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Historias de bolso 21 contos de autores luséfonos anotados para estrangeiros Escolha dos textos, anotacées e exercicios de Gongalo Duarte une | Ligel - ediges técnicas, Ida EoigAo € DistriauicAo Lidel - Edicdes Técnicas, Lda Rua D, Estefania, 183, r/c Dio. Tel: +351 213 511 448 lidel@lidel pt Projetos de edicdio: edicoesple@lidel.pt wenn lidel pt 1049-057 Lisboa Liveaaia Av, Praia da Vitoria, 14 A- 1000-247 Lisboa Tel: +351 213 511 448 * Fax: +351 213 173 259 livraria@tidel.pt Copyright © 2016, Lidel - Edigdes Técnicas, Lda. ISBN edigdo impressa: 978-989-752-142-8 1.2 edigdo impressa: feveriro 2016 ‘Coneogio de layout: magnetic Paginago: Ménica Goncalves Impresso e acabamento: Cafilesa ~ Solugdes Graficas, Lda. - Venda do Pinheiro Dep. Legal: 404830/16 Capa: José Manuel Reis Todos os nossos livros passam por um rigoraso controlo de qualidade, no entanto aconselhamos a consulta periddica do nosso sife (www idel.pt) para fazer 0 download de eventuais corregbes. Nao nos responsabilizamos por desatualizagdes das hiperligagées presentes nesta obra, que foram verificadas & data de publicagéo da mesma. Reservados todes os direitos, Esta publicagio nao pode ser reproduzida, nem trensmitida, |SEJA ORIGINAL no todo ou em parte, por qualquer processo eletror mecénico, fotocopia, digitalzagao, DIGA NAO J aravacio, sistoma de armazonamento & cisponbilzacao de informago, sito Web, bioque ou A COPIA ‘outros, sem prévia autorizagdo esorita da Editora, exceta 0 permitido pelo | CDADC, em termos Eencteed tetay (de copia privada pala AGECOP ~ Associago para a Gestéo da Copia Privada, através do pagamento das respetivas texas. A maquina de produzir naturezas < Joana Bértholo ‘Autora portuguesa (Lisboa, 1982). Obras: Havia (contos, 2012), 0 lago avers Gamance, 2013). Este conto integra Inventério do pé, Lisboa: Caminho, 2015 Cava caminho.leya.com). A autora tem um sife (www.unscratchable-info). Quando jé havia uma maquina no mundo — produzir ~ rier, originer para produzir tudo e, portanto, jd tudo era feito @ 08 portugueses produzem vinhos de boa qualidade por m4quinas, deixaram de saber o que inven- geixaram de saber... - 25 tar. Jé se tinha até inventado uma maquina de _ pessoas jé nao tinham noves ideias produzir humanos e uma maquina de produzit claro esté - é evidente invenc6es. E uma maquina de produzir méqui- : 2 ras . tédio nas, claro esté, essa tinha sido inventada havia conceber - dar forma a jmenso tempo. Entediados, tentaram conceber uma ideia, ¢ um produto © concebeu um website uma maquina capaz de produzir outra coisa Ue ocupar ~ Xe tomer espago no fosse nem méquina, nem humano. Foi assim A , guardam mercadorias que nasceu a maquina de produzir naturezas. 0 produto nao esté na loa, A méquina de produzir naturezas era enorme, buscé-l0 a0 armazém va varios armazéns, daquel maedeo eee ona enenen ocupava varios armazéns, daqueles que se Mecem conte ~ inclur, ter dentro dizendo quantos estadios de futebol podem con- desi imensos ~ muitissimos mia mais energia que as industrias metaltirgicas e dertirgicas ~ que produzem teas gee ian he metais e ferro sidertirgicas juntas ¢ expelia mais detritos t6xicos _jiintas ~ em conjunto que a industria papeleira. Funcionava muito bem — expelir ~ % lancer para 0 erornou-se um grande sucesso. Foram instaladas etritos - restduos mdquinas de produzir naturezas um pouco Por do o mundo. «23> entediado ~ aborrecido, com armazém ~ depdsito onde se cer. Imensos estadios de futebol, imensos. Consu- _ ingistrias metalirgicas e six ambiente, causer poluigéo HISTORIAS DE BOLSO Recebia todo o tipo de matérias-primas tec- nolégicas: televisores, teleméveis, computado- res ¢ até batedeiras eléctricas. Desmantelava-as, reduzia os diferentes componentes aos seus ele- mentos mais bsicos, fundia aqueles materiais que podiam ser fundidos e processava tudo num enorme tambor, que fazia tremer 0 edificio ¢ do qual emanava um cheiro grave a enxofre. Passa- das poucas horas de processamento a fase de pro- dugao chegava ao fim. O produto final, aberta a tampa ao enorme tambor, era todo o tipo de naturezas: madeira virgem, veados selvagens, ria- chos cristalinos e passarinhos sibilantes. Depois disto, havia uma equipa especializada de funcio- narios altamente qualificados que se encarregava da distribuicdo, plantando florestas, inaugurando cascatas, restituindo espécies ja extintas, e fertili- zando os solos exauridos pelas monoculturas. Os consumidores gostaram tanto das natu- rezas disponiveis no mercado que comegaram a entregar todas as suas geringongas cléctricas em troca de pedacinhos de naturezas nos seus quin- tais. Para quem vivia na cidade, havia pequenos kits que davam para pér na varanda ou no te- Ihado. Dois ou trés telemdveis e um ipad, ou uma mdquina de lavar louga, eram o suficiente para adquirir um destes pequenos kits, mas as pessoas tornaram-se dvidas, e entregavam car- ros, jatos, semforos urbanos, escadas rolantes, © mecanismo pata abrir a porta da garagem, elevadores. Por todo o lado, as pessoas ambi- cionavam adquirir muito mais naturezas do que aquelas que eram capazes de consumir. Em pouco tempo toda a populacéo mundial ficou sob o efeito daquela febre de adquirir naturezas. <2hr matérias-primas ~ substén- cias a partir das quais se fabrica alguma coisa (o gés, a madeira, 0 carvao, ..) batedeira ~ robot de cozinha (faz bolos, por ex.) desmantelar - separar as pegas de uma maquina fundir ~ derreter metal, tornando-o liquido processar ~ gerir dados através de um programa tambor ~ grande recipiente metélico de forma cilindrica tremer — abanar, mexer-se emanar ~ libertar um cheiro enxofre ~ elemento quimico de cheiro forte (sulftirico) tampa ~ peca que cobre ou tapa um recipiente ou caixe madeira ~ 2 parte principal das arvores (tronco, ramos) uma mesa de madeira veado - animal (cervo) © 0 Bambi é um veado riachos cristalinos - rios pequenos e muito puros passarinhos sibilantes ~ pe- quenas aves que cantam encarregar-se ~ ter como cargo, como fungao plantar - por na terra © plantar sementes no solo cascata - queda de agua (por ex., descendo rochas) espécie ~ ser com caracte- risticas especfficas 0s dinossauros jd foram a espécie dominante na Terra exauridos - gastos geringonsas (pop.) ~ abjetos, aparelhos troca — substituicao. © vou trocar de camisa quintal — grande jardim, nor~ malmente atrés das cases davam para ~ podiam telhado - teto da casa © uma parabiica no telhado adquirir ~ comprar vido ~ com vontade de ter mais e mais A MAQUINA DE PRODUZIR NATUREZAS Deixou de haver tecnologias que pudessem ser semstoro — aparelho que srocadas por naturezas. Havia sé naturezas. regula 0 trafico com luzes escadas rolantes - escadas que sobem e descem auto- maticamente febre ~ % mania, obsessa0 «25> Onde esta a verdade? Dina Saltstio Autora cabo-verdiana (Santo Antao, 1941). Obras: A louca de Serrano (romance, 1998). Este conto integra Mornas eram as noites (contos, 1999), Praia, Cabo Verde: Instituto da Biblioteca Nacional, 2002 (www.bn.cv). Ao voltar, longos anos depois, praia de Es- corralete, tive a sensagao de me ter enganado no caminho, mas um rapazito, guardador de cabras, garantiu-me que eu estava no lugar certo e pude ver nos seus olhos o espanto pela minha hipétese de engano. Como seria possfvel confundir aquela praia com alguma outra no mundo? A praia da minha meméria tinha quiléme- tros e quilémetros de areia branca, com ondas que desafiavam a nossa imaginacéo e coragem, pondo em estado de constante alerta os nossos familiares. Agora era um niquinho de areia de cor nenhuma, que eu nao conhecia ¢ na certa nao se lembrava de mim. Estava dificil o regresso jé que nada se enqua- drava no meu conhecimento. Lembrava-me de que a minha tltima entrada nas ondas do Escorralete tinha sido as cavali- tas de um tio gigante que deveria ter quase trés metros de altura. Quando deixei de ser crianga «83> 1 CV = Cabo Verde Escorralete - praia na itha de Santo Antao (CV) © ir é praia num dia de sol ° 0 arquipélago de Cabo Verde é formado por dez ilhas vulcdnicas guardador de cabras ~ pessoa que toma conta de cabras (animal doméstico herbivoro) espanto ~ surpresa areia - solo tipico da praia (pequenos gros) 0 construir castelos de areia ondas - movimento do mar tsunami = onda gigante desafiar ~ % estimular alerta - % preocupagao um niquinho — coisa pe- quena enquadrar-se no conheci- mento ~ & corresponder & meméria as cavalitas ~ aos ombros HISTORIAS DE BOLSO — quem me obrigou, meu Deus? ~ e ao estar de novo com ele, descobri que mal ultrapassava 0 metro e oitenta. O encontro com esse tio foi outra revelacao. A sua chegada 4 nossa casa, em Sao Vicente, era sempre motivo de festa e fazia-se rodear por um certo ritual que se repetiu ano apés ano: sentava- -se num banco no quintal e ia distribuindo as encomendas que a avo ¢ os tios nos mandavam, acada um de nés, com as mantenhas e recomen- dagées individualizadas. Lembro-me que a mim dizia-me sempre: tens que ir conhecer Alto Mira. Terminada a excita- go da chegada e do abrir de encomendas pedia os nossos cadernos escolares e desfolhava-os atentamente, lia os nossos trabalhos e fazi: perguntas, a que famos respondendo, suspensos do medo de nos enganarmos, como a temer al- guma repreensdo. Mas ele nunca se zangava con- nosco se erravamos. Quando fui para o primeiro ano do liceu, a minha maior alegria foi, ao vé-lo, dizer-lhe que estava a aprender o francés ¢ que ja sabia algumas palavras. Pacientemente, cle me perguntava como se dizia tal ou tal coisa naquela lingua. A noite, depois dos negécios feitos, falava connosco, geralmente sobre a chuva, as cheias, as Arvores, as secas, a terra ¢ os animais. O seu cavalo de estimagio chamava-se Louro, 0 qual nao aceitava que alguém o montasse, a nao ser o meu tio. Quando se despedia, dava-nos dinheiro para rebucados e ficdvamos durante uns dias comen- tando as coisas que ele nos contava. “Nos < 84> mal ultrapassava ~ tinha pouco mais do que 3m=9ft84in 1,80 cm =5 ft 11 in Sao Vicente - itha (CV) motivo de festa - razdo pare celebrar fazia-se rodear - % era acompanhado ano apés ano - todos os anos, anos a fio quintal - jardim atras de uma casa distribuir encomendas ~ % dar presentes a cada um mantenhas (CV) ~ sauda- des, cumprimentos Aito Mira - aldeia na itha de Santo Antéo ji desfolhar (um caderno) (est) - % passar as folhas para ver rapidamente o contetido (mais comum: folhear) temer ~ receer, ter medo zanger-se - mostrar desa- grado, ficar aborrecido liceu ~ ensino secundario negécio - atividade comer- cial cheia - excesso de chuva achela inundou a cidade seca - caréncia de chuva © Em Cabo Verde chove pouco e hd secas regulares cavalo de estimagao ~ cava- lo preferido 0 cowboy monta 0 cavalo rebucados - doces © chupar um rebucado de mento! ONDE ESTA A VERDADE? Passados uns dez anos voltei a encontrar o meu e surpreendi-o pedindo a minha mie que lhe evesse uma carta para um dos filhos emigra- s. Deu-me um né muito grande na garganta, r ver aquela imensidade de homem privado de a coisa téo simples como a escrita, que nds, de criangas, domindvamos, quase que instin- ente. Se os meus pais esperavam que eu fi- se algum comentario, ndo o demonstraram e nso que nenhum de nés presentes tinha capa- ade para dizer fosse o que fosse. Depois, pensando melhor, achei bonita uela mentira que nés todos vivemos ao longo todos aqueles anos ¢ comoveu-me os pais ndo :m contado a verdade. Mas afinal o que é a verdade? E se a praia de orralete da minha infancia foi rica para mim, areia e sem tamanho, onde estava a mentira minhas recorda¢6es? Eo meu tio? Se ndo tinha trés metros e nem ia ler, onde estava a mentira se desafiei os ou- mitidos as costas dele, e nunca nenhum me via derrotado? Onde estava a mentira nos nos- didlogos de crianga ¢ lavrador? No meu regresso, a 4gua da praia de Escor- ete era tio quente como ha centenas de anos 4s e eu sei que um dia hei-de ir conhecer Alto ra. <85> uns dez anos - cerca de dez anos surpreender alguém — ver alguém a fazer alguma coisa por acaso, sem querer filhos emigrados ~ a emigra- G0 foi historicamente um destino de muitos cabo- -verdianos 1né na garganta ~ sinal de ‘emocéo, vontade de chorar tomar um xarope para as dores de garganta imensidade de homem ~ % aquele homem tao grande privado de - % desprovido, carecido instintivamente — por intui- co, naturalmente demonstrar - dar a ver, deixar clara nés presentes ~ as pessoas que estavam naquele local fosse o que fosse - qualquer coisa ‘comover ~ emocionar rica ~ % preciosa desafiar - & provocer, nao ter medo © desafiar um inimigo para um duelo derrotar - vencer 9 0 vencedor cumprimenta o derrotado no fim do jogo lavrador - agricuttor, homem que cultiva a terra

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