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A VIDA DE WILLIAM SHAKESPEARE Cristiane Busato Smith renpuce 20h veya 06 Feanep “heen ‘A vida de William Shakespeare tem sido objeto de muitos estu- dos desde 1709, com a breve, porém classica, biografia de Nicholas Rowe (1674-1718), até hoje, no século XI. Pode-se encatar a tra- digdo dos estudos biogrificos de Shakespeare como um projeto vivo ¢ incompleto, pois informagdes importantes acerca da época em que cle viveu sio descobertas a cada ano. Grande parte das biografias recorre a probabilidades histéricas, documentos, ¢ tenta descortinar a vida do poeta mediante 0 exame de sua obra. Dentre muitas, destacam-se as recentes Shakespeare: unta vida (1998), de Park Honan e Will in the World (2004), de Stephen Greenblatt. Biografi- as como Shakespeare: a Writer's Progress (1986), de Philip Edwards ¢ Shakespeare: the Poet in his World (1978), de M. C. Bradbrook, con- centram-se, principalmente, na obra ¢ no desenvolvimento de Shakespeare como escritor para criar um retrato da vida do poeta, Ha biografias que trazem dados indisputaveis ja que se basciam em manuscritos e documentos, a maioria dos quais compilada na década de 1930 em dois volumes pelo estudioso E, K. Chambers em William Shakespeare: a Study of Facts and Problems, mais tarde, atualizada por Samuel Schoenbaum em William Shakespeare: a Documentary Life, cuja primeira edicao data de 1975. A curiosidade que fomenta os estudos sobre a vida do poeta é tio saudével quanto inevitivel: 0 Bardo é um fenémeno de grande longevidade, e suas obras tém exercido uma enorme influéncia sobte a lingua inglesa e sobre a cultura ocidental. A questo da autoria “Bscreva até que o tinteito seque, ¢ encha-o de novo, com suas ligrimas; depois, va compondo versos sentidos, versos que revelem a eandura de seus sentimentos; as cordas da eftara de Orfeu erim feitas de nervos de poeta, € por isso o seu toque de ouro podia enternecet 0 ferro, as pedras, amansar os tigres, obrigar enormes levi a abandonar os abismos insonéiveds pari virem dancar nas areias da pea!” (Or dois comatose Verona, 11.2) Hi amplas e explicitas evidéncias que um homem chamado “William Shakespeare” escreveu as pecas ¢ poemas de “William Shakespeare”, ou das outras seis variacdes de assinatura que 0 es- critor usava (a ortografia nfo estava ainda fixada na época). Muitos documentos vém de fontes publicas, tais como as primeiras pagi- nas de pecas e poemas publicados durante a sua vida. Hi, também, referéncias sobre cle feitas por outros escritores como Francis Met (1565-1647) que, em 1598, atribuiu a autoria de doze pecas a Shakespeare, ¢ John Weever (1576-1632), que the dedicou um po- ema em 1599, Outras referéncias vém de manuscritos que descre- vem encenagées na corte ¢ varios registros no Stationers’ Register (ivro em que autores deviam registrar as obras a seem publicadas). Apesar das incontestiveis evidéncias, alguns alimentam a hipé- tese que Shakespeare nunca existiu ou que ele nao foi o autor das pecas, inventando candidatos para substitui-lo. Os nomes mais 20 SHAKESPEARE, Suk EOCA SUN ORR absurdos da lista vio desde a rainha Elisabete I até 0 escritor Daniel Defoe. Mais recentemente, os substitutos seriam Francis Bacon, Christopher Marlowe, 0 conde de Oxford e 0 conde de Essex. Esse fendmeno, conhecido como anti-stratfordiano, emergiu no final do século XVIII e aumentou no século seguinte com um certo esnobismo vitoriano que revela a descrenga de que um ator de classe média e que nao freqiientou a universidade possa ter sido 0 maior poeta inglés. A teoria de que Shakespeare nunca existiu ou de que nao foi o autor de suas pecas hoje ndo possui nenhuma importincia para os estudiosos, ¢ surge apenas entre curiosos ¢ oportunistas que nada conhecem dele e da sua época, ese valem de sua fama para polemizar, O nascimento “La havia uma ested (Maite barulbo por nada, W.1) sob ela eu nasei.” William Shakespeare nasceu em abril de 1564, provavelmente na casa de Henley Street, hoje conhecida como ‘The Birthplace (Lo- cal de Nascimento), na cidade de Stratford-upon-Avon, no cora- io da Inglaterra. Em 26 de abril, o vigitio da pardquia de Stratford registra o batizado: “Gulielmus, filius Johannes Shakspear” (William, filho de John Shakespeare). Convencionou-se 23 de abril para o dia do nascimento por ser a data em que o poeta viria a morter, 52 anos depois, bem como pelo fato de ser dia de Sio Jorge, santo padroeiro da Inglaterra. O nascimento de William, que ocorreu em um dos surtos de peste bubénica que assolaram Stratford, deve ter trazido ao mes- mo tempo muita alegria e muita apreensio a seus pais, John e Mary, que ja haviam perdido duas filhas, Joan (1558) e Margaret (1562). Quinze por cento da populagio de Stratford pereceu nesse surto, indice que, entre as criangas, se elevava para uma em cada quatro. O terror da peste era enorme; sabia-se que era contagiosa, porém nao se conhecia como se dava o contagio, Acreditava-se que a trans- missio se dava pelo ar, por isso 0 uso da mascara como a do per- sonagem “Il Dottore” da Comedia dellarte, A verdade é que a VIDA DE WILLIAM SHAKESPEARE a transmissio de pelo menos um tipo mais comum de peste aconte- cia pela pulga dos ratos; tratava-se, portanto, de um problema de higiene piiblica, grandemente agravado pela inexisténcia de um sis- tema sanitério em uma época em que animais eram comercializados nas ruas ¢ o gado abatido no meio das feiras. Apesar da existéncia de medidas legais como manter estrume em pilhas em determina- dos locais fora da cidade, com a multa dos infratores (os registros apontam que o pai do Shakespeare foi multado uma vez), ainda assim a sujeira persistia e, de tempos em tempos, a peste retornava. Os pais: Mary e John “Pies so ps de um tal eben.” (A mera damada, 15) A mie de Shakespeare, Mary Arden (? — 1608), era filha de Robert Arden, préspero fazendeio da regiao, cujo sobrenome re- monta 4 época da conquista da Inglaterra pela Normandia (1066). Mary trouxe dote substancial ao casamento. Tudo indica que foi uma boa esposa ¢ que contribuiu com o trabalho de John, além de cuidar dos seis filhos: William, Gilbert (1566-1612), (a segunda) Joan (1569-1646), Richard (1574-1613), Anne (1571-1579) e Edmund (1580-1607). A responsabilidade de Mary fica evidente na confianca que seu pai nela depositou quando a tornou executo- ra de seu testamento, fato raro para as filhas na época. ‘Também filho de fazendeiro, John Shakespeare (c.1530-1601) foi curtidor de peles ¢ luveiro em Stratford. A profissao de luveiro demandava precisio ¢ destreza, mas infelizmente nfo trazia gran- des recompensas financeiras. John procurou, assim, ampliar suas atividades comercializando 1a, cevada e madeira. Quando William nasceu, John ja se tornara um homem prdspero e confiante no futuro. Nos proximos anos, desempenharia fungdes publicas im- portantes: seria conselheiro do burgo, juiz de paz ¢, finalmente, em 1568, grio-bailio (prefeito) de Stratford. No entanto, sua sorte mudaria, Seu nome aparece em docu- mentos da cidade que indicam que “Master John Shakespeare” vi- veu tempos dificeis. Por duas vezes, foi multado por ter infringido 2 SHAKESPEARE, Suk EOCA SUN ORR a lei da usura, Foi também acusado de haver comercializado Ia ilegalmente, Ha registros na igreja de Stratford que atestam sua auséncia em celebracdes religiosas; a causa provével era o fato de estar sendo processado por dividas. Deste modo, apesar de ter vivido um periodo de prosperidade que Ihe permitiu comprar terras ¢ casas em Stratford, John softeu revezes que 0 obrigaram a se retirar da vida publica. A educago de Shakespeare *...0 colegial, com sua pasta E a cara matinal, como um lagarto Se arrasta sem vontade & escola” (Como gniteron, W.7) Filho de um prospero artesio, comerciante e pessoa de projecio na comunidade de Stratford, seria praticamente impossivel imagi- nar que o menino William nio tenha freqiientado a Petty School (escola de primeiras letras) e, depois, por volta dos sete anos, in- gressado na Grammar School (escola que cortespondia ao ensino fundamental e médio). A Kings New Schoo! de Suatford mantinha um tigoroso sistema educacionak: as aulas se iniciavam as seis ou sete da manha ¢ acabavam as cinco ou seis da tarde, de segunda a sébado. Havia um recreio de duas horas em torno do meio dia, mas no se praticavam exercicios fisicos ¢ brincadeiras dentro da escola. Nao existiam, tampouco, férias de verdo ou de inverno ¢, mesmo aos domingos, os alunos nao se viam livres da severa disci- plina escolar, uma vez que eram obrigados a participar das longas missas, supervisionados pelos atentos olhos de seus mestres. ‘As escolas elisabetanas eram extremamente tradicionais ¢ se- guiam o mesmo curriculum em todo pais. Os meninos (ha raros casos de escolas que aceitavam meninas como alunas) deviam me- morizar e recitar doses macicas de latim diariamente. A cultura da época valorizava 0 conhecimento dos textos clissicos, e o latim era a lingua em que esses textos estavam escritos. O latim era, tam- bém, a lingua mais importante da Europa, a lingua franca, usada amplamente pela igreja, universidades, diplomacia, e nas éreas me dica ¢ legal. ‘AVDA DE WILLIAM SHAKESPEARE B Os professores da escola de Stratford estavam entre os melho- xes do pais ¢ muitos eram graduados da universidade de Oxford, cidade vizinha a Stratford. Como a énfase do curriculo da escola recaia sobre o latim, os estudantes precisavam aprender a fazer traducio, versio ¢ leitura dos clissicos. A obra de Shakespeare nos fornece claras evidéncias de que ele aproveitou muito bem os au- tores que estudou na escola, principalmente Ovidio, Séneca ¢ Plauto. Ovidio é, definitivamente, 0 favorito, dadas as numerosas referén- cias que Shakespeare faz a0 poeta. Muita énfase eta dada ao ensino da retérica e da légica. Os alunos faziam exercicios de linguagem tais como escrever cartas, ensaios preparar discursos, que eram também apresentados oral- mente. Além disso, reescreviam textos em que precisavam empre- gar metiforas, alegorias, ironias, hipérpoles outras figuras de linguagem. Também traduziam textos do latim para o inglés, e do inglés para o latim. Uma das obras de Erasmo (1466-1539) mais adotadas nas grammar schools era o Copia, que continha nada menos que cinqiienta maneiras diferentes de dizer “obrigado pela carta”. Os exercicios de retérica inclafam também a imitatio (imitagao ctiativa) e a confroversiae (controvérsias): 0 primeiro ensinava os alu- nos a produzirem textos semelhantes a obras em latim, e, 0 segun- do fazia os alunos defenderem dois pontos-de-vista opostos sobre © mesmo assunto. O papel era caro na época, mas os alunos séniores deveriam ter um caderno, 0 commonplace hook, para registrar cita- Ges, pensamentos, provérbios ou frases que pudessem Ihes servir para expressar seus pensamentos em trabalhos escritos “com ele- gincia”. ‘A obra de Shakespeare nos dé amplas evidéncias de sua im- pressionante criatividade lingiiistica — 0 Oxford English Dictionary registra que Shakespeare cunhou cerca de 500 palavras. O uso que o Bardo faz das palavras é, em muitos casos, totalmente inovador. Seu talento em relacao a0 uso de figuras de linguagem é igualmen- te excepcional, ¢ seus anos de estudante na excelente Grammar School de Stratford com certeza contribuiram significativamente para sua formaciio como escritor. 2% SHAKESPEARE, Suk EOCA SUN ORR Apesar disso, seu contemporineo ¢ dramaturgo rival Ben Jonson (1572-1637), escreve em um famoso ¢ ambiguo elogio que Shakespeare conhecia “pouco latim ¢ menos grego” (“small Latin, and less Greek”), Esta citagio de Jonson precisa ser colocada em perspectiva: Jonson possufa um conhecimento classico sélido em uma época que valorizava muito a cultura greco-romana, O domi- nio de latim que Shakespeare possuia nio era suficiente para 0 exigente Jonson que, no entanto, profetizou que Shakespeare per- tencia “no a uma época, mas a toda eternidade” (“not of an age, but for all time”). Religiao a i dei pian (tank, V2) Na época de Shakespeare, o Estado e também a Igreja ditavam como as pessoas deveriam se comportar. Stratford possuia um t bunal paroquial (ehurch cour!) sob a responsabilidade do bispo que investigava assuntos que, nos dias de hoje, considerariamos sur- preendentes. Dentre os assuntos que eram passiveis de julgamento pelo bispo estavam, por exemplo, o nfio comparecimento & igreja, a manutencio dos tecidos da igreja, 0 vicio do Aleool, os crimes sexuais, os testamentos, a autorizagao de licengas para médicos, cirurgides e professores. A época era de conflitos religiosos. A Reforma Inglesa (1533) foi iniciada com a idéia de assegurar a independéncia da Igreja Ca- tolica da tutela de Roma, mas acabou por desencadear uma avalanche de novas idéias. Em meados do século XVI, Stratford, como outras comunidades, estava dividida: de um lado, havia aqueles que insistiam na “velha fe” (os catélicos) e que eram multados por isso (inclusive John Shakespeare); de outro, estavam os reformis- tas puritanos. Estes queriam acabar com a hierarquia eclesidstica e acreditavam que os tribunais das igrejas deveriam ser responsaveis por todos os aspectos da vida das pessoas, especialmente os relati- vos aos comportamentos social ¢ sexual, Existiam, também, mui- tos ingleses que preferiam ocultar sua opgio para evitar os conflitos. ‘AVDA DE WILLIAM SHAKESPEARE 5 De qualquer forma, os murais catélicos da Guild Chapel foram apagados em 1564. O casamento “Se me disserdes “casa com cla, Eu casatel”™ (As abayes comades de Winder, 1.1) Em 28 de novembro de 1582, o bispo de Worcester autorizou © casamento de “William Shagspere” e “Anne Hathwey of Stratford”. Anne (¢.1555-1623) era provavelmente a filha mais ve- Iha de Richard Hathaway, de Shottery, um vilarejo proximo de Stratford. O pai de Anne era um importante agricultor de Warwickshire, tinha uma boa casa e muitas terras. William tinha 18 anos ¢ Anne, 26. Como William era menor de idade, foi necesséria a permissfio de seu pai para que ele pudesse se casat. A autoriza- ao especial dada pelo bispo justifica-se pela urgéncia da situagao: Anne casou grivida. O casal foi morar com os pais do poeta e, em 26 de maio de 1583, a Igreja de Holy Trinity registrou o batizado de Susanna, filha de William Shakespeare, que viveu até 1649. Quando Susanna completou dezoito meses, Anne teve os gé- meos Hamnet (1585 - 1596) e Judith (1585 - 1662), cujos batizados realizaram-se também na Igreja de Holy Trinity em 5 de fevereiro de 1585. Aos vinte anos, portanto, Shakespeare enfrentava as res- ponsabilidades de sustentar a esposa e trés filhos mais as inconve- niéncias de compartilhar a residéncia de seus pais, lembrando que, a essa altura, John Shakespeare estava em declinio financeiro. Além da certidao de casamento, outra referéncia a Anne Shakespeare aparece no testamento do escritor, no qual ele Ihe deixou “sua segunda melhor cama”, 0 que gerou uma série de peculacdes sobre o significado de tal heranca. Anne é uma das personagens mais misteriosas da vida de Shakespeare — os registros no nos esclarecem muito a respeito dela. Alguns bidgrafos sugerem que a relacio do casal era infeliz dadas as circunstincias iniciais do casamento, mas a verdade & que no ha nada que comprove isso. Um dos sonetos de Shakespeare, © soneto 143, brinca carinhosamente com © sobrenome 6 SHAKESPEARE, Suk EOCA SUN ORR “Hathaway”, ¢ pode ser interpretado como uma lembranca do ini- cio de seu romance com Anne: “I hate’ from hate away she threw,/ And saved my life, saying ~ ‘Not you?” (na tradugio de Ivo Barro- so 0 jogo de palavras se perde: “Odeio, e uma outza vez seu ddio ouvi/ Mas, salvando-me a vida: No a ”), Cabe lembrar, no en- tanto, que é extremamente dificil inferir qualquer informagio so- bre a vida ¢ os sentimentos do autor a partir de sua obra. Os “anos perdidos” o se pore ser um homem integral Sem a pritica e a teoria da escola do mundo. A experiencia & aduirida pela pritien I € aperfcicoada no ripido curso do tempo” (Os dois cavaliirar de Verona, 13) Nio ha nenhum registro sobre Shakespeare desde o batizado dos gémeos Hamnet e Judith até sete anos mais tarde, com 0 apare~ cimento em Londres de uma critica ao poeta feita pelo esctitor Robert Greene (1558-1592). Esses anos so chamados de “perdidos” pelos estudiosos, no sentido de no haver nenhum documento sobre autor. As especulagdes sobre o que Shakespeare teria feito sio tio miiltiplas quanto divertidas: ele teria sido professor, assistente de advogado, marinheiro, cocheiro, membro de uma trupe de atores ¢ até ladriio de veados. De qualquer maneira, o fato é que ele chega na efervescente Londres em torno de 1588, ¢ encontra um cenatio mais que propicio para o desenvolvimento de sua arte. Shakespeare em Londres “Qui 0 Senior prone vous nga Sea muito bem-vindo a Londres” (Aentgae WV, pare 2,112) Relatos de visitantes descrevem uma Londres de contrastes: de um lado uma cidade suja, barulhenta e superpovoada, com © mai- or mercado ¢ porto do pais; de outro, o esplendor dos palicios, da Catedral de Saint Paul e a suntuosidade das Casas do Parlamento. Entre 0s edificios mais monumentais, a Torre, ainda hoje um car- to postal da cidade; & epoca, exibindo muitas vezes as cabecas dos traidores da coroa fineadas em estacas. ‘AVDA DE WILLIAM SHAKESPEARE a A cidade era cercada por muralhas; do lado de fora, ficavam as Liberties (as Liberdades), fora do alcance das autoridades ja que a regio era independente da jurisdi¢ao de Londres, onde se localiza- vam os asilos de loucos, os hospitais para leprosos, as prisdes, os bordéis e os teatros. Uma populagio, sedenta por entretenimento, para ali se dirigia para ver espetdculos violentos — tais como enfor- camentos, brigas de galo, lutas entre ursos e caes (bear baiting), en- tre touros e cies (bull baiting), para beber, jogar ¢ assistir pecas. Se a chegada de Shakespeare a Londres cosmopolita pode the ter causado temor, em contrapartida, as portas para o teatro Ihe estavam abertas, A primeira informacao que temos sobre Shakespeare nos teatros londrinos vem da pena do escritor Robert Greene, em seu amargo panfleto de 1592 Groatsworth of Wit, Bought with a Million of Repentance (Um tostaa de sabedoria comprado com um milbio de arrependimentos). Greene era um escritor relativamente bem- sucedido, membro do grupo de dramaturgos chamado de “University Wits” (grupo de escritores formados em universida- des). Pouco antes de morrer, escreve: (.) porque ha uma gralha emergente, embelezada com nossa plumagem, que, com seu eonasio de tgre envolio ent pele de ator, pressupoe-se que seja bem capaz de escrever um verso branco de forma bombistica, como o melhor de voces: e sendo um absoluto Johannes factotum é, em sua propria opinio, 0 tinico Sacode-cenas [Shake-scene] do pais, As invejosas palavras do panfleto auxiliam a estabelecer a repu- tagio € 0 sucesso de Shakespeare como um ator poeta, que rivaliza com escritores de educacio superior a ele, Por meio desse panfle- to, Greene registra 0 sucesso dos “versos bombisticos” do escri- tor que “sacode” (shake) 0 teatro (scene), um claro trocadilho com 0 nome de Shakespeare. Greene, de sobra, faz uma mengiio direta popular peca Henrique V/I, parte 3 na citagio “O coracio de tigre, envolto em pele de mulher”. As primeiras obras impressas de Shakespeare foram dois longos poemas narrativos, /énuse Adonis (1593) e O estupra de Lacrécia (1594), ambos em honra ao conde de Southampton. Na dedicatéria, 2B SHAKESPEARE, Suk EOCA SUN ORR Shakespeare escreve: © que fiz.€ vosso, o que tenho a fazer é vosso, sendo parte de tudo 0 que tenho, dedicado a vés. Fosse maior 0 meu valor, o meu dever se mostraria maior, enquanto isso, tal como é, esta ligado 4 Vossa Senhoria; A quem desejo lon- ga vida ¢ ainda mais longa felicidade, Leal Servidor de Vossa Senhoria William Shakespeare. Southampton se tornou o patrono de Shakespeare, € recom- pensou 0 poeta com uma generosa quantia em dinheiro. Tudo leva a crer que foi com esta quantia que ele conseguiu entrar como sdcio na companhia de atores “Lord Chamberlain’s Men”; as ages nio eram baratas, mas Shakespeare, devido ao sucesso de suas pri- meiras pegas, era um sdcio desejavel para os principais acionistas do grupo, os Burbages. Sua vida estava agora ligada ao teatro de diversas formas: era ator, autor, sécio de companhia e sécio de casa de espeticulo. A vida dos profissionais de teatro de Londres aio era facil havia uma competicio acirrada entre atores, dramaturgos e com- panhias teatrais, Além disso, os teatros eram constantemente f chados por causa da peste, entio endémica, De janeiro de 1593 até abril de 1594 os teatros foram fechados, mas, logo apés a sua rea- bertura, Shakespeare jé figurava como um dos atores principais ¢ membro da companhia “Lord Chamberlain's Men”. ‘Jédramaturgo consagrado, em 1596, Shakespeare obteve acon- cessio de um brasio para seu pai, cujo simbolo era um falcio com uma lanca de ouro, com o lema Non sans droit (Nao sem direito). Com este braso, os Shakespeates finalmente tinham um titulo de nobreza, anteriormente j4 pleiteado pelo pai. Isto deve ter sido importante nfo somente para John Shakespeare, mas também para William, uma vez que 0s atores eram vistos como homens sem amo (masterless men), quando nfio vagabundos. No entanto, se, nes- se mesmo ano, por um lado, o brasio trouxe alegria para a familia, pot outro lado, ironicamente a morte do iinico filho homem de William, Hamnet (uma varia¢io de Hamlet), deve ter sido uma UIA DE WIL SHARES 29 wagédia para quem escreveu com profundidade sobre as relagdes entre pais ¢ filhos notadamente em Rei Jodo (1595-1597) e Hamlet (1601). Em Rei Joao, Shakespeare descreve comoventemente a per- da de um filho: A dor substitui meu filo ausente. Se deita em seu leito e passeia comigo. Me olha com seus lindos olhos, repete suas palavras, Me faz lembrar de todas as suas vidas, Veste suas roupas, ‘Tenho entio raz4o para amar a minha. (IIL.4) A despeito da morte de Hamnet, é sabido que Shakespeare pro- duziu nese perfodo uma média de duas ou trés pecas por ano, entre as quais muitas comédias, atraindo multidées a0 “Globe”, o teatro que ele e sua companhia haviam construido, e do qual eam donos. Em 1598, o autor Francis Meres, em sua obra Palladis Tamia, desereveu Shakespeare como o melhor dramaturgo de sua época: “Shakespeare entre os ingleses é 0 mais admirdvel em ambos os géneros para o palco (...”. Para Meres, “a alma doce e sagaz de Ovidio sobrevive no melifluo & suave Shakespeare, basta ver seu Vinus e Adonis, seu Lucrécia, seus sonetos acucarados (..)”. Além do clogio, Meres nos faz 0 favor de mencionar doze das suas pe- as, incluindo Souho de uma noite de vero, O mercador de Veneza, Ricardo The Henrique TV, ajudando-nos, também, a daté-la Em 1603, coma morte de Elisabete I, 0 rei Jaime I ascendeu ao trono ¢ os “Lord Chamberlain’s Men” se tornam os “King’s Men”, recebendo patrocinio real. Como ja havia acontecido no reinado anterior, algumas pecas de Shakespeare foram encenadas na corte, € sfio documentadas pelos pagamentos dos espeticulos. Em 1594, na época natalina, por exemplo, Shakespeare, juntamente com os atores Richard Burbage ¢ William Kempe, assina um recibo de 20 libras. De 1604 a 1605, os “King’s Men” se apresentaram onze vezes para o entretenimento na corte de um rei que apreciava teatro. Em 1609, a prestigiada companhia chegava ao apice do seu sucesso ocupando um teatro coberto, comprado anteriormente para 30 SHAKESPEARE, Suk EOCA SUN ORR ser usado no inverno ~ o Blackfriars ~ uma vez que o Globe era um anfiteatro aberto, sujeito as intempéries. Exa-lhes possivel, en- tio, representar durante o ano inteiro. Encontram-se, também, registros de nfo pagamento de impos- tos cobrados nos locais onde Shakespeare morou em Londres — nos primeiros anos de sua carreira o escritor morou na pardquia de Saint Helen, em Bishopsgate, ¢ posteriormente mudou-se para a margem sul do tio Tamisa, em Southwark, proximo ao teatro Globe. © iltimo registro mostra Shakespeare morando em Cripplegate com 0 peruqueito Christopher Mountjoy e 2 esposa. ‘Ainda que abastado, 0 escritor sempre preferiu alugar seus locais de residéncia em Londres. Apesar de sua carreira profissional ter sido em Londres, Shakespeare manteve lagos estreitos com Stratford e com sua fa- milia. A medida que ganhava dinheiro com suas atividades teatrais, cle fazia varios investimentos na sua cidade natal: comprou a New Place, uma das maiores casas de Stratford, e adquiriu terras, O alti- mo investimento do escritor de que se tem registro foi feito em 1613, trés anos antes de sua morte, nao em Stratford, mas em Londres, onde Shakespeare comprou uma casa por 140 libras, a Blackfriars Gatehouse. A aquisicio da Gatehouse, proxima do teatto Blackfriars, parece indicar que, mesmo nos seus tltimos anos, Shakespeare no havia totalmente se desligado do teatro — na épo- ca, o dramaturgo escreve com a colaboracio de John Fletcher (1579- 1625) duas pecas, Henrique VIII € Dois nobres parentes. O periodo do apogeu da obra de Shakespeare € 0 de suas gran- des tragédias, que contrasta com a visio inspiradora que marca suas titimas pecas — chamadas “romances” —, nas quais irrompe um espirito celebratério da vida por meio de cenas de reencontro, reconciliacio e perdio, Em uma de suas tiltimas pecas, Shakespeare escreve, como se estivesse se despedindo dos paleo: Nossa festa acabou. Nossos atores, Que eu avisei nao serem mais que espititos, Derreteram-se em ar, em puro ar: E.como a trama va desta visio, UIA DE WIL SHARES 31 As torres e 08 palicios encantados, Templos solenes, como o globo inteiro, ‘Sim, tudo que cla envolve, vai sumit Sem deixar rastros. Nés somos do estofo De que se fazem os sonhos; ¢ esta vida Encerta-se num sono. (A tempestade, IV.1) A partir de 1610, o nome de Shakespeare aparece cada vez mais ligado A sua cidade natal, Stratford-upon-Avon, para onde ele re- gressa. FE, muito provavel que o autor tenha buscado passar seus Ailtimos anos na tranqiiilidade de seu lar com a familia. Em 1612, Shakespeare retorna brevemente & Londres para de- por como testemunha de um processo judicial movido por Belott, genro de seus antigos senhorios, os Mountjoys. Belott alegava que ele nao havia recebido o dote de sua esposa. O escritor, qualifican- do-se como gentleman (nobre) ¢ residente de Stratford, afirma, con- venientemente, nao se recordar de quaisquer detalhes sobre 0 caso. A filha mais velha de Shakespeare, Susanna, casou-se em 1607 com 0 médico John Hall, que se tornou uma das pessoas mais importantes de Stratford. O casal John e Susanna Halll teve a tinica neta de Shakespeare, Elisabete (1608-1670). Shakespeare deixou uma heranca generosa para Susanna. A sorte da filha mais jovem de Shakespeare, Judith, foi diferen- te: casou-se com um vinicultor de Stratford, Thomas Quiney. Apa- rentemente, Shakespeare niio consentiu no casamento, pois Quiney havia se envolvido em um esciindalo que culminou em um proces- so judicial: pouco antes de casar-se com Judith, ele havia “conheci- do carnalmente” uma moga de Stratford que morreu ao dat luz, junto com seu bebé. Shakespeare teria ficado tio contrariado a ponto de, meses antes de falecer, alterar seu cuidadoso testamento que ele assinou afirmando que o documento foi formulado em “perfeita satide e memoria” (“in perfect health and memory’). A linhagem dos Shakespeares acabou com a filha de Susanna, Elizabeth Hall, que morreu em 1670 sem deixar herdeiros. 32 SHAKESPEARE, Suk EOCA SUN ORR Morte Disseram que ele fez sua parte ‘Que Deus 0 acompanhe! (Macbeth, V Nao se sabe como Shakespeare morreu, apesar de haver muita especulacio em torno de sua morte. Alguns bidgrafos, como Park Honan em Shakespeare: sma vida (1998), acreditam que Shakespeare se encontrava doente havia algum tempo, e morreu em decorrén- cia de uma febre. Outros, mais afeitos a sensacionalismos, prefe- rem a versio de que a febre foi devida a uma noitada de bebedeiras com Ben Jonson ¢ Michael Drayton (1563-1631), por ocasiiio da visita dos dois ao poeta em Stratford. O fato é que William Shakespeare morreu aos 52 anos, no dia 23 de abril de 1616, ¢ foi enterrado dois dias depois na Igreja de Holy Trinity, em sua cidade natal. Anne Shakespeare, sua viva, viria a morrer sete anos mais tarde, em 1623, o ano da publicacio do Primero félio, sendo enterrada 20 lado do marido. Na lapide do timulo do escritor lé-se: GOOD 1D FOR JESVS SAKE FORBEARE, TO DIGG THE DVST ENCLOASED HEARE: BLEST BE Y MAN Y SPARES THES STON! AND CVRST BE HE (Bom amigo, pelo amor de Jesus, nto Cave a pocira aqui encerrada: Abencoado seja aquele que respeitar es E, maldito seja aquele que mexer em meus oss0s). UI DE WLI SHARES 3B A DRAMATURGIA SHAKESPEARIANA Marlene Soares dos Santos 165 Quando, apés 0 assassinato de César, Cassio proclama “E num. porvir distante/ Este ato nobre ha de ser encenado/ Por estados € linguas ainda por nascer”, Shakespeare nfo poderia imaginar que estaria profetizando o futuro da sua dramaturgia através da refe- réncia metateatral da sua personagem, e que seria 0 teatro, efémero por natureza, que lhe conferiria a imortalidade. Sua obra poética pode ser dividida em poesia lirica, que consta de 154 sonetos e o poema The Phoenix: and the Turtle (A fenix ¢ a pomba); poesia narrativa, que inclui Venus and Adonis (Vénus e Ado- nis), The Rape of Lucrece (O estupro de Liuerécia) eA Lover's Complaint (Queirca de uma enamorada); ¢ poesia deamética, que compreende pecas historicas, comédias ¢ tragédias. O maior sucesso de Shakespeare enquanto vivo foi Vénus e Adonis, que teve dez edicdes desde 0 ano de 1593, quando foi publicado pela primeira vez, até o ano da morte do autor em 1616; deve-se actescentar que a popularidade deste poema natrativo continuou até 1636 com mais seis edicdes, caindo em um relativo esquecimento gradativamente. Varios dos seus so- netos se mostram confiantes na sua propria imortalidade, e a pro- metem A pessoa amada: “Mas se chegar a tua estirpe a tanto,/ Em dobro his-de viver: nela e em meu canto,” (soneto 17); ou, “En- quanto houver viventes nesta lida,/ Hi-de viver meu verso e te dar vida.” (soneto 18); ou, ainda, “Nem mérmore, nem dureos monu- mentos/ De reis hijo de durar mais que esta rima, ... Nem fogo ou ‘Marte apagara com a espada/ Vivo registro da meméria tua.” (sone- to 55). Entretanto, deve-se observar que as partes Iirica ¢ narrativa da obra poética shakespeariana continuam despertando interesse hoje, principalmente, pelo prestigio da sua poesia dramitica. O contexto teatral Quando Ben Jonson (1572-1637), com o dom misterioso que alguns artistas possuem de prever o futuro, vaticinou que Shakespeare “no pertencia a uma época, mas a toda eternidade”, cle no deixou de assinalar que o seu conterriineo € contempori- neo pertenceu a um determinado momento histérico. Dono de um talento extraordinétio, Shakespeare ainda teve a seu favor 0 fato de estar no lugar certo na hora certa: a cidade de Londres das 166 SHAKESPEARE, SUM POCA E SUA BRA eras elisabetana (1558-1603) ¢ jaimesca (1603-1625), quando a In- glaterra comecou a prosperat ¢ se projetar no cenario mundial. Ao deixar a sua cidadezinha natal de Stratford-upon-Avon, ¢ partir para a cidade grande, capital do pais, Shakespeare estava, sem saber, & claro, nio s6 escrevendo a sua histéria de vida, mas, também, a da dramaturgia universal. No final do século XVI, Londres era nao s6 a maior cidade da Inglaterra como a maior da Europa com uma populagio de aproximadamente duzentas mil pessoas. A cidade propriamente dita ainda era cercada — ao norte, leste © oeste — pelas muralhas construidas pelos antigos romanos com os sete portdes originais e, mais trés, consteuidos mais tarde; o rio Tamisa servia como uma muralha natural ao sul. Nela se concentravam os centros comerciais e financeiros, como o maior mercado ¢ o maior porto da nagio, estabelecimentos educacionais como as “Inns of Court” (faculdades de direito), igrejas como a Catedral de St. Paul (So Paulo), a Bolsa de Comércio, os prédios das diversas guildas, a Ponte com indimeras lojas € casas residenciais, ¢ a Torre, sinistra- mente associada com a prisio e/ou morte de reis e nobres. Para além das fronteiras da cidade, situavam-se os subtirbios, sugestiva- mente denominados de “the Liberties” (as Liberdades), que escapa- vam a0 controle das autoridades citadinas, onde se encontravam os leprositios, os hospicios, os asilos dos pobres, os hospitais, as pri- sbes, as casas de jogo, arenas grandes para lutas de cies com ursos, arenas pequenas para brigas de galo, tabernas, prostibulos € teatros. A efervescéncia cultural era considerdvel para a época, Contan- do os londrinos com o mais alto indice de alfabetizagiio da Ingla- tetra, os tipégrafos ¢ os livreiros prosperavam com a impressio ¢ venda de exemplares da Biblia, contos populares, baladas, panfle- tos religiosos, poemas ¢ pecas teatrais. A miisica, laica ou religiosa, erudita ou popular, instrumental ou cantada, ocupava um lugar privilegiado na vida da cidade, dai a se tornar fundamental na dramaturgia shakespeariana, Eram os teatros, porém, que se so- bressaiam no panorama cultural, atraindo no s6 os londrinos como os turistas nacionais e estrangeizos, pela beleza dos prédios, a exce- Iencia das pecas ¢ © talento dos atores, famosos em toda a Europa. Desde a fundacio do Red Lion (Lei Vermelho) em 1567 ¢ do ‘Theatre (Teatro) em 1576, os teatros cresceram e se multiplicaram: / AMATURGR SHAESDARANA 167 0s teatros puiblicos (ou abertos) como o Swan (Cisne), 0 Globe (Globo), o Hope (Esperanca), o Fortune Fortuna), 0 Boar’s Head (Cabega de Javali) ¢ o Red Bull (Touro Vermelho); as hospedarias usadas para a representagao de pecas como a Bull Inn (Hospedatia do Touro) ¢ a Bell Inn (Hospedatia do Sino); ¢ os teatros.priva- dos (ou fechados) como © St. Paul (Sio Paulo) dentro da catedral do mesmo nome, o Blackfriars (Frades Negros) ¢ 0 Whitefriars (Frades Brancos), ambos situados dentro de antigos conventos, 0 primeiro dos dominicanos, ¢ o segundo, dos carmelitas. Sendo o teatro “uma manifestacio social” (Jean Duvignaud), “uma arte territorial”, “uma arte de espago tanto quanto uma arte de pala- vras” Steven Mullaney), cle encontrou um solo fértil para prospe- rar, tanto na polis elisabetana como na jaimesca, apesar das perseguigdes das autoridades municipais, dos preconceitos dos puritanos, das proibigdes da censura, e das epidemias de peste bubénica que assolavam a Inglaterra de tempos em tempos, decre- tando 0 fechamento das casas de espeticulo. Além de ter nascido em uma época particularmente favoravel as letras e as artes, Shakespeare herdou, nio s6 uma longa e rica tradicZo poética, como também, uma longa e rica tradicio teatal, ‘A Idade Média produziu dois dos maiores poetas de lingua inglesa — John Gower 71330-1408) e Geoffrey Chaucer (¢.1343-1400) — as grandiosas representacdes do teatro religioso medieval conheci- das como “mystery cicles” (os ciclos de mistérios). Ambas as tradi- cOes se mantiveram ininterruptas até o século XVI; a poesia continuou florescendo com Sir Thomas Wyatt (71503-1542), Henry Howard, mais conhecido pelo seu titulo de conde de Surrey ?1517- 1547), Edmund Spenser (71552-1599) e Sir Philip Sidney (1554- 1586); 0 teatro, apds o desaparecimento dos grandes ciclos devido a reforma religiosa que baniu o catolicismo da Inglaterra, sobrevi- veu gracas as trupes itinerantes que percorriam o pais, represen- tando pequenas pecas laicas e religiosas e, também, gracas aos educadores que consideravam o teatro uma excelente ferramenta didatica para ensinar latim e moral aos seus alunos. A estas tradi- des nativas deve-se acrescentar a tradi¢io clissica, levada & Ingla- terra pelos ventos de um Renascimento tardio, mas de grande impacto. A construgao de prédios (como 0 Theatre, em 1576) es- 168 SHAKESPEARE, SUM POCA E SUA BRA pecialmente dedicados 4 representagio de pecas foi, segundo Stephen Orgel, um marco na historia do teatro elisabetano, pois, até entio, “o conceito de teatro no inclufa 0 sentido de lugar”, e 0 teatro passou a ser visto como “uma parte visivel ¢ estabelecida da sociedade”. Possuidores de lugares inteiramente seus para representarem, 0s atores se organizavam em companhias patrocinadas por nobres a fim de escaparem de uma lei de 1572 que determinava a punicio de “vagabundos, patifes e pedintes inveterados”, uma vez que a profissio de ator ainda nao tinha um status social definido. Por exemplo, a companhia associada ao nome de Shakespeare, Lord Chamberlain’s Men (Os Servos do Lorde Camareiro), foi inicial- mente patrocinada por Lord Hunsdon, camareito real na época de Elisabete I, e, mais tarde, pelo rei Jaime I, se tornando ‘The King’s Men (Os Servos do Rei). As companhias competiam entre si e com as companhias de atores infantis que existiram em dois peti- odos distintos: de 1576 a 1589-90, ¢ de 1598 a aproximadamente 1608. Formadas por meninos, que tinham belas vozes (inicialmen- te eram coristas), e sabiam tocar instrumentos muito bem, elas ocupavam os teatros fechados como o da catedral (St. Paul) ¢ 0 do convento (Blackfriars). As criangas eram tio famosas que merece- ram uma das poucas referéncias t6picas de Shakespeare, pois, em Hamlet clas sio responsiveis pelo fato de os atores sairem em fournée por nfo suportarem a concorréncia: “um grupo de pitralhos, fi- Ihotes de falco que gritam mais do que os outros ¢ sio delirante- mente aplaudidos por isso” (11.2.). Com a ctescente popularidade do teatro, a demanda por pecas era enorme para atender as urgentes necessidades de novos reper- térios das companhias. Entre 1576 e 1613 foram tegistrados mais de oitocentos titulos de pecas, das quais s6 pouco mais da metade chegou até nés. Os dramaturgos trabalhavam individualmente, em parceria, ou em grupo de trés; como veremos mais adiante, 0 pré- prio Shakespeare, em alguns momentos da sua carteira, nio hesi- tou em dividir a autoria de suas pecas com outros patceiros. Além de William Shakespeare (1564-1616), e dos seus dois grandes con- temporiineos mais famosos, Christopher Marlowe (1564-1593) e Ben Jonson (1572-1637), também aleancaram a fama: John Lyly ‘ADRAMATURGIA SHAKESPEARIANA 169 (c.1554-1606), Thomas Kyd (1558-94), George Peele (c.1558- €.1597), Thomas Lodge (¢.1558-1625), Robert Greene (1558-1592), George Chapman (c.1559-1634), Thomas Nashe (1567-1601), Thomas Middleton (c.1570-1627), Thomas Dekker (¢.1572-c.1632), ‘Thomas Heywood (c.1575-1641), John Fletcher (1579-1625), John Webster ( ¢.1580-1634), Philip Massinger (1583-1640), Francis Beaumont (1584-1616) ¢ John Ford (¢.1586-1640). Inserido em um contexto teatral tio pujante ¢ tio rico em talentos, Shakespeare 86 poderia se destacar gracas a sua genialidade. A linguagem dramatica Um outro fator favoravel a0 desenvolvimento da dramaturgia clisabetana em geral ¢ da shakespeariana em particular foi a fase de desenvolvimento em que se encontrava a lingua inglesa — extrema- mente plastica, ¢ receptiva a criacio ¢ importagao de novos vocé: bulos. Sem a camisa-de-forca das gramaticas prescritivas (que 86 aparecerio no século XVIII) ¢ contando apenas, em 1604, com 0 dicionatio A Table Alphabetical (Uma tébua alfabéticd) de Robert Cawdrey (1538?- 16042), que apenas listava palavras dificeis, sem nenhuma preocupacio em ser completo, os escritores nao 86 po- diam se utilizar de uma sintaxe flexivel que Ihes permitia usar ad- vérbios como verbos, substantivos ¢ adjetivos como verbos € advérbios, como também podiam cunhar palavras através de em- préstimos do grego e do latim, ¢ assimilar outras de linguas mo- dernas como 0 francés, 0 italiano e © espanhol. Imerso em tanta liberdade lingiiistica, Shakespeare no s6 se tornou possuidor do maior vocabulério entre todos os escritores ingleses, como tam- bém inventou palavras, expresses e frases que atravessatam sécu- los, e permaneceram no inglés contemporineo. Em uma época em que se ia ao teatro “to hear a play” (ouvir uma pega), os espectadores cram chamados de “gentle hearers” (gentis ouvintes) e os dramaturgos de “poets” (poetas) ¢ facil de- duzir a importincia da poesia para a criagio teatral. Para M.C. Bradbrook, a estrutura essencial do drama elisabetano se encontra nas palavras, ¢ os maiores poetas sao, também, os maiores drama- turgos. Shakespeare € 0 exemplo mais Sbvio desta afirmacio, ha- 170 SHAKESPEARE, SUM POCA E SUA BRA vendo momentos da histéria da critica em que o prestigio do poeta excedeu 0 do dramaturgo. O teatro elisabetano dependia enormemente das palavras, a0 contritio do teatro dos séculos seguintes, do cinema e da televisio de hoje, j4 que as pecas eram representadas a luz do dia, sem cena- tio e quase sem mobilifrio. Shakespeare se serve da linguagem para transmitir informagdes importantes para o piiblico: em Rove ¢ Julieta, ele é informado de que é noite — “Fale, anjo, outra vez, pois vocé brilha/ Na gloria desta noite” (11.2) em Macbeth, de que est escuro — “O céu é modesto;/ Apagou as suas velas” (IL-1) —3 em Noite de Reis de que Viola naufragou na Iliria — “Que terra é esta, meus amigos? Esta é a Iliria, senhora” (1.2) , em_A megera domada, de que Lucéncio chegou & Padua — “pois sai de Pisa/ estou em Padua” (1.1). Orientadas pela retérica e pela oratéria, combinando-se em imagens ¢ simbolos, ¢ manipulando sentidos com trocadilhos e repeticdes, as palavras constroem universos, cri- am situagdes € pintam personagens grandemente diferenciados entre si, de herdis e heroinas a servos e confidentes. Na linguagem dramitica shakespeariana, a poesia é a forma dominante e a prosa, sua subordinada, Pecas como Ricardo IT ¢ Rei Joao so escritas inteiramente em verso; outras, como a primeira tetralogia — as trés partes de Hennigue VI e Ricardo II — chegam bem perto, Em geral, Shakespeare observa as convencdes domi- nantes que ditavam que as personagens trigicas se expressassem em verso, enquanto que as cémicas se utilizassem da prosa; como os herdis e hetoinas tragicos sio de procedéncia real e/ou aristo- crata, a hierarquia também se estabelece a partir da linguagem, per- mitindo a estes acesso tanto & prosa quanto 4 poesia, o mesmo no acontecendo com as personagens de baixa condicio social. Os di- Alogos entre Romeu e Julieta, os soliléquios de Ricardo III e Hamlet, as natrativas de Otelo € Prospero sio exemplos memoraveis do poder poético shakespeariano alicercado nos versos brancos (sem rima) compostos de pentimetros iémbicos (linhas decassilabas de palavras com cinco acentuagdes, obedecendo 4 ordem de uma sila- ba breve seguida de uma longa). A prosa predomina sobre 0 v so apenas nas comédias The / AMATURGR SHAESDARANA im Merry Wives of Windsor (As alegres comadres de Windsor), Mach Ado About Nothing (Muito barulbo por nada), Twelfth Night (Noite de Reis) e As You Like It (Convo gostaisy, em outras, como The Taming of the Shrew (A megera domada), The Comedy of Exrors (A comédia dos erro’) © A Midsummer Night's Dream (Sonbo de uma noite de veri), a poesia atinge uma percentagem tio alta como a de algumas das tragédias. Além das proclamacées, das cartas, da linguagem das personagens cOmicas ¢ subalternas, a prosa shakespeariana também é emprega- da nas tragédias para apontar uma mudanga violenta de personali- dade: a loucura de Ofélia, o desvario de Otelo e 0 sonambulismo lacbeth. E com os talentos lingiifstico e dramatic que 0 caracteriza, Shakespeare também escreve, para momentos estraté- gicos das pecas, grandes falas em prosa como a de Hamlet — “O estar pronto é tudo” (Hamler, V.2) — se preparando para enfrentar a morte; a de Brutus — “Ouvi-me por minha causa” (Jrilio César, 111.2) — explicando os motivos do assassinato de Jillio César aos roma- nos; a de Shylock = “Um judeu nao tem olhos?” (O mercador de Veneza, TILA) — justificando 0 seu desejo de vinganga como res- posta ao preconceito dos cristios; ea de Falstaff, fazendo o papel de Hal na peca-dentro-da-peca na taverna de Eastcheap, ¢ argu- mentando — “banindo o gorducho Jack banireis 0 mundo inteiro” (Henrique IV, parte 1, 11.4). A publicagao das pecas A obra dramitica shakespeariana s6 foi possivel de ser transmiti- daa posteridade gracas 4 iniciativa de dois dos seus colegas, amigos e conterraneos: John Heminges (1566-1630) e Henry Condell (1576- 1627). Em 1616, quando Shakespeare faleceu, Ben Jonson publicou a sua producto poética, incluindo nove pecas, intitulando-a Warks (Obra), n0 formato in-f6lio/ fblio (livro cujos cadernos sio obtidos dobrando-se 20 meio a folha de impressio, que comporta quatro paginas, duas de cada lado). Foi uma publicacio inovadora niio s6 pelo formato — até entéo reservado a livros de teologia, histéria e filosofia — mas, também, pelo fato de o poeta ter incluido uma parte da sua producio teatral que, na época, nao era considerada digna de status literati, Sete anos apés a morte de Shakespeare ea publicacio da obra de Jonson, Heminges e Condell comemoram o resultado de ae SHAKESPEARE, SUM POCA E SUA BRA

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