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Entrevista reflexiva: um olhar psicolégico para a entrevista em pesquisa Heloisa Szymanski A porta de verdade estava aberta mas sb deixava passar meia pessoa de cada vez (Drummond de Andrade, 1985) (...) nao sei se fui claro, nao foste, mas no tem importin- cia, claridade ¢ obscuridade sdo a mesma sombra ¢ a mesma luz, 0 esauro é claro, 0 claro é escuro, e quanto a alguém ser ca- (paz de dizer ce facto e exactamente 0 que sente on pens, iim- ‘plro-te que nia avvedites, uo porque nao se queira, é porque indo se pod. (Saramago, 1988) ‘A intencao que dirigiu a produgao deste artigo foi apresentar, de forma sistematizada, um procedimento de entrevista que ha anos vem sendo desen- volvido pela autora nos seus projetos ¢ nas orientages de pesquisa. A expe- riéncia foi delineando formatos, modos de proceder e aspectos a serem obser- vados quando se utilizam entrevistas em pesquisas qualitativas Este artigo pretende também abordar algumas questées psicolégicas suscitadas pela condigao de interagdo da entrevista ¢ apresentar 0 conjunto de procedimentos que foi sendo elaborado ao longo do tempo ~ a entrevista re~ flexiva — como uma possibilidade de contemplar algumas daquelas questies. ‘A entrevista tem sido empregada em pesquisas qualitativas como uma solugdo para 0 estudo de significados subjetivos ¢ de t6picos complexos de- mais para serem investigados por instrumentos fechados num formato padro- nizado (Banister, 1994). Lakatos (1993) inclui como contetidos a serem in- vestigados “fatos”, opinides sobre “fatos", sentimentos, planos de aco, conduta atual ou do passado, motivos conscientes para opinides, sentimentos e condutas. Minayo (1996) refere-se aos dados obtidos pela entrevista como 193 194 os de natureza objetiva — fatos “concretos”, “objetivos”, que poderiam ser ob- tidos por outros meios — ¢ os de natureza “subjetiva”, como atitudes, valores, opinides, que s6 podem ser obtidos com a contribuigao dos atores sociais en- volvidos (p. 108). Convencionalmente, entrevista tem sido considerada “(...) um encontro entre duas pessoas, a fim de que uma delas obtenha informagées a respeito de determinado assunto, mediante uma conversagao de natureza profissional” (Lakatos, 1993, p. 195) e “(...) proporciona ao entrevistador, verbalmente, a informacao necessaria” (idem, p. 196). Nessa visio est4 contemplado apenas © aspecto supostamente neutro, como aponta Minayo, de coleta de dados da entrevista € a posi¢ao passiva do entrevistado, considerado como um mero in- formante. Essa autora traz a entrevista para a “arena de conflitos e contra- digdes”, considerando os “critérios de representatividade” da fala e a questao da “interagéo social que esté em jogo na interagdo pesquisador-pesquisado” (p. 109). Para Rey, a investigaco nas ciéncias humanas trata de um “(...) su- jeito interativo, motivado ¢ intencional. A investigacao sobre esse sujeito nao pode ignorar essas caracteristicas gerais” (1999, p. 57). “Os proprios instru- mentos de investigacio adquirem um sentido interativo” (idem, p. 60). Ao considerarmos 0 cardter de interagdo social da entrevista, passamos a vé-la submetida as condigées comuns a toda interagao face a face, na qual a natureza das relacdes entre entrevistador-entrevistado influencia tanto o curso da entrevista como o tipo de informagéo que aparece. A entrevista, como experiéncia humana, da-se no “espaco relacional do conversar”, que, se- gundo Maturana (1993) é “(...) 0 entrelagamento do linguajar e do emo- cionar” (p. 9). Esse autor define o linguajar como um “coexistir em interagdes recorrentes” (p. 9), durante as quais os interlocutores coordenam suas condu- tas, de forma consensual. Esse processo recorrente, reflexivo, ndo pode acon- tecer separadamente das emogoes, definidas por Maturana como dominio de agoes, classes de condutas. O suporte emocional em que ocorre o linguajar pode modificar-se no decorrer do processo relacional, o que acarreta uma mu- danga no linguajar. Portanto, temos no conversar um continuo ajuste de ages e emogoes. Maturana vai mais longe, afirma que é a emogo que define a agio: “(...) a existéncia na linguagem faz com que qualquer afazer humano tenha lugar numa rede particular de conversagdes que se define em sua par- ticularidade pelo emocionar que define as agdes que nela se coordenam” (1993, p. 10). Esse autor foi lembrado para enfatizar 0 cardter de entrelacamento das emocées em todas atividades relacionais humanas. Nao se poderia esquecer dessa condigao na situacao de entrevista. Nessa perspectiva, sero focalizadas algumas questdes, como as condigées psicossociais presentes numa situacdo de interagao face a face, a relagao de poder e desigualdade entre entrevistador € entrevistado, a construgao do significado na narrativa e a presenca de uma intencionalidade por parte tanto de quem é entrevistado como de quem en- trevista no jogo de emogies € sentimentos que permanecem como pano de fando durante todo 0 processo. Partimos da constatagao de que a entrevista face a face é fundamental- mente uma situacio de interacio humana, na qual esto em jogo as percep- des do outro ¢ de si, expectativas, sentimentos, preconceitos, interpretages € constituigéo de sentido para os protagonistas — entrevistador/es e entrevis- tado/s. Da mesma forma que quem entrevista tem/busca informacies, quem € entrevistado também esté processando um conjunto de conhecimentos e pré-conceitos sobre o interlocutor e organizando suas respostas para aquela situacdo. Quem pesquisa tem uma intencionalidade, que vai além da mera busca de informagoes: pretende criar uma situacio de confianca para que 0 entrevistado se abra, pretende passar uma imagem de credibilidade e quer que o interlocutor colabore, trazendo dados relevantes para sua pesquisa. A concordancia em participar, como “informante”, de uma pesquisa, j4 é indi- cador também de uma intencionalidade por parte do entrevistado — pelo me- nos a de ser ouvido, acreditado e considerado, o que caracteriza o cardter ati- vo de sua participacio como desenvolvimento de modos de influenciar 0 interlocutor. Acreditamos, € nossa experiéncia tem demonstrado isso, que a entrevis- ta também se torna um momento de organizacio de idéias e de construgao de um discurso para um interlocutor. Isso j4 caracteriza o caréter de recorte da experiéncia e reafirma a situagao de interagéo como geradora de um dis- curso particularizado. Esse processo interativo complexo tem um caréter re- corrente, num intercambio continuo entre significados e o sistema de crencas e valores, perpassados por emoges € sentimentos. O termo “reflexivo” tem sido usado sempre que ocorte esse processo recorrente. Conforme a interacio que se estabelece entre entrevistador ¢ entrevis- tado, tem-se um conhecimento organizado de uma forma especifica. Dai per- cebe-se a participacio de ambos no resultado final. Holstein e Gubrium 195 196 (1995) apontam para o caréter ativo de todos os que participam da entrevista ¢ enfatizam que “(...) 0 processo de produgao de significado é tao importante para pesquisa social quanto o significado que esta sendo produzido” (p. 4). Essas idéias esto em linha com a proposta de que o significado é cons- truido na interacio. Ha algo que quem entrevista est4 querendo conhecer, utilizando-se de um tipo de interagéo com quem é entrevistado, que tem aquele conhecimento, mas que ira disp6-lo de uma forma tinica, naquele mo- mento, para aquele interlocutor. Muitas vezes esse conhecimento nunca foi exposto numa narrativa, nunca foi tematizado. O movimento reflexivo que a narracao exige acaba por colocar quem é entrevistado diante de um pen- samento organizado de uma forma inédita até para ele mesmo. ‘A questio desigualdade de poder e participacao de quem € entrevistado no processo também foi alvo de preocupacdo de muitos pesquisadores que apresentaram alternativas a modos convencionais de utilizagio de entrevista (Banister, 1994; Chambers, 1994; Lahire, 1997). Essas situagdes ocorrem num encontro que foi provocado por um dos atores sociais — 0 pesquisador. Ele elegeu a questao de estudo como algo de importancia, na maior parte das vezes escolheu quem entrevistar, e dirige a situagao de entrevista. O entrevistado, ao aceitar o convite para participar da pesquisa, esté aceitando um contrato de submissio aos interesses de quem esta fazendo a pesquisa, 20 mesmo tempo que se descobre dono de um co- nhecimento importante para 0 outro. Uma forma de considerar a questo da desigualdade de poder na situacio de entrevista é aceitar o pressuposto de que todo saber vale um saber (Freire, 1970; Héber-Suffrin, 1992) e a proposta de, pelo didlogo, buscar uma con- digo de horizontalidade ou igualdade de poder na relagio, Trata-se de res- peito, ¢ nao aderéncia, como lembra Freire (1992, p. 86), pelos “saberes da experiéncia” (Freire, 1970), resultado de uma compreensdo de mundo. ‘Trata-se também da consideragio de estratégias de ocultamento que en- tram em agio quando o entrevistado esconde informacdes que acha que po- dem ameacé-lo ou denegri-lo ou a seu grupo, ou, ao contrario, inclui infor- maces que, do seu ponto de vista, podem trazer uma visio mais favordvel de si ou de seu grupo. Nao podemos deixar de considerar o entrevistado como tendo um conhecimento do seu mundo, do mundo do entrevistador € das relagdes entre eles. Ao mesmo tempo que ha a representatividade da fala (Minayo, 1996), que nos possibilita a construgéo de um conhecimento, ha os ocultamentos € distorgoes inevitaveis Foi na consideracao da entrevista como um encontro interpessoal que inclui a subjetividade dos protagonistas ¢ se constitui num momento de cons- trugio de um conhecimento novo, nos limites da representatividade da fala € na busca de uma horizontalidade nas relagdes de poder que se delineou esta proposta de entrevista que chamamos de reflexiva. A reflexividade, como veremos adiante, é a ferramenta que poderd au- xiliar a contornar algumas dificuldades citadas acima, inerentes a uma si- twacao de encontro face a face, em especial quando 0s mundos do entrevistador e entrevistado forem muito diferentes social ¢ culturalmente e quando se procura construir uma condigao de horizontalidade. A proposta de uma acdo reflexiva definiu o formato desse tipo de entrevista em dois grandes momentos ¢ a sua condugao, como sera apresentado nos itens seguintes. Reflexividade tem, aqui, também o sentido de refletir a fala de quem foi entrevistado, expressando a compreensio da mesma pelo entrevistador € submeter tal compreensio ao proprio entrevistado, que é uma forma de apri- morar a fidedignidade ou, como lembra Mielzinski (1998), “assegurar-nos que as respostas obtidas sejam ‘verdadeiras’ — isto é, nao influenciadas pelas condicao de aplicacao e contetido do instrumento” (p. 132) ou, pelo menos, nao to influenciadas. Ao deparar-se com sua fala, na fala do pesquisador, ha a possibilidade de um outro movimento reflexivo — 0 entrevistado pode voltar pata a questio discutida ¢ articulé-la de uma outra maneira, uma nova nar- rativa a partir da narrativa do pesquisador. Essa “volta” ao entrevistado — garantindo-lhe o direito de ver e, talvez, discordar ou modificar suas proposigées durante a entrevista —, assim como os cuidados com quem é entrevistado, cumprem também um compromisso ético, presente em qualquer situacio em que se utilize a entrevista, tanto na pesquisa em ciéncias sociais como no jornalismo (Cripa, 1998). Os protagonistas: entrevistador/entrevistado Consideramos que uma entrevista, como interacao, € sempre uma inter- vengio, uma vez que um ser humano nunca é neutro para outro ser humano € que, como lembra Goffmann (1969), ha sempre uma influéncia mitua en- 197 198 tre as pessoas numa interagio face a face, definida pela interpretacao que se faz da situacio. Tal interpretacao define expectativas, disposigdes para a aco € 0 sentido da interagao Para o entrevistador, em principio, o entrevistado é alguém que tem uma informagio que lhe interessa receber € a situacao de entrevista pode ser interpretada como uma oportunidade para obter as informagoes desejadas. Hé expectativas em relagio ao interlocutor: espera-se que seja alguém dispos- to a dar as informages desejadas, que entenderd sua linguagem e suas so- licitagoes. Pode ter a expectativa de deparar-se com um recipiente de infor- macées que poderio ser “extraidas” como se extrai uma amostra de sangue com uma setinga. Pode, ingenuamente, esperar que 0 entrevistado discorra sobre sua experiéncia expondo-se, sem ocultamentos. Pode também esperar um parceiro no processo de construcio de um conhecimento. Pode-se supor diferentes modos de agit ¢ sentimentos conforme as expectativas (ou a frus- tracio das mesmas pelo entrevistado) -, até mesmo o planejamento da pré- pria entrevista Para o entrevistado a situagao também pode ser interpretada de inime- ras maneiras: uma oportunidade para falar ¢ ser ouvido, uma avaliagio, uma honra,-uma ameaca, um aborrecimento, uma invasao. Essa interpretagio de- fine um sentido, uma direcio, que se manifesta diferentemente, conforme a situago é percebida pelo entrevistado. Esse sentido pode ser 0 de provocar uma determinada emogio no entrevistador (piedade, admiragio, respeito. medo, solidariedade, etc.). Pode ser para agradar alguém que se julga impor- tante. Pode ser para deixar claro seu desagrado com o que considera invasio ou imposicao. Tantos sentidos quantas interpretagoes. Estas definem o rumo da entrevista ¢ a selegao das informagées que sao lembradas, esquecidas, ocul- tadas ou inventadas. Pode-se, assim, notar uma organizagao do modo de agir (nos dominios de ago, como diria Maturana ao referir-se 4s emoges) no sentido de assumir ou evitar comportamentos verbais e nao verbais, em especial quando se sente a propria integridade ameagada. Essa organizacdo do processo de interacao inclui a emergéncia de significados nao sé referentes ao contetido da fala, mas a situagao de entrevista como um todo, a relacdo interpessoal que se instalou, A histéria de vida do entrevistado e seu ambiente social e cultural. Esses niveis de significados interagem também reflexivamente, como, por exemplo, a his- toria de vida com a situacao interpessoal na entrevista — como em casos em que a interacao é interpretada como apoio afetivo, fazendo lembrar ou trazer a tona fatos especificos da histéria de vida. Uma outra situagao de interacao de niveis de significados pode ser o do contetido da fala do entrevistador com a situagio da entrevista e assim por diante — em casos em que a fala do entre- vistador é percebida como uma invasao da privacidade e a situacao de en- trevista pode transformar-se numa ameaca. O que € considerado intervengo, além da influéncia mitua, é o resul- tado de um processo de tomada de consciéncia desencadeado pela atuacao do entrevistador, no sentido de explicitar sua compreensao do discurso do entre- vistado, de tornar presentes ¢ dar voz as idéias que foram expressas. Essa intervencdo pode ser mais profunda ou superficial, atingir areas mais ou menos expostas ou secretas da experiéncia do entrevistado, mais ou menos estruturadas em discurso. Além do mais, a entrevista freqiientemente refere-se aspectos importantes da vida do entrevistado — em especial nas pes- quisas que se utilizam da historia de vida — e pode se constituir num momen- to de “exame” de consciéncia” ou “balango geral”, dependendo do grau de envolvimento que o entrevistado apresentar. E freqiiente ouvir-se relatos de pesquisadores informando sobre o envolvimento emocional de entrevistados. Cabe até 0 inesperado, quando uma “inocente” quest’io pode gerar uma reagao emocional imprevista ¢ uma mudanga no comportamento comunicativo, de- sencadeada por mudangas de significados nos diferentes ambitos de comuni- cacao: do contetido especifico, da situacao interpessoal, do discurso como um todo, do social ou cultural. Conforme 0 grau de envolvimento do entrevistado, as vezes, a mera es- cuta é interpretada como “ajuda”, quando o objetivo do entrevistador era apenas conhecer algo da experiéncia do entrevistado — embora uma escuta atenta respeitosa possa efetivamente ser um momento de ajuda. Ainda mais uma escuta que promove o desenvolvimento da consciéncia a respeito de um tema importante na experiéncia do entrevistado. Mas, obviamente, esse nao é um objetivo da entrevista cientifica, embora nao possamos ficar alheios a essa possibilidade. Caso haja esse efeito, o entrevistado deve ser informado que esse nao era o objetivo do encontro. Tal complexidade nao inviabiliza a entrevista como uma fonte de infor- mages, mas ela deve ser reconhecida, pois podemos criar condigées para ob- tengao de dados mais fidedignos. E é tendo em mente os diferentes signifi- 200 cados € sentidos emergentes em uma situagao de entrevista, tanto para o en- trevistado como para o entrevistador, que poderemos caminhar para uma compreensio daquilo que esta se mostrando na situagdo de entrevista. Desenvolvimento da entrevista Como procedimento de pesquisa pode ser considerada uma entrevista semi-dirigida, realizada no minimo em dois encontros, individuais ou coleti- vos. Nao se trata de seguir um roteiro fechado — ele pode ser visto como aberto no sentido de basear-se na fala do entrevistado, como veremos adiante —, mas os objetivos da entrevista devem estar claros, assim como a informagao que se pretende obter, a fim de se buscar uma compreensio do material que esta sendo trazido e dar uma diregao a entrevista. Mesmo sendo uma situacao de interacao, hd uma intencionalidade que precisa ser respeitada. Concordamos com Banister et alii (1994) quando considera que a en- trevista aberta muitas vezes mascara pressupostos ou agendas € expectativas. Por esse motivo é importante ter claros os objetivos da entrevista — que co- nhecimento efetivamente ela estar trazendo e que contribuird para respon- der o problema da pesquisa. Por outro lado, entrevista estruturada pode ten- der a aproximar-se mais de questiondrios, dificultando a investigagio de significados subjetivos, ¢ de temas muito complexos para a investigacio quantitativa (Banister, p. 50) Contato inicial Nesse primeiro momento, o entrevistado sera informado sobre dados do entrevistador, sua instituigao de origem e o tema de sua pesquisa. Deverd ser solicitada sua permissao para a gravago da entrevista e assegurado seu di- reito ao anonimato, acesso as gravacdes ¢ andlises ¢ aberta a possibilidade de ele também fazer perguntas. Sem se referir especificamente A entrevista, Rey nos informa que costuma trabalhar informando 0 sujeito da melhor forma possivel no primeiro contato ¢ solicitando-lhe sua participagio voluntiria cooperagao. Comeca “(...) com intercimbios informais ¢ relaxados que favo- recam a disposicéo dos participantes para trazer suas proprias reflexdes € problemas, que seriam utilizadas para estimular construgdes cada vez mais profundas dos sujeitos estudados” (Rey, 1999, p. 63) Seria desejével que parte do primeiro encontro fosse tomada pela apre- sentacio mtitua e que se buscasse esclarecer a finalidade da pesquisa, abrir um espago para perguntas e diividas e estabelecer uma relagao cordial. Ve- jamos um exemplo de contato inicial, num trabalho que visava o estudo da percepgio dos livros didéticos, por parte das professoras, em especial sua sen- sibilidade para a questo da discriminacao de género: Sou Fulana de Tal e es- tou fazendo esta pesquisa, que é parte do meu curso de mestrado, na Uni- versidade X. Estou estudando como o livro didatico é visto por algumas professoras nesta escola, como ele é escolhido, o que vocés consideram impor- tante de ser tratado nele ¢ como vocés 0 utilizam. O objetivo desta pesquisa € desenvolver posteriormente um trabalho de orientagao as professoras na es- colha e utilizacao do livro. Seu depoimento é muito importante para nés, pois ao longo de sua experiéncia vocé deve ter descoberto muitas coisas. Para ob- termos essas informagdes € preciso conversar ¢ eu gostaria de saber se vocé poderia dispor de um tempo para isso, sem prejudicar seu trabalho ou seu descanso. Tenho a autorizagéo da dirego da escola para fazer nosso trabalho € gostaria que sua participacdo fosse voluntéria. Mas nao hé problema algum se vocé nao puder participar. Como considero muito importante tudo o que for dito na nossa conversa, gostaria de grava-la, com sua permissio, mas jé adianto que sé eu € minha orientadora teremos acesso ao que for dito, e, no meu trabalho final, usarei nomes ficticios, sem identificagdes dos participantes € apenas trechos de nossa conversa. Além disso, vocé sera a primeira a ouvir a fita e ler a transcricao e, se desejar, poderd retirar dela o que achar neces- sario. Vocé tera acesso, sempre que desejar, a todos os dados referentes aos seus depoimentos, e, também, ao trabalho final. Sinta-se 4 vontade para tra- zer qualquer duvida. E certo que esse discurso nao precisa ser apresentado num bloco sé. Pausas, abrindo espaco para perguntas, podem ser feitas, considerando 0 as- pecto nao verbal do encontro pessoal. Pode-se notar que foram tomados al- guns cuidados, no sentido de oferecer & participante um minimo de seguran- a em relagdo a pesquisadora, tais como obter consentimento da dirego e, eventualmente, de outras profissionais diretamente ligadas as professoras para realizar a pesquisa na escola (0 que pode ser uma faca de dois gumes, pois isto pode despertar desconfiancas), dar liberdade para nao participar da pes- 201 202 quisa, proteger a participante por meio do sigilo quanto aos depoimentos, possibilicar-Ihe acesso aos dados ¢ andlises. Também foi lembrada a importan- cia atribufda as suas informagées ¢ 4 experiéncia docente. Acteditamos que 0 procedimento de tornar disponiveis as andlises tenha algum efeito na forma do pesquisador apresenté-las, pois deverio ser fiéis & sua compreensio ¢ passiveis de serem apresentadas ao entrevistado que co- laborou, com suas informacdes, para a compreensio do tema da pesquisa. E sempre interessante, no caso de pesquisadores iniciantes, praticar esse tipo de entrevistas com colegas, no papel de entrevistador e de entrevistado, para familiarizar-se com 0 procedimento e para avaliar os sentimentos € sen- sabes do participante. E importante, também, nunca perder de vista que os entrevistados, numa pesquisa, esto sempre situados num ambiente social ¢ é necessario ob- ter algumas informacées sobre a cultura do grupo ou instituigéo onde se vai desenvolver a pesquisa. No caso do exemplo acima, faz muita diferenca se a diretora é uma pessoa autoritdria e perseguidora ou alguém com uma postura democratica € respeitadora; se o clima da escola é tenso, propenso a falatérios € favoritismos ou se hd um clima de confianga e abertura. Em certos ambientes tensos ¢ conflituosos, como alguns bairros da pe- riferia das grandes cidades, comunidades fechadas, prisdes, abrigos ou outros, em que ha necessidade de se conhecer melhor os cédigos de interagéo, como a rua, a aproximacao com os participantes devera ser mais lenta e gradual, € com a mediacao de pessoas da sua confianga. As razdes para esses cuidados sao principalmente éticas, mas também metodoldgicas, no sentido de se procurar maior veracidade nas informacées. A condugao da entrevista Aquecimento A fase inicial da entrevista, depois da apresentacao formal da pesquisa, poderd ter um pequeno periodo de aquecimento para uma apresentacao mais pessoal e 0 estabelecimento de um clima mais informal. E nesse momento que se obtém os dados que se consideram necessarios a respeito dos partici- pantes, que, eventualmente, poderdo ser completados ao final. No exemplo do estudo com a familia, é importante obter uma descri¢ao de sua composicao, das idades, atividades, origem, rotinas didrias de seus membros. No estudo feito com as professoras é necessério saber qual sua for- magio, tempo de magistério, um pequeno histérico de seu percurso profis- sional € 0 que mais for necessario. Nesse momento, pode-se pedir que falem livremente sobre o objeto am- plo da pesquisa. Exemplificando, no caso da familia, pode-se solicitar: “Como vocé descreveria sua familia em poucas palavras?”; no exemplo da pesquisa com professoras, poder-se-ia pedir que dissesse, brevemente, 0 que significa, para ela, ser professora ou o que a fez escolher 0 magistério como profissio. Essas questdes servem de gancho para a formulagio da questo desencadeadora. A questo desencadeadora Na entrevista reflexiva os objetivos da pesquisa serao a base para a ela- boracao da questo desencadeadora, que deverd ser cuidadosamente formu- lada. Ela deve ser 0 ponto de partida para o inicio da fala do participante, focalizando 0 ponto que se quer estudar ¢, a0 mesmo tempo, ampla o sufi- ciente para que ele escolha por onde quer comegar. Com isso ja teremos um direcionamento das reflexGes do entrevistado, ao qual sera oferecido, inicial- mente, um tempo para a sua expressao livre a respeito do tema que se quer investigar. Essa questdo tem por objetivo trazer a tona a primeira elaboragao ou um primeiro arranjo narrativo que o participante pode oferecer sobre 0 tema que introduzimos. Por exemplo, numa pesquisa que tinha por objetivo investigar praticas educativas familiares a pergunta geradora foi a seguinte: “Estou vendo que vocés tém {tantos} filhos. Gostaria de saber como é que vocés educam seus filhos, 0 que voces fazem para eles aprenderem as coisas que vocés querem ensinar?”.' Observe-se que essa questao focaliza agdes, € o que se deseja é um relato delas e nao de um sistema de crencas, embora elas possam aparecer atreladas as praticas. Se 0 objetivo fosse estudar as crengas referentes as prdticas educativas na familia, a questéo orientadora seria: “Qual a maneira que vocés conside- 1 Exemplo retirado de Szymanski (1999) 203 204 Com essa ram a mais adequada ou a maneira certa de educar os filhos? questo procura-se saber quais so as orientagdes quanto ao modo de trata- mento dos filhos que os pais acham que fundamentam a prdtica educacional daquela familia. Se a intengdo fosse investigar valores, a questdo seria, por exemplo: “Quais as idéias que vocés acreditam as mais importantes a serem transmitidas aos seus filhos, no mundo de hoje? Em que idéias vocés gosta- riam que seus filhos pautassem suas vidas?”. Nessa questo, o que se investiga € 0 sistemas de valores ¢ as visdes de mundo subjacentes as priticas. No mesmo estudo de praticas educativas na familia, se a intengao fosse associar priticas educativas a0 processo de constituigéo da identidade que a “Que tipo de pessoa vocé espera que seu filho e/ou sua filha se tornem no futuro?”. Aqui, familia espera que o filho ou filha desenvolva, a questao seri a discriminacao de género é muito importante, dadas as diferentes expecta tivas sociais para homens e mulheres. No exemplo acima, é muito importante discriminar procedimentos, cren- as, valores, constituigéo da identidade, embora esses fendmenos estejam muito relacionados e possam ser desenvolvidos no decorrer do discurso. As vezes, é interessante ter a questio desencadeadora elaborada de di- ferentes maneiras, no caso de haver pedidos de esclarecimentos, para evitar formulagdes que se distanciem do objetivo da investigagio. Numa pesquisa sobre o processo de introdugao de uma proposta pedagégica de ensino ativo na pratica cotidiana de um grupo de professoras, a questio geradora foi: “Gostarfamos que vocé nos contasse como foi que vocé comegou a utilizar essa proposta pedagégica habitualmente?”. No exemplo acima, formulacées alternativas poderiam ser: “Como vocé fez para introduzir a proposta X de ensino no seu dia-a-dia com as classes?” ou “Como foi, desde o inicio, sua forma de utilizar a proposta X de ensino no seu quotidiano? relato da forma como se deu a incorporagao daquela na pratica cotidiana. A resposta a qualquer uma dessas formulagées seria um Para o pesquisador iniciante, é interessante levar ja preparadas as varias ver- ses da questo desencadeadora, para que nao mude sua formulacio essencial, teferente ao fenémeno que se quer estudar. No exemplo acima, o interesse era verificar os procedimentos utilizados pela professora para adotar tal proposta como uma forma habitual de ensino. Embora, no decorrer da entrevista possam surgir os sentimentos envolvidos, a dificuldade em compreender a proposta, a crenga em diferentes métodos de ensino, nao se pode afastar da questao que se quer estudar. Ao se confundir o entrevistado com diferentes aspectos do fendmeno, corremos o risco de nao se obter os dados que desejamos. E a aderéncia aos objetivos que ird contri- buir para aprimorar a validade das questdes — o que Mielzinski chama de “va- lidade de constructo”, i. e., quando as perguntas “correspondem 4s intengdes de quem estd pesquisando” (p. 133). Compreendida a questéo desencadeadora, é importante deixar 0 entre- vistado discorrer livremente, mesmo que se afaste do tema proposto. E im- portante verificar os entrelagamentos entre as varias facetas do fendmeno es- tudado. A expressio da compreensao Gradativamente, o entrevistador vai apresentando a sua compreensio do discurso do entrevistado, sem perder de visa os objetivos de seu estudo. E importante perceber a diferenca entre compreensio e interpretagio, baseada em alguma teoria ou hipétese preestabelecida. A compreensio tem um cardter des- critivo € de sintese da informacao recebida e pode ser definida como “(...) relagio dialogal que nada reduz a objeto ¢ exige do intérprete empatia, capacidade de se colocar no lugar” (Demo, 1992, p. 249). Trata, basicamente, do contetido ver- bal, mas pode trazer alguma referéncia a0 tom emocional ¢ aos indices nao verbais que se percebeu, caso estes esclarecam a compreensio do tema em questao. Jamais deverd assumir a forma de uma avaliagao pessoal. Num estudo sobre o livro didatico, as professoras, numa entrevista cole- tiva, responderam a questdo desencadeadora da seguinte maneira: “Eu trabalho na lousa; pego as coisas deles {dos livros] € passo para a lousa”, “Nés chegamos a conclusio de que um livro, sozinho, nao ia resolver 0 nosso problema, porque eu acho que, para que uma crianga construa um texto criativo, interessante, como eles constréem hoje, um livro sé seria ‘podar’ a crianga”. A entrevistadora, ao final das falas intervém, dizendo: “Eu estou entendendo que o livro esta sendo um apoio para vocés; nao estd sendo a unica fonte de informagao”.” Uma professora, ao indicar as razdes para a escolha do magistério afirma © seguinte: 2 Este exemplo foi retirado de Mercado (1995, p. 60) 205 206 Quando comecei a fazer faculdade, en fiz Servico Social dois anos, mas quando fui fazer estdgio, foi um horror, indo 0 que vocé aprende na faculdade, na empresa é ao contrrio, nao consigo viver na mentira; na empresa o chefe nao gostou da cara do empregado, manda ele embora e a gente tem que inventar desculpas. Precisava arrumar alguma ati- vidade, entao resolvi fazer Letras, porque en gosto de portugués, e precisava ganhar al- gum dinbeiro.° O pesquisador poderia demonstrar sua compreensio afirmando: “A razao principal de sua desisténcia do Servico Social pareceu-me ser de ordem ética, a da escolha de Letras, por interesse na drea, e a da escolha do magistério como necessidade econdmica”. Procura-se expressar a compreensio da fala nas palavras do pesquisador. Diz uma mie a respeito de suas prdticas educativas: “Quando querem alguma coisa, nio dou; quando querem ir a alguma parte, nio deixo”.” A compreensao da pesquisadora pode ser assim expressa: “A senhora, entdo, nao deixa valer a vontade dos meninos, mas a sua”. Se, na sua esséncia, uma entrevista é uma situagio de interagao humana, estamos respondendo aos estados emocionais ¢ indices no verbais que nosso interlocutor esté emitindo. Isto nao significa “adivinhar” 0 que o outro esté sentindo — 0 que é impossivel —, mas descrever a impressio que nos causou. A utilizagao de tal feedback tem, entretanto, uma limitagio: s6 deve ser utilizado por pesquisadores com muita pratica de pesquisa e com conhecimento dos processos psicolégicas envolvidas em situagies de interagao humana. Esses cuidados remetem 4 “vigilancia interpretativa”, apontada por Figueroa ¢ Lépez (in Banister, 1994, p. 52). As in- tervencées referentes aos indices ndo verbais devem ter o caréter de comentario sobre uma impressao pessoal e 0 cuidado de oferecer ao entrevistado a pos- sibilidade de nao concordar e de nao responder a ela. Um exemplo em que 0 indice verbal foi considerado ocorreu numa se- gunda entrevista, com uma mulher que havia se mostrado muito alegre ¢ dis- posta numa entrevista anterior. Diante da observacio da entrevistadora, de que naquele dia aquela estava Ihe parecendo muito séria, ela disse: “Nao da para viver s6 de resto dos outros”, refetindo-se as suas roupas, € seguiu fa- 3. Texto retirado de uma entrevista, citada em Sodelli (1999, p. 80), i Texto extraido de uma entrevista citada em Szymanski (1988, p. 164) ‘Texto retirado de Szymanski (1988, p. 76) lando das dificuldades pelas quais tem que passat, pois o marido nao a dei- xava trabalhar. A interferéncia da entrevistadora acabou por provocar a emer- géncia de um importante aspecto da relacao entre o casal. Deve-se notar que nao se atribuiu nenhum sentimento a entrevistada, mas limitou-se apenas a expressar a impressdo causada por sua expresso facial. Além de indicar sua compreensio, a atuacao do entrevistador pode dar- se no sentido de manter 0 foco do problema estudado na sua pesquisa. Sua participacao pode se dar de diferentes formas: elaborando sinteses, formulan- do questdes de esclarecimento, questoes focalizadoras, questes de aprofun- damento. Sinteses A finalidade de se oferecer sinteses, de tempos em tempos, é a de apre- sentar qual 0 quadro que est se delineando para o entrevistador, isto é, como est4 acompanhando a fala do entrevistado. £ uma forma de manter uma pos- tura descritiva além de buscar uma imersio no discurso do entrevistado. Essas sinteses podem também ter a fungo de trazer a entrevista para o/s foco/s que se deseja estudar e aprofunda-lo/s, ao encerrar uma digressio. Preferencial- mente as sinteses devem ser feitas usando-se 0 vocabulério do entrevistado Em uma entrevista em que a participante falou longamente dos motivos que a levaram a escolha do magistério, foi feita a seguinte sintese: Vocé colocon essas trés possibilidades do segundo gran, que foram a Classico, 0 Cientifico ¢.0 Normal. Voce fez veferéncia ao aspecto financeiro e & continuidade do ensino superior (porque se nao voce sairia sem nenbuma profissao) que teria que ser fora de Sorocaba. Entdo tudo isto acabava convergindo para 0 curso Normal, que era um curso pro- fissionalizante® Numa entrevista coletiva, em que membros de uma comunidade expli- cavam a questio do nao envolvimento da populacio em iniciativas de inte- resse coletivo, sua exposicéo, num detetminado momento, foi sintetizada da 6 Texto retirado de Mercado (1995, p. 48). 207 208 seguinte forma: “Entio, a seu ver, as pessoas nao participam de projetos co- letivos porque jogam tudo nas costas de alguns, “ficam na sua” € $6 se en- volvem em troca de algum favor”.” Nessas duas sinteses apresentam-se, nas palavras dos entrevistados, os pontos principais de um discurso. Note-se a diferenga das intervengoes de compreensio, que apresentam uma elaboragdo do entrevistador. Questées Questdes de esclarecimento ‘Trata-se de questdes que buscam esclarecimentos quando o discurso pa- rece confuso ou quando a relacdo entre as idéias ou fatos narrados nao esta muito clara para o entrevistador. E significativo para andlise posterior veri- ficar em quais momentos 0 discurso era menos elaborado ou estruturado, ¢ é informativo também verificar como foram respondidas as questdes de es- clarecimento — se a questo pedindo esclarecimento gerou ou nao uma nova articulagao. A expressio truncada ou confusa pode indicar ocultamentos e, nao havendo uma nova articulagao para esclarecer, é o caso de respeité-los. Os esclarecimentos podem se referir & seqiiéncias de eventos no tempo, a funcdes e caracteristicas dos diversos personagens da narrativa, a atribuigbes de causalidade, sentimentos, emogGes, interpretacdes. ‘Ao formular-se a questdo, pode-se expressar 0 que nao ficou claro, como, por exemplo, na pesquisa sobre praticas familiares: “eu nao entendi bem como é que vocés dividem as suas fungdes educativas com as criangas. Quais as do pai e quais as da mae?”, Ou, no exemplo da pesquisa com profes- soras: ”vocé poderia repetir como voce foi deixando de achar a nova proposta uma ‘moda’ ¢ uma trabalheira a mais ¢ a foi introduzindo aos poucos nas suas aulas? estiver fazendo. Muitas vezes, 0 discurso confuso tem o sentido da ocultacio. Numa pes- quisa sobre identidade de criangas que nunca freqiientaram a escola, um dos . Note-se a preocupacao em nao sair da narrativa que o entrevistado participantes, de 12 anos, contou uma histéria muito confusa sobre a razdo de seus pais néo terem providenciado sua certidao de nascimento, fato que Texto retirado do de Szymanski (1998, p. 10). o impedia de freqiientar a escola. Diante das questdes da entrevistadora, ele acabou por dizer: “Meu registro molhou. Molhou e caiu dentro do brejo. Caiu no brejo”." Ele nao queria, ou nao sabia dar mais informag6es. O dado, nesse caso é 0 que esta sendo ocultado. No exemplo, era a separagao dos pais, seu desinteresse pela vida escolar do filho, o mau relacionamento entre pai e filho. Insistir nas questdes sé iria criar constrangimento. Questées focalizadoras Sao aquelas que trazem 0 discurso para o/s foco/s desejado/s na pesquisa quando a digressio se prolonga demasiadamente. Sem duvida é informativo, na anilise, observar em que momentos houve digressao, que tipo de digressio e qual a reacio da chamada para o foco. Obviamente, respeita-se 0 entrevis- tado se ele nao se dispuser a voltar para o foco. Isto é também significativo e deve ser apontado na anilise. Um exemplo que questo focalizadora seria, no caso da pesquisa com 08 pais sobre os procedimentos envolvidos nas suas praticas educativas: “Voce falou sobre 0 que considera certo € ertado na educagio dos filhos ¢ agora eu gostaria de saber como é que vocés foram ensinando seus filhos a agirem do jeito que vocés aprovam? Vocés teriam algum exemplo?”. A digressao fora no sentido de considerar valores e crengas na educacio dos filhos ¢ afastou-se das aces, que era o que interessava aos pesquisadores. A questio focalizadora pe- diu uma volta para as praticas. Na pesquisa que tratava da percepcao, pelas professoras, das relacdes de género no livro didatico, a conversagio enveredou para as relagdes fami- lia-escola e a volta ao tema teve que ser realizada, cortando-se a discussio: “Bom, em relagao ao livro didatico, entao, eu havia perguntado a vocés quais haviam utilizado, que critérios levavam em consideracao para adoté-los, o que achavam dos livros...”.” A participagdo em uma pesquisa é, muitas vezes, uma rara ocasidio para se falar a um interlocutor atento ¢ interessado. Por esse motivo, muitas vezes, no periodo inicial da pesquisa, ao se solicitar alguns dados pessoais, como ra- 8 Texto retirado de Moura (2001, p. 77) 9 Texto retirado de Mercado (1995). 209 210 zoes da escolha da carreira, histéria da familia, hist6ria da vida profissional, os entrevistados podem se alongat. A propria questdo desencadeadora tem um sentido de voltar ao tema da conversacao. A participagio em uma pesquisa é, muitas vezes, uma rara ocasido para se falar a um interlocutor atento ¢ interessado. Por esse motivo, muitas vezes, no periodo inicial da pesquisa, ao se solicitar alguns dados pessoais, como ra- z0es da escolha da carreira, histéria da familia, hist6ria da vida profissional, os entrevistados podem se alongar. A prdpria questao desencadeadora tem um sentido de voltar ao tema da conversacao. Todas as intervencdes apresentadas aqui tém uma fungao focalizadora: a sintese, as questdes de aprofundamento e mesmo as de esclarecimento, jé que nosso interesse est4 organizado em torno de um objetivo. Questées de aprofundamento Sao aquelas que podem ser feitas quando o discurso do entrevistado toca nos focos de modo superficial, mas trazem a sugestdo de que uma investiga- cdo mais aprofundada seria desejavel. Assim como nas anteriores, na anlise é informativo observar quais os itens que foram aprofundados e quais os que foram tratados en passant. Nas questdes de aprofundamento, podemos utilizar indagacdes que in- vestigam diferencas, relacdes interpessoais ¢ a perspectiva do observador. Nas questdes que investigam diferencas'” utiliza-se da comparagdo para melhor compreender 0 fendmeno em questéo. Pode-se sugerir a comparagao consi- derando-se diferentes tempos, contextos, personagens ou possibilidades. Por exemplo, na pesquisa com os pais na investigacao de diferentes tempos, te- mos: “Houve alguma diferenga na forma de vocés educarem seu segundo filho?”; diferentes personagens: “Ha alguém na vizinhanga que educa seus fi- Ihos de forma diferente da sua?” ou “Houve alguma mudanga na forma que vocés foram educados e na forma como educam seus filhos?; diferentes pos- sibilidades: "Alguma vez vocés experimentaram formas diferentes de lidar com seus filhos? Como foi?”. Na comparagao podemos obter a compreensio 10 A consideracio da questio da diferenca basei na proposta sistémica de Bateson (1973). Ao referir-se & comunicagio, aponta para a questao de que a informagao é “uma diferenca que faz a diferenga” (p. 428), de aspectos do fendmeno que podem nao aparecer no fluxo discursivo da fala. Note-se que nao estamos dirigindo a questo para uma informagio especifica, mas para a consideracao da diferenga, que provocaré um delineamento mais nitido dos contornos do fenémeno que nos interessa. As questées que pedem a perspectiva do observador'! favorecem 0 re- conhecimento do contexto interacional do fendmeno, focalizando a interago outro-outro, pois explora padrées interacionais sem incluir a pessoa interro- gada, que participa como observadora. Ao focalizar 0 outro, faz-se a primeira parte de um movimento reflexivo, que momentaneamente muda-se o papel de protagonista para observador e, na segunda parte, devolve o observador a cena, com uma informacao a mais. Ao langar-se olhar reflexivo™ para o ou- tro desenvolve-se um olhar comparativo para consigo préprio € temos a com- preensao de outras perspectivas do fendmeno. Um exemplo de questo na perspectiva do observador, na pesquisa com 0s pais: (ao pai) “Como seus filhos reagem quando a mae {explica determi- nada regra ou reage a uma desobediéncia}? Na pesquisa com as professoras: “Como a outra professora da sua série foi comecando a utilizar a nova proposta? ou “Como os alunos comegaram a interagir quando vocé iniciou o trabalho com a proposta?”. Note-se que aqui também hé a questio da diferenga. Nas questdes que investigam relacées interpessoais pode-se aprofundar a compreensao do contexto interacional do fenémeno que se quer estudar.’* A finalidade dessas questées ¢ desenvolver uma reflexao focalizando-se a re- lagao eu-outro. Ai pode-se tomar conhecimento de padrées relacionais e sua rigidez ou flexibilidade, sua repetitividade ou transformagio. Por exemplo, na 11 A consideracio da perspectiva do observador baseia-se na contribuicio de Maturana (1984) € ervador, segundo a qual “(...) 0 observador, o ambiente e 0 organismo — sua epistemologia do ob: observado formam agora um Gnico € idéntico processo operacional: ncial-percepeual no set o observador” (xix). 12 Por olhar reflexivo, aqui, encende-se express compreensio que se tem do outro em interacio © que nem sempre esta consciente no quotidiano. 13 A consideracio do contexto interacional baseia-se na proposta de Bronfenbrenner (1996), que cia aponta para a necessidade de se analisar o “(...) sistema interpessoal tocal operando num dado ambiente. Este sistema incluira tipicamente todos 0s participantes presentes (niio excluindo 0 investigador) € envolveri relagdes reciprocas entre eles” (p. 54). Ele refere-se a0 planejamento de pesquisa, como um todo, mas pode servir como referéncia para organizar questoes de uma entrevista, quando 0 fendmeno em questio envolve interac 's pessoais € entre sistemas, 211 212 pesquisa com os pais: “O que vocés fazem quando seus filhos desobedecem? © “O que seus filhos fazem quando vocé ralha com eles?”. Na pesquisa com as professoras: “O que vocé faz quando os alunos nao estao prestando atengio na sua aula? e “O que os alunos fazem quando vocé esta apresentando con- tetido novo? A sugestao desses diferentes tipos de questdes foi no sentido de demons- trar algumas possibilidades de transformar a entrevista numa situacao rica de informagées ¢ num momento de construgéo de conhecimento. Seria desejével que a realizagao de uma entrevista-piloto para que se aprimore a questo ge- radora e se pratiquem as atividades de sintese e questionamento. As intervencdes no momento da entrevista serviro de indices, no mo- mento de anilise, para observar momentos de digressdes, de confusio na ex- pressio de idéias ou fatos e de superficialidade no tratamento de alguma idéia. Essas observagées podem ser reveladoras para a compreensio do fend- meno estudado. A devolucao Trata-se da exposicao posterior da compreensao do entrevistador sobre a experiéncia relatada pelo entrevistado e tal procedimento pode ser conside- rado como um cuidado em equilibrar as relagdes de poder na situacao de pes- quisa. Podem ser apresentadas a transcrigéo da entrevista e a pré-andlise, para consideracao do entrevistado. O sentido de apresentar-se esse material decorte da consideragdo de que o entrevistado deve ter acesso A interpretacao do entre- vistador, j4 que ambos produziram um conhecimento naquela situagao especifica de interagao. A autoria daquele conhecimento é dividida com o entrevistado, que deverd considerar a fidedignidade da produgao do entrevistador.'* Nesse momento ha a possibilidade de se ter conhecimento do impacto da primeira entrevista na compreensao do fendmeno por parte do entrevis- tado ¢ de obtermos uma consideracéo mais refletida sobre 0 mesmo. Nesse 14 Certamente, por motivos de ordem pritica, esse procedimento nem sempre poderi ser seguido mas € recomendado sempre que possivel, até por razdes éticas. Temos o exemplo de entrevis- tados que, ao verem a transcrigio de sua fala, cuja gravacdo fora autorizada, nao permitiram sua divulgacio, por temerem um reconhecimento de sua pessoa e eventuais conseqiiéncias

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