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Capitulo IV SOCRATES E OS SOCRATICOS MENORES 1. Sécrates e a fundagao da filosofia moral ocidental 1.1. A vida de Sécrates e a questao socratica (o problema das fontes) Sécrates nasceu em Atenas em 470/469 a.C. e morreu em 399 a.C., em virtude de uma condenagao por “impiedade” (foi acusado de no crer nos deuses da cidade e de corromper os jovens; mas, por detras de tais acusacGes, escondiam-se ressentimentos de varios tipos emanobras politicas). Era filho de escultor e de obstetriz. Nao fundou uma escola, como os outros filésofos, realizando 0 seu en- sinamento em locais publicos (nos gindsios, nas pracas publicas etc.), como uma espécie de pregador leigo, exercendo imenso fasci- nio nao s6 sobre os jovens, mas também sobre os homens de todas as idades, o que lhe custou intimeras aversées e inimizades. Parece sempre mais cl que se deve distinguir duas fases na vida de Sécrates. Na prittéira fase, ele esteve préximo dos A- sicos, particularmente Arquelau, que, como vimos, professava doutrina semelhante & de Diégenes de Apolénia (que misturava ecleticgmente Anaxfmenes e Anaxdgoras). Sofrendo a influéncia da sofi¢élea, fez préprios os seus problemas, embora polemizando firmemente contra as solugdes que lhes foram dadas pelos maiores sofistas. Assim sendo, nao é estranho 0 fato de que Aristéfanes, na célebre comédia As nuvens, representada no ano de 423 (portanto, quando Sécrates estava na metade de sua quarta década de vida), tenha apresentado um Sécrates bem diferente do apresentado por Platao e Xenofonte, que é 0 Sécrates da velhice, o Sécrates da ultima parte de sua vida. Mas, como ressaltou oportunamente A. E. Taylor, além dos fatos de sua vida individual, os dois momentos da vida de Sécrates tém sua raiz no proprio momento histérico em que ele viveu: “Nao 86 Sécrates podemos sequer comeg¢ar a compreender Sécrates enquanto nao tivermos claro para nds mesmos que a sua juventude e a sua primeira maturidade transcorreram em uma sociedade separada daquela em que cresceram Platao e Xenofonte por um abismo semelhante ao que separa a Europa pré-guerra da Europa do apés- guerra.” Sécrates néo escreveu nada, considerando que a sua mensagem era transmissivel pela palavra viva, através do didlogo @ da “oralidade dialética”, como j4 se disse muito bem. Seus iscipulos fixaram por escrito uma série de doutrinas a ele atri- buidas. Tais doutrinas, porém, freqiientemente nao concordam. entre si e, por vezes, até se contradizem. Aristéfanes caricaturiza um Socrates que, como vimos, nao 60 de sua ultima’ qjnaturidade. Na maior parte de seus didlogos, Platao idealiza Sécrates eo faz porta- voz também de suas préprias doutrinas: desse modo, é dificilimo estabelecer 0 que é efetivamente de Sécrates nesses textos e 0 que, ao contrario, representa repensamentos e reelaboragées de Platao. Em seus escritos socraticos, Xenofonte apresenta um Socrates de dimensoes reduzidas, com tracgos que as vezes limitam-se até mesmo com a banalidade (certamente, seria impossivel que os atenienses tivessem motivos para condenar & morte um homem como o Socrates descrito por Xenofonte). Aristételes s6 fala de Socrates ocasionalmente. Entretanto, suas afirmagées so consi- deradas mais objetivas. Mas Aristételes nao foi contemporaneo de Sécrates: certamente, ele pode ter-se documentado sobre o que registra, mas faltou-lhe o contato direto coma personagem, contato que, no caso de Sécrates, revela-se insubstituivel. Por fim, os varios socrAticos, fundadores das chamadas “escolas socraticas menores”, deixaram muito pouco sobre ele, langando luz apenas sobre um aspecto parcial de Sécrates. Desse modo, alguns chegaram a sustentar a tese da impossi- bilidade de reconstruir a figura “histérica” e o pensamento efetivo de Socrates. Por alguns lustros, as pesquisas socraticas cairam em séria crise. Mas hoje esta abrindo caminho, noo critériodaescolha entre as varias fontes ou de sua combinagio eclética, mas sim o critério que pode ser definido como “a perspectiva do antes e depois de Sécrates”. Explicd-lo-emos melhor: a partir do momento em que Sécrates atuou em Atenas, pode-se constatar que a literatura em geral, particularmente a filosdfica, registra uma série de novidades de alcance bastante considerdvel, que depois, no Ambito do helenis- mo, permaneceriam como aquisicées irreversiveis e pontos cons- tantes de referéncia. Ha mais, porém: as fontes a que nos referimos (e também outras fontes, além das mencionadas) concordam na indicagao de Sécrates como o autor de tais novidades, seja de modo explicito, seja implicito. Assim, podemos creditar a Sécrates, com elevado grau de probabilidade, aquelas doutrinas que a cultura O homem é a sua alma 87 gregarecebeunomomentoem que Socrates atuavaem Atenas eque os nossos documentos creditam a ele. Relida com base nesse critério, a filosofia socratica revela ter exercido tal peso no desen- volvimento do pensamento grego e do pensamento ocidental em geral que pode ser comparada a verdadeira revolugio espiritual. 1.2.A descoberta da esséncia do homem (o homem é a suapsyché) Depois de um periodo de tempo em que ouviu a palavra dos uiltimos naturalistas, mas sem se considerar de modo algum sa- tisfeito, como ja dissemos, Sécrates concentrou definitivamente o seu interesse na problematica do homem. Procurando resolver os problemas do “principio” e da physis, os naturalistas se contradis- problemas insoltiveis para 0 homem. Conseqiientemente, ele se concentrou no homem, como os sofistas, mas, ao contrario deles, soube chegar ao fundo da questo, a tal ponto que chegoua admitir, malgrado a sua afirmacaio geral de n4o-saber (da qual falaremos adiante), queera sdbio nessa matéria: “Na verdade, atenienses, por nenhuma outra razdo eu granjeei este nome senao Por causa de cisamente a sabedoria humana (ou seja, a sabedoria que o homem pode ter a respeito do homem) —e pode ser que, dessa sabedoria, eu seja sdbio.” Os naturalistas procuraram responder & seguinte questao: “O que é a natureza ou a realidade ultima das coisas?” Sécrates, porém, procura responder A questao: “O que é a natureza ou reali ati 2c Seja, “o que é a esséncia do homem?”. inalmente, a resposta é precisa e inequivoca: o homem & a sua alma, enquanto é recisamente a sua alma que o distingue especificamente de qualquer outra ¢oi entende a nossa azao) atividade pensante e éticamente rates, a alma é 0 eu _consciéneia e a personalidade inteloctoal @ Jnorat. Consequentemente, com essa Sua descoberta, como foi jus-~ tamente destacado, “Sécrates criou a tradic&o moral e intelectual daqualaEuropa sempre viveu desde entao”(A.E. Taylor). Eum dos maiores historiadores do pensamento grego explicitou ainda mais: “Para nés, a palavra alma, gracgas as correntes espirituais pelas quais passou & histéria, soa sempre com uma acentuacio ética e religiosa. Assim como as palavras servigo de Deus e cuidar da alma JROMEVTO 0 COKPO E WS 88 Socrates (estas também usadas por Sécrates), ela tem uma conota¢ao crista. Mas ela assumiu esse elevado significado pela primeira vez na pregacdo persuasiva de Sécrates” (W. Jaeger). # evidente que, se a esséncia do homem éa alma, cuidar de simesmo significa cuidar da propria alma mais do que do corpo. E ensinar os homens a cuidarem da propria alma éa tarefa suprema do educador, precisamente a tarefa que Sécrates considera ter recebido de Deus, como se léna Apologia: “Que éisto(...)éa ordem de Deus. E estou persuiadido de que nao hé para vos maior bem na cidade do que esta minha obediéncia a Deus. Na verdade, nao é outra coisa o que fago nestas minhas andangas a nao ser persuadir a v6s, jovens e velhos, de que nao deveis idar riquezas, nem de qualqu coisa antes emai doque daalma, fé modo que ela se torne dtima e virtuosissima, e de que nao é das Fiquezas que nasce a tude, mas da virtude que nasce a riqueza é todas _as utras coisas que_sao bens _para_os homens, tante fndividualmente para os cidadaos como para 0 Estado.’ a Um dos raciocinios fundamentais feitos por Sécrates para provar essa tese éoseguinte: uma coisa 60“instrumento” queseusa eoutra é 0 “sujeito” que usa 0 jnstrumento. Ora, o homem usa o seu préprio corpo como instrumento, o que significa que 0 sujeito, que é0 homem, e o instrumento, que é 0 corpo, sao coisas distintas. Assim, & pergunta “o que é0 homem?”, nao se pode responder que 60 seu corpo, mas sim queé~ ilo que se serve do corpo”. Mas “o que se serve do corpo é agua ajalma (=a inteligéncia)\, de modo que a conclusao é inevitavel “A alma nos ordena conhecer aquele que nos adverte:(Conhece-te a ti mesmoy Nesse ponto, Sécrates ja levara sua doutrina a tal ponto de consciéncia e de reflexAo critica que chegou a deduzir todas as conseqiiéncias que logicamente brotam dela, como veremos. 1.3.0 novo significado de “virtude” eo novo quadro de valores Em grego, aquilo que nés hoje chamamos “virtude” se diz “areté’, como jé acenamos, significando o que torna uma coisa boa éperfeita no que é, ou, melhor ainda, significa aquela atividade ou modo de ser que aperfeigoa cada coisa, fazendo-a ser 0 que deve ser. (Os gregos, portanto, falavam de virtude dos varios instrumentos, de virtude dos animais etc. Por exemplo: a “virtude” do c&o éade ser bom guardiao, a do cavalo é a de correr velozmente e assim por diante.) Conseqtientemente, a “sirtude” do homem outra nao pode ser sendo aquilo que faz com que a alma seja tal como a sua nature- za determina que seja, isto 6, boa e perfeita. E, segundo Sécrates, esse elemento 6 a “ciéncia” ou 0 “conhecimento”, ao passo que 0 VIRFUIE SS? CiSivcr, CONHECIMENTO , TNTRHIG. WiC =p 1EervoRANV CIA Intelectualismo ético 89 “vicio” seria a privagéio de ciéncia ou conhecimento, vale dizer, a “ignorancia”. Desse modo, Sécrates opera uma revoluc&o no tradicional quadro de valores. Os verdadeiros valores nao sao aqueles ligados gw as coisas exteriores, como a riqueza, 0 poder, a fama, e tampouco os ligados ao corpo, como a vida, 0 vigor, a satide fisica e a beleza, mas somente os valores da alma, que se resumem. todos, no “conhe- cimento”. Naturalmente, isso nao significa que todos os valores Yradicionais tornam-se desse modo “desvalores”; significa, sim- plesmente, que “em si mesmos, nao tém valor”. Eles sé se tornam valores ou nao se forem usados como o “conhecimento” exige, ou seja, em fungao da alma e de sua “areté”. Em resumo: riqueza, poder, fama, satide, beleza e semelhan- tes “(...) ao que me parece, por sua natureza, nao podem ser chamados bens em si mesmos. A proposig&o é outra: dirigidos pela ignorancia, revelam-se males maiores do que os seus contrarios, porque mais capazes de servir a m4 direcfio; se, no entanto, sio governados pelo juizo e pela ciéncia ou conhecimento, sao bens maiores; em si mesmos, nem uns nem outros tém valor”. Os paradoxos da ética socratica A tese socrética que apresentamos implicava duas conse- qiiéncias, que foram consideradas muito mais como “paradoxos”, mas que saéo_muito importantes e devem ser oportunamente clarificadasy virtude (cada uma e todas as virtudes, sabedoria, justiga, fortaleza, temperanga) é ciéncia (conhecimento) e o vicio (cada um e todos os vicios) é ignorancia’ inguém peca volun- tariamente: quem fazo mal, fa-lo porignorancia dobem. Essas duas wroposicées resumem tudo o que foi denominadofintelectualismo ETaaord enquanto reduzem o bem moral a um dado de co- nhecimento, de modo a considerar impossivel conhecero hem enao fazé-lo. O intelectualismo socratico influenciou todo o pensamento os gregos, a ponto de tornar-se quase um minimo denominador comum de todos os sistemas, seja na época classica, seja na época helenistica. Entretanto, malgrado o seu excesso, as duas proposi- gées enunciadas contém algumas instancias muito importantes. 1) Em primeiro lugar, cabe destacar a forte carga sintética da primeira proposicado. Com efeito, a opiniao corrente entre os gregos antes de Sécrates (inclusive a doé sofistas, que, no entanto, pre- tendiam ser“mestres da virtude”) considerava as diversas virtudes como uma pluralidade (uma coisa éa “justica”, outra a “santidade”, outra a “prudéncia”, outra a “temperanca”, outra a “sabedoria”), mas da qual nado sabiam captar 0 nexo essencial, ou seja, aquele algo 90 Sécrates que faz com que as diversas virtudes sejam uma unidade (algo que faca precisamente com que todas ecadauma delassej jam “virtudes”). ‘Além disso, todos viam as diversas virtudes como coisas fundadas nos hébitos, no costume e nas convengées aceitas pela sociedade. Socrates, no entanto, tenta submeter a vida humana e os seus valores ao dominio da razéo (assim como os naturalistas haviam tentado submeter o cosmos e suas manifestagdes ao dominio da raziio).E como, para ele, a propria natureza dohomeméasua alma, ouseja, arazAo, eas virtudes sao aquilo que aperfeicoae concretiza plenamenteanatureza do homem, ou seja, arazao, entao éevidente que as virtudes revelam-se como uma forma de ciéncia e de conhecimento, precisamente porque s&o a ciéncia eo conhecimento que aperfeigoam a alma e a razao, como ja dissemos. 2) Mais complexas sao as razes que estao na base do segundo paradoxo. Sécrates, porém, viu muito bem que o homem, por sua natureza, procura sempre 0 seu préprio bem e que, quando faz o mal, na realidade nao 0 faz porque se trate do mal, mas porque dai espera extrair um bem. Dizer que o mal é “nvoluntario” significa queohomemse enganaaoesperarum bem delee que, na realidade, estA cometendo um erro de cdlculo e, portanto, se enganando. Ou seja, em ultima andlise, é vitima de “ignorancia”. Ora, Sécrates tem perfeitamente razao quando diz que 0 conhecimento é condicdo necessaria para fazer o bem (porque, se nao conhecemos 0 bem, nao podemos fazé-lo), mas esta enganado ao considerar que, além de condigao necessdria, ela também é condicao suficiente. Em suma, Sécrates cai numa espécie de racionalismo. Com efeito, para fazer o bem também é necessario 0 concurso da “vontade”. Mas os filésofos gregos nao detiveram sua atengao na “vontade”, que se tornaria central e essencial na ética dos cristaos. Para Sécrates, em conclusao, é impossivel dizer “vejo e aprovo o melhor, mas no agir me atenho ao pior”, porque quem vé o melhor necessariamente também o faz. Conseqtientemente, para Socrates, como para quase todos os fildsofos gregos, o pecado se __ jeduz_a “erro de cdlculo”, a “erro de razdo”, precisamente a ignorancia” do verdadeiro bem. 1.5. A descoberta socratica do conceito de liberdade Amais significativa manifestagao da exceléncia da psyché ou razGo humana se dé naquilo que Sdcrates denominou “autodomi-_. nio” (enkrdteia), ou seja, do dominio de si mesmo nos estados de ee ace no ureir das DaiKees € ae prazer, dor e cansSaco, no urgir das palxdes ¢€ dos, impulsos: “Considerando o autodominio como a base da virtude, cada homem 0) deveria procurar ti Substancialmente, o autodominio significa Novo conceito de felicidade 91 domini n \deminio 01 aalma senhora do corpo e dos instintos ligados ao corpo. Conseqiientemente, pode-se compreender_perfeitamente que Sécrates tenha identificado expressamente dliberdadehumana com esse dominio da racionalidade sobre a ani, lade. Overdadeiro homem livre é6 0 inar os seus insti i 0 See otic. nao sabendodaminar seus ins ~__ Estreitamente ligado a esse conceito de autodominio e de liberdade encontra-se 0 conceito de “autarquia”, isto 6, de “auto- nomia”. Deus nao tem necessidade de nada. Eo sdbio 60 que mais se aproxima desse estado, sendo portanto o que procura ter necessidade apenas de muito pouco. Com efeito, para o sdbio que vence os instintos e elimina todas as coisas supérfluas, basta a raz4o para que viva feliz. Como foijustamente ressaltado, estamos aqui diante de nova concep¢ao diegeera> 0 her@i, tradicionalmente, era o que 6 capazde veneer todos os inimigos, os perigos, as adversidades eo cansaco externos. JA 0 novo heréié 0 que sabe vencer os inimigos interiores: “Somente o sabio, que esmagou os monstros selvagens das paixée: que se The agitam no peito, € verdadeiramente suficiente a”s mesmo: ele si i ivi e nao fem necessidade de nada” (W. Jaeger). io de sua racionalidade sobre a sua propria animalidade,| 1.6. O novo conceito de felicidade Precisamente a partir de Sécrates, a maior parte dos filésofos gregos passou a apresentar suas mensagens ao mundo como men- sagens de felicidade. E: ego, “felicidade” se diz “eudaim nia”, iginalmente, significava ter tido a_ sorte de possuir um. 10 ha a i na boa sorte e uma vida prospera e agrad4vel. Mas os pré-socraticos j4 haviam interiorizado esse conceito: Herdclito escrevia que “o carater moral 6 o verdadeiro deménio do homem” e que “a felicidade é bem diferente dos prazeres”, ao passo que Demécrito dizia que “nao se tem a felicidade nos bens exteriores” e que “a alma é a morada de nossa sorte”. Com base nas premissas. queilustramos, odiscurso de Sécrates aprofunda e fundamenta de modo sistematico precisamente esses conceitos. A felicidade nao pode vir das coisas exteriores, do corpo, mas somente da alma, porque esta e sé esta 6 a sua esséncia. Ea alma é feliz quando é ordenada, ou seja, virtuosa. Diz Sécrates: “Paramim, quem virtuoso, seja homem ou mulher, éfeliz-ad ASSO ue o.inj éi iz” Assim como a doenga ea dor fisica x 92 Sécrates sie desordem do corpo, a.satide $2 ama éordem da alma —e essa {ordem sepiritual ou harmonia interior 2 ee ior é a felicidade,| endo assim, segundo Sécrates, o homem virtuoso entendido nesse sentido “nao pode sofrer nenhum mal, nem na vida, nem na morte”. Nem na vida, porque os outros podem danificar-lhe os haveres ou 0 corpo, mas nao arruinar-lhe a harmonia interior e a ordem da alma. Nem na morte, porque, se existe um além, o virtuoso ser4 premiado; se nao existe, ele ja viveu bem no aquém, ao passo que o além 6 como um ser no nada. De qualquer forma, Séerates tinha a firme convicgao de que a virtude ja tem o seu prémio intrinsecamente, em si mesma, isto é, essencialmente: assim, vale a pena ser virtuoso, porque a propria virtude ja cons- titui um fim. E, sendo assim, para Sécrates, o homem pode ser feliz nesta vida, quaisquer sejam as circunstancias em que lhe cabe viver e qualquer seja a situac&o no além. O homem é 0 verdadeiro ia felicidade ou infelicidade. - artifice de sua prop: 1.7. A revolugao da “nao-violéncia” Muitissimo se discutiu sobre as razées que levaram a conde- nagio de Sécrates. Do ponto de vista juridico, esta claro que procediam os crimes que lhe foram imputados. Ele “nao acreditava nos deuses da cidade” porque acreditava num’ Deus superior e ‘corrompia os jovens” porque jhes ensinava essa _doutrina. En- 4retanto, depois de se ter defendido corajosamente no tribunal, tentando demonstrar que estava com a verdade, mas nao tendo conseguido convencer os juizes, aceitou a condenac&o e recusou-se a fugir do crcere, apesar de os amigos terem organizado tudo para a sua fuga. As suas motivagées eram exemplares: a fuga teria significado uma violagao do veredito e, portanto, viol&¢ao da lei. A ¥erdadeira arma de que o homem dispée é a sua razao e, portan a perswasdo. Sé, fazendo uso da raz&o, 0 homem nao consegue alcancar seus objetivos com a persuasao, entao deve se conformar, porque, como tal, a violéncia é uma coisa impia. Como Platao pie na boca de Sécrates: “Nao se deve desertar, nem retirar-se, nem abandonar o préprio posto, mas sim, na guerra, no tribunal e em qualquer lugar, é preciso fazer o que a patria e a cidade ordenam ou entdo persuadi-las em que consiste a justica, ao passo que fazer uso da violéncia é coisa impia”. E Xenofonte escreve: “Preferiu morrer, permanecendo fiel a leido que viver violando-a”. Ao dotar Atenas de leis,S roclamara em alta voz: “Nao quero valer-me da violéncia das tiranias”, mas sim dajustica. fum estudioso observou oportunamente o seguinte: ™Na Atica dos primeiros séculos, o fato de que nenhum homem em cujas m&os 0 destino pés o poder tenha deixado de exercé-lonema elerenunciado Teologia socrdtica 93 por amor Ajustica é algo que teve conseqliéncias incalculaveis para a vida juridica e politica da Grécia e da Europa’ (B. Snell). Mas a posi¢&o assumida por Sécrates foi ainda mais importante. Com ele, além de ser explicitamente teorizada, a concep¢ao da revolucdo da nao-violéncia foi demonstrada inclusive com sua propria morte, sendo desse modo transformada em “conquista para sempre”. ‘Ainda recentemente, Martin Luther King, o lider negro norte- americano da revolucao ndo-violenta, baseava-se nos principios socraticos, além de nos crist&os. 1.8. A teologia socratica E qual era a concepg&o de Deus que Sécrates ensinava, a ponto de oferecer a seus inimigos 0 pretexto para condena-lo a morte, j4 que era contraria aos “deuses em que a cidade acredi- tava”? Era a concep¢ao indiretamente preparada pelos filésofos naturalistas, culminando no pensamento de Anaxagoras e de Didgenes de Apolénia: o Deus-inteligéncia ordenadora. Sécrates, porém, desligou essa concep¢ao dos pressupostos préprios desses filésofos (sobretudo de Didégenes), “des-fisicizando-a” e deslocando- aparaum planoafastadoo mais possivel dos pressupostos proprios da “filosofia da natureza” anterior. Sobre esse tema, pouco sabemos através de Platao, ao passo que Xenofonte nos informa amplamente. His o raciocinio registrado nos Memorabilia, que constitui a primeira prova racional da exis- téncia de Deus que chegou até nds e que constituiria abase de todas as provas posteriores: a) Aquilo que nao é simples obra do acaso, sendo constituido para alcancar um objetivo e um fim, pressupoe uma inteligéncia que o produziu por razoes evidentes. Ademais, observando o homem, em especial, notamos que cadaume todos os seus 6rgaos estado constituidos de tal modo que nao podem ser ab- solutamente explicdveis como obra do acaso, mas apenas como obra deumainteligéncia que idealizou expressamente essa constituigao. b) Contra esse argumento, poder-se-ia objetar que, a0 contrario dos artifices terrenos, que podem ser vistos ao lado de suas obras, essa Inteligéncia ndo pode ser vista. Mas Sdcrates observa que essa objecdo nao procede, porque a nossa alma (= inteligéncia) também n&o pode ser vista e, mesmo assim, ninguém ousa afirmar que, pelo fato de a alma (=inteligéncia) nao ser vista, também nfo existe e que nés fazemos por acaso tudo o que fazemos. c) Por fim, segundo Sécrates, é possivel estabelecer, com base nos privilégios que o homem tem em relacdo a todos os outros seres (como, por exemplo, a estrutura fisica mais perfeita e, sobretudo, a posse de alma e de inteligéncia), que o artifice divino cuidou do homem de modo inteiramente particular. 94 Sdcrates Como se vé, o argumento gira em torno deste niicleo central: 0 mundo e o homem sao constituidos de tal modo (ordem, finali- dade) que sé uma causa adequada (ordenadora, finalizante e, portanto, inteligente) pode explic4-los. E, com sua ironia, Sécrates lembrava aqueles que rejeitavam esse raciocinio que nés possui- mosuma parte de todos os elementos que estado presentesem gran- des massas no universo, coisa que ninguém ousa negar: como entao poderiamos pretender que nds, homens, nos assenhoreds- semos de toda a inteligéncia que existe, ndo podendo haver ne- nhuma outra inteligéncia fora de nés? E evidente a incongruéncia légica dessa pretensao. O Deus de Socrates, portanto,éa inteligéncia, que conhece todas as coisas sem excecdo e 6 atividade ordenadora e provi- déncia. E providéncia, porém, que se ocupa com o mundo e os homens em geral, como também dohomem virtuoso em particular (para a mentalidade antiga, o semelhante tem comunhao com o semelhante, razao pela qual Deus tem comunhao estruturalcom 0 bom), mas nao com o homem individualmente enquanto tal (a menos que se trate de homem mau). Somente no pensamento cristaéo é que surgiria uma providéncia que se ocupa com 0 individuo enquanto tal. 19. O “daimonion” socratico Entre as acusagées contra Sécrates estava também a de que era culpado “de introduzir novos daiménia”, novas entidades divinas. Em sua Apologia, Sécrates diz o seguinte a propésito da questao: “A razao (...) 6 aquela que muitas vezes e em diversas circunstancias ouvistes dizer, ou seja, que em mim se verifica algo de divino e demoniaco, precisamente aquilo que Melito (o acusa- dor), jocosamente, escreveu no seu ato de acusac4o: é como voz que se faz ouvir dentro de mim desde quando era meninoe que, quando se faz ouvir, sempre me detém de fazer 0 que estou a ponto de fazer, mas que nunca me exorta a fazer.” Portanto, o daimonion socra- tico era “voz divina” que lhe vetava determinadas coisas: ele o in- terpretava como uma espécie de sortilégio, que o salvou varias vezes dos perigos ou de experiéncias negativas. Os estudiosos ficaram muito perplexo diante desse daimo- nion. E as exegeses que dele foram propostas sao as mais dis- pares. Alguns pensaram que Sécrates ironizasse, outros falaram de voz da consciéncia, outros do sentimento que perpassa o génio. E até poder-se-ia incomodar a psiquiatria para entender a “voz divina” como fato patolégico ou entaéo chamar & cena as categorias da psicandlise. Todavia é claro que, assim fazendo, caimos no arbitrio. Teologia socratica 95 . Se quisermos nos limitar aos fatos, devemos raciocinar como segue, Em primeiro lugar, deve-se destacar que o daimonion nao tem nada a ver com o campo das verdades filoséficas. Com efeito, a “voz divina” interior nao revela absolutamente a Sécrates a “sabedoria humana” de que ele é portador, nem qualquer das propostas gerais ou particulares de sua ética. Para Sécrates, os prinefpios filoséficos extraem sua validade do logos e nao da re- velacdo divina. Em segundolugar, Sécrates néo relacionou com odaimonion nem mesmo a sua opcao moral de fundo, que, no entanto, conside- ra provir de ordem divina: “Cabe-me fazer isto (fazer filosofia e exortar os homens a cuidarem da alma) porque fui ordenado por Deus, com vaticinios e sonhos, em suma, com qualquer daqueles modos pelos quais a sorte divina ordena, por vezes, o homem a fazer alguma coisa.” Ja 0 daimonion nao lhe “ordenava”, mas lhe “vetava”. Excluidos os campos da filosofia e da opgdio ética de fundo, resta apenas o campo dos eventos e agées particulares. E é exatamente a esse campo que se referem todos os textos A disposicao sobre o daimonion socratico. Trata-se, portanto, de fato que diz respeito ao individuo Sdcrates e aos acontecimentos particulares de sua existéncia: era “sinal” que, como dissemos, 0 impedia de fazer coisas particulares que lhe teriam acarretado prejuizos. A coisa da qual o afastou mais firmemente foi a par- ticipacao ativa na vida politica, sobre o que ele diz: “Vés 0 sabeis bem, atenienses, que, se ha tempos eu me houvesse metido a ocupar-me dos negécios do Estado (coisa da qual o deménio me afasta), hé tempos eujé estaria morto e nao teria feito nadade Util, nem para vés nem para mim.” Em suma, 0 daimonion é algo que diz respeito & excepcional personalidade de Sécrates, devendo ser colocado no mesmo plano de certos momentos de concentragéo muito intensa, bastante proximos aos arrebatamentos de éxtase em que Sécrates mergu- lhava algumas vezes e que duravam longamente, coisa da qual nossas fontes falam expressamente. Portanto, 0 daimonion nao deve ser relacionado com o pensamento ea filosofia de Sécrates: ele proprio manteve as duas coisas distintas e separadas —e o mesmo deve fazer o intérprete. 1.10. O método dialético de Sécrates e sua finalidade O método ea dialética de Socrates também esto ligadosa sua descoberta da esséncia do homem como psyché, porque tendem de modo consciente a despojar a alma da ilusdo do saber, curando-a 96 Sécrates dessa maneira a fim de tornd-la id6nea a receber a verdade. Assim, as finalidades do método socratico sao fundamentalmente de na- tureza ética e educativa e apenas secundaria e mediatamente de natureza légica e gnosiolégica. Em suma: dialogar com Sécrates levava a “exame da alma” e a prestag&o de contas da propria vida, ou seja, a “exame moral”, como bem destacavam seus contem- poraneos. E como podemos ler em testemunho platénico: “Quem quer que esteja proximo a Sécrates e, em contato com ele, ponha- se a raciocinar, qualquer seja o assunto tratado, é arrastado pelas espirais do discurso e inevitavelmente forgado a seguir adiante, até ver-se prestando contas de si mesmo, dizendo inclusive de que modo vive e de que modo viveu. E, uma vez que se viu assim, Sécrates nao mais 0 deixa.” E precisamente a esse “prestar contas da propria vida”, que era o fim especifico do método dialético, é que Sécrates atribui a verdadeira razo que lhe custou a vida: para muitos, calar Sécrates através da morte significava libertar-se de ter que “desnudar a propria alma”. Mas o processo posto em movimento por Sécrates ja se havia tornado irreversivel. E a supressio fisica de sua pessoa nao podia mais, de modo algum, deter esse processo. A tal ponto que Plat&o chegou a porna boca de Sécrates esta profecia: “(...) Eu digo, cidad&os que me haveis matado, que uma vinganga recaira sobre vés, logo depois de minha morte, bem mais grave do que aquela pela qual vos vingastes de mim, matando-me. Hoje, vés fizestes issona esperanga de que vos tereis libertado de ter que prestar contas de vossa vida. No entanto, vos aconteceré inteiramente o contrario: eu vé-lo predigo. Nao serei mais somente eu, mas muitos a vos pedir contas: todos aqueles a quem até hoje eu detinha e vés nado percebieis. E serao tanto mais obstinados quanto mais jovens sao — e tanto mais vés vos indignardes. Pois se, matando homens, pensais impedir que alguém mostre a vergonha de vosso viver erréneo, no pensais bem. Nao, nao é esse o modo de libertar-vos dessas pessoas, nao é absolutamente possivel e nem belo. Mas ha outro modo, belissimo e muito facil: no cortar a palavra alheia, e sim, muito mais, trabalhar para ser sempre mais virtuoso e melhor.” E agora, que estabelecemos a finalidade do “método” socra- tico, devemos identificar a sua estrutura. A dialética de Sécrates coincide com o seu préprio dialogar (dia-logos), que consta de dois momentos essenciais: a “refutagdo” ea “maiéutica”. Ao fazé-lo, Sécrates valia-se da mascara do “nao saber” e da temida arma da “ironia”. Cada um desses pontos deve ser compreendido adequadamente. A douta ignorancia 97 1.11. O “n&o saber socratico” Os sofistas mais famosos punham-se em relag&o aos ouvintes na soberba atitude de quem sabe tudo. Séerates, ao contrario, punha-se diante dos interlocutores na atitude de quem no sabe, tendo tudo para aprender. Porém muitos equivocos foram cometidos em relacdo a esse “nao saber” socratico, a ponto de se ver neleo inicio do ceticismo. Na realidade, ele pretendia ser uma afirmagao de ruptura: a) em relagao ao saber dos naturalistas, que se havia revelado b)em relagao ao saber dos sofistas, que logo se havia revelado mera presun¢ao; c) em relacao ao saber dos politicos e dos cultores das varias artes, que quase sempre se revelava inconsistente e acritico. Mas nao é sé isso: 0 significado da afirmagao do n&o-saber socratico pode ser calibrado mais exatamente se, além de relaciond-lo com 0 saber dos homens, o relacionarmos também com o saber de Deus. Como veremos, para Sécrates Deus é onisciente, estendendo-se 0 seu conhecimento do universo ao homem, sem qualquer espécie de restrigdo. Ora, é precisamente quando comparado com a estatura desse saber divino que o saber humano mostra-se em toda a sua fragilidade e pequenez. E, nessa ética, nao apenas aquele saber ilus6rio de que falamos, mas tambéma propria sabedoria humana socrdtica revela-se um ndo-saber. Ademais, na Apologia, inter- pretando a sentenga do Oraculo de Delfos, segundo a qual ninguém era mais sdbio do que Sdcrates, o préprio Sécrates explicita esse conceito: “Unicamente Deus é sdbio. E é isso 0 que ele quer significar em seu ordculo: que a sabedoria do homem pouco ounada vale. Considerando Sécrates como sabio, creio eu, nao quer se referir propriamente a mim, Sécrates, mas somente usar 0 meu nome como um exemplo. H quase como se houvesse querido dizer assim: ‘Homens, é sapientissimo dentre vés aquele que, como Socrates, tiver reconhecido que, na verdade, a sua sabedoria nao tem valor.’” A contraposic&o entre “saber divino” e “saber humano” era uma das antiteses muito caras a toda a sabedoria proveniente da Grécia — que, portanto, Sécrates volta a reafirmar. Por fim, deve-se destacar 0 poderoso efeito irdnico de benéfico abalo que o principio do nao-saber provocava nas relagées com o interlocutor: acarretava o atrito do qual brotava a centelha do didlogo. 1.12. A ironia socratica Aironia é a caracteristica peculiar da dialética socratica, nao apenas do ponto de vista formal, mas também do ponto de vista substancial. Em geral, ironia significa “simulag&o”. Em nosso caso \ 98 Sécrates especifico, indica 0 jogo brincalhao, altiplo e variado das ficgses e dos estratagemas realizados por Sécrates para levar 0 interlocu- tor a dar conta de si mesmo. Como escreveu um refinado estudioso, “nessa brincadeira, Sécrates transforma em palavras ou fatos um. disfarce, mostrando ser um grande amigo do interlocutor, admirar sua capacidade e seus méritos, pedir-lhe conselho ouensinamentos e assim por diante. Mas, ao mesmo tempo, tem 0 cuidado de fazer com que a fungao seja transparente para quem observa mais a fundo” (H. Maier). Em suma: a brincadeira esta sempre em funcao de um objetivo sério e, portanto, é sempre metédica. Note-se que, as vezes, em suas simulagées irénicas, Sécrates fingia até mesmo acolher como préprios os métodos do interlocutor, especialmente quando era homem de cultura, particularmente fildsofo, e brincava de engrandecé-los até o limite da caricatura, para derrub4-los com amesma légica que lhes era prépriae amarra- Jos na contradicao. Mas, por debaixo das varias mascaras que Sécrates assumia seguidamente, eram sempre visiveis os tragos da mascara essen- cial, a do n&o-saber e da ignorancia, de que falamos: pode-se até dizer que, no fundo, as mascaras policromaticas da ironia socratica eram variantes da m4scara principal, as quais, com um habil e multiforme jogo de dissolvéncias, no fim das contas sempre reve- lavam a principal. Mas ainda restam por esclarecer os dois momentos da “refu- tagiio” e da “maiéutica”, que sao os momentos constitutivos estru- turais da dialética. 1.13. A “refutagao” e a “maiéutica” socraticas A “refutagao” (élenchos), em certo sentido, constituia a pars destruens do método, ou seja, o momento em que Sécrates levava 0 interlocutor a reconhecer a sua propria ignorancia. Primeiro, ele forcava uma definic&éo do assunto sobre o qual centrava-se a investigacdo; depois, escavava de varios modos a definigao forne- cida, explicitava e destacava as caréncias e contradicdes que im- plicava; ento, exortava o interlocutor a tentar uma nova definicao, criticando-a e refutando-a com o mesmo procedimento; e assim continuava procedendo, até 0 momento em que 0 interlocutor se declarava ignorante. E evidente que a discussao provocava irritagdo ou reagdes ainda piores nos sabichdes e nos mediocres. Mas, nos melhores, a refutacdo provocava 0 efeito de purificacdo das falsas certezas, ou seja, 0 efeito de purificacéo da ignorancia, a tal ponto que Platao podia escrever a esse respeito: “(...) Por todas essas coisas, (...) devemos afirmar que a refutacao 6 a maior e mais fundamental A douta ignorancia 99 purificacdo. E quem nao foi por ela beneficiado, mesmo tratando- se do Grande Rei, nao pode ser pensado senao como impuro das mais graves impurezas, privado de educacio e até mesmo feio, precisamente naquelas coisas em relag&o as quais conviria que fosse purificado e belo no maximo grau alguém que verdadeira- mente quisesse ser homem feliz.” E, assim, passamosao segundo momento do método dialético. Pa: a s6 pode al Si er gravida’. Com efeito, como vimos, ele se professava ignorante e, portanto, negava firmemente estar em condigdes de transmitir saber aos outros ou, pelo menos, saber constituido por determina- dos contetidos. Mas, da mesma forma que a mulher que esta gravida no corpo tem necessidade da parteira para dar & luz, também o discipulo que tem a alma gravida de verdade tem necessidade de uma espécie de arte obstétrica espiritual que j 2 verdade a vir a luz — e nisso consiste exatamente aGnaiéutica” socratica. Eis a estupenda pagina em que Platdo descreve a maiéutica: “Ora, em todo o resto, a minha arte obstétrica se assemelha & das parteiras,mas difere em uma coisa: ela opera nos homens en&onas qnulheres e assiste as almas parturientes e nao os corpos. Eminha maior capacidade é que, através dela, ew consigo discernir segura- mente se a alma do jovem esta parindo fantasmas e mentiras ou alguma coisa vital e real. Pois algo eu tenho em comum com as parteiras: também eu sou estéril (...) de sabedoria. E a reprovagao que tantos ja me fizeram, segundo & qual eu interrogo os outros, mas, eu proprio, nunca manifestomeu pensamentosobrenenhuma questao, ignorante que sou, é reprovacao muito verdadeira. E a razao 6 exatamente esta: Deus me leva a agir como obstetra, mas me interdita de gerar. Em mim mesmo, portanto, eu n&o sou nada sdbio, nem de mim saiu qualquer descoberta sabia que seja geracao de minha alma. Entretanto, todos os que gostam de estar comigo, embora alguns deles paregam jnicialmente de todo ignorantes, mais tarde, continuandoa freqtientar minha companhia, desde que Deus lhes permita, todos eles extraem disso extraordinério proveito, como eles préprios e os outros podem ver. E esta claro que nao aprenderam nada de mim, mas sé de si mesmos encontraram e geraram muitas e belas coisas. Mas 0 fato de té-los ajudado a gerar, esse mérito sim cabe a Deus e a mim.” 42, Filosofia do Direito + Mascaro é racional. O justo e 0 juridico nao so objeto das velhas tradicdes. Inclusive, ao quebrar em seus adversdrios de didlogo suas antigas conviccdes, nada mais faz Socrates do que abalar os velhos entendimentos sobre o direito. Mas, de outro lado, Sdcrates também no resvala pelo carater meramente convencional da lei e da justica. Nos didlogos de Plato, Sécrates persiste em con- siderar que 0 justo ndo é uma imposigao de alguns contra outros, nem da maio- ria, nem do mais forte. Portanto, a democracia, s6 pelo simples ato de vontade da maioria, néo faz a boa lei nem faz. 0 justo. A busca de Sécrates é a de extrair 0 conceito do justo por meio da razdo. O direito em Sécrates De dois modos se pode alcangar 0 pensamento juridico de Sécrates. Pelas suas ideias, em alguns dos didlogos propostos especialmente por Platao, ¢ pela sua pro- pria histéria pessoal de vida, na medida em que foi condenado pelos atenienses, defendeu-se por conta propria e, condenado, nao fugiu nem comutou sua pena com multas. Por isso, sua execucdo também langa reflexdes sobre sua propria perspectiva de filosofia do direito. No que diz respeito & vida de Sécrates, hd muitos relatos tratando de even- tuais assuntos juridicos e de falas sobre 0 justo. O mais importante bidgrafo da filosofia antiga, Didgenes Laércio, assim se reporta a Sécrates: Frequentemente sua conversa nessas indagacées tendia para a veeméncia, e entao seus interlocutores golpeavam-no com os punhos ou lhe arranca- yam os cabelos; na maior parte dos casos Sécrates era desprezado e ridicu- larizado, mas tolerava todos esses abusos pacientemente. Incidentes desse tipo chegaram a tal ponto que certa vez, suportando com a calma habitual os pontapés que recebera de alguém, a uma pessoa que manifestou admi- racio por sua atitude o fildsofo respondeu: “Se eu recebesse coices de um asno levé-lo-ia por acaso aos tribunais?” [...] Quando sua mulher lhe dis- se: “Morrerds injustamente”, 0 fildsofo retrucou: “Querias que eu morresse justamente?” [...] Pouco antes de Sécrates beber a cicuta Apolédoros ofe- receu-lhe um belo manto, para vesti-lo na hora da morte. “Por que”, disse ele, “meu préprio manto foi bastante bom para ser usado em vida, mas nao na morte?” Aalguém que falou: “Nao achas que tal pessoa te injuria?” Sécrates respondeu: “Nao, pois essas coisas nado me atingem”.?* Amais importante fonte a respeito do pensamento de Sdcrates sobre 0 direito e o justo esta em Platao. Em alguns de seus didlogos, Platao se dedica especialmente 2 Laanaos, Didgenes. Vidas e doutrinas dos fldsofos ilustres. Brasilia, Ed. UnB, 1987, p. 53 ¢ 56.

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