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Revista de Economia Politica, vol. 7. n? 2, ubrilsjunho de 1987 Expectativas, incerteza e instabilidade no capitalismo: uma abordagem a partir de Keynes ROGERIO PEREIRA DE ANDRADE* “O melhor seria que conhecéssemos 0 futuro." Keynes (1936, p. 172) “.,, quanto menos um homem conhece a respeito do passado e do pre- sente, mais inseguro teré de mostrar-se seu julzo sobre o futuro. E hé ainda uma outra dificuldade: a de que precisamente num juizo desse 0 as expectativas subjetivas do individuo desempenham um papel il de avaliar, mostrando ser dependentes de fatores puramente pes- soais de sua prépria experiéncia, do maior ou menor otimismo de sua atitude para com a vida, tal como Ihe foi ditada por seu temperamento ou por seu sucesso ou fracasso. Finalmente, faz-se sentir 0 fato curio so de que, em geral, as pessoas experimentam seu presente de forma ingénua, por assim dizer sem serem capazes de fazer uma estimativa sobre seu contetido; tém primeiro de se colocar a certa distancia dele: {sto é, o presente tem de se tornar o passado para que possa produzir Pontos de observado a partir dos quais elas julguem 0 futuro. Dessa maneira, qualquer pessoa que ceda & tentasdo de emitir uma opinido sobre o provavel futuro de nossa civilizagao fard bem em se lembrar das dificuldades que acabei de assinalar, assim como da in- certeza que, de modo bastante geral, se acha ligada a qualquer profecia.”” A importancia das expectativas, do tempo ¢ da incerteza enquanto elementos determinantes das a¢des de qualquer natu- reza que envolvem a conduta humana, e que por isso mesmo cercam as decisdes que os individuos ou grupos tomam ou sio instados a tomar, estd igualmente presente na obra de Sigmund Freud (1927, p. 87). Em outras palavras, significa isto que a idéia 81 das expectativas, da incerteza e do tempo, é mais ubiqua do que puderam imaginar 0s economistas que corretamente apontaram para esse aspecto relevante e sempre atual da contribuigdo teérica de Keynes. Vale dizer, é a partir dos mesmos que Key- nes apreende, tendo em vista alguns elementos cruciais para se entender uma dimen- sao possivel de andlise do movimento real do capitalismo, 0 mecanismo basico da instabilidade desse sistema econdmico baseado na apropriagdo privada da riqueza social. Quase dez anos apés esta obra de Freud, Keynes escrevia sua Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro procurando dar conta de que forma expectativas individuais e coletivas, que devem necessariamente ser formadas sob o aguilhao do metabolismo capitalista, influem sobre as decisdes especificamente capitalistas de in- vestir e de produzir e, conseqiientemente, sobre o nivel do emprego e da renda, e como estas expectativas, uma vez adentradas na zona de incerteza onipresente quan- to ao futuro sombrio, volta e meia geram, condicionam e tracam os limites pelos quais tém lugar as instabilidades sistémicas do capitalismo.' A partir disto, acreditamos na necessidade de entender as amplas implicagdes da existéncia das expectativas, da incerteza e do tempo. Adiantamos, ademais, que a radiografia do capitalismo aqui buscada vai lancar mo, fundamentalmente, des- ses conceitos de incerteza e de expectativas, os quais, dentre outros elementos funda- mentais que sdo igualmente importantes, mas que fogem ao escopo da investigacdo te6rica aqui desenvolvida, vao se constituir no /eitmotiv que recorrentemente apare- cerd para evidenciar o universo instavel da producdo capitalista.? 2 E importante, para a finalidade aqui propugnada, fazer a distincdo entre risco € incerteza, com 0 que se evitarao diversos equivocos que estdo presentes nas obras de alguns tedricos (ver, a este respeito, Weisman, 1984). O principio da incerteza poderia ser visto como “‘a influéncia de um corpo desconhecido de informacées sobre os eventos econémicos que tém de ser prognosticados” (Weisman, 1984, p. 416). Ou ainda, pode-se afirmar que “sempre haverd um conjunto relevante de in- formagées que nao s4o cognosciveis no ponto do tempo em que as expectativas sao geradas”” (ibidem, p. 417). primeiro tedrico a pensar esta distincao entre risco e incerteza foi Knight em Risk, Uncertainty and Profit (1921): ‘A diferenga pratica entre as duas categorias, risco e incerteza, ¢ que na primeira a distingao dos resultados num grupo de casos é conhecida (seja através do célculo a priori ou seja por meio de estatistica da experién- © +... a explicagdo da instabilidade sistémica, muito mais do que uma tendéncia em diresdo a um equili- brio estavel, tornou-se um problema chave para a andlise econémica”’ (Minsky, 1977, p. 297). © A idéia de tempo subjacente as nossas proposigdes pode ser resumida como segue: “A nogdo tedrica do tempo ...envolve... trés tipos de consideracdes ...: a agao dos acontecimentos passados sobre as deci- sdes presentes; 0 efeito, por interagao do sistema econémico, das decisdes presentes sobre as decisdes fu- turas, no futuro; eo efeito das expectativas acerca dos acontecimentos futuros sobre as decisdes presente. Em forma esquemética: a influéncia do passado sobre o presente, do presente sobre 0 futuro e do ‘futuro? (esperado) sobre o presente ... O terceiro efeito reflete a presenca de expectativas, em principio, em quais- quer decisdes tomadas; o que introduz inevitavelmente um componente de incerteza, em maior ou menor grau, nas decisoes econdmicas”” (Possas, 1983, pp. 9-10). 82 cia passada) enquanto que no caso da incerteza isto no se aplica, e a razdo geral éa impossibilidade de formar grupos de casos, pois a situacdo com a qual lidaremos éem alto grau tnica” (citado por Weisman, p. 414). Em Keynes, a nogao de incerteza aparece claramente colocada: ‘‘Desejo expli- car que por conhecimento ‘incerto’ nao pretendo apenas distinguir 0 que é conhe- cido como certo, do que apenas é provavel. Neste sentido, o jogo da ruleta nao esta sujeito A incerteza, nem sequer a possibilidade de se ganhar na loteria. Ou ainda, a prépria esperanca de vida é apenas moderadamente incerta. Até as condic6es me- teoroldgicas sdo apenas moderadamente incertas. O sentido em que estou usando 0 termo é aquele segundo o qual a perspectiva de uma guerra européia ¢ incerta, 0 mesmo ocorrendo com o prego do cobre e a taxa de juros daqui a vinte anos, ou a obsolescéncia de uma nova invencdo, ou a posi¢do.dos proprietarios particulares de riqueza no sistema social de 1970. Sobre estes problemas no existe qualquer base cientifica para um calcul probabilistico. Simplesmente, nao sabemos nada a respei- to” (Keynes, 1937a, p. 171). 3 O pensamento neoclassico, em geral, pouco ou quase nada nos legou em rela- 40 ao manuseio tedrico do conceito de expectativas, tal como aparece em Keynes. Pelo contrario, a viruléncia do ataque contra a economia ortodoxa, inicialmente nos anos 60 com Joan Robinson e Shackle (1967), e posteriormente na década de 70 com os importantes trabalhos de Davidson (1972), Kregel (1973), Minsky (1975), entre outros, mostra-nos 0 quanto o pet.samento de inspirc¢do neoclassica, que foi um dos alvos preferidos de Keynes 1a sua Teoria Geral, esta totalmente dissociado da realidade econdmica e daqrilo que Keynes alegava ser necessario pensar ao lidar com os fendmenos da ecoromia capitalista, isto é, uma ‘“‘teoria monetdria da producao como um todo” (Keynes, 1936, pp. VI ¢ VII),? onde o papel do dinheiro e das ins- tituigdes financeiras sao de fundamental importancia para a andlise do comporta- mento da atividade produtiva capitalista.‘ Felizmente, os autores supramencionados foram prédigos em trazer a baila o resgate de uma das mais importantes e vitais con- tribuigdes tedricas de Keynes para o 4mbito do estudo ca economia, a saber, o papel das expectativas e da incerteza, e que 0 dconomics Establishment (Davidson, 1972, p. 4) fez por obscurecer durante um bom tempo.’ © +... tdo logo passemos ao problema do que determina a producdo ¢ © emprego como um todo, nés necessitamos a teoria completa de uma economia monetaria’” (Keyne:, 1936, p. 293). @ «a importéncia da moeda decorre essencialmente do fato de constituir ela um elo entre o presente e0 futuro” (Keynes, 1936, p. 293). ‘A moeda, considerada em seus atributos mais significativos, ¢ sobre- tudo um processo sutil de ligar o presente ao futuro, e sem cla nem sequer poderiamos iniciar os estudos dos efeitos das expectativas mutdveis sobre as atividades correntes. Nao hé meios para nos libertarmos da moeda, mesmo abolindo 0 ouro, a prata e outros meios legais de pagamento. Enquanto subsistir al- gum bem durdvel, ele poderd possuir os atributos monetarios e, conseqiientemente, dar origem aos pro- blemas caracteristicos de uma economia monetéria’” (Keynes, 1936, p. 294). © para Garner (1982, p. 418), “Shackle e Keynes concordaram acerca da natureza fundamental da in- certeza e da irrelevancia do célculo probabilistico para a maioria das decisdes,econdmicas ... As visdes de Shackle também parecem-se com a de Keynes ao enfatizar os aspectos psicoldgicos do processo de escola. O grande sucesso de Shackle repousa ndo s6 no seu aparato analitico, mas principalmente em sua inquietagao penetrante em relagdo & imaginacdo [quanto ao que poder acontecer}, as decis6es ¢ quanto ‘ao papel do tempo” 83

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