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= ee ee seine tie ih ey José Carlos Reis ‘| Escola dos Annales A inovacao em Historia PAZE TERRA © José Carlos Reis CIP-Brasil, Catalogagio-nark Sindicato Nacional dos Editores R3la Reis, José Carlos Escola dos Annales —u José Carlos Reis, — So Paulo: Paze Terra, 2000 Inclui bibliografia ISBN85-219-0349-9 1 Escola dos Annales, 2, Histéria — Filosofia. 3. Histrial Titulo 00-0269 CDD-901 €bD-930.1 EDITORAPAZETERRASIA Rua do Triunfo, 177 Santa Ifigénia, Sio Paulo, SP — CEP 01212-010 ‘Fel: (011) 2234 E-mail: vendas@ pazeterra.com.br Home Page: www.pazeterra som.br 2000 Impresso no Brasil/Pringed ir Bail SUMARIO OS ANNALES: A RENOVAGAO TEORICO-METODOLOGICA E“UTOPICA” DA HISTORIA PELA RECONSTRUCAO DO TEMPO HISTORICO, 9 SOBRE AS RELACOES ENTRE TEMPO HISTORICO E CONHECIMENTO HISTORICO: UMA HIPOTESE, 9 ‘O TEMPO HISTORICO DOS ANNALES, 15 (OS ANNALES E © CONHECIMENTO HISTORICO: A RENOVACAO TEORICO-METODOLOGICA DA HISTORIA, 20, “DIALETICA DA DURACAO™ E EVASAO: A“ UTOPIA DOS ANNALES” — UMA INTERPRETACAQ POSSIVEL, 28 1900 - 1929: O DEBATE FUNDADOR DOS ANNALES — HISTORIA E CIENCIAS SOCIAIS, 37 HISTORIA, FILOSOFIA E CIENCIAS SOCIAIS, 37 M. FOUCAULT: 0 LUGAR DAS CIENCIAS HUMANAS, 39 POSITIVISMO, HISTORICISMO E MARXISMO: © SURGIMENTO DOS PONTOS DE VISTA DAS CIENCIAS SOCIAIS, 42 A CIENCIA SOCIAL SEGUNDO DURKHEIM, ACIENCIA SOCIAL SEGUNDO WEBER, 46 AREPERCUSSAO DAS CIENCIAS SOCIAIS SOBRE A HISTORIA, 5] F. SIMIAND EA HISTORIA-CIENCIA SOCIAL, 52 H. BERR E A RENOVACAO DA HISTORIA, 56 VIDAL DE LA BLACHE E A RENOVAGAO DA HISTORIA, 61 OSURGIMENTO DA “ESCOLA DOS ANNALES” EQSEU “PROGRAMA”, 65 REDEFININDO E AMPLIANDO 0 SENTIDO DA EXPRESSAO “NOUVELLE HISTOIRE”, 65 OS COMBATES DE FEBVRE, 68 A“HISTORIA-PROBLEMA”, 73. O FATO HISTORICO COMO “CONSTRUGAO”, 76 O NOVO CONCEITO DE “FONTE HISTORICA”, 77 A“HISTORIA TOTAL OU GLOBAL”, 78 AINTERDISCIPLINARIDADE, 81 AS PROPOSTAS DE BLOCH 0 OBJETO DO CONHECIMENTO, HISTORICO EASUATEMPORALIDADE, 82 0 “METODO RETROSPECTIVO”: A DIALETICA PRESENTE/PASSADO, 85 BLOCH E FEBVRE: DIVERGENCIAS, 86 AS DIVERSAS FASES DA “ESCOLA DOS ANNALES”: CONTINUIDADE OU DESCONTINUIDADE?, 91 A PRIMEIRA FASE: 1929/1946 FEBVRE, BLOCH E ARENOVACAO DA HISTORIA COM A REVISTA ANNALES D'HISTOIRE ECONOMIQUE ET SOCIALE , 93 UM OUTRO NOME FUNDADOR: ERNEST LABROUSSE, 97 A“HISTORIA DA HISTORIA” DOS ANNALES FEITA POR ALGUNS DE SEUS MEMBROS, 98 6 “ASEGUNDA FASE: 1946/1968 ANNALES: ECONOMIES, SOCIETES, CIVILISATIONS: A CONSOLIDAGAO DO NOVO PROGRAMA TEGRICO E PROJETO DE PODER, 102 BRAUDEL: SEUS DEBATES, COMBATES E VITORIAS, 104 0 PREDOMINIO DO QUANTITATIVISMO, 107 ALBERT SOBOUL: A HISTORIA SOCIAL RESISTE AO QUANTITATIVISMO DOMINANTE, 110 ATERCEIRA FASE: 1968/1988?, 4 NOUVELLE NOUVELLE HISTOIRE, 112 AINFLUENCIA DA ANTROPOLOGIA, 113 AHISTORIA EM MIGALHAS, 114 AS POLEMICAS DE LE ROY LADURIE: 0 COMPUTADOR, OEVENTO, A HISTORIA IMOVEL, NOVAS TECNICAS..., 115 AS TESES DE LEGOFFE NORA, 118 PAUL VEYNE: O DESAFIANTE INTERNO, 121 AREPERCUSSAO DE MICHEL FOUCAULT, 123 A MANIFESTACAQ DA CRISE E A NECESSIDADE DE UM TOURNANT CRITIQUE, 125 1988 — UM TOURNANT CRITIQUE, HISTORIA E CIENCIAS SOCIAIS: A CRISE DA. INTERDISCIPLINARIDADE, 126 A“DIALETICA DA DURACAO” POSTAEM DUVIDA, 128 R. CHARTIER: REDEFININDO OS TERMOS DACRISE, 130 SERIA O RETORNO DO DIFICIL DIALOGO ENTRE A HISTORIA EAFILOSOFIA?, 131 AVOLTA DANARRACAO, 134 ORETORNO DA BIOGRAFIAE DOEVENTO, 140 SOBRE A IDENTIDADE IDEOLOGICA DOS ANNALES: A POLEMICA E UMA HIPOTESE, 147 ANNALES D" HISTOIRE ECONOMIQUE ET SOCIALE: QUALEATENDENCIA?, 147 ANNALES E SOCIEDADE TECNOCRATICA, 148 ANNALES EMARXISMO, 152 ANNALES E DIREITA NACIONALISTA, 153 UMA HISTORIA NEGCONSERVADORA?, 155 UM NOVO MUNDO, LOGO UMA NOUVELLE HISTOIRE, 158 UM NOVO MUNDO, LOGO UMA HISTORIA ‘POS-ANNALES’, 162 ANNALES E MARXISMOS: “PROGRAMAS HISTORICOS” COMPLEMENTARES, ANTAGONICOS OU “DIFERENCIADOS"?, 165 INTRODUCAQ: MODERNIDADE ILUMINISTA VERSUS POS-MODERNIDADE ESTRUTURALISTA, E POS-ESTRUTURALISTA, 165 ONDE SITUAR OS ANNALES E OS MARXISMOS?, 170 Complementares, 173 Antagénicos, 175 “Diferenciados", 185 CONSIDERACOES FINAIS, 189 BIBLIOGRAFIA, 191 OS ANNALES: A RENOVACAO TEORICO-METODOLOGICA E “UTOPICA” DA HISTORIA PELA RECONSTRUCAO DO TEMPO HISTORICO SOBRE AS RELAGOES ENTRE TEMPO HISTORICO E CONHECIMENTO HISTORICO: UMA HIPOTESE As questies que guiardo nossa reflexio poderiam ser assim for- muladas: o que diferencia, em profundidade, as diversas “escolas ou “programas” histéricos? Qual a diferenga profunda entre a historia filos6fica e literdria, as escolas histéricas metédica, historicista, mar- xistae dos Annaies? Oque seria uma “nova escola” em oposigio a uma “escola tradicional’? Em que pode uma escola ser “nova” ou “ultra- passada”’? Costuma-se definir essa diferenga como uma “diferenga de método”: novos objetos, novas fontes, novas técnicas, noves concei- tos, novas instituigdes e obras ¢ historiadores-modelo. Mas esses ele- mentos acima, importantes, sem diivida, para a definigdo do “novo” e do “ultrapassado” em histéria, nao seriam apenas o lado mais visivel do método’? A diferenga profunda que esses elementos revelam, ¢ sem a qual nao existiriam, nao exigiria uma reflexdo sobre o método tam- bém em maior profundidade? Eis a nossa hipétese, em uma primeira formulagao: a base profunda de um método histérico é uma “represen- tagdo do tempo histérico” e é esta representagdo que diferencia as diversas escolas e programas histéricos. Os conceitos “tradicional”, “ultrapassado” ¢ “nove” ja revelam esse substrato temporal. Uma 9 escola histérica s6 pode se apresentar como “nova” se apresenta uma outra € original representagao do tempo histérico. Optar por uma ou outra escola histéri¢a nio é meramente optar por objetos e técnicas ou obras-historiadores modelos, A justificativa da escolha é mais profun- da: opta-se por um registro da temporalidade, Para sustentar essa pro- posta, e antes de tratar da inovagdo temporal que os Annales represen- taram, iremos a Herddoto de Halicarnasso, o descobridor do tempo dos homens. ‘Os gregos, os criadores da historia, tinham um pensamento pro- fundamente anti-histérico. Tanto a poesia épica, de Homero, quanto a filosofia que nasceu no século V a, C/ndo tratavam de eventos lares e de personagens auténticos, A poesia épica, no lugar dos even- tos, punha Categorias; no lugar dos personagens reais, arquétipos. Ela produzia uma lembranga mitica, exemplar, atemporal. As agoes huma- nas tornam-se modelos; os herdis so tipos. A lembranga é “poética™ — €0 artista que cria 0 exemplo e modelo das agdes e personagens, soba inspiraciio das musas. As musas contam ao poeta, em geral cego, 0 que foi, é e sera. O poeta prefere nao “ter visto”, mas “ter ouvido” diretamente das musas, que tudo vém. A filosofia grega, por seu turno, ird se opor ¢ articular-se ao mito, preservando dele o seu cardter anti- histérico. Para o fildsofo grego, s6.o permanente é conhecivel, O ser supralunar realiza um movimento circular, continuo e regular, que revela a eternidade e nao o tempo (Collingwood, 1981). ‘Anti-histérico, portanto, o pensamento grego mitica-po 0c filosdfico néo trata do transitério, da sucessiio, da mudanga, do mundo sublui reino da corruptibilidade temporal. O seu olhar e atengao. estao voltados para 0 eterno.'O mito libertava-se do evento eda mudan- ¢a, procurando manter-se na origem, 10 antes do tempo, buscando a cternidade no presente intenso do tempo sagrado do ritual, onde o atu- al reencontra a origem. A filosofia grega estava voltada para as idéias eternas, para os movimentos regulares, para o permanente supralunar, tinico cognascivel, objeto de “episteme”’. Os fildsofos niio deixaramde refletir sobre as coisas humanas e realizaram reflexdes inesqueciveis sobrea ética, a estéticae a politica, masna perspectiva das “idéias eter- nas”. Para eles, o mundo temporal sublunar seria residual ¢ desprezi- vel, pois incognoseivel ¢ inabordivel pela teoria. Enfim, o pensamen- to grego do século V a.C. era paradoxal: fundamentalmente anti- 10 histérico, criou a “ciéncia da histéria” (Collingwood, 1981; Momi- gliano, 1983). A questao que intriga é: como pode esse pensamento do supralu- nar criar a “histéria, ciéncia do sublu {isto é, um saber das aces humanas como resultado de uma investigagao, de uma pesquisa e aspi- randoa verdade? A verdade nao seria p gio do supralunare doseu conhecimento pela teoria? Como encontré-la no sublunare na narrati va de fatos particulares? Verdade e mudanga, verdade ¢ histéria nao riam termos excludentes? Como puderam os gregos criar uma cién- cia do que consideravam incognoscivel, das agées humanas em suas mudan¢as, um “conhecimento verdadeiro” do devir? Como conhecer amudanga. o que é e nao €? Para os filésofos, a histéria estava no mun- do efémero de ambigdes e paixGes do qual a filosofia deveria libertar os homens) Eles preferiam Homero a Herddoto, o que falava do que “poderia acontecer™ ao que tratava do “acontecido”. Para Aristoteles. ateoria era um discurso racional ¢ atemporal sobre o universal — epis- teme. A poesia atendia 4s suas exigéncias epistemolégicas melhor do que a historia. Aristoteles desprezava a nova criagao grega, a “ciéncia dos homens no tempo” €0 seu criador, segundo ele, o “contador” (para muitos, o “mentiroso”) Herddoto. Para ele, os historiadores referiam- se a fatos acontecidos, particulares, ¢ nao ao universal, referiam-se a mudanca e no A estabilidade e regularidade. e eram por isso epistemo- logicamente menos “sérios”. Os historiadores produziam um conheci- mento residual sobre o residual — doxa, opinides sem valor logico sobre as coisas humanas que mudam. Seu conhecimento nao seria demonstrativo ¢, portanto, nao teria validade tedrica (Momigliano, 1983; Hartog, 1986). Em um contexto intelectual tao desfavordvel, a criagao da histé- ria por Herédoto no século V representou uma verdadeira revolugde cultural, Em vez de evitar a mudanga, 0 tempo, © historiador decidiu aborda-la. O historiador optou pelo sublunar, pela temporalidade, que, para ele, é o verdadeiro lugar da inteligibilidade da vida humana. Essa foi uma atitude inaugural, original, uma ruptura com a tradi¢ao mitica e filoséfica. “Os homens no tempo”, os homensem sua vida particular e publica, com os seus nomes, iniciativas e valores, experiéncias ¢ esperangas, em sua finitude, em sua historicidade, em suas mudangas — eis o novo objeto do nove conhecimento. Herddoto argumentaria contra Aristételes: é pouco sério falar do vivido humano? Na verdade, nao é o vivido que interessa a um pensamento realmente sério? Sem desvalorizar a ficgoe a poesia, afilosofiae a ciéneia, ‘0 vivide ndoéo que mais exige reflexdo, andlise investigacaa?/Eis a convicgao de Herdédoto e dos historiadores que entéo surgiam/A histéria foi a “cién- cia nova” das agdes humanas no tempo. E um conhecimento fruto de uma investigagao, de uma enquete, que tem a preocupag’o com a ver- dade, baseada em “testemunhos oculares” bem interrogados pelo his- toriador'(Momigliano, 1983), ‘O poeta ouvia as musas; o historiador quera “verdade” e interro- ga ouve Os que viram os fatos ou escreve sobre o que ele préprio viu. “Ver” € prioritirio sobre o “ouvir dizer” Diferente do mito eda poesia, oconhecimento histérico € escrito, o que permite a comparagao, acor- reco de contradigGes, a incredulidade em relagiio ao fabuloso e mara- vilhoso. Conhecimento escrito do que foi visto, a histéria pretende di- zer a verdade sobre o mundo dos homens. Ao contrério do mito, que é oral ¢ impessoal, a histéria € escrita e pessoal! E o proprio historiador a garantia da verdade: a sua assinatura o torna responsdvel pelo que escreveu, Ele escreve na primeira pessoa e a “verdade histérica” con- funde-se com a sua assinatura (Hartog, 1986), Herédoto de Halicarnasso realizou, portanto, uma mudanga epis- temolégi bstancial: ele quer acompanhar os homens em suas mudangas ¢ realizar a sua descrig¢do € andlise. A perspectiva do nove personagem cultural, o historiador, é a de que o homem é um ser bas: camente temporal, finito, instivel, histérico, Ele recusa a atitude con- templativa do que € eterno, fora do tempo, que é, para cle, o que de fato € inabordivel e incognoscfvel. Para ele, inefavel nao é a singularidade histérica, masa eternidade /A eternidade s6é pronuncidvel como cons- trugdo de homens histéricos, que criam as suas utopias, manifestam o seu desejo de fuga da temporalidade. O historiador se interessa pela vida humana, em sua diversidade, em sua alteridade ¢ diferenga tempo- rais. O que ele quer preduziréo “conhecimento da mudanga”, uma des- cric¢de do transcurso dos homens finitos em suaexperiéncia da finitude, que ele considera paradoxalmente o tinico apreensivel e cognoscivel. Ao valorizar 0 passado, o historiador faz uma inversdo em seu conceilo, Para ele, o passado nao é o que “nao é mais”; ao contrario, ele € 0 que hide mais s6lido na estrutura do tempo, O passado € existéncia el; somente como “tendo sido” 0 vivido humano se da ao conhecimento. O passado nao seria uma queda nonada, mas, ao contré- 12 rio, uma passagem ao ser: ele é a consolidagao do serno tempo, édura- ¢io realizada. Ele nao € 0 que “nao € mais”, mas o que “foi e ainda €” E como tal é conhecfvel ¢ é a tinica dimensio conhecivel do mundo’ humano, em suas relagdes com o presente. O objetivo do historiador é mediarum didlogo entre “vivos” e“vivos ainda”, O que ele faz é conhe- cer, diferenciando-as, as duragdes humanas (Reis, 1994b ¢ 1996c). ‘Herédoto valorizou o tempo dos homens ¢ por isso fundou uma nova ia, A partir dessa articulagio entre “tempo novo e conheci- mento novo”, em Herddoto, eis a segunda formulagio da nossa hipo- tese sobre as relagGes entre tempa histérico e canhecimento histérico. Para mediar o didlogo entre presente/passado, para “diferenciar as duragGes humanas”, isto é, conhecé-las em sua historicidade em seus proprios termos, para conhecer “os homens em suas mudangas perpé- tuas”, o olhar do historiador é estruturado por uma “representagao do tempo histérico”, O conhecimento histérico s6 € possivel no interior de uma concep¢ao do tempo histérico. Essa “representagao do tempo dos homens” teria para o conhecimento histérico uma fungio seme- Ihante 2 idéia kantiana do tempo como “intuigao a priori” do sujeito. Como a “intuigao a priori” kantiana que poe 0 universe como exterior a0 Sujeito e o organiza como sucessao ¢ simultaneidade, é a “represen- taco do tempo histérico” presente no historiador que o leva a objeti- var o mundo humano de uma certa maneira, a organizi-lo de um certo modo, adistinguire selecionar certos objetos, aestabelecer determina- das técnicas, a construir deter dos conceitos, a optar por certos valores, a organi: ye a inéreia, E 36 nessa “ representacio do tempo histérico” que a realidade dos processos histGricos é reconheci- vel e conhecivel, tem sentido e significado. Aparentemente, primeiro, é a percepgao das experiéncias huma- nas que cria a representagéo do tempo histérico; depois, é ¢: sentagiio que organiza a percepgao das experiéncias humanas./Mas nao é tao simples, pois a prépria percep¢ao s6 se daria no interior de uma representacao do tempo, sem a qual nenhuma “ordem” ou “forma” ou “intensidade” ou “ritmo” poderia ser percebida. A representagio do tempo histérico é a condigdo subjeriva, do historiador e da sua socie- dade, sob a qual todas as experiéncias humanas podem se tornar inte- ligiveis. A histéria efetiva se realiza segundo certas representagdes da temporalidade. A percepgio das experiéncias humanas nao € jamais direta, imediata ¢ muda, mas sempre articulada por uma “represent 13 gio”, por um saber simbdlico. O tempo histérico enquanto tal, em uma abstrac4o. Ele sé existe em relagdo a uma época historica determi- nada auma construcdo simbélica determinada|A vida também éuma (| abstragdo. A representagiio do tempo histérico € anterior aexperiéncia “da historicidade.’ Quando se vive ¢ se age, fazem-se opgSes por valo- 10 6, por uma certa periodizagiio, por uma certa diregao, por um certo passadoe um certo futuro, por um determinado “modo de durar™. Quando se vive, essa experiéncia pressupde uma representagao ante- nor de uma linha temporal — circular, linear, ciclica, espiral, helicoi- dal, ramificada, estrutural ou uma combinacio delas (Reis, 1994b_ Portanto, nao se tem um tempo histérico anti-histérico, definido poruma teoriadefinitiva, Nao se temo “tempohistérico enquanto tal”, mas um “tempo histérico do qual se fala" 'O tempo histérico nao se da ao conceito, a teoria, mas a uma representagao historica. Hd represen- tag6es histéricas do tempo histérico, Ele nao é exterior ao sujeito e A histéria, mas é a construgao de sujeitos histéricos em um dado momen- to da historia efetiva. As representagoes do tempo histérico revelam as mudangas da sociedade e a sua eficicia depende de sua capacidade para acompanhar os desdobramentos dessa sociedade. Toda renova- gio em historia, toda “escola histérica” realiza uma mudanga profun- da na representagao do tempo histérico, apoiadas em mudangas ocor- ridas na historia efetiva. E esta reconstrucao que permite a renovagao teérico-metodolégica da hi a, pois é a partir dela que se distinguem novos objetos, que se formulam novos problemas e reformulam-se os antigos, que se constroem novas abordagens. Esta reconstrugao ofere- ce também uma nova visao do futuro, uma reorientagio da agao e dos seus valores, isto é, oferece uma utopia. Enfim, esta é a nossa hipotese, em sua terceira formulacao, sobre as relagdes entre rempo histérico e conhecimento histérice! o conheci- mento histérico s6 se renova, uma “nova histéria” s6 aparece quando se realiza uma mudanga significativa na representagao do tempo his- térico, Herddoto s6 péde fundar a histéria quando se separou do atem- poral e valorizou epistemologicamente as mudancas do sublunar. O tempo histérico, portanto, parece-nos o centroe a base de toda refle sobre a pesquisa histérica. Muda-se a perspectiva sobre esse centro e base, uma outra histéria emerge, com novos historiadores, novos obje- tos, novas fontes, novas técnicas ¢ uma nova utopia. 4 _ eteleoldg! E, finalmente, em decorréncia dessa hip6tese geral, quanto aos Annales, eles sé representaram uma renov: 6 metodolégica e“utépica” em relagdo a historia tradicional porque teriam produzido, sob a influéncia das ciéncias sociais, uma nova representagao do tem~ po histérico (Reis, 1994a). O TEMPO HISTORICO DOS ANNALES Aprincipal proposta do programa dos Annales foi erdiscly naridade ¢ as suas trés geragdes. apesar de suas divergéncias ¢ descon- yeram uma historia sob a influéncia das ciéneias sociais. Entretanto, esta alianga entre historia e ciéncias sociais seria uma pro- posta inexeqiiivel se nio fosse sustentada por um novo olhar temporal. Esta interdisciplinaridade seria incompativel com a temporalidade “acomtecimental”, do tinico, singular e irrepetivel, linear, progressista ica da dita histéria tradicional. Nos consideramos, portanto, que nao foi propriamente a interdisciplinaridade a grande mudanga epistemolégica produzida pelos Annales, mas aquilo que atornou pos- sivel; a nova representagdo do tempo. Criaram-se novas condi¢Ges subjetivas para o conhecimento histérico. O historiader dos Annales abordou a histéria com um “novo olhar’, isto €, com uma nova repre- sentagdo do tempo histérico. Ao se aproximarem das ciéncias sociais, os Annales realizaram uma revolugao epistemoldgica quanto ao con- ceito de tempo histérico, ou melhor, uma renovagao profunda, uma mudanca substancial na forma de sua compreensio, mas sem perder a sua ligagdo com o projeto inaugural de Herddoto: “conhecer as mu- dangas humanas no tempo”. Essa aproximagao da histéria com as i jais teria se dado cm 3 momentos: 1*) a histéria tomou conhecimento das ciéncias sociais que emergiam, da sua percepgao do mundo humano com uma outra temporalidade; 2°) os novos historia- dores constataram a impossibilidade da cooperacao inter plinar se mantivessem a mesma representaco do tempo histérico tradicional; 3°) os novos historiadores fizeram um combate no interior da discipli- na histérica por uma nova representag’o do tempo hist6rico que tor- nasse possivel a colabo: interdisciplinaridade exigiu uma outra representagai homens (Braudel 1969; Burguiére, 1979). Jo com as ciéncias sociais. A pratica da io. do tempo dos 15 Asciéncias sociais ofereceram, no inicio do século XX, umaabor- dagem do social. que competiré com a abordagem histérica tradicional. Haverd uma tensao entre a milenar histéria ¢ as novas ciéncias sociais. Parece-nos que o epicentro desse estremecimento estaria na represen- tagdo do tempo humano. Na perspectiva das ciéncias sociais, a aborda- gem genética, sucessiva, idiografica da historia tradicional era inade- quada para oferecer uma compreensio satisfatéria da histéria do século XX, Elas nao tém em grande conta o tempo calend:rio. E temem aace- leragao da historia efetiva produzida pela influéncia metafisica da filo- sofia sobre a histéria-conhecimento. As ciéncias sociais opbem-se 4 ao da histéria como.a construgdo linear e acelerada do futuro, da uto- pia, da liberdade pois, para elas, uma abordagem especulativa da hist6- ria é invalida e perigosa. A organizagao da vida humana a partir de um final tecnicamente inantecipavel nao ¢ epistemoldégica e politicamente confidvel. O sentido dos eventos nao se dé a um conhecimento especu- lative. Nao se pode propor agées totais ¢ imediatas a partir de uma con- sideragéo especulativa do final da histéria. Contra a abordagem teleo- ldgica, as ciéncias sociais prefe rirao uma “abordagem estrutural” do tempo histérico (Burguiére, 1971; Pomian, 1988; Simiand, 1960). Com o conceito de “estrutura social”, as ciéncias sociais querem submeter a sociedade a representacao do tempo da fisicae da matemé- tica. Elas buscam encontrar no mundo humano regularidades, estabi- lidades, reversibilidades. O tempo das ciéncias sociais nao se refere a sucessio, 4 mudang¢a, 4 assimetria_passado/futuro, mas tende a aboli- las em uma simultaneidade estrutural, o que era até entdo impensivel eimpossivel para o mundo humano. E como se as ciéncias sociais qui- sessem, finalmente, atender a exigéncia grega do “conhecimento do universal” comocritério do conhecimento epistemolo; cientifico, As ciéncias sociais querem a refundagio do conhecimento do mundo humano atendendo as exigéncias epistemoldgicas do pen- samento anti-histérico, No séc. V as ciéncias sociais estariam mai para Homero e Aristételes do que para Herddoto, Talvez, Tucidides puclesse entao ser visto como um dos seus precursores, pois ele tam- bém pretendia produzir uma histéria diferente da de Herédoto (Simiand, 1960). Como refundadoras do conhecimento do mundo humano, as ciéncias sociais quiseram substituir a milenar histéria. Para elas, 0 conhecimento das mudangas humanas nio sé € impossivel como irre- 16 levante, ou melhor, “pouco sério”. Os sociGlogos durkheimianos fo- ram agressivos em relagao a “histria historizante”. Lévi-Strauss & explicito quanto & precariedade de um “conhecimento das mudangas humanas”. Para eles, também no mundo humano, o tempo deve ser suprimido, pela busca do regular, do continuo, do estavel, do supralu- nar. As ciéncias sociais desconsideram a sucessao dos eventos, enfati- zam menos as mudancas qualitativas ¢ valorizam as transformagées estruturais, que sao como movimentos naturais na sociedade. Buscam na sociedade o que a fisica encontra na natureza: uniformidade, rever- sibilidade, Lsiaae eee quantidade, permanéncia. O tempo das io — ele enfatiza a simultaneidade, a i nieidepeadncln dos eventos humanos. E.um tem- poandnimo, objet vo, quantitativo, coletivo, endurecido, que subme- te o mundo dos homens a uma légica matematica. Ess¢ olhar temporal das ciéncias sociais revela a sua orientagao conservadora em qualquer de suas tendéncias. Seu objetivo ¢ dominar o evento, que representa a mudanga, a instabilidade do tempo humano. Elas surgiram contra a aceleragdo do tempo produzida pela modernidade revolucionaria, contra a mudanga brusca, barulhenta, nervosa, contra 0 sacrificio do presente pela implantagao nele do futuroe vém propor adesaceleragao do tempo das sociedades. Elas querem tornar mais lenta ou até apagar a sucessdo e propdem uma “simultaneidade atrasada” dos eventos: querem tornar o presente mais contemporaneo/solidario do passado do que do futuro. Seu objetivo ¢ o de controlar a mudanga social, tornan- do-a segura e previsivel, gradual e harmoniosa, e evitar as aceleragGes revoluciondrias que quebram as estruturas sociais ¢ nada oferecem (Koselleck, 1990;Lévi-Strauss, 1971] e 1983). O conceito de estrutura social desvitaliza o evento, desfaz a mudanga substancial que revela mais intensamente a assimetria entre passado ¢ futuro. Os estruturalistas mais radicais até eliminam o tem- po histérico ea consideragao da mudanga, da passagem do passado ao futuro. A andlise estrutural da sociedade, entao, recupera a inspiragio. mitolégica — ado tempo abolido em um eterno presente. Os eventos- choques sdo amortecidos quando integrados na estrutura social como elementos, que a transformam, mas ndo a mudam. O presente liga-se a0 passado ¢ o passado ao presente de tal forma que o passado se torna presente eo presente imuniza-se contra a sua sorte que é se tornar pas- sado. Presente ¢ passado ligados, abole-se a sua diferenga eo que esta VW representa: a temporalidade. A perspectiva estrutural das ciéncias histérica: recusa a sucesso, o vivido, 0 evento, o singular, enfim, a mudanga, e propoe a simultaneidade, o sis- tema, o modelo, o formal, a abstragdo (Lévi-Strauss, 1971 e 1983; Boudon, 1969). Eis a argumentagao sobre o tempo histo sociologia, da antropologia, da demog! ‘o da lingilistica, da fia, da geografia human E, para tornarem realizavel a “troca de servigos” interdisciplinar, eles empreenderam a sua grande renovagiio reconstruindo a representagao do tempo histérico da disciplina histérica. Sob a influéncia das cién- cias sociais, a histéria, antes, sob a influéncia metafisica da filosofia e da teologia, estudo exclusivo da sucessio dos eventos, da mudanga, da assimetria passado/futuro, com um final universal conhecido anteci- padamente, sera obrigada a incluir em sua representagio do tempo a permanéncia, a simultaneidade, Mas, mesmo aceitando essa influén- cia das ciéncias sociais, os Annales mantém o projeto de Herédoto: “descrever e analisar a mudanga”, A estruturacio da mudanga, para 0 historiador, é uma forma de tornd-la mais visivel, mais analisdvel, con- trolivel e conhecivel, Os Annales, e Braudel em particular, construi- ram 0 conceito de “longa duragio”, que ao mesmo tempo se inspira e se diferencia do conceito de “estrutura social” das ciéncias sociais. A“‘longa duracao” é a traducdo para a linguagem temporal dos histo- riadores da estruturaatemporal dos socidlogos, lingtiistas e antropdlo- gos, Na perspectiv. jonga duragao”, o tempo histérico é represen- tado como “dialética da duragiio”. Os eventos sio inseridos em uma ordem nao sucessiva, simultinea, A relacao diferencial entre passado, presente e futuro enfraquece-se, isto é, a representacao sucessiva do tempo histérico ¢ enquadrada por uma representa: nea. As “mudangas humanas” endurecem-se, desaceleram-se. Tornam-se compardveis aos movimentos naturais e incorporam as qualidades desses: homogeneidade, reversibilidade, regularidade, medida (Brau- del, 1969; Vovelle, 1982; Pomian, 1988), Abordando o mundo humano com esta concepgao do tempo his- L6rico,os Annales m: ntémn wma postura modernizadora, mas mais cau- telosa, Eles se oporao, assim como as ci a todas as pro- postas de mudangas profundas ¢ globais da sociedade, a partir de uma visio especulativa do futuro, Os Annales constatam que “agir” (faire > simul 18 Uhistoire) e “conhecer” (faire de I‘histoire) sao atividades distintas, que nao se recobrem. O conhecimento nao narra o vivido tal como ele se passou, ndo é a sua consciéncia, mas diferencia-se dele. O conheci- mento supie distingéio, objetivagio do vivido. A realidade histérica nao é transparente. Ela resiste 4 andlise e & agao, Nem a sua andlise e nem a intervengao podem ser realizadas de forma especulativa. Antes de se pretender agir sobre a realidade, alterando-a, provecando mudangas, forgando-a a passar ao futuro, é preciso conhecer as suas resisténcias, percebé-la como um “né-gérdio” de passado e presente. Desaté-lo com a espada, porque de acordo com a Razio, porque se conhece especulativamente o seu sentido, é produzir o drama, a tragé- dia (Reis, 1994a ¢ 1996c), Como um “né-gérdio-passado-presente”, a sociedade seri con- siderada como coisa, permanéncia, continuidade, inércia, repetigdo constante do mesmo, tendéncia 4 rotina e ao repouso do cotidiano. Sem utopias finais, sem Razao absoluta final que a obrigue a acelerar- se. Este né passado/presente deverd ser desatado como se desmonta uma bomba, isto é, de forma lenta, gradual, técnica, informada, serena e prudente. Senio, o drama, o barulho ¢ 0 furor do evento. Nao se pode optar pelo futuro jd, pois este é desconhecido ¢ inantecipavel. Pre- tender implantar esse desconhecido no presente é sacrificar o presente eo passado, é fazer o horror da iniciativa sem peso, sem gravidade e densidade histérica. Entretanto, se os Annales estruturam a mudanga, eles nao a abo- Jem. Amudangaé preservada em uma “dialética da duragio”, isto é, ela é dialeticamente superada. Dessa forma, eles continuam 0 projeto de Herédoto e continuam historiadores, contra aatemporalidade da estru- tura social. Mas, enquadrada pela longa duragiio, a mudanga € limita- dae nfo tende 4 ruptura descontrolada. A mudanga sempre retorna ao chao do mundo conhecido ¢ ¢ incorporada, Quando, finalmente, apos séculos, a mudanga rompe com uma estabilidade estrutural, ela c titui um novo tipo de estrutura. No interior das estruturas, os movimen- tos ciclices compensam-se ¢€ limitam-se, criando a reversibilidade, a continuidade. O evento pode até ter repercussdes substanciais, mas sem romper coma estrutura que osustenta e que o toma possivel. Entre as estruturas, aparece a mudanga profunda que altera o mundo histéi co até entio estabelecido ¢ o tempo volta a ser devir ¢ sucessao, irre- versibilidade, descontinuidade, Entre as estruturas nio ha vinculo 9 evolutivo, progressivo, sintese qualitativa, teleologia. As estruturas se relacionam com uma ldégica da alteridade, dadiferenga. O tempo estru- tural dos Annales é uma “desaceleragao cautelosa”, uma reagao a ace- leragéo revoluciondria ada em um conhecimento especulative do sentido da historia (Braudel, 1969; Koselleck, 1990). Para as ciéncias sociais, a histéria nao pode ser conhecida e sobretudo nao pode ser produzida a partir de uma compreensao espe- culativa e revoluciondria do tempo histérico. Sob a influéncia especu- lativa da filosofia, a historia tornara-se ameagadora: nacionalismos, racismos, imperialismos, etnocentrismos, xenofobias € a guerra era 0 que emergia e sem nenhum controle, embora se justificassem filosofi- camente. Nao se poderia mais pensar o tempo histérico de modo teleo- légico, um tempo utépico, linear, continue, irreversivel e progressivo em diregao 4 Razao. Era jé o momento de se opor a ameaga da destrui- gdo planetiria por essa concepgao metafisica do tempo hist6rico. Para controlar esse tempo acelerado, a historia deveria se tornar outra que a tradicional, por uma revisio radical da sua concepgao do tempo histé- rico. Os Annales deram razo aos durkheimianos e geégrafos contra a hist6ria tradicionale empreenderam a reconstrucao da histériae do seu tempo. Os principais autores dos Annales tém perspectivas diferentes sobre a renovagdo que produziram. O que os reuniria a todos, Febvre, Bloch, Braudel e os representantes da 3' geracao sera a perspectiva da longa duragao, a tentativa de superagdo do evento, a partirda influén- cia, das ciéncias sociais, que permitiu a interdisciplinaridade. Mas, dentro dessa perspectiva comum, cles tém diferentes concepgdes da longa duragdoe da sua relagao com o evento. Essa divergéncia interna, longe de serum problematedrico, revelaa complexidade do movimen- to dos Annales, a sua riqueza, a sua abertura as ciéncias sociais ¢ a his- toriaefetivado século XX, a sua recusa de sistemas € principios a prio- ri, dogmiaticos, atemporais. ‘OS ANNALES E 0 CONHECIMENTO HISTORICO: A RENOVACAQ, TEORICO-METODOLOGICA DA HISTORIA. Ao incorporar a considerag&o da simultaneidade, que € a domi- nagiio da assimetria entre passado e futuro, a historia tornou-se outra 20 quantil _enfim, torna-se a dire¢ao principal do olhar do historiador, Uma outra que a tradicional. Ela mudou os seus objetos, mudou os seus historia- dores, mudou os seus objetivos, mudaram-se os seus problemas disci- plinares. Apareceu 0 que antes parecia nao existir, quando a historia era dominada por uma representagao do tempo histérico sucessivac teleo- I6gica — um mundo historico mais duravel, mais estruturado, mais resistente 5 mudangas —, as estruturas econémico-sociais-mentais. Nesse mundo, revelado pela inclusio daconsideracao da permanéncia no olhar do historiador, as agdes humanas sao percebidas como coleti- inconscientes, andnimas, repetitivas; a documentagao € involun- taria, massiva, menos politica e biografica. O conhecimento histérico pode incluir a quantidade, o conceito, a andlise, a problematizagao, pois nao trata mais de um mundo historico volatil, sustentadoe suspen- so por um final especulativamente antecipado, mas de um mundo hi térico estruturado, durdvel, lento. A histéria, portanto, renovou-se ted- rico-metodologicamente de forma profunda a partir da reconstrugao do tempo histérico pelos Annales. Em primeiro lugar, houve uma revisao ¢ reconstrugao do concei- to de homem, de humanidade, de histéria. Para os Annales, o homem no é sé sujeito, consciente, livre, potente criador da historia; ele é tam- bém, ¢, em maior medida, resultado, objeto, feito pela histaria, No tem- po histérico dos Annales. hd uma consciéncia opaca, inconsciente, que possui algumas caracteristicas do tempo natural: constancia, regulari- dade, repetigio, ciclos, homogeneidade, quantidade, permanéncia ¢ reversibilidade. Ao formularemo conceito de “longa duragio”, inspira- dosnoconceito de “estrutura social” das ciéncias sociais, os historiaco- res dos Annales realizaram uma novidade epistemolégica: introduzi- ram a abordagem da repetigao, da permanéncia, em um conhecimento antes limitado 4 irreversibilidade e 4 mudanga. Conceber a simultanei- dade em historiaé pensar em “sucessio sem mudanga”,em “repeti¢ao”. Os gestos suce: por serem uma repetigao, perdem as caracteristi- eas do evento: irreversibilidade, novidade, mudanga. Cria-se uma per- manéncia sobre a qual se articulam mudangas mais ou menos lentas (Braudel, 1969; Vovelle, 1982; Pomian, 1988). O que era impensavel em historia, a repetigao, a permanéne icacdo de movimentos reversiveise regulares, a longa duragao, a historia comeca a ser pensada, 0 que refletird sobre a histéria que se _produz. Um tempo histérico desacelerado, isto ¢, que inclui a simulta- 21 neidade, criard uma acao histérica planejada, cautelosa, coma s lidade da resisténcia dos processos objetivos aos projetos subjetivos. Aagio nfo terd nenhum compromisso com um futuro utépico, confor- me a Raz4o, mas com um presente utépico, com as suas crises € ten- sGes sob controle. O historiador procurara constatar ¢ reconstruir arti- culagGes de duragées: mais lentas, mais ou menos lentas, mais ou menos rapidas, mais ripidas, mais ou menos breves, breves. A historia desacelera-se, estrutura-se, Torna-se reversivel, simultanea: sucessdo sem mudanga, repetig¢do, Nem por iss ohomem deixou de ser sujeito ede fazer historia, Ele apenas tomou conhecimento do seu lado feito, resultado, inconsciente, o que significou aampliagao da consciéneiae do seu poder de construgio da historia, Uma consciéncia que se sabe também inconsciente, opaca, ndo-transparente ¢ paradoxalmente uma consciéncia ampliada. Os Annales nao abandonaram © estudo da mudanea. E se incluiram em sua perspectiva a permanéncia, foi para melhor conhecer e controlar as mudangas humanas no tempo (Reis, 1994a). Comessanova visio do homem e da histéria, sustentada pelasua inovadora reconstrugao do tempo histérico, um “outro homem’ apare- ce na pesquisa hist6rica. A histéria sofreu wma modificagdo profunda em seu campo de andlise, Dominada por um tempo teleolégico, a his- téria tradicional enfatizava a “histériaacontecimental”: 0 homem apa- recia na historia politica, das idéias, na biografia dos grandes lideres. ‘A historia tradicional era um “olhar a partir de cima”: psicolégica, eli- tista, biografica, qualitativa, visava ao particular, ao individual ¢ ao singular, era legitimadora, partiddria, comemorativa, uma narrativa justificadora do poder presente. Os historiadores dos Annales darao @nfase ’ regio “ni acontecimental” da histéria: ao mundo mais dura- vel, mais estruturado, mais resistente & mudanga, da vida material eco- némico-social e da vida mental. Nesse campo econémico-social-men- tal, o tempo histérico revela-se como permanéncia, constancia, resisténcia, necessidade social. Sao agGes coletivas, ma .Tepeti- Ges dos mesmos gestos eficazes de produgao, distribuigdo, troca e consumo, comportamentos inconscientes, normas, regras, simbolos € ordens sociais (Furet, 1982). Os homens do campo econémico-social-mental permitem (deles) uma abordagem quan ada, analitica ¢ problematizante. A historia nao ser’ a narrativa de povose indi 22 Sp jE Et pe — de eventos grandiosos, que fazem avangar o espirito universal em dire- go a liberdade. Ela serd a pesquisa, anilise, teoria ¢ célculo, limitados em sua validade, de fenédmenos necessdrios, repetitivos e massivos, que limitam a agao livre individual. Ha fundamentalmente uma recu sa da histéria politica, das relagdes exteriores dos Estados nacionais suas guerras, seus Iideres, seus imperialismos, Na agitada realidade européia do século XX, as preocupagées deixam de serdeordem poli- fica e passam a ser de ordem econémico-social — uma questao de massas ¢ quantidade, de producdo e escassez, de estabilidade e crise, de controle e pacificagiio das forgas desestruturadoras. Os Annales enfat izario os condicionamentos econdmico-sociais das agdes ¢ deci- sdes dividuai a sociedade global ¢ as massas, as condi¢des mate- fiais ¢ nao os projetos individuais, subjetivos ¢ ideolégicos. Influenci- ada pelas ciéncias sociais, a historia visaria antes aquilo que os homens nao sabem que fazem e nao aos seus planos declarados, suas causas edificamtes, suas crengas libertdrias. Aliando-se 4s ciéncias sociais, a histéria renovada dos Annales encontra um novo campo de pesquisa amplo e¢ diversificado (Furet, 1982; Vovelle, 1982). : Para abordar essas realidades humanas, a histdria teve dese reno- var quanto as téenicas e métados. A renovacdo dos objetos exigird a mudanga no conceito de fonte histérica. A documentagao sera agora relativa ao campo econdémico-social-mental: € massiva, serial, reve- Jando o duradouro, a longa duragiio. Os documentos referem-se 4 vida cotidiana das massas anonimas, 4 sua vida produtiva, as suas crengas coletivas. Os documentos nao sio mais oficios, cartas, e textos explic itos sobre a intengio do sujeito, mas listas de precos, de salarios, séries de certiddes de batismo, ébito, casamento, nascimento, fontes holariais, contratos, testamentos, inventérios. A documentagio massi vae involuntari é prioritdria em relagio aos documentos voluntérios ¢ ofici is. Todos os meios sao tentados para se vencer as lacunas e siléncios das fontes. Os Annales foram engenhosos para inventar, rein- yentar ou reciclar fontes historieas. Eles usavam escritos de todos Os tipos; psicolégicos, orais, estatisticos, plsticos, musicais, literdrios, poéticos, religiosos. Utilizaram de maneira ousadae inovadoraadocu- mentacao € as técnicas das diversas ciéncias sociais: da economia, arquivos bancdrios, empresas, balangos comerciais, documentos por. tudrios, documentos fiscais, alfandegdrios; da demografia, registros paroquiais, civis, recenseamentos; da antropologia, os cultos, os mo- 23 numentos, os habitos de linguagem, os livros sagrados, a iconografia, os lugares sagrados, as reliquias, os gestos ¢ as palavras miraculosas, a medicina popular, as narrativas orais, os processos da inquisigao, os testamentos, 0 vocabulério, o folclore, os rituais; do direito, arquives judiciarios, processos criminais, arquivos eleitorais, correspondéncias oficiais, a legislagao; da argueologia, eles continuarao a utilizar as ceriimicas, tumbas, fésseis, paisagens, conjuntos arquiteturais, inscri- des, moedas, As técnicas para o tratamento dessas fontes: tearias eco- némico-sociais, a informatica, a reconstituigdo de familias, a andlise estatistica, modelos, inventarios, a lexicografia, a fotografia aérea, a fenologia, a dendrocronologia, o carbono 14, a genealogia, 0 microfil- me, o gravador, a filmagem ete. (Dosse, 1987; Burke, 1990; Le Roy Ladurie, 1973), O arquivo do historiador renovou-se e diversificou-se. E as téc- nicas de processamento tornaram-se mais sofisticadas e complexas. Agora, a historia poderd ser feita com todos os documentos que sao vestigios da passagem do homem. O historiador tem como tarefa ven- cer 0 esquecimento, preencher os siléncios, recuperar as palavras, a expresso vencida pelo tempo. Nao € possivel mais dividir a historia em pré-histéria ¢ histéria, baseando-se na inexisténcia de documentos escritos na pré. O historiador que estuda a difusao de uma ceramica neolitica, sustenta Febvre, faz histéria exatamente como aquele que trabalha com uma fonte estatistica moderna (Febvre, 1965) Essa abertura ¢ ampliagao do campo dos objetos, das fontes e técnicas histéricas, estao associadas & inovadora proposta tedrica da histéria-problema, O historiador nao estaria mais submetido a tirania da heuristica. Se para Langlois ¢ Seignobos “sem documentos nao ha historia’, para os Annales, “sem problema nao ha histéria”. Eo pro- blema ¢ niio a documentagiio que estd na origem da pesquisa, isto é, sem um sujeito que pesq sem ohistoriador que procura respostas para questées bem formuladas, nao ha documentagio e nao ha histé- ria. Eo problema posto que dard a diregiio para o.acesso e construgdo do corpus necessdrio A verificagio das hipéteses que ele terd suscita- do. A histéria-problema devolve ao historiador a liberdade na explo- ragao do material empirico. O fato histérico nao esta presente “bruto” na documentagio. O historiador nao é um colecionador e empilhador de fatos. Ele é um construtor, recortador, leitor ¢ intérprete de proces- sos histéricos. O fato histérico no é “dado”, assim como © passado 24 mao € “dado”. O passado ¢ 0 fato histérico “dados” nao engendram o- historiador ¢ a historia, mas ¢ 0 historiador em seu presente que inter- roga.o passado e constrdi os dados necessirios a prova de suas h teses. O historiador constréi os seus fatos e nao os recebe automatica € passivamente dos documentos, A realidade do passado nao € fixae definitiva. Ela seria como uma “imagem de holograma”: dependendo do Angulo e da incidéncia da | imagem do passado muda. “Angu- lo” e “incidéncia da luz” significam que € o sujeito com seus proble- mas ¢ orientagao teGrica que “faz aparecer” uma nova imagem do pas- sado. A realidade historica é apreendida pelo Sujeito, naoatravés de a prioris, intuilivos, inverificaveis e incomunica . Mas através de problemas e hipdteses, através de conceitos, que devem ser verifica- dos pela documentagao rigorosamente criticada (Vovelle, 1982; Furet, 1982) Porianto, a grande renovagao teérica propiciada pela reconstru- gao do tempo histrico pelos Annales foi a histéria-problema. Ela veio se opor ao cardter narrative da historia tra nal. Ela veio reco- nhecer a impossibilidade de se “narrar os fatos tal como se passaram”. Reconhece-se que nao ha histéria sem teoria. A pesquisa histérica é a verifieagio de respostas-hipéteses possiveis a problemas postos no Inicio, Nela, o historiador sabe que escolhe seus objetos no passadoe os interroga a partir do presente. Ele explicita a sua elaboragio con- ceitual, pois nao pretende se apagar na pesquisa, em nome da objeti vidade. Ao contrario, exatamente para ser mais objetivo, ohistoriador “aparece e confessa” seus pressupostos e conceitos, seus problemas e hipGteses, seus documentos ¢ suas técnicas ¢.0s modos como as util zou ¢, sobretudo, a partir de que lugar social ¢ institucional ele fala.O: historiadorescolhe, seleciona, interroga, conceitua, analisa, sintetiza, conclui. A partir da posigfo do problema, o historiador distribui as suas fontes, atribui-lhes sentido ¢ organiza as séries de dados que ele tera construido, Otexto histéricoéo resultado de uma explicita e total construgao teérica € nado o resultado de uma narragio objetivista de um processo exterior organizado em si pelo final, A organizagao da pesquisa é feita pelo problema que a suscitou; este vai guiar na sele- ¢4o dos documentos, na selecio ¢ construgao das séries de eventos relevantes para a construgao de hipdteses. Rompendo coma narragao, a histéria tornou-se uma empresa tedrica, que segue o caminho de toda cién poe problemas e levanta hipéteses ¢ demonstra-as com 25 uma documentagao bem criticada e com uma argumentagiio concei- qual rigorosa. Ela nao é mais orientada por valores transistéricos ou uma narragio da chegada final e triunfal da Razao (Furet, 1982; Mas- sicotte, 1971). Febvre define essa histéria intelectualista, esta historia tedrica, como um estudo “cientificamente conduzido”. Essa histéria concei- tual, problematizante, analitica, € uma inquietagio permanente, que repoe em causa, de forma racional ¢ metédica, as “verdades tradicio- nais”, Essa nova histéria reabre constantemente o passado, em vez de reconstitui-lo definitivamente, Ela retoma-o, remane]a-0, rediscute- o, estimulada pelas experiéncias do presente, que é sempre novo € exige, para se pensar, a reabertura constante do passado (Febvre, 1965). Ahistéria conduzida por problemas ¢ hipateses, por construgdes bem elaboradas e explicitas, representou a mais profunda renovagao teorica da historia. O historiador mudou de posigao € de disposigao: se antes ele era proibido, em tese, de aparecer na pesquisa, o que é uma interdigao impossivel de ser cumprida, agora, ele é obrigado a “apare- cer” e a explicitar a sua estrutura tedrica, documental ¢ técnica € o seu lugar social ¢ institucional, Como empresa racional de pesquisa, a his- toria pode atingir algum grau de “i ntersubjetividade”. A comunidade dos historiadores é capaz de acompanhar e controlar as pesquisas histd- ricas multiplas, pois foi posta a par dos pressupostos, dos documentos € seus meios de processamento, sabe o que o pesquisador quis demons- trare onde ele pode chegar. Ahistéria deixou de ser uma empresa intui- tiva, fundamentada em a prioris indemonstrdveis e passou a ser “comu- nicdvel”, criando-se assim as condig6es de uma “jntersubjetividade”. Mesmo na discordincia dos pontos de vista dos resultados das pesqui- sas, é possivel odidlogo entre os pesquisadores, pois cadaum sabe oque o outro pretendia e o que ele conseguiu ou nao conseguiu € o que ele deveria fazer para conseguir 0 que queria ou o que o impediu, ainda que atingindo o seu objetivo, que seus resultados fossem divergentes ao de outras pesquisas, Um estudioso norte-americano de Braudel, H. Hex- ter, considera a histéria-problema préxima da matemiatica — elatema elegiincia de uma demonstragao! (Hexter, 1972). A possi ade da histéria-problema liga-se estreitamente 4 reconstrucio do tempo histérieo produzida pelos Annales. Essa inova- cao tedrica depende de uma anterior reconstrucio da representagiio do 26 tempo histérico. A representagao teleolégica do tempo histérico & compativel com a histéria-narrativa ¢ incompativel com a histéria- problema. Primeiro, nao sendo mais movida pelo fim, mas articulacdo: de permanéncia e mudanga, a histéria ndo é mais representada como tan progresso. A historia nao realiza valores transcendentais. Ela nao possuium sentido/direcao final antecipavel. O desdobramento do tem- po nao é uniforme, linear, homogéneo. Ha tempos miiltiplos, observa- dos nos processos mesmos e reconstruidos pelo historiador. As socie- dades e cada uma delas vivem em ritmos distintos ¢ o seu presente nado é centrade, mas uma coexisténcia tensa de duragdes miultiplas. O his- toriador reconstréi essas duragées, coordena-as através do tempo representado, modelos e conceitos, O vivido eo seu conhecimento nao se recobrem; eles se separam. O tempo é uma realidade dada nos pro- cessos humanos concretos, mas nao pode ser apreendido em si e nao pode ser conhecido especulativamente. Nem percebido imediatamen- te¢ nem antecipavel especulativamente, o tempo histérico s6 pode ser reconstruido teérica e formalmente. A reconstrugiio nfo se confunde com 0 vivido e nao o legitima, Ha dois tempos: o real e o pensado, o lo-e o reconstruido. So esferas diferentes que dialogam e nao se recobrem e nao se legitimam reciprocamente. A pesquisa histérica conduzida por problemas é uma “reconstrugao temporal”, que polemi- zacomo passado-presente, mas ndo chega a “reconstitui-los” talcomo se passaram. O conhecimento histérico nao coincide como seu objeto enemé conduzido por um “dever ser” final, por valores. O conheci- mento histérico constréi ¢ tematiza o seu objeto, formula problemas ¢ hipoteses, sob a influéncia do presente, sem se referir a valores teleo- légicos (Furet, 1982), : Segundo, ha uma outra periodizagdo — ela é agora temiatica e definida pelo problema a ser tratado. As periodizagdes demografica, econdmica, social, lingilistica ¢ antropolégica nao sio grandes cortes na histéria da humanidade, mas uma flutuagio ciclica no interior de uma estrutura. Na sucesso visivel, nas duracées reais, 0 conceito as diferencia earticula, O tempo real toma-se pensdvel conceitualmente. E uma periodizagao que toma o passado em suas duragdes multiplas para tornd-lo abordsivel e inteligivel (Pomian, 1988). ; Terceiro, ha outra relagao passado-presente: sao diferentes que dialogam; entre eles, hd uma relagao de interrogagio reciproca. O pre- sente nio continua e nem é superior ao passado; é “outro”. O método 27

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