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O Espaco Biografico Dilemas da Subjetividade Contemporanea Leonor Arfuch a UERJ 7 & eat s UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Reitor Ricardo Vieiralves de Castro Vice-reitora Maria Christina Paixdo Maioli ed B uer] EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Conselho Editorial Antonio Augusto Passos Videira Flora Sussekind Italo Moriconi (presidente) Ivo Barbieri Luiz Antonio de Castro Santos Pedro Colmar Gongalves da Silva Vellasco Leonor Arfuch O espago biografico: dilemas da subjetividade contemporanea Tradugao Paloma Vidal ed BD uer] Rio de Janeiro 2010 Titulo original: E/ espacio biogréfico ~ dilemas de la subjetividad contempordnea © Fondo de Cultura Econémica de Argentina S.A. / Buenos Aires, 2002. Direitos adquiridos para a lingua portuguesa pela Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. ¥ EdUERJ Editora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Rua So Francisco Xavier, $24 - Maracandi CEP 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ Tel./Fax.: (21) 2334-0720 / 2334-0721 / 2334-0782 / 2334-0783 www.eduerj.uerj.br eduerj@uerj.br Editor Executivo Italo Moriconi Geréncia/Supervisdo Editorial Carmen da Matta Coordenador de Publicagdes ‘Renato Casimiro Coordenadora de Produgao Rosania Rolins Coordenador de Reviséio Fabio Flora Revisdo Andréa Ribeiro Capa Carlota Rios Projeto e Diagramagao Emilio Biseardi Assistente de Edigao Renato Alexandre de Sousa CATALOGACAO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC A685. Arfuch, Leonor. O espago biogrifico: dilemas da subjetividade contempora- nea / Leonor Arfuch; tradugao, Paloma Vidal. — Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. 370 p. ISBN 978-85-7511-167-3 1, Andlise do discurso narrativo. 2, Narrativa (Retérica). 3. Autobiografia. 4. Sujeito (Filosofia). 5. Entrevistas. 1. Titulo, CDU 82.085 Sumario Agradecimentos.. Prefacio . Apresentagao ... Breve histéria de um comego. 2 A definigéo do tema ..20 O caminho da pesquisa a, 1.33 Os capitulos 1. O espaco biogréfico: mapa do territério . Genealogias. Em torno da autobiografia O espaco biogréfico contemporaneo 2. Entre o ptiblico e o privado: contornos da interioridade... “Trés paradigmas: Arendt/Habermas/Elias . O piiblico e o privado no horizonte contemporaneo lll 3. A vida como narragao.. Narrativa ¢ temporalidade 1S) Identidade narrativa, histéria e experiéncia.. 116 ‘A vor narrativa. i .126 O mito do cu: pluralidade e disjungao. 131 DistingGes no espaco biografico.. 4. Devires biograficos: a entrevista midiatica. 151 A vida a varias vozes . . 156 Avatares da conversa. - 170 ‘A pragmatica da narracao . .176 Biografemas. 196 5. Vidas de escritores ... +209 Vidas e obras 211 A cena da escrita... 219 Acena da leitura.. 224 Dos mistérios da criacao. 229 6. O espago biogréfico nas ciéncias sociais ... 239 A entrevista na pesquisa: hipétese sobre uma origem comum.... 241 (O que fazer com) A voz do outro. 253 Acscuta plural: uma proposta de andlise ... 266 7. Travessias da identidade: uma leitura de relatos de vida.. 277 Sobre a leitura... 277 ‘A pesquisa. 279 Os espacos simbélicos: Argentina/Itdlia... 1.291 Epilogo .. 335 Sobre o final. + 339 Referéncias... +351 Agradecimentos Entre as marcas (possiveis) de uma biografia, estao os rituais da pesquisa: as buscas, as vacilag6es, o didlogo com os livros e com os outros: encontros, discussdes, conversas, sugestGes, criticas. A esses interlocutores, que influiram decisivamente na concretizagao deste projeto, 4 sua generosidade de tempo e de palavra, quero responder aqui com meu agradecimento. A Elvira Arnoux, sob cuja orientagao este livro foi, em sua pri- meira versio, tese de doutoramento, pelo estimulo, pela orientagao lucida e valorativa. A Beatriz Sarlo, cujo julgamento preciso e sugestivo, numa longa “histéria conversacional”, mostrou-se iluminador em mais de um sentido. A Ernesto Laclau, que precoce e generosamente abriu pers- pectivas insuspeitadas para meu trabalho, cultivadas junto com a amizade. A meus colegas ¢ amigos: Teresa Carbé, a quem devo a de- cisto de retomar “sendas perdidas” para chegar ao porto; Noemi Goldman, que me alentou com sabedoria e afeto; Paola di Cori, que endireitou rumos com seus comentarios; Alicia de Alba, que mesmo A distancia soube me acompanhar com confianga e aconchego; e Emilio de Ipola, por seu olhar hicido, seu reconhecimento e o dom de seu humor. A minhas colegas e amigas do grupo de pesquisa: Leticia Sabsay, Verénica Devalle, Carolina Mera e Debra Ferrari, pelo cons- tante impulso, pela contribuigao de ideias, o afeto e a generosidade de scu tempo. 8 Cespaco biogitico A Mabel Goldemberg, por uma escuta sem a qual certamente este livro nao teria existido. A Federico Schuster, entao diretor do Instituto Gino Germa- ni, pelo apoio incondicional ao “tempo de acréscimo” que esta longa escrita exigiu. A Simon Tagtachian, por seu inestimavel apoio na area de informdtica, e a Tecla Candia, pela amabilidade no cotidiano. Prefacio Relato, identidade, razo dialdgica. Esses trés temas, intima- mente entrelagados, constituem as coordenadas que definem a tra- ma deste excelente livro. Tentemos precisar as estratégias discursivas que articulam esses tépicos na argumentagao de Arfuch. O que, em primeiro lugar, determina a centralidade do relato, da narrativa? Algo requer ser narrado na medida em que sua especi- ficidade escapa a uma determinagao tedrica direta, a um complexo institucional autorreferencial. Arfuch descreve com clareza o contex- to de proliferacao de narrativas em que seu livro se centra. Por um lado, uma experiéncia argentina: a pluralizagao de vozes e de relatos que acompanharam 0 retorno 4 democracia no inicio dos anos 1980. A corrosio dos pontos de referéncia cotidianos — piblicos e privados —, resultantes da experiéncia tragica da ditadura, implicou que a co- eréncia da moldura institucional dada tivesse de ser substitufda pela temporalidade de um relato em que o cardter constitutivo pertencia A narragao enquanto tal, uma narragao que deixara de estar funda- da em certezas ontoldgicas prévias. Aconteceu algo similar ao que [rich Auerbach descreve com relagao 4 dissolugao da ordem imperial romana: o latim deixa de ser uma linguagem fortemente hipotatica, que classifica a realidade em termos de categorias universalmente accitas, e tenta, pelo contrério, transmitir a impressao sensivel do real, aquilo que escapa aos sistemas vigentes de organizacao e sé se dcixa intuir por meio da estruturag4o temporal de um relato. No entanto, como Arfuch assinala, essa centralidade do nar- rativo depende de um contexto muito mais amplo do que o pura- mente argentino: esté inscrita na hibridizagao geral de categorias e 10 Ocspaco biogrifico distingdes que dominaram o que se chamou “modernidade” e que acompanharam a transi¢ao a uma era “pés-moderna”. Tal transi¢ao deve ser entendida, todavia, nado como dissolugao generalizada (que s6 seria concebivel como preambulo da emergéncia da categoria ti- picamente moderna do “novo”), mas, precisamente, como hibridi- za¢io — isto é, como conformagio de novas areas de indecidibilidade no conjunto social/institucional e como base para o desdobramento de jogos de linguagem mais radicais, que colocam em questao os pontos de referéncia da certeza. Esse processo é estudado por Arfuch com relagao a uma drea institucional especifica: os géneros literdrios que plasmaram — a partir de pontos de referéncia cldssicos como as confissdes de Santo Agostinho e de Rousseau — 0 campo do biogra- fico e do autobiogréfico. Arfuch analisa detidamente as diferentes formas tradicionais de relatar a prépria vida (memérias, correspon- déncias, didtios intimos etc.) € mostra a irrupcao de novas formas autobiogréficas no mundo contemporaneo, a mais importante das quais — que tem centralidade indubitavel no livro — é a entrevista. O resultado é uma andlise fascinante da qual surgem diante de nossos olhos tanto tipos ¢ estilos narrativos ligados aos meios de comunica- gao de massa quanto a renegociagao e abertura de formas incoadas de relatos que ja se insinuavam nos géneros literdrios clssicos. Ha um segundo aspecto que também € central na andlise da autora. O tema de seu estudo — 0 espago miiltiplo do autobiografico — se presta admiravelmente a exploragao da teorizagao contempora- nea do sujeito. O questionamento do sujeito auténomo, autocentra- do e transparente da metafisica moderna e a correlativa nogao de um sujeito descentrado (pés-estruturalismo) ou constitufdo em torno de um vazio (Lacan) tinham necessariamente de colocar em questo as formas canénicas do relato autobiografico. Esse é um aspecto que Arfuch explora com sua penetracio ¢ rigor caracteristicos. A subver- so dos géneros tradicionais do relato e a emergéncia de uma nova pandplia de categorias analfticas dao seu sentido & argumentacio desta obra. Assim, a nogao de espago biogrdfico tenta dar conta de um Preficio 11 terreno em que as formas discursivo-genéricas cldssicas comegam a se entrecruzar e hibridizar; a categoria de valor biogrdfico adquire um novo carter de protagonista no tracado narrativo que dé coeréncia a prépria vida; e a apelacdo a uma referencialidade est4vel como ponto de ancoragem é deslocada em relagao as diversas estratégias de au- torrepresentacao. Isso implica necessariamente colocar em questao nogdes como o “pacto autobiogréfico entre leitor e autor” (Lejeune) ¢ redefinir a significado de conceitos como “vivéncia” (Erlebnis), cuja genealogia tracada por Gadamer é retomada por Arfuch. Pode- se dizer, como observacio geral, que 0 vazio do sujeito auténomo cldssico € ocupado neste livro — em consondncia com varias correntes do pensamento atual — pelo que poderfamos denominar “estratégias discursivas”, isto é, por deslocamentos metonimicos que dao coerén- cia aos relatos — coeréncia que no repousa em nenhum centro, mas que faz dessa nao coincidéncia do sujeito consigo mesmo a fonte de toda representagio e totalizagao. Isso nos conduz a uma terceira dimensio da teorizacao de Ar- fuch, que é essencial sublinhar. O descentramento do sujeito assume em sua obra uma formulagao especial que se vincula a “razdo dialé- pica”, de raiz bakhtiniana: 0 sujeito deve ser pensado a partir de sua “outridade”, do contexto de didlogo que dé sentido a seu discurso. Ha, entdo, uma heterogeneidade constitutiva que define toda situa- gio de enunciacao. O social deve ser pensado a partir da “alienagao” radical de toda identidade. Essa alienacdo opera em varias diregdes. Devemos insistir em que nao nos estamos referindo simplesmente a uma pluralidade de papéis dentro de um contexto social definido, mas a algo muito mais fundamental: para Bakhtin, nao hd coincidéncia entre autor e perso- nagem, nem sequer na autobiografia. Isso é 0 que permite a Arfuch fazer oscilar decisivamente sua andlise de um sujeito que se expressa- ria através do discurso a outro que se constitui através dele. E ao falar de discurso estamos nos referindo, pura e simplesmente, ao social cnquanto tal. O social est4 fundado, portanto, numa falta que nao

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