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Uma forma de identidade africana Foi quando frequentava a 4.’ classe da instruc’o pri- méaria que fiquei a saber que além de cabo-verdiano da Boa Vista também era portugués de Portugal. Mas foi uma descoberta extremamente gratificante. Em primeiro lugar, porque estavamos justamente apren- dendo que Portugal era dono de muitas e imensas ter- ras de aquém e além-mar em Africa e outras partidas do mundo, e isso queria dizer que na qualidade de portu- gueses éramos igualmente ricos em ouro, diamantes € outras preciosidades que famos conhecendo dos livros, embora sem saber muito bem que valor tinham ou para que serviam. Em segundo lugar, porque essa excitante revelacdo coincidiu com a meteérica visita do Presidente Craveiro Lopes a Boa Vista. Nés j4 sabiamos que o Presidente da Repiblica estava para chegar, o velho pontéo de madei- ra estava sendo urgentemente reparado para o desem- barque de Sua Ex. com a dignidade que se impunha, mesmo a rua por onde o cortejo deveria passar estava jA toda engalanada com ramos de tamareira e diversas fotografias de gente importante, mas foi s6 no proprio dia da chegada do homem que nos vimos surpreencli 13 GERMANO ALMEIDA dos com a agradavel novidade, escrita em enormes le- tras negras numa grande tira de pano branco esticada entre dois postes enfeitados com ramos de tamareira, de que «AQUI £ PORTUGAL». £ certo que poderiamos ter tido consciéncia desse importante pormenor ha muito mais tempo. Entre outros sinais, havia a fotografia de Anténio Oliveira Salazar dependurada em todas as repartigGes piblicas por cima da legenda «mais facil € obedecer que mandar, e tam- bem a velha e ja esfarrapada bandeira que todos os do- mingos era cuidadosamente igada no edificio da Cémara Municipal. Mas acontecia que para nds essa era apenas mais uma das obrigagdes do tonto Nené de Chalau a juntar 4s suas fungdes de varredor de vila e tocador nos dias de festa. Mas se ficamos entusiasmados, quer com 0 aparato do desembarque de tanta gente fardada de branco, sal- tando da lancha da mesma forma como imaginavamos os macongos saindo do mar em noite de lua cheia, quer com a afirmag4o do administrador do concelho de que na Boa Vista «todos labutam em prol de um Portugal cada vez maior, a visita presidencial em nada colidiu com a questao da nossa identidade. Porque, afora o Sr. José Mateus, um deportado de mais de 80 anos que tinha aportado 4 ilha com dois pequenos barcos de pes- ca e trés mesas de matraquilhos, a presenca portuguesa resumia-se ao carpinteiro naval Virgilio (que quando com uns vinhos gostava de cantar: «Quando era peque- nino © meu pai mandava-me a merda; agora que sou grande ele manda-me € pro caralhol) e ao gerente da Ultra, Sr. Patricio Correia, que além de dirigir a fabrica de conservas de peixe também se ocupava de experién- s de agricultura e pecuaria, tendo introduzido na Boa Vista nao s6 duas bombas edlicas como também um touro de uma raga tao descomunal que nunca conseguiu cruzar-com nenhuma vaca da terra devido a desconfor- midade do seu tamanho. 14 ESTORIAS CONTADAS Viviamos, pois, na tranquila seguranca de cabo-verdianos, com a inofensiva circunstancia adjuva de setmos também portugueses, quando essa pacatez foi abruptamente sobressaltada nos anos 60-70, com a agi- tada revelagio de que Cabo Verde também era Africa, e da mais pura, e nés outros apenas deserdados filhos arrancados ao seio materno por ferozes negreiros nos idos de 1480 e seguintes. Justamente essa revelagdo coincidia com a activa con- versio da maior parte da nossa jovem intelectualidade a condig&o de africanos, e por isso, muito as pressas, ti- vemos que aprender que também faziamos parte dos condenados da terra, que igualmente pettenciamos 4 grande massa humana meio gente meio besta chamada de «indigena», como ensinava um livro qualquer, embo- ra fosse certo, para nosso grande desgosto intelectual, que as tropelias descritas quer em Chora Terra Bem- -Amada quer em O Filho Nativo nada tivessem a ver com a nossa realidade de ilhéus perdidos no Atlantico. De modo que essa «pertenga africana: configurou-se sobretudo como um tremendo esforco de solidariedade para com desconhecidos irmios de sofrimento, a simples situagdo de colonizados obrigava-nos a estar sempre ¢ em todos os tempos ao lado dos oprimidos do mundo inteiro, muito embora fosse verdade que 0 colonizador em Cabo Verde estivesse representado quase exclusiva- mente por funciondrios cabo-verdianos. Mas se a assung&0 da condi¢ao de «africanos» veio permitir situarmo-nos no mundo, infelizmente provocou também em nés um grande sentimento de esvaziamento. E que, enquanto simples cabo-verdianos, afirmavamo- -nos detentores e portadores de uma identidade cultural que nos caracterizava e distinguia. Tinhamos um crioulo comum, a morabeza era uma caracteristica isoladamen- te cabo-verdiana, a morna apenas nés sabiamos fazer e cantar e mesmo o grogue e a cachupa em nada se con- fundiam com o vinho de palma ou o funche. Mas, walthe 15 GERMANO ALMEIDA canos» de uma Africa que nao conheciamos, uma Africa para n6s «sem histéria» e sem heréis, porque Gungu- nhana era apenas um negro rebelde e sanguindrio vatua de Mogambique em boa hora aprisionado e humilhado pelo glorioso Mouzinho de Albuquerque, acabamos por ficar numa situag4o de grande perplexidade e desnor- teamento face a todos os herdicos portugueses que tinhamos sido obrigados a conhecer desde a escola pri- maria E claro que nos meados dos anos 60 j4 tinhamos herdis africanos. Amilcar Cabral, Patrice Lumumba, Sekou Touré, Kwame Nkrumah e outros eram nomes de for- midaveis africanos que empolgavam a nossa imaginac&o, embora muito mais por extrapolag3o que por conheci- mente: quanto mais eram detestados pelos europeus, mais e melhores herdis eles ficavam. Mas nem por isso © nosso vazio ficava preenchido, entre outras razdes. sobretudo pelo facto de «os nossos irmaos» falarem em linguas que nés nao entendiamos. Ora, muito provavelmente ter4 sido Ovidio Martins a resolver-nos esse grave problema de identidade com a publicagdo do seu poema Os Flagelados do Vento Les- te. Porque com ele a nossa especificidade nacional comegou outra vez a aclarar-se: nds éramos os flagelados do vento leste, aqueles a quem as cabras tinham ensi- nado a comer pedras para nao perecermos. Assim, a nossa luta ndo era tanto contra a exploragdo, mas sobre- tudo contra o abandono a que estévamos votados, con- tra as secas e as fomes que de cada vez dizimavam cerca de um tergo do nosso povo. E, do mesmo modo, fazia- mos parte dos oprimidos da terra, porque se os outros | ram. por acc4o, nds éramos por simples e criminosa omissao. Alids, j4 em meados de 1967, Baltasar Lopes da Sil- va tinha reequacionado o problema de forma lapidar ¢ convincente: nio éramos nem afticanos nem europeus, apenas cabo-verdianos. ‘ 16 ‘ORIAS CONTADAS I} sem davida que criar essa terceira possibilidade onde nos situarmos é bem do cabo-verdiano. Porque 4 questo continua sendo mal colocada, Da Europa conhe- ciamos os portugueses, os franceses, os italianos, os espa~ nhois, os alemaes.., Mas para toda a Africa havia apenas 4 penérica expressao quase pejorativa de -afticanos», ¢ é natural que logo nos rebelassemos a entrar nesse imen- so saco sem que ao menos um rétulo nos identificasse. Porque nés sabiamos de ouvir contar as negras do que acontecia por toda essa Africa: pretos acorrentados, acoitados com chicote de cavalo-marinho, marcados a ferro em brasa e forgados a trabalhar sem nada receber © que, no fim, se rebaixavam diante dos brancos e di- ziam de joelhos: «Obrigado patrao. Sabiamos que quan- do um branco caminhava num passeio todo o preto espontaneamente saia do caminho para que ele pudes- se passat livremente e sem empecilhos... Ora, em Cabo Verde era tudo completamente dife- rente, Nés tinhamos a funda consciéncia de estarmos na nossa terra, se alguém estava a mais eram os poucos «mondrongos» que aqui viviam, as ruas, OS passeios e até as manobras eram nossas, se alguém devia acautelar-se ou desviar-se teriam de ser eles € n4o nds, € por isso nas ruas recebiam propositados encontrées de que nao se pediam desculpas, se queriam ser entendidos que aprendessem a falar crioulo... Nao senhor, a simples de- signagdo de «africanos» nao se adequava a nos. E viria a ser muito aos poucos que acabaémos por entender que os europeus, por malicia ou simples igno- rincia, tinham fomentado a nossa relutancia na aceitacgao da condigio de africanos. Porque falavam de «africanos» como se a identidade africana fosse uma tinica e exclu- siva. E tivemos que aprender que ha tantas identidades culturais quantos os povos africanos, e bem perfeitamen te que poderiamos pertencer a Africa desde que levasse mos uma etiqueta a assinalar-nos como senhores cle una identidade que nos particulariza como cabo-verdianos, 17

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