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I A LOUCURA E A FONTE DA SABEDORIA As origens da filosofia grega — e, portanto, de todo 0 pensamento ocidental — so misterio- sas. Segundo a tradicio erudita, a filosofia nasce com Tales © Anaximandro; no século XIX, bus- caram-se suas otigens mais remotas em lendérios contatos com as culturas orientais, com © pensa- mento egipcio ¢ o indiano. Por essa via néo foi possfvel comprovar coisa alguma, 36 se consegui- ram estabelecer analogias ¢ paralelismos. Na ver- dade, o tempo das origens da filosofia grega esté muito mais préximo de nés, Platio chama “filo- sofia” — 0 amor & sabedorie — a propria busca, propria atividade educativa, ligada a uma ex- pressio escrita, & forma literdria do didlogo. E Plato olha reverente 0 passado, um mundo em que existiram os vetdadeiros “sdbios”. Por outro Indo, a filosofia posterior, a nossa filosofia, apenas uma continuacao, um desenvolvimento da forma literéria introduzida por Plato; contudo, esta surge como fendmeno de decadéncia, na me- dida em que “‘o amor & sabedoria” esté mais abaixo da “sabedoria”. O amor & sabedoria, para Plato, ndo significava de fato a aspiragéo a algo nunca atingido, mas sim uma tendéncia a recupe- tar aquilo que jé fora realizado e vivido. Portanto, nfo h4 um desenvolvimento con- ‘inuo, homogéneo, da sabedoria a filosofia. O que dé origem a esta tltima € uma reforma expressiva, € a intervengdo de uma nova forme literéria, um filtro através do qual condiciona-se © conheci- mento de todo 0 precedente. A tradigio, em gran- de parte oral, da sabedoria, jé obscura e escas- sa pela disténcia dos tempos, jé evanescente € ténue para o proprio Plato, mostrase, a nossos olhes, francamente falsificada pela insergdo da Titeratuta filoséfica, Por outro lado, € muito in- ceria a extensio temporal dessa época da sabedo- ria: nela esté compreendida a chamada idade pré- socrdtica, ou seja, os séculos Ve VI a.C., mas a origem mais distante nos escapa, E. preciso recor rer & mais remota tradigao da poesia ¢ da religido grega, mas a interpretago dos dados nflo pode deixar de ser filosdfica. Deve-se configurar, mes- mo que de modo hipotético, uma interpretagdo do tipo daquela proposta por Nietzsche para expor a otigem da tragédia. Quando um grande fendmeno oferece uma documentacio hist6rica suficiente apenas em sua parte final, 96 resta a tentativa de interpolar, no que se refere a sua totalidade, cer- 10 tas imagens e concelios, escolhidos ¢ entendidos como simbolos na tradi¢éo religiosa. Nietzsche parte, como se sabe, das imagens de dois deuses ‘gregos, Dionisio e Apolo, e, aprofundando esté- tica e metafisicamente os conceitos de dionisfaco © apolineo, esboca, em primeito Iugar, uma dou- trina sobre o surgimento e a decedéncia da tragé- dia grega; depois, uma interpretacdo geral da sgrecidade e até uma nova visio de mundo. As sim, igual perspectiva parece abrir-se quando se considera, em vez do nascimento da tragédia, a origem da sabedoria So ainda os mesmos deuses, Apolo ¢ Dio- nisio, que se enconiram no retroceder ao longo das sendas da sabedoria grega, Mas, nessa esfera, fa caracterizagio de Nietzsche deve set modifica- da; além disso, a priotidade deve ser concedida a Apolo, e nio a Dionisio. De fato, se cabe atti- buir a alguém o dominio sobre a sabedoria, é 20 deus de Delfos. Em Delfos se manifesta a vocacio dos gregos para o conhecimento: sabio nfo é 0 ico em experiéncias, 0 que sobressai em hal dade técnica, destreza, expedientes, tal como ocor- re na idade homérica. Odisseu nfo é um sébio. Sébio é quem langa a luz na obscuridade, desfaz ‘os nés, manifesta o desconhecido, determina o incerto. Para essa civilizagdo arcaica, o conheci- mento do futuro do homem e do mundo pertence & sabedoria, Apolo simboliza esse olho penetran- te, seu culto celebra a sabedoria. Mas 0 fato de ser Delfos uma imagem unificadora, uma abrevia- uw tura da prépria Grécia, indica algo mais, isto €, que 0 conhecimento foi, para os gregos, o valor méximo da vida. Outros povos conheceram, exal- taram a arte divinat6ria, mas nenhum povo a ele you a s{mbolo decisivo, pelo qual, no mais alto gra, a poténcia exprime-se em conhecimento, como aconteceu entre os gregos. Em todo o terri- \rio helénico, existicam santudrios destinados & adivinhagio; esta se manteve como um elemento decisivo na vide piblica, politica dos gregos. E sobretudo 0 aspecto teorético ligado @ adivinha- so € caracteristico dos gregos. Adivinher implica conhecer 0 futuro ¢ manifestar, comunicar tal conhecimento, Isso ocorre através da palavra do deus, do oréeulo. Na palavra, manifesta-se a0 ho- mem a sabedotia do deus, ¢ a forma, a ordem, (© nexo em que se apresentam as palavras revela que nfio se tratem de palavras humans, e sim de palavras di Daf o cardter exterior do ord culo: a ambigitidade, a obscuridade, as alustes de drdua decifragao, a incerteza, © deus, portanto, conhece © porvir, manifes- ta-o ao homem, mas parece no querer que este © compreenda, Ha um elemento de maldade, de erueldade na imagem de Apolo, que se reflete na comunicagéo de sabedoria. E, de fato, diz Heré- clito, um sébio: “O senhor, a quem pertence o ‘ordculo que esté em Delfos, nfo diz nem oculta, mas cena”. Diante desses nexos, a significagao que Nietzsche atribui a Apolo mostra-se insufi- ciente. Segundo Nietzsche, Apolo € 0 sfmbolo do 12 mundo como aparéncia, na esteira do conceito schopenhaueriano de representacdo. Esta aparén- cia é, ao mesmo tempo, bela e ilus6ria, € por isso a obra de Apclo ¢ essencialmente 0 mundo da arte, entendido como libertagao, mesmo que ilu- s6ria, do terrivel conhecimento dionistaco, da in- tuigao da dor do mundo. Contra esta perspectiva de Nietzsche, se considerada como chave inter- pretativa da Grécia, pode-se, antes de mais nada, objetar que a contraposicdo entre Apolo e Dioni- sio, como entre arte e conhecimento, no corres- ponde a muitos ¢ importantes testemunhos histé- ticos referentes a esses dois deuses. Dissemos que a esfera do conhecimento ¢ da sabedoria ligase com muito mais naturalidade a Apolo do que 2 Dionisio, Falar de Dionisio como o deus do co- nhecimento e da verdade, entendidos estritamen- te como intuigSes de uma angiistia radical, signi- fica pressupor na Grécia um Schopenhauer que 14 no existiu. Dionisio associa-se, antes, 20 co- mhecimento enquanto divindade eleusina: de fa- 10, @ iniciagao aos mistérios de Eléusis culminava numa “epopsia”, numa visio mistica de beatitu- de © purificagdo, que de certa forma pode ser chamada de conhecimento, No entanto, 0 éxtase dos mistérios, na medida em que € alcancado através de um despojamento completo das condi- ges do individuo, na medida em que nele 9 su- jeito cognoscente nfo se distingue do objeto co- mhecido, deve ser considerado como o pressu- ‘posto do conhecimento, e nio 0 préprio conheci- 13 mento, Pelo contririo, 0 conhecimento ¢ a sabe- doria manifestam-se por meio da palavra, e em Delfos que é proferida a palavra divina, ¢ Apolo, certamente ndo Dionisio, que fala pela sacer- dotisa, Ao delinear o conceito de apolineo, Nietzsche considerou 0 senhor das artes, o deus luminoso, do esplendor solar, aspectos auténticos de Apolo, mas parciais e unilaterais. Outros aspectos do deus ampliam seu significado ligam-no & esfera da sabedoria, Antes de mais nada, um elemento de natureza terrivel, de ferocidade, A propria etimo- logia de Apolo, segundo os gregos, sugere 0 sen- tido de “o destruidor total”. B sob essa figura que o deus se apresenta no comeco da Ifada, onde suas flechas levam a doenga e a morte a0 campo dos aqueus. Nao a morte imediata, direta, mas a morte pela doenca. O atributo do deus, © arco, arma asidtica, alude a uma agdo indireta, mediada, protelada, Aqui tocase 0 aspecto da erueldade, a0 qual se acenou a propésito da obs- curidade do oréculo: a destruicao, a violencia protelada € tipica de Apolo. E, com efeito, entre 08 epftetos de Apolo, encontramos o de “aquele que golpeia a distdncia”, “aquele que age a dis- tincia”. Por ora nio € clara a ligasdo entre essas caracteristicas do deus — agao a distancia, des- trutividade, tertibilidade, crueldade — e 0 con- figurarse da sabedoria grega. Mas a palavra de Apolo é uma expresso em que se manifesta um conhecimento; seguindo os modos como as pala- 14 vyras da adivinhagio na Grécia primitiva reénem- se em discursos, desenvolvem-se em discussdes, elaboram-se no abstrato da razéo, seré possivel entender esses aspectos da figura de Apolo como simbolos iluminadores de todo © fendmeno da sabedoria, Outro elemento frigil na interpretagio de Nietzsche esté em apresentar os impulsos apoli- neo e dionisfaco como antitéticos. Os estudos mais recentes sobre a religiéo grega ressaltaram uma origem asidtica © nérdica do culto de Apolo, Aqui surge uma nova relagdo entre Apolo ¢ a sabedo- ria, Um fragmento de Aristteles nos informa que Pitdgoras — justamente um sébio — foi deno- minado pelos crotoniatas como Apolo hiperbéreo, Os hiperbéreos eram, para os gregos, um povo fabuloso do exiremo norte. Daf parece provir 0 cardter mistico, extético, de Apolo, manifestando- se no arrebatamento da pftia, nas palavras deli rantes do oréculo délfico. Nas planicies nérdicas eda Asia central atesta-se uma longa persisténcia do xamanismo, uma técnica particular de éxtase Os xamas atingem uma exaltacdo mistica, uma condicdo extética, na qual sfo capazes de execu- tar curas milagrosas, ver o futuro e profetizar. Este € 0 pano de fundo do culto délfico de Apolo, Uma passagem célebre e decisiva de Pla- tio nos ilumina a esse respeito, Trata-se do dis. curso sobre a “mania”, sobre a loucura, que Sé- crates desenvolve no Fedro. Logo no inicio, con- trapde-se a Ioucura & modetagio, ao autocontrole, 15 €, numa inversio paradoxal para nds, modernos, exaltase a primeira como superior ¢ divina. Diz © texto: “os maiores dentre os bens chegam a nés por meioida loucura, que é concedida por um dom divino. .. de fato, a profetisa de Delfos ¢ a sacerdotisa de Dodona, enquanto possuidas pela loucura, proporcionaram & Grécie muitas € belas coisas, tanto para os individuos como para a Coloca-se em evidéncia, portanto, clo, a ligagdo entre “mania” ¢ Apolo. Em seguida, distinguemse quatro tipos de lou- cura: a profética, a dos mistérios, a poética ¢ a erética, as duas dltimas variantes das duas pri- meiras. A loucura profética ¢ a dos mistérios stio inspiradas por Apolo ou por Dionisio (ainda que este ltimo nfo seja citado por Plato). No Fedro, em primeiro plano esté a “mania” profé- tica, tanto que, pata Platdo, a natureza divina e decisiva da “mania” é atestada pelo fato de essa ‘mania constituir © fundamento do culto délfico, Plato funda seu juizo numa etimologia: a “‘mén- tica”, isto é a arte divinat6ria, detiva de “ma- nia” e 6 sua expresso mais auténtica. Portanto, a perspectiva de Nietzsche deve ser néo s6 am- pliada, mas também modificada. Apolo néo é 0 deus da medida, da harmonia, mas do arrebata- ‘mento, da loucura. Nietzsche considera a loucura pertinente apenas a Dionisio e, além disso, deli- mita-a como embriaguez. Aqui, uma testemunha ‘com 0 peso de Platio sugeronos, pelo contrétio, que Apolo e Dionisio possuem uma afinidads 16 fundamental, justamente no terreno da “mania”; juntos, cles esgotam a esfera da loucura, € néo faltam bases para formular a hipstese — atri- buindo palavra e 0 conhecimento a Apolo, € imediatez da vida a Dionisio — de que a lou- cura poética € obra do primeiro, e a ervtica, do segundo. Concluindo, se uma pesquisa sobre as ori gens da sabedoria na Grécia arcaica leva-nos em diregZo a0 ordculo délfico, 20 significado com- plexo do deus Apolo, a “mania” mostra-se-nos ainda mais primordial, pano de fundo do fend- meno da adivinhagao. A loucura & a matriz da sabedoria 17

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