pouco mais a frente, -Doem-me as superficies dos azuis dos tanques que criel em sonho» ‘Quando esta doente, como ele proprio dirla, 0 poeta nao esta doente para outra coisa"), E assim volto & adverténcia postica de Caeiro: As quatro cangoes que segue 20 do contrario do que eu Sou Feito 0 aviso, necessério a tradicional convencao do pacto ‘como leitor, segue-se a justificagdo apologética —+Escrevi-as estando doentes—, que ostensivamente dara conta da mentira {das cangbes seguintes. O que ¢ interessante 6 que o poema continua, muito pessoanamente, com a explicagae parado- xalmente logica da perfeita coincidéncia da «mentirax das {quatro composigdes que se seguem com a «verdade> ultima do poeta Eorevi-as estando doen E'por isso oles 880 naturais E Concordam com aqutlo que sino, Gancordam com agullo com que néo concordam.. Estando doonto deva pensar 9.contraro. Bo que ponso quando esfou S80, (Sendo ho estaria doente). Davo sentir 9 contrane do que sinto Quando sou etna sauge, fo do certa maneira Dove ser todo doonte — Quando estou doente, nao sstou doente para outra cousa Por isso essas cangdes que me renegam Nao sio capaces do mo ranogar E'sao a palsagem a minha sima de noite, 4 mesma a0 Sonar. (Pessoa, 1981:148) (TA realdage come doenga incurivel & concapgto de Berardo Soares Pesuoe, 4962, a0) Sue 36 estamos doontes "om gral 6a for ‘ulugha felis de Boavanture de Sousa Santos’ (santos 166748), sabre va a expec madera. {be.'-85) Algerto Pima rato esta ta Questo postico (ou, aia slo, spostograiesy) em 0 sino cor Ta7e-se) Neste perdgratoYomoteainga para “Na note eaconfeces (Pessoa 19813971 e pare Livro do desassostone ‘Boseoa, Wed 158-100) ‘Chegados aqui, que resta senao perguntar, com Bernardo Soares, =[e] 0 que era ser s807» Nao poderia acontecer que, a ser doenca, a doenca [fosse] mais desejével... do que a saude? O que estou a sugerir é que a doenca de Caeiro literaimente, 0 malestar, a mé-disposicao ontolégica que afecta a consciéncia moderna— é a grande metatora para a ottica pessoana ainda possivel. £ ela a mestra da inditerenca serena, ou construida boa-disposigao, de Ricardo Reis (-como fs pedras na orla dos canteiros/O Fado nos dispoe e all fica- moss), é ela a génese da febre eléctrica de Alvaro de Campos, poeta-pirata de mérbido pensamento, a va abordagem exces- siva do grande navio triunfal de ser-toda-a-gente-em-toda- parte (varde-me a cabeca de vos querer cantar com um ‘excesson), 6 ela 0 fundamento da dor de ser (mais do que «ce pensar-) do Pessoa orténimo, a quem déi, suposta er mente, © sentir @ 0 viver, @ @ quem doem ainda a alma, 0 coragdo e @ hora. De todos, o mais estridente © agressiva- mente doente é Alvaro de Campos, louco de téo obscena- ‘mente ldcido acerca ¢a sua propria metéfora: «Nao ser doente dde uma doenga incurdvel../Merdal Sou Ideido» (1), ‘A loucura, lembra-nos Susan Sontag (197835), como indice de superior sensibilidde © de maior refinamento inte- lectual ¢ crtico, ¢ a doenga que no século XX desempenha o papel metaférico que no século XIX coubera & tuberculose, € dela faz também Fernando Pessoa o elogio no famoso poema das Quinas dedicado a D. Sebastiao na Mensagem: «Sem a loucura que 6 0 homem/Mais que a besta sadia/Cadaver adiado que procria» (Pessoa, 1981:10). Que 6 a loucura a cura—eis a desconstrucao da metatora da doenga, 120 tre- quente em Alvaro de Campos: ra até que ontim... perfetamente Chesté ela! Taso a lavoura exacramonte na cabeca. Coracio stourou coma uma bomba de pataco, Eiht caboga fore © sobrsaalo pla copie acim Gracas @ Deus que estou doido! (Pessoa, 1981:344) {G2 Ad Woraaino ogntige no

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