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O dinheiro na cultura moderna* Se a sociologia quisesse trazer a uma formula a oposig’o da época modema, especialmente emcomparacio coma Idade Média, poderia tent-lo da seguinte maneira: na Idade Média, 0 homem encontrava-se em uma relacio de afiliagdo com uma comunidade ou uma propriedade mural, com uma associaco feudal ou uma comporacio; sua personalidade estava imiscuida em cisculos de interesses objetivos ou sociais, e o carter destes ultimos era formado pelas pessoas que os constituiam de maneira imediata. Essa uniformidade foi destruida pela época modema. Por um, lado, ela deixou a personalidade a cargo de si mesma e concedeu-lhe uma incomparivel liberdade de movimento, intema e extema. Por outro lado, conferiu aos contetidos priticos da vida uma objetividade igualmente incomparavel. Na téenica, nas omganizacées de todo tipo, nos negécios e nas profissbes, impde-se cada vez mais 0 dominio das proprias leis das coisas e liberta-se das nuances de personalidades pasticulares — assim como a nossa imagem da natureza perde cada vez mais os tragos humanos em favor de uma legalidade objetiva. Assim, a época modema tomou sujeito objeto mutuamente independentes, de modo que cada um pudesse realizar seu proprio desenvolvimento da maneira mais pura e completa. Como ambos os lados desse processo de diferenciagio foram afetados pela economia monetria é 0 que desejamos apresentar aqui. Até 0 auge da Idade Média, a relago entre a personalidade e suas propriedades emerge na historia alema em duas formas caracteristicas. Nos tempos mais remotos a posse da terra apresenta-se como uma competéncia da personalidade como tal, que emana da afiliago individual pessoal para sua comunidade de mercado. Ja no século x, essa forma pessoal de posse desaparece, e todo direito pessoal toma-se dependente da posse de terras. No entanto, em ambas as formas conserva-se uma estreita ligagdo local entre a pessoa e a propriedade. Por exemplo, na cooperativa daqueles que pertenciam a uma comunidade rural, que exigia 0 arrendamento de uma propriedade inteira para aceitar alguém como membro pleno, aquele que possuia um terreno fora da ascociaco rural, 4 qual pertencia com a sua pessoa, eta considerado desprovido de terra. Inversamente, aquele que possuia uma propriedade no interior da comunidade territorial, mas sem pertencer a ela pessoalmente (homens livres, cidadios urbanos, comporagdes etc., era constrangido a requisitar um representante, que prestava pessoalmente tributos a0 proprietario da terra e assumia direitos e deveres de membro da propriedade mural. Essa conexio entre personalidade e relagdes coisais, caracteristica das épocas de economia natural, foi dissolvida pela economia monetaria. A cada instante esta Ultima interpée entre a pessoa e a coisa particularmente qualifcada a instincia completamente objetiva, sem qualidade inerente, do dinheiro e do valor monetério. Ela institui uma dist’ncia entre pessoa e posse, tomando a relacio entre ambas mediada, Com isso, ela diferenciou a antiga estreita afinidade dos elementos pessoais e locais de tal modo que hoje posso receber em Berlim minhas rendas provenientes de ferrovias americanas, hipotecas norueguesas e minas de ouro africanas. Essa forma de posse a longa distancia, que hoje admitimos como evidente, s6 se tomou possivel quando 0 dinheiro se impés entre posse e proprietario, separando-os e unindo-os. Desse modo, 0 dinheiro confere, por um lado, uma impessoalidade, anteriormente desconhecida a todas as agdes econdmicas, e por outro lado uma crescente autonomia e independéncia da pessoa. A relaco entre personalidade ¢ comunidade também se desenvolveu de modo semelhante Aguele da propriedade. A cozpora¢do medieval engloba 0 hhomem por inteiro; uma corporaco de teceldes nao era uma mera associagao de individuos, restrita a tratar dos interesses da confecgio de tecidos, mas uma comunidade de vida, no sentido profissional, social, religioso, politico e muitos outros. Mesmo que a associagdo medieval tenha tido a intenco de agmupar interesses objetivos, ela existia diretamente em seus membros; estes eram absorvidos por ela e privados de direitos. Contrariamente a essa forma de unidade, a economia monetéria posmibilitou imimeras associagdes que demandavam de seus membros apenas colaboracdes em dinheiro, ou estavam direcionadas para um mero interesse monetario. Desse modo, por um lado, possibilita-se a objetividade pura nas atividades da associac0, 0 seu carter puramente ténico, 0 seu desembaraco de tendéncias pessoais; por outro lado, liberta 0 sujeito de lacos restritivos, dado que agora ele est ligado a0 todo no mais como pessoa por inteiro, mas principalmente por meio de doagio € recebimento de dinheiro. Desde que o interesse do participante singular, direta ou indiretamente, possa ser expresso em dinheizo, ele se insere como uma camada isolante entre 0 todo objetivo da associagio € 0 todo subjetivo da personalidade — assim como entre a propriedade e 0 proprietrio —, concedendo a ambos uma nova autonomia reciproca e uma possibilidade de desdobramento. O auge desse desenvolvimento é apresentado pela sociedade de ages, cuja atividade se desenvolve de modo totalmente objetivo e sem sofrer influéncias do acionista individual, este, por seu tumo, nao faz parte da associa¢o com sua pessoa, mas apenas comuma soma de dinheiro. Aquele carter impessoal e incolor préprio ao dinheiro, em relago a todos os outros valores especificos, tem de se expandir continuamente ao longo do desenvolvimento da cultura, na medida em que o dinheiro passa a equivaler cada vez mais a coisas mais variadas; por meio dessa auséncia de cariter especifico, realizou servigos imensuriveis. Dessa maneira possibilitou-se 0 estabelecimento de uma afinidade da ago de tais individuos e grupos que ressalta acentuadamente sua separagio e distancia maituas em todos os outros pontos. Assim, configura-se uma linha totalmente nova 4 qual novos contetidos da vida podem ser associados. Gostaria de apresentar dois exemplos que parecem assinalar bem a sutileza da fronteira — possibilitada pelo dinheiro — entre a unio de interesses, por um lado, ¢ sua separagio, por outro lado. Depois de 1848, formaram- se, na Franga, sindicatos de associagdes de trabalhadores de profisses do mesmo tipo, de modo que cada associag%io contribuia para um tinico fundo sindical, instituindo-se assim um caixa comum indivisivel. Aquele fundo era dedicado sobretudo as compras em atacado, 4 concessio de créditos etc. Mas a finalidade desses sindicatos niio residia na uniiio de todas as associagdes em uma tinica associagio, pois cada uma delas deveria conservar sua onganizacio especifica. Esse caso € muito significativo, dado que nessa época os trabalhadores estavam tomados de uma verdadeira paixio por formar associagdes. Assim, se eles rejeitaram expressamente uma fusio tio légica, € Porque devem ter tido motivos especialmente fortes para essa restri¢Zo muitua. Mas, a0 mesmo tempo, encontraram uma oportunidade de utilizar a unidade de seus interesses, refoxgando-os por meio da posse conjunta de dinheiro. E mais, 0 sucesso da associa¢o Gustav-Adolph, aquela grande comunidade de apoio a comunidades protestantes oprimidas, teria sido impossivel se 0 carter objetivo das colaboragdes em dinheiro nao tivesse obliterado as diferengas confessionais dos contribuintes. Na medida em que o dinheiro petmitiu a realizaco dessa obra conjunta de luteranos, reformados e unitdrios — que nio teriam se unido segundo nenhum outro motivo —, serviti como um cimento ideal, fortalecendo 0 sentimento de unio entre todos. Pode-se enfim dizer que a associagio de trabalhadores, com seu sucesso colossal — um tipo de organizagio praticamente desc onhecido na Idade Média, que une, por assim dizer, os aspectos impessoais do individu para a realizaclo de uma ago —, tomou-se possivel apenas em vittude do dinheiro. O dinheiro ofereceu-nos uma oportunidade tinica de unio, que elimina todo pessoal e especifico — uma foxma de unio que, hoje em dia, nos é totalmente evidente, mas que apresenta uma das transformagGes ¢ desenvolvimentos mais importantes da cultura. Quem lamenta 0 efeito separador e alienador das transagées monetérias no deve esquecer 0 seguinte: devido & necessidade da troca de dinheiro ¢, para isso, da delimitac%io de valores concretos ¢ definitivos, o dinheiro estabelece uma ligacSo extremamente forte entre 0s membros de um mesmo circulo econémico. Precisamente pelo fato de 0 dinheiro no poder ser consumido de imediato, ele aponta para outros individuos, dos quais se pode obter 0 que se deseja consumir. Desse modo, 0 homem modemo depende de um mtimero incomparavelmente maior de abastecedores e fomecedores, se comparado ao antigo homem livre germinico ou, posteriormente, ao servo; sta existéncia depende, a cada momento, de uma rede de ligacdes forjada por centenas de interesses monetirios, sem os quais ele também nfo poderia continuar existindo, assim como um membro de um ser o1gdnico nao pode existir se desligado da circulagio de sua seiva vital. Foi sobretudo nossa divisio do trabalho — que, no estigio de troca natural, evidentemente no péde se desenvolver acima de suas modestas tentativas iniciais — que resultou no emaranhado ¢ na unificagio da vida modema. Como medir os valores dos produtos individuais entre si se ainda nfo hd um padrio de medida comum para coisas ¢ qualidades mais distintas? Como realizar a troca de modo ficil e répido se no hd ainda um meio de toca que possa compensar todas as diferencas, que possa se converter em todo produto, e vice-versa? Na medida em que 0 dinheiro possibilita a divisio da producdo, ele une os homens de maneira irresistivel, pois agora um trabalha para 0 outro; somente 0 trabalho de todos estabelece a extensa unidade econémica que complementa 0 desempenho parcial do individuo.! Assim, 0 dinheiro é aquele que estabelece muito mais articulagdes entre os homens se comparado As das associac6es feudais ou da unio arbitriria, louvadas pelos rominticos da associagio. Por fim, o dinheiro criou um nivel comum de interesses to abrangente para todos os homens como nunca foi possivel nas épocas da economia natural. © dinheiro proporcionow uma base de compreensio muitua imediata, uma igualdade de diretrizes, 0 que contribuiu de maneira decisiva para a representagio do wniversalmente bumano, que, desde o século pasado, desempenhou um grande papel na histéria da cultura e na historia social — de maneira similar ao que ocorreu quando a cultura do Império Romano se deixou impregnar pela economia monetatia. Assim como 0 dinheiro — e isso deriva do que foi dito anteriormente — estabeleceu uma proposeio totalmente nova entre liberdade e vinculo, da mesma forma a enfatizada estreiteza ¢ a inevitabilidade da integragio por ele provocadas tém como consequéncias peculiares a ampla abertura de espaco para a individualidade e o sentimento de independéncia interior. O homem daquelas épocas econémicas anteriores encontrava-se em uma relagio de pouca dependéncia com outros homens, mas esses poucos foram e petmaneceram individualmente determinados. Enquanto hoje em dia certamente nos encontramos muito dependentes de fomecedores especificos, frequente arbitrariamente permutamos os individuos com os quais interagimos. B exatamente uma relag3o como essa que engendra um forte individualismo, pois 0 que aliena os homens e faz com que se recolham em si mesma niio é seu isolamento diante dos outros; mas, pelo contrario, sio a anonimidade dos outros, a indiferenca diante de sua individualidade e a falta de interesse pelo que eles realmente sio. Ao contririo das épocas em que toda relagdo exterior com outros carregava simultaneamente um carter pessoal, conforme nossa caracterizacio da época modema, a natureza do dinheiro permitiu uma clara distingao entre a ago econémica objetiva do homem e sua coloracio individual, seu verdadeiro eu, que agora se afasta daquelas relages e, dessa forma, pode se retirar para suas camadas mais intimas. As cozrentes da cultura modema deséguam em duas diregdes aparentemente contrérias: por um lado, na nivelacdo, na compensacio, no estabelecumento de cizculos sociais cada vez mais abrangentes, por meio da articulago com o mais remoto sob condigées iguais; e, por outro lado, por meio da elaboragio do mais individual, na independéncia da pessoa, na autonomia de sua formacio. B ambas as diregdes so carregadas pela economia monetaria, que possibilita, por um lado, um interesce geral unifoume e meios de conexio e comunicacio eficazes or toda parte; por outro lado, proposciona 4 personalidade uma crescente reserva, individualizacio ¢ liberdade. Esta ultima consequéncia carece ainda de uma prova. A expressividade e a postibilidade de redengio das realizac6es por meio do dinheiro foram desde sempre percebidas como instrumento e suposte da liberdade pessoal. Assim, 0 direito romano clissico decidia se aquele que estava obrigado a um servico especifico poderia se recusar a faz8-lo por meio de seu cumprimento natural, e insistir, mesmo contra a vontade dos credores, em substituir esse servigo por pagamento em dinheiro. Dai resultou a garantia da possibilidade de desobrigagio de todos os deveres pessoais por meio do dinheiros tendo isso em vista, essa lei passou a ser denominada a magna carta da liberdade pessoalna drea do direito privado. Da mesma maneira, realizou-se muitas vezes a libertago dos servos: os artesios dependentes de uma casa senhorial medieval, por exemplo, conseguiram a liberdade percorrendo frequentemente um caminho que, primeizo, limitava seus servigos, para depois fixé-los e finalmente converté-los em um tributo monetario. Isso representou um forte avanco 3 liberdade; os condados ingleses, a partir do século sili, puderam substituir 0 dever de adquirir soldados e trabalhadores por meio de pagamentos em dinheiro. Da mesma maneira, encontrava-se entre os decretos mais importantes de Joseph i, dedicados 4 introdugdo da emancipacio dos camponeses, um decreto que permitia, ¢ até prescrevia, que seus deveres e tributos naturais fossem pagos em dinheiro. A substituigio da realizagio pessoal pelo pagamento em dinheizo isenta imediatamente a personalidade das algemas especificas impostas pela obrigaco de trabalho: o outro no pode mais reivindicar a atividade pessoal direta, mas apenas o resultado impessoal dessa atividade. No pagamento em dinheiro, a personalidade nao se dé mais a simesma, mas oferece algo totalmente desvinculado de qualquer relago interna com o individuo. ‘Mas exatamente por esses motivos a substituigdo de uma realizacio por dinheiro pode ter também um carder degradante. A privagio de direitos dos aliados de Atenas comegou com a substituigio dos tributos anteriores em navios e tripulagdo por pagamentos em dinheizos essa aparente libertaco de sua obrigagdo puramente pessoal envolveu, porém, a rentincia a uma atividade politica propria ea importancia que 6 pode ser reivindicada para a realizacio de um servigo especifico, para o desenvolvimento de foras concretas. Isso € com muita frequéncia negligenciado em uma economia em ascensdo: que nos deveres, dos quais nos livramos pela compra, hé ainda direitos e significaces menos perceptiveis, que também si abandonados. Assim como nesce caso, em que uma duplicidade de consequéncias resulta da doago em dinheiro, 0 mesmo também pode ser observado na recepeio de dinheiro, na venda. Por um lado, sente-se a conversio de uma posse em dinheizo como uma libertacdo. Por meio do dinheiro pode-se conceder a0 valor do objeto qualquer forma desejada, 20 passo que, antes, este se encontrava preso a uma forma definida; com dinheiro no bolso, estamos livres, enquanto antes 0 objeto nos fazia dependentes das condigées de sua conservagio e futifiagio. Mas quio frequentemente essa liberdade significa, ao mesmo tempo, uma auséncia de contetido da vida e um afrouxamento de sua substancia! Por isso, a mesma legislagio do século precedente — aquela que permnitia a substituicdo dos servicos de camponeses por dinheiro — proibiu ento 3s camadas dominantes fosgar os camponeses a essa substituigao. Parecia, certamente, que no era cometida nenhuma injustica contra 0 camponés se o senhor comprasse dele, por um prego justo, os seus direitos & terra (para afasté-lo do ternitério da propriedade}; a terra, no entanto, significava para o camponés muito mais do que seu mero valor de posse; era a possibilidade de uma atividade itil, um centro de interesses, uma orientagio do contetido de vida, a qual ele perdia no momento em que trocava a terra por dinheiro. Os frequentes pagamentos dos camponeses no século precedente certamente lhes concedia uma liberdade momentanea, mas tirava-lhes 0 umpagavel, aquilo que dava liberdade 0 seu valor: 0 objeto fundamental da atividade pessoal. Esse é, por sua vez, o elemento critico de uma cultura orientada para 0 dinheiro, como aquelas de Atenas e de Roma tardias, ou do mundo modemo. Pelo fato de cada vez mais coisas poderem ser compradas com dinheiro, akancadas por meio do dinheiro, apresentando-se este, em consequéncia, como polo imével na fugacidade das aparéncias, negligencia-se, muito frequentemente, que os objetos das transages econémicas tém ainda aspectos nao exprimiveis em dinheiros acredita-ce, muito facilmente, que se possui no valor em dinheiro 0 equivalente exato e total do objeto. Aqui reside um motivo profundo para 0 cardter problematic, para a inquietagdo e 0 descontentamento de nosso tempo. O lado qualitativo dos objetos perde sua énfase psicolégica por causa da economia monetéria; a continua estimativa requerida segundo valores em, dinheiro faz com que este pareca ser 0 tino valor vigente, Cada vez mais depressa se passa decapercebidamente pelo significado especifico © economicamente inexprimivel das coisas; ¢ este se vinga, agora, por meio daqueles sentimentos sufocadores muito modemos. Sente-se, cada vez mais, que 0 ceme e o sentido da vida deslizam por entre os dedos, que as satisfagGes definitivas ce tomam sempre mais raras e, enfim, que todos os esforgos e priticas de fato no valem a pena. Nao quero afumar que nossa época j se encontra inteiramente em tal constituigio animica, mas onde ela se aproxtima disso hd certamente uma coneso com um recobrir progressive dos valores qualitativos por aqueles meramente quantitativos, pelo interesse em um mero mais ou menos; pois apenas os primeiros satisfazem nossas necessidades de maneira definitiva. , de fato, as coisas também sio, elas mesmas, desvalorizadas em grande grau por sua equivaléncia com aquele meio de troca vilido para tudo. O dinheiro é “vulgar” porque é 0 equivalente para tudo e para todos; somente o individual é distinto. O que corresponde a muitas coisas corresponde a0 mais baixo entre elas e rebaista, por isso, também 9 mais alto para 0 nivel do mais baixo. Essa é a tragédia de toda nivelagio, que conduz imediatamente as posicdes dos elementos mais baios, pois 0 mais alto sempre pode decair, mas quase nunca 9 baixo pode ascender a0 nivel do mais alto. Assim, 0 valor mais especifico das coisas sofre devido 4 convertibilidade do elemento mais heterogéneo no dinheiro; ¢, com razio, a lingua caracteriza como “impagivel” aquilo que € muito especial ¢ distinto. O carter blasé de nossas camadas mais abastadas é apenas 0 reflexo psicolégico desse fato. Porque agora elas possuem um meio que permite, apesar de seu carter sempre igual e incolor, comprar 9 mais diverso ¢ 0 mais especial. Pelo fato de, com isso, a questo “isso vale?” deslocar-se de modo crescente para a indagacio “quanto vale?”, a sensibilidade refinada ¢ os encantos especificos ¢ mais individuais das coisas retrocedem cada vez mais. E esse € exatamente o cariter blasé: que nfo se reaja mais as gradagdes e particularidades dos objetos com suas correspondentes nuances de sensibilidade, mas que sejam sentidas de maneira nivelada e com uma coloragio abafada, e sem variag6es significativas. E precisamente por meio desse cardter assumido pelo dinheiro que, na propoxedo em que se tora medida de todas as coisas — em uma cultura ascendente —, ele perde seu significado anterior em certas relaces elevadas: a multa, por exemplo, reduziu sua esfera de aco. O direito germinico antigo expiava os crimes mais graves, até mesmo assassinatos, por meio de dinheiro. A partir do século vil, a peniténcia da Igreja podia ser substituida por dinheiro, enguanto os direitos modemos limitaram as multas em dinheiro aos delitos relativamente leves. Isso no indica nada contra, mas sim a favor da importancia crescente do dinheiro: exatamente por medir, agora, tantas coisas mais, sendo por isso mais incolor ¢ descaracterizado, no pode mais servir para a compensacio em relagdes muito especificas e excepcionais, nas quais 0 mais intimo 0 mais essencial da personalidade devem ser atingidos. E nfo é apesar do fato de se poder adquirir praticamente tudo por dinheiro, mas é exatamente por isso ser possivel que 0 dinheiro no compensa, por exemplo, as exigéncias morais e religiosas sobre as quais repousava a sangio penal da Igreja. Nesse ponto encontram-se duas correntes importantes do desenvolvimento histérico. Quando era possivel, na sociedade primitiva, compensar um assassinato com dinheiro, isso significava, por um lado, que o individuo como tal no se distinguia tanto em seu valor, que ainda nfo havia sido percebido como incomparavel insubstituivel como nas épocas posteriores, nas quais se destacava do grupo de modo muis incisivo € individualizado. Por outro lado, isso signifrava que o dinheiro ainda nfo era assim tio indiferente, que no se Posicionava tio além de toda significagio qualitativa. A diferenciagio progressiva do homem e a indiferenciagio igualmente progressiva do dinheiro convergem para tomar impossivel a expiagio do assassinato por meio do dinheiro. ‘Uma segunda consequéncia extremamente importante do cariter predominante da economia monetaria segue uma direcio semelhante & do desgaste ¢ da deterioracio do dinheiro por meio do circulo crescente de seus equivalentes: percebe-se 0 dinheiro — um mero meio de aquisi¢o de outros bens — como um bem independente, enguanto toda a sua significagio reside apenas em seu carter de transig’io, em sua atuag%o como um elemento em uma sequéncia, que conduz a uma finalidade ¢ a um desfrute definitivos. Se essa linha é psicologicamente rompida nessa etapa, entio nossa consciéncia dos fins passa a repousar sobre o dinheiro. Enquanto a maioria dos homens modemos precisa ter diante de si, na maior paste da vida, 0 ganho de dinheiro como meta mais préstima, forma-se a ideia de que toda felicidade e toda satisfag%o definitiva da vida esto intrinsecamente ligadas 4 posse de certa quantia de dinheiro: de mero meio e precondigio ele se torna, internamente, fim tiltimo. Mas quando esse fim ¢ finalmente alcangado surgem, intimeras vezes, todo um aborrecimento ¢ uma frustracio mortais, que se mostram, de maneira mais acentuada, nos homens de negécios, quando se recolhem para gozar da aposentadoria apés ter acumulado certa quantia de dinheiro. Quando deixam de existir as circunstncias que concentram a consciéncia valorativa no dinheiro, este passa a revelar seu carsiter verdadeiro como mero meio, que se toma intitil e demecessario assim que a vida se concentra unicamente nele. O dinheiro nada mais que a ponte para os valores definitivos, ¢ nfo se pode morar sobre uma ponte. Essa sobreposig‘io dos fins pelos meios é um dos tragos essenciais ¢ um dos principais problemas de toda cultura elevada, pois tem sua esséncia no fato de que, emcontraste com as relag@es primitivas, as intengdes das pessoas no so mais simples, bvias e akangdveis por meio de aco imediata. Seus propésitos tomam-se gradualmente tio dificeis, complexos e remotos que carecem de uma construc%io composta e multiarticulada de meios ¢ instrumentos, € de um desvio composto de miltiplos estgios de etapas preparatorias. B muito dificil, em relages mais elevadas,

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