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Textualizacao do espaco e espacializacao do texto Car.os Res” PALAVRAS-CHAVE: Espago, Ambiente cletrdnico, Ciberespaco, Hipertexto, Narrativa KEYWORDS: Space, Electronic media, Cyberspace, Hypertext, Narrative. 1. Um dos finais de romance mais famosos da literatura ocidental é aquele em que 0 protagonista de Le pere Goriot (1835), de Balzac, observa Paris, a partir do cemitério do Pére Lachaise, ou seja, de um lugar elevado que favorece a viséo panoramica de um amplo espaco. Cito:! Rastignac, resté seul, fit quelques pas vers le haut du cimetire et vit Paris tortueusement couché le long des deux rives de la Seine ot commengaient a briller les lumiéres. Ses yeux sattachérent presque avidement entre la colonne de la place Vendome et le déme des Invalides, la oit vivait ce beau monde dans lequel il avait voulu pénétrer. Il lanca sur cette ruche bourdonnante un regard qui semblait par avance en pomper le miel, et dit ces mots grandioses: «A nous deux maintenant!» Et pour premier acte du défi quil portait & la Société, Rastignac alla diner chez madame de Nucingen. (Balzac, 1910: 343). O texto estd, evidentemente, dominado pelo olhar de Eugéne Rastignac; contudo, nao é especificamente ele que me interessa, mesmo sabendo-se que isso a que a narratologia chamou focalizagdo interna resulta de uma evolugio de processos narrativos que trouxe & cena do romance o ponto de vista e, com cle, o envolvimento pessoal de uma personagem que serve de filtro qualitativo A representagio da histéria. O que agora importa é notar que aquele olhar s6 faz sentido em fungao de um espaco que, sendo cativante e absorvente da ' Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra/Centro de Literatura Portuguesa. SsRUA-L, Revista da Universidade de Aveiro | n.° 2 (II, série) 2013/14 | p. 105-118 | ISSN 2183-4695 106 Carlos Reis atengao do protagonista, nao é homogéneo nem coeso. Trata-se, evidentemente da cidade de Paris, aquela que entao era a metrépole por exceléncia; € sobre ela que se projeta uma atitude de desafio ¢ de desejo de posse que decorre de muito do que antecede este breve episddio final. Mas a cidade ¢ muiltipla: ela tem lugares determinados («la place Vendome; cle déme des Invalides»), assume comportamentos de entidade viva c agitada, fecunda e até motivadora de cobiga ¢ de calculada ambigao. Mais: no derradeiro pardgrafo, o que parecia apenas espaco fisico volve-se em espago social, uma vez que €2 Sociedade, assim maiusculada e, como tal, aproximada da condigao de personagem, que se endereca o desafio de Rastignac;’ ¢ esse desafio nao pode dissociar-se de um outro ¢ mais abrangente espago, que € 0 que enquadra as tensGes ¢ as mutagées vividas no mundo em que a burguesia ascendente disputa poderes com a nobreza restauracionista.’ Por fim, menciona-se um derradeito espaco, agora de outra dimensao, a casa Nucingen, que antecipa o desenvolvimento da Comédie Humaine (La maison Nucingen, 1837-38) € reafirma a relevancia funcional deste componente da narrativa. Digo relevancia funcional e com um propésito. Tato assim de vincar que a presenga do espaco no relato, num romance como Le pere Goriot (c, como nele, em todo 0 romance que ao longo do século XIX seguiu a matriz. balzaquiana), se define nos termos de uma alteridade nitida em relagao 4 personagem. O espaco é um elemento auténomo, rural ou urbano, industrial ou campestre, susceptivel de descrigdes variavelmente pormenorizadas, capaz de ganhar contornos sociais, econémicos e mentais, mas sem deixar de ser um contexto de enquadramento para comportamentos que com ele interagem; era assim 2A edicao aqui utilizada difere de edig6es anteriores, onde nao aparece a referéncia & sociedade (cf, Balzac, 1855: 531). 9 E muito significativo o conhecido testemunho de Engels, em carta a Margaret Harkness, acerca da representatividade histérica e social do espaco social da Comédie Humaine: «Balzac, whom I consider a far greater master of realism than all the Zolas passés, présents ec a venir [past, present and future], in “La Comédie humaine” gives usa most wonderfully realistic history of French ‘Society’, especially of le monde parisien, describing, chronicle- fashion, almost year by year from 1816 to 1848 the progressive inroads of the rising bourgeoisie upon the society of nobles, that reconstituted itself after 1815 and that set up again, as fat as it could, the standard of la viellie politesse francaise (...]. And around this, central picture he [Balzac] groups a complete history of French Society from which [...] Thave learned more than from all the professed historians, economists, and statisticians of the period together» (Marxist Internet Archive Library: heep://www.marxists.org/ archive/marx/works/1888/letters/88_04_15.htm; acedido a 23.2.2014). Textualizagio do expago espacializastio do texto 107 também (¢ talvez até de forma mais expressiva) no romance que construfa a personagem em fungao da influéncia que sobre ela exercia 0 espago social. E ainda a proeminéncia ea especifica «identidade» do espago que se evidenciam, quando falamos em literatura rural ou em literatura urbana, tal como, em tipologias do romance, aludimos a romance de espaco (a par de romance de agao ou de romance de personagem). Se reconhecemos que em certa literatura (¢ em particular na ficgao narrativa) 0 espago se impde como um intenso foco de irradiaco semantica, dizemos também que muitas vezes essa literatura remete para (ou até, de certa forma, provém de) um outro espago, que é 0 espago da escrita. Balzac escreveu sobre Paris estando em Paris, sendo a cena da escrita um fator decisive para a constituigio de um espago ficcional que dependia estreitamente de uma epistemologia da observagio dos cenérios e dos meios sociais modelados; confitma-o por oposi¢éo Ea de Queirés, quando, numa bem conhecida carta a Ramalho Ortigao e lamentando as suas dificuldades de romancista que descreve uma sociedade (um espaco social) de que est fisicamente distante, declara: Convenci-me que um artista nao pode trabalhar longe do meio em que esté a sua materia artistica: Balzac (si Jicitus est...) nao poderia escrever a Comédia Humana em Manchester, e Zola nao lograria fazer uma linha dos Rougon em Cardiff; eu no posso pintar Portugal em Newcastle. (Queirés, 2008, I: 190) Acontece que aqui nfo esté em causa apenas uma questo (digamos) deontolégica de coeréncia, relativamente aquela epistemologia da observacao: ela podia ser torneada, pela via da imaginacao e da informagéo documental, quando 0 romancista nao tinha acesso direto ao espago representado. O mesmo Ega que postulava a necessidade do contato direto com 0 espago escreveu sobre a China (n’O Mandarim, de 1880) onde nunca fois ¢ nao consta que Jules Vernes tenha visto os espacos subaqudticos navegados pelo Nautilus, sob o comando do capitio Nemo. Naquele tempo em que o espaco fisico do romance tantas vezes provinha do meticuloso conhecimento de visu da realidade material, o romancista no raro tinha também a consciéncia de que se ditigia a um puiblico que, a pouco € pouco, ia conquistando um outro espago, que cra o da leitura. O século XIX em que se dé a substituicdo do leitor pelo puiblico! é também 0 tempo em que * Recordo os termos em que E¢a de Queirés, num texto conhecido, explicou o eclipse do leitor e 0 advento do puiblico, na sequéncia das transformagies sociais ¢ econémicas 108 Carlos Reis o livro entra no espaco doméstico da burguesia progressivamente aculturada € da mulher évida de um romanesco que lhe preenchesse os écios (Cunha, 2004: 42 $s., 66 ss.). Ao mesmo tempo, a biblioteca publica contribui, juntamente com os gabinetes de leitura, para favorecer a democratizacao do livro e da leitura; e sendo essa leitura muitas vezes uma leitura literdria, vai ganhando sentido uma expresso difusa ¢ ampla a que voltarei: 0 espace literdrio. ‘Antes de Ié chegar, quero lembrar o significado de um texto em que se fala da leitura como metéfora de uma relagao com o livro e com a literatura cujos sinuosos equivocos se reportam a um tempo, a um espago e a um ritual em vias de extingao. No admiravel romance Se numa noite de Inverno um viajante (1979), brilhante combinagéo de alegoria, parédia ¢ movimento narrativo, Italo Calvino coloca no centro da histétia o livro convencional, o leitor ¢ a leitura, as seducGes ¢ as armadilhas da ficsio; mas nao o faz. sem elaborar, com minticia, um espago privado que é aquele em que se desenrola uma leitura sempre surpreendida por desenvolvimentos acidentais, diretamente relacionados com a materialidade do livro. Assim: Regula a luz de modo a nao te cansar a vista, Fé-lo ja porque logo que estiveres mergulhado na leitura jé nao vais ter oportunidade de te mexeres. Procura fazer com que a pagina nao fique na sombra, um adensamento de letras negras sobre fundo cinzento, uniformes como um bando de ratos; mas tem cuidado para que no se Ihe chape em cima uma luz demasiado forte ¢ no se reflita no branco cruel do papel mordendo as sombras dos carateres como num meio-dia do Sul. Procura prever agora tudo 0 que possa evitar a interrupgao da leitura. Os cigarros ao aleance da mao, se fumas, 0 cinzeiro. Que é que hé mais? Tens de fazer chichi? Bem, tu é que sabes. (Calvino, 1995: 8). 2. No devir evolutivo da narrativa ficcional (¢ em especial do romance) pés-balzaquiana, lidamos cada vez mais com um conceito de espago liberto dos contornos de uma matetialidade que as injungées ideolégicas do realismo sobrevindas & Revolugio Francesa: «Essa coisa a0 maravilhosa, dum mecanismo to delicado, chamada o individuo, desaparece governadas por um instinto, por um interesse ou por um entusiasmo. Foi entéo que se sumiu o Leitor, o antigo Leitor, discfpulo e confidente, sentado longe dos ruidos incultos sob 0 claro busto de Minerva, 0 Leitor amigo, com quem se conversava deliciosamente em longos, loquazes Proémios: ¢ em lugar dele o homem de letras que se chama o Piiblico, que lé alto e & pressa no rumor das ruas.» (Queirés, 2009: 189) € comegaram a mover-se as multiddes, diante de si a turba Textualizagio do espago e espacializastio do texto 109 haviam imposto, incluindo-se naquela materialidade uma derivada componente social ¢ reformista. A passagem do século XIX para o século XX e a revolugiio romanesca (cf. Zéraffa, 1969) que lhe correlata trazem consigo um espago metaforizado: € o espago psicolégico que domina o agir de personagens as vezes de recorte impreciso ¢ de identidade problematica. Estamos agora num tempo literdrio que transcorre, grasso modo, do fim de século aos anos 30 do século XX, tempo a que genericamente chamamos modernista (cf. Bradbury/McFarlane (eds.), 1991) e cujos protagonistas (Proust, Valéry, Joyce, Musil, Kaflca, Mann) retiram densidade ao espago como elemento romanesco. Assim se abre caminho a ponderagées que em muito transcendem, sempre num plano de referéncia figurada, as utilizagdes de cunho mimético que caracterizavam a nogio de espaco, tal como as encontramos na abertura deste texto. Chego, deste modo, a oscilagées ¢ a derivas semanticas a que o conceito de espago em contexto literério tem estado sujeito, sustentando, pelo menos, duas vias de andlise aurénomas. Primeira via: podemos afirmar a nocao de espao literdrio como dominio conceptual legitimado por aquelas oscilagdes e derivas, até ao limite da diluigao da concretude do espaco assim posta em causa; impoe- -se, entdo, uma postulacao simbdlica do espaco como aquela que foi consagrada por Maurice Blanchot, ao libertar a obra literéria, a sua escrita e a sua leitura de coordenadas sociais que a sufocam com o peso das suas determinagies. Em vez disso, a instancia da solidao ¢ da auséncia de tempo que regem a esctita conduzem, segundo Blanchot, a um espaco literitio de intimidade aberta: «oeuvre est oeuvre seulement quand elle est Pintimité ouverte de quelqu'un qui écrit et de quelqu’un qui la lit, Pespace violemment déployé par la contestation mutuelle du pouvoir de dire et du pouvoir d’entendre» (Blanchot, 1968: 31-32).° A segunda via de andlise a que aludi tem em atengao as miltiplas trans- formagées que o digital ¢ a sociedade em rede trouxeram as produgées discur- sivas (¢ nao 86 a elas, evidentemente). Estamos agora em plena «cultura da virtualidade real», como lhe chamou Manuel Castells, num livro fundamental. No «sistema de comunicagio, organizado pela integracao eletrdnica de todos os meios de comunicagao, do tipogréfico ao sensorial», nao se trata de «induzir A realidade virtual», mas de «construir a virtualidade real» (Castells, 2005: 489). 5 Em Garnier/Zoberman, 2006, encontra-se um conjunto de ensaios onde a nogéo de espaco literfrio é relacionada com outras utilizagdes, por assim dizer convencionais, do conceito em apreco. 110 Carlos Reis ‘Acompanho ainda o pensamento de Castells para sublinhar, no presente contexto, o significado da reformulagio do espaco em espaco de fluxos: © novo sistema de comunicagio transforma radicalmente 0 espago ¢ 0 tempo, as dimensoes fundamentais da vida humana, (...) © espago de fluxos e 0 tempo temporal sio as bases fundadoras de uma nova cultura, que transcende e inclui a diversidade dos sistemas de representagao historicamente transmitidos: a cultura da virtualidade real, onde o faz-de-conta se vai tornando realidade. (Castells, 2005: 492). Daqui sou conduzido a uma reformulagao do espaco literdrio (jé nado no sentido blanchotiano, como é ébvio), entendido como ecossistema para a escrita € para a leitura, regido pela ldgica do digital ¢ pelo potencial do trabalho em rede. E entao que, jé num plano de abordagem totalmente diverso do que se encontra no inicio deste texto, falo nao em espaco, mas em ambiente eletrénico, parecendo, ainda assim, que a expressio ¢ limitada para comportar tudo aquilo que por ela é sugerido. Num primeiro momento, deve dizer-se que o redimensionamento do espaco literdrio em ambiente cletrénico depende do desenvolvimento de ferramentas informaticas cujo impacto na produgio de textos, no seu armazenamento, na sua circulagio e na sua leitura ¢ decisivo, tal como aconteceu (ainda assim de forma menos decisiva) com a industrializagao da produgao do livro, na passagem do século XVIII para o século XIX. Confirma-se aqui amplamente a pertinéncia de premoniges enunciadas por Italo Calvino, nas suas Seis propostas para o préximo milénio (1985), quando previu que a velocidade e a leveza seriam (como esto a set) dominantes no nosso século XI. Apontam nesse sentido propriedades que reconhecemos nos dispositivos cletrénicos que presentemente manejamos (p. ex.: os tablets), tais como a portabilidade, a mobilidade ¢ a amizade (no sentido em que a sua utilizagao ¢ intuitivamente acessivel ¢ inclusiva). E € evidente que estas propriedades sao inseparaveis de uma importante mudanga de procedimentos cognitivos, tal como é determinado pela natureza daqueles dispositivos, pelo seu formato e pelos suportes que neles se materializam. Consabidamente, ler num monitor eletrénico informagées de miltipla conformagio (imagem, texto, musica) implica reag6es e comportamentos bem diferentes daqueles que o texto impresso (literério ou nfo) convocava, O incremento do potencial semiodiscursivo das mensagens em ambiente cletrénico, gragas adjungao de sugestivos componentes multimédia, bem como a generalizagao do acesso, com grande celeridade, a redes ¢ a bases de dados Textualizagio do expago e espacializagio do texto un amplamente disponiveis, explicam a importéncia de uma cultura, de uma economia e de uma sociabilidade projetadas cada ver mais nesse espago a que chamamos ambiente eletrdnico. Para além disso, nas atividades que nele se enquadram — no ensino, no entretenimento, na criagéo artistica, na comunicacéo social, no comércio -, predomina agora a interatividade; & essa interatividade que incentiva atitudes colaborativas tendentes a diluir ou a neutralizar as fronteiras ¢ os estatutos de quem produz ou ensina e de quem consome ou aprende. E também de quem escreve ¢ de quem lé: os papéis so agora permutdveis, com grande agilidade. Tendo em atengéo o alcance ¢ os limites deste texto, néo entro agora em questées ao mesmo tempo estimulantes e problemdticas que, nos planos juridico, ético, artistico e epistemoldgico so e sero desencadeadas pela cultura ¢ pela economia do digital e da informagao em rede. Por exemplo, temas to diversos como o da propriedade intelectual, o da originalidade e 0 do plégio, 0 da tensao entre 0 ptiblico ¢ 0 privado, o da crise da meméria instrumental ou 0 da revisio do conceito de leitura. Estes ¢ outros que o citado Castells abordou naquela sua obra em muitos aspetos fundacional (¢ também em Castells, 2007) € a que muitos outros tém voltado, as vezes num tom entre o provocatério € 0 apocaliptico (p. ex. Carr, 2010). 3. Transito da breve caracterizacio do chamado ambiente eletténico das suas potencialidades de refiguracdo da cena literdria para a referéncia a praticas que foram objeto de rearticulagio profunda, como efeito do potencial transformador de um espaco a que chamamos agora ciberespago. O termo nao € novo ¢ foi cunhado justamente quando se tornou evidente que novas ferramentas induziam uma nova dinamica ¢ uma nova epistemologia dos processos culturais. Em 1997, Pierre Lévy recordava a autoria ¢ a origem do vocabulo ciberespago — 0 romancista William Gibson e 0 seu romance de ficgo cientifica Neuromante, de 1984 -, para notar que a sua utilizagio no relato em causa tornara «sensfvel a geografia mével da informacao», alargando-se a criagao de uma cibercultura hoje disseminada & escala mundial, numa «profusio de correntes literdrias, musicais, artisticas e talvez até politicas» (Lévy, 2007: 92). Logo a seguir, Lévy propée a seguinte definigao de ciberespaco: Eu defino 0 ciberespago como 0 espaco de comunicagiio aberto pela interconexito mundial dos computadores e das memérias dos computadores. Essa definigao inclui 0 conjunto dos sistemas de comunicacio eletrénicos (ai inclufdos os conjuntos de 112 Carlos Reis redes hertzianas e telefnicas cléssicas), na medida em que transmitem informag&es provenientes de fontes digitais ou destinadas a digitalizacao. Insisto na codificacéo digital, pois ela condiciona 0 caréter plistico, Aluido, calculével com precisio ¢ tratdvel em tempo real, hipertextual, interativo e, resumindo, virtual da informacao que é, parece-me, a marca distintiva do ciberespago. (Lévy, 2007: 92-93). Chamo a atengio para o seguinte: a abordagem de Pierre Lévy decorre ainda num plano de reflexéo relativamente incipiente, aquém da trivializagéo de ferramentas que viriam a dar um sentido mais consistente ao passo citado. Lembro que a edigéo original do livro de Lévy & de 1997; nesse ano, a Google ainda nfo existia e, segundo dados da International Telecommunication Union, a Internet chegava apenas a 2 por cento da populagio mundial (1 por cento nos chamados pafses desenvolvidos), mimeros que podemos considerar absolutamente residuais. Ainda assim, a definigéo de Lévy trazia consigo conceitos ¢ anunciava praticas que, também no universo das inovagées literdrias em ambiente eletrénico, haviam de conhecer considerdvel fortuna: a comunicagio em rede, a codificagao digital, a hipertextualidade associada a interatividade ¢ a informa- sao digital. E se coincidéncias existem, no tocante as matérias aqui em aprego, entao 0 ano de 1997 terd sido inquestionavelmente fecundo: o livro pioneiro de Espen J. Aarseth sobre cibertexto ¢ literatura ergddica é daquele mesmo ano; o que nele se propde é uma relacéo do leitor com o texto que, em correlagéo com uma nova dinamica composi iva, leva a superar a leitura em regime de sequencialidade «espacial» (isto é, umas paginas a seguir 4s outras).¢ Esclarego que, se falo de uma nova dinamica compositiva, nao quero com isso sugerir que estejamos perante uma novidade absolutamente surpreendente no respeitante ao culto do texto como materialidade trabalhada enquanto tal. muito antiga a tendéncia (quase sempre marginal, é certo) para induzir efeitos inda que Aarseth nfo fizesse depender a leitura ergédica da existéncia de um texto em ambiente cletrénico, jé entao era evidente que a répida difusio da informatica seria decisiva para fomentar préticas construtivas (de escrita e de leitura) dinamicamente colaborativas: «E, crenga comum», declarava Aarseth, «que a répida evolugéo no campo da tecnologia digital desde meados do século XX até ao presente originou (...) formas radicalmente novas de escrita e de leitura. Esta perspetiva, estimulada pela crescente experiéncia pessoal de tecnologia informatica entre a massa académica, pode observar-se até em estudos literdrios que, desde 1984, crescentemente tem procurado captar e construir textos mediados por computador como objetos de critica literdria» (Aarseth, 2005: 31). Textualizagio do expago e espacializagio do texto 113 visuais a partir do tratamento do princfpio da espacialidade e da sua projecdo no branco da pagina, pelo recurso a engenhosas solugdes gréficas. Muito antes das conhecidas tentativas pré-modernistas de Mallarmé e da escrita caligramatica de Apollinaire, registam-se experiéncias literdrias de configuracao gréfica, com expressivos efeitos visuais, em especial desde que a imprensa de carateres méveis viabilizou a elaboracao da espacialidade dos textos e em particular dos textos poéticos (cf. Hatherly, 1983). Nao € isto exclusivo dos textos poéticos, parecendo até que episodicamente esta tendéncia ganha um significado préprio num modo discursivo como a narrativa, Nesta, é a temporalidade e no tanto a espacialidade que motiva a propriedade nuclear dos textos narratives a que chamamos narratividade. E contudo, quando o relato se funda num forte impulso para a visualizacao do espaco diegético, esse impulso estende-se & necessidade de explorar, com manifesta carga erética, um outro espaco a observar, que é o da pagina em branco. Penso aqui n’O Delfim (1968), de José Cardoso Pires, romance que abre com uma descri¢do de consabida feicao cinematogréfica; nela, o olhar, a janela que enquadra 0 espaco exterior, 0 que nele se vé e 0 que apenas se adivinha (porque é j4 conhecido), tudo isso lembra um clissico do cinema, A Janela Indiscreta (1954), de Hitchcock, evidentemente. Na abertura do romance, o nartador fixa um lugar de onde observa ¢ a circunstancia que 0 envolve: «Cf estou. Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje uma ano, me instalei na minha primeira visita & aldeia [...]» (Pires, 1972: 9); depois, especifica o que o rodeia, os objetos que pode tocar, a tal aldeia que agora revé € pensa «nos seres que a habitam e que formigam Ié em baixo, até chegar a um «pormenor importante» que é justamente a janela que inspira a representacao paracinematogréfica do espago: «Enfrento a janela de guilhotina que d4 para 0 tinico café da povoagio, do outro lado da rua, e, mais para diante, vejo 0 largo, a estrada de asfalto e um horizonte de pinhais dominado por uma coroa de nuvens: a lagoa.» (Pires, 1972: 10). Noutro passo, quando se trata de caracterizar uma personagem (em termos que jf nada tém que ver com a retérica descritiva da personagem oitocentista) &a materialidade da escrita no espago da pégina que antes de mais convoca o olhar de quem escreve eo de quem Ié, Assim, em fungdo de um apelo implicito aatengio do leitor, este vem participar, pelo menos acompanhando o raciocinio do narrador, na valorizagao desse outro espaco que assume uma dimensio de tertitorialidade, revestindo-se mesmo de indiscutivel prioridade em relacdo & figura descrita. E sempre sob o signo dessa prioridade que se congemina um 114 Carlos Reis desenho que introduz uma representagio de feigao alegérica. Recordo 0 inicio do capitulo XII d’O Delfim:

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