You are on page 1of 44
‘Copyright © 2015 by Fucanad Fenae Graf eusisda segunda 0 Acordo Ong da Linu Portuguesa de 1990, qu entra igor no Bac en 2009 copa ike Fackas! Méqulna Fstiio Prepare Marcia Copola Revisto ‘vende! Viana ‘Angela as Neves ‘aos Interaionais de Catalogo na Pegi (cr) (mara Besa di iv sal acuta f cana Perea, — Compan ds Letras 2015, ed = S80 Paso» sy 978.85.389-252053, 1. roca baka tl, rettsa 22-869.01 nde para cade demic 1 oes terse bales 89.91 [ers] ‘Todos os ietos desta edigfo reservados & ‘Rua Randi Palit, 706,32 0452-002 — Sio Pavlo— s ‘Telefon: u) 37073500 ers (u) or 01 ‘worwvcompanhizdasetras.com br ‘wornublogdacompanbia.com be Graga, é para voce. Sumario ORELHAS Ly 24 uIM Esta placa, 17 Manter o cinto afivelado, 20 ‘Tinha que ser linda, 22 A liberdade de seguir por esta via, 23 Cada pétala pondera, 25 Qualquer outro nome, 26 Eda terra abandonada, 27 Sem poder dizer de si mesmo, 28 Foi-se a vontade de ir 20 Bgito, 30 Na curva deste minuto, 32 Apenas se diverte, 34 B desenha na mem6ria, 35 Como se jamais, 36 Talvez te perdi de vez, 37 Sabado quase meia-noite, 38 E nfo bastasse todo 0 ouropel, 39 Quando jé desfeita a mimica, 41 As palavras vos fizeram, 44 Rapidos ¢ véo embora, 45 A nitida impressio, 47 Index, 48 Sem saber 0 que fazia, 50 © Ruby Passion, 51 Nessas horas num momento, 53 ALEGRIA Entdo, 57 Novelas, 59 Fabula, 61 Geografia, 63 Quem (ela), 65 Quem (ele), 66 Bscada, 68 Graga, 69 Visdo, 70 Digo, 71 Belo, 72 Perfeito, 73 Perfect, 75 Simples, 76 Lance, 78 Cena, 79 Isto, 80 Beira-mar, 8 Certo, 83 Fuga, 8&4 Lembrador, 85 Poema, &7 Alguém, 88 Ouvido, 89 Santiaguino, 90 Sur, 93 Kodak, 96 MaMOnIAs POsroMAS Eis, 99 Que, 101 Sem, 102 Se, 103 Nem, 106 Quem, 107 Ao, 108 Por, 109 Lhe, 10 De, Te, ma Lap Des, 114 X, us Sob, 6 Ew Os, 8 Ou, ug Me, 20 A, onsHAs 3, 125 4, 206 Do autor, 127 ORELHAS sido certas todas as cangdes banais letras convencionais seus coragées como so de praxe; esto certos os poemas cenfaticos inchados de artificios 8 luz ébvia da ina ou de esttipidos crepisculos; 0s sonetos mal alinhavados, toscos esto certos bem como as confissées intimas nao lapidadas reles nem polidas; ougamos o que dizem sobre qualquer coisa; dizem no val dar certo; repetem; € se o verso é trivial é o mais sagaz quanto mais pucxil mais seguro quanto mais frouxo mais sélido quanto ‘mais rasteito mais a toda prova e quanto mais barato € quanto mais prolixo 0 alexandrino mais legitisno; as formas desdentadas vém do fundo; as odes indigestas dizem tudo; 0 verso oco nao traz menos que a verdade ‘nua € ponto, Bstdo certos os romances de aeroporto; quem busca um modelo procure o estipido; se deseja uma estrela de primeira grandeza escotha o simplério; €o que digo nao busque sendo na aberracio a sinceridade € no disparate a franqueza; prémios literérios nao passam de hipocrisia; estiveram desde sempre certos os erros de tipografia; 0 contrassenso deve ser 0 mandamento de quem precisa distargar o mal-estar apés mostré-lo sem pudor; sim a saudade arde exatamente como nos roteiros dos filmes mas s6 as fitas mais chintfrins com fins infelizes nao mistficam e dizem de antemao © que seremos: redundancia errincia perfeigdo. 8 Poema em que a lingua diga mais; em que a lingua foi adiante da lingua: em que a lingua diga ainda que a lingua 4 antes da lingua ¢ chegaré primeiro a um céu sem nuvem sem anjo sem passaro sem signos do zodfaco porque nao hé estrclas na abébada do papel em branco entre dentes como pedras desenhando um pais deserto em que a lingua jé ndo diga a Kingua e sela 56 a perspectiva de outra lingua que a anule numa espécie de feuto sem érvore ou semente; Ifngua inexplicavelmente ‘que para faciltar chamemos beijo. RUIM Esta placa Como se eu mesmo dissesse, como se eu proprio afirmasse (comeca com ex, meu nome) {que sou 0 que me nomei lugar de ndo ser ainda, solo to s6 prometido, projeto de geografia para depois de amanha, ‘Meu nome no sou agora, moro no mundo futuro. ‘Meu pai me dew esse nome sem que eu pudesse fazé-o. Mal posso escrevé-lo certo nos documentos que o pedem. Nio existo no meu nome, coisa que vive sem mim. Ele se diz sendo eu, este nome que me afirma, ‘maas o que nele me apouta também o que me acusa y de eu nio ser 0 que ele diz Queria viver sem nome, ser o que sou: eu-ninguém, ‘Me chamarem — ei, vocé! — © eu me reconheceria, perleitamente nao sendo senaio uma coisa livre do que jamais prometi. Mas a cara esté colada (certas tintas no se apagam) csta placa, este engano & beira de mim-estrada, Se terra, sou terra a terra, © agora sem vaticinios de um norte em que mel € leite jorrassem faceis, sem dor. 86 existo cm chao estreito, nuns versos de amor e morte, palavras ditas na escuro, {6sforo, poco, voce. Sou o exilado do nome que carrego, vice-versa, sem ter nunca visto a pétria que minto quando me digo toda ver.em que respondo: como é que voce se chama? You aos livros, ndo encontro. Pergunto. Nao esté no atlas. Bo infinito infinito, ‘A terra estard cumprida quando estiver conclufda, Hntdo, morarei ali, sob cla, dentro dela, sem ser eu, sem eu, nao ser, 19 Manter 0 cinto afivelado Bu podia ver nitidamente minha solidao ruas rios pedrarias cidades imensas pequeninas ‘mas agora tudo no passa de nuvens-nada que passam atheias ao chao em que invisiveis brilham nomes ¢ coises como Edificio Safira. Frases objetivas soam surrealistas use 0 assento para flutuar. A seta © a palavra safda tampouco fazem sentido, Vocé tem doencas transmissiveis deficiéncia fisica ou mental € usuério de drogas ou viciado? ‘Sim eu meus amigos parentes e antepassados; aléni disso nos apaixonamos facilmente todos nés facilmente fécels também mentimos com habilidade nos suicidamos de mentita por vicio sofremos de verdade morremos de docngas transmissfveis mentals mas sobretudo oramentais drogas livros sexo melancol alegria banzo cancer medo de aviao, Nao nenhum de nés esteve envelvido de alguma maneira em perseguigdes associadas com a Alemanha nazista e seus aliados. per Atividades imorais? Sim sempre € muitas € €u digo que disso colocaria algum sinal no brasao da familia se tivéssemos um brasio se ndo estivéssemos abaixo mesmo da nobreza caramuru ge no reino vegetal da genealogia nao fdssemos a etva mais rasteira queimada de sol ‘ups mulatos uns mamelucos inventados espantados excitados com a cidade ainda hoje a Gdade que se aproxime agora sob a malha branca em farrapos. & preciso porém manter 0 cinto afivelado ‘a boca fechada 0 peito frio a frase no lugar certo 0 segredo bem guardado os olhos abertos 0 pé atras 0 soco entre os dedos © adeus entre os dedos. Posso ver nitidamente minha solidao cresce a cada minuto posso ver © nosso desamparo cresce a cada minuto osso ver eu sinto uma tenséo cresce cada minuto posso ver os minutos qiie se quebram contra a fuselagem. Tinha que ser linda Pobre cidade de Leopoldina. Pobre nao por pequena, mas por, menos que pobre, feinha (como tantas, quase todas essas cidades do interior que cresceram sem erescer no interior) ‘Mas de todas as cidades crescidas que permaneceram pequenas € de Leopoldina que tenho pena, porque tinha que ser linda a cidade onde nasceu minha amiga Maria Eugenia Lammoglia por A liberdade de seguir por esta via pr-040. Candangoléndia — Brasflia nasceu aqui! — ficou para trés. ‘Atravessamos a frontelra e como em outras terras ‘tudo esté a beira de ser quase melancolia quase alegria quase progresso quase tédio estrada que ndo acaba este cansaco esta impressio de que num ponto {improvavel descampados ferros-velhos supermercados formariam um pais. Hamlet pensa que escuta a vor de sua consciéncia Nao sabe que a voz.que pensa ser de sua consciéncia €36 0 barulho dos caminhées troando mais forte que a fala do coro que passa no Onibus anunciando © fim de mdo; mas por enquanto ainda hé vida © 0 que vive esté a venda mesino 0 coro 0s carros os caminhdes ohomem que nao sabe que ¢ Hamlet seus pensamentos ¢ eu Valparaiso — Hotel Tropical. Pedlriamos sombra égua sonhariamos amores Mas nao ha tempo logo chega 0 Mundo das Pedras, 23 6 Goiis coragio do Brasil! Terra Bela condominios imperdive De que vale a liberdade de seguir por esta vie ou qualquer outra se tudo se passa entre grades vigiadas por dividas Infinitas? © chao escorre. Hstamos perto? Ninguém responde, A luz, baixando. Estamos perto? Deixar que o drama se consuma sem que nossa mao saiba o xemorso de ter feito um gesto enquanto Hamlet no quer sendo voltar para seus versos. Nao voltarat grita 0 coro. ‘Mas o principe estipide de si mesmo nao comerd da terra podre que Ihe serviram como tinico prato. Madelreiras cercas elétricas, Depois da milésima igreja evangélica morreremos de fome no quinto ato. 24 er Cada pétala pondera apenas uma dessas flores de plistico vendidas ‘aos milhares em qualquer cidade dessas cidades de plistico; mas quem poderia imaginar essa flor de pétalas descomunais pensa em nés no lider das milcias no comandante nos escombros onde se escondem os sobreviventes; cada pétala pondera os soldados os mortos § autoridades que pedem 0 fim dos bombardeios € prometem a retirada de forma pacifica; ‘maé sendo s6 mais uma dessas flores de pléstico em vez de simplesmente ornamentar um desses vasos de vidro vendidos aos milhares em qualquer cidade dessas cidades de video o seu olho nos olha ‘hos ouve sem nenhuma légrima e sendo s6 uma flor € toda pensamento metéstase milhbes de pétalas abrindo sobre nés. 25 = Qualquer outro nome Horror deste céu azul por desleixo azul porque sempre azul porque o fizeram assim € o Jargaram Ié azul porque o esqueceram por desamparo azul-nuder que nenhum véu ou voto resguarda da auséncia de Deus ’ sob o nome de Deus —nome que nfio cessa — em nome do qual todo nome é ultraje desarrimo vagando por estradas bombardeadas nuvens de p6 sob um eéu sem nédoa. 26 E da terra abandonada Grasnam em bando soldados marchando pelas estradas. ‘As suas botas funestas esmagam a luz e a égua. Nos seus passos pesa a sombra das aliangas quebradas. Grasnam em bando soldados pisando em vao nas palavras. [As casas fogem de medo mordendo o p6 das fronteiras, da terra abandonada brotam somente soldados. chao ¢ fardas, e pedras onde aflar suas armas, 7 Sem poder dizer de si mesmo © Alentejo nao tem carogo nem casca ndo tem paredes nem teto; certa vez um velho deixou suas memdrias sobre a mesa todas queimaram porque Id os fantasmas no resistem a luz que se lanca de altas espigas ara o patio onde cada fafsca risca e danga entre sobreiros junhos girasséis e dura mesmo noite adentro. Sente o cheito da madeira quei O mundo é pequeno, o Alentejo é imenso vada? Era o passado, € nada. € Id estava 0 homem depois de todas as viagens sem poder dizer de si mesmo algo como: 0 dono é seu retomno, Afinal, onde a casa 9 relégio a mulher o cachorro 0 nome? ‘A Madona a lmpada a cama onde? Desdobra-se o horizonte em dunas 28 ENE —————— de pocira em tiinicas no vento em fios endo hé nunca filhos ou amigos ou espelho. ‘Em qual lugar a cidade a fidelidade urdindo desfazendo ¢ outra ver os anéis sem fim dda espera? Indaga os livros os mortos até que as areias do mar, do mar que parecia distante, lentamente — nao, de repente — cobrem-Ihe vor 0 tempo o mundo é pequeno, o Alentejo é imenso, 29 Foi-se a vontade de ir ao Egito ‘Todos foram undnimes: precisava parar de fumar. Foi o que fez, Com isso parou também de amar o préximo como a si mesmo e passou a duvidar de que um dia tenha amado a si mesmo, ‘Nunca se viu outra vez com sua mae € seu pai na fotografia em que parecia amar € ser amado muito antes de haver fumado ‘mas quem sabe pressentisse com a pureza do sorriso o fumante que seria. Em parar de fumar seu cabelo perdeu a graca e suas piadas perderam o brilho. Perdeu amigos sem sentir pena, Perdew esbogos de poemas ¢ pudor de dizer na Disse adeus ao prazer isico € mistico de olhiar as nuvens pela janela do vio coma anéis de fumaga. Arruinou-se sobretudo certo dom de estar feliz que néo excedia a simplicidade necesséiia pata que o bem gratuito no se quebrasse — mas agora as horas Parecem porcelanas raras estilhacando num daqueles espetéculos em que o mal abarista equilibra pratos no alto de uma vara que ele pousa na ponta do queixo 30 = a0 som de uma miisica chim, algo assim. Foi-se a vontade de ir ao Egito, Perdeu 0 gosto das aves e da companhia dos cies. ‘Mas, sobretudo, passou a sonhar insistentemente com ras que invadem seus pulmbes sua casa. Na curva deste minuto ‘Talvez pudesse pedir choral, fadistas, chorai Que 0s barcos estéo de costas, que as janelas se fecharam, ue as escadas si0 compridas em cada minuto 0 fogo vem nos cobrar nosso rosto € pergunta pelos nomes intelros perfeitos claros ue 0s deuses nos entregaram, ‘Talvez pudesse pedir, sem nenhum pudor pedir chorai,fadistas, chorai NGo sabeis por que chorais? Pelos anéis corrompidos, or nossos dedos quebrados, Chorai — por que no? — chorai talver pudesse pedir Inundai 0s aeroportos, cchorai mil noites seguidas até que as pedras desistam de barrar os oceanos € tudo volte a0 comeco. Podia pedir, nao peso, zn wr fadistas, chorai, choral. Bem sabeis por que chorais se era uma hist6ria de amor € 0s amantes nao diziam; tinham a palavra certa no entanto, nao mordiam; (os amantes nao haviam que 0 tempo de amar se basta mas soldados e rel6gios slo ferozes e tém pressa, Por isso choral, fadistas, que o mundo hoje é mais triste. HA mortos no chao da praca, Gentenas. Quem os recolhe? Avvida ndo nos devolve hd mésseis no céu de maio, Bibliotecas vazias, museus demais e de tudo. Um rosto répido escapa na curva deste minuto © nunca mais retornamos & casa dos nossos dias. # preciso que eu resista, nao diga chorai, fadistas, © sucesso jé perdido de um amor — que néo me ama, Fadistas, secai os olhos, 3 Apenas se diverte ‘Um tempo sempre a ser vivido e limpo €0 que desejamos: uma sala que no terminasse quando nela andéssemos todo o tempo adiante nas escadas rolantes que nos levariam continuamente numa espécie de cotredor sempre para a frente. ‘Mas logo a imagem se destaz Porque escutamos da memoria as unhas (sujas da tltima terra em que exumou suas ninharias) que cavam as paredes para logo chegar no pouco adobe de nossos ossos. A sala a marcha a ré a escada estanca todos os cadaveres vio a0 chéo do més pasado ou da inféncia tanto faz: a meméria nao tem planos apenas se diverte com nosso espanto ri de nossos ‘monumentos de nosso esquecimento. 4 er # desenha na memoria A cigarra canta exausta entre edificios odisseias automéveis em tumulto ondas sem consolo. (0s dias nao tém sido faceis para ela no escritério, Nao suporta mais a hipocrisia a burrice a pose 0 café ruim. Fecha os olhos edesenha na memsria um jardim fero7. Onde andard a drvore alta que sonhou no seu caminho? Quando viré o tempo do amor feito s6 de domingos? 3% Como se jamais Houve 0 verao algarvio, Tio longe hoje como se nunca tivesse havido barcos na ria azuis errando entre muros caiados nitidos riscos no papel em que 0 carvo da vor escreve agora Algarve e no entanto ftio vera como se jamais aquelas buganvilias debrugadas €m sorrisos sobre a tristeza €a solidao que eram s6 minhas lembro erfeitamente jé nao me'lembro bem. quero esquecer aqueles dias de sol que voliam insistem, 36 A il qalvez te perdi de vez ‘As améndoas vio caindo na tarde quente sem fim = como caem as ameixas nos poemas do Shifinig — ‘as améndoas vio caindo: {456 ficam sete em dez Procuro por todo 0 Rio. ‘Talver te perdi de ver. ‘As améndoas vo caindo: 6 86 restam trinta em cem, ‘O Rio é maior que o mundo? Procuro. Chamo. Ninguém. ‘As améndoas vo caindo € as folhas pelas calcadas. ‘Teu nome, grito na praca. As pedras nao dizem nada 7 Sabado quase meia-noite Noite espessa talvez porque sem Tua. A lua deve estar em Bom Despacho. E ve por onde anda? Por entre ilusGes minha mio procura @ sua, Quase meia-noite de sdbado. Vc ndo est aqui. A Iua talver ande en Bom Jesus do Galho. Ve nfo esté af. Decerto a [ua britha em Campos Altos. Sdbado quase meia-noite. Escrevo enquanto espero Que sua mao surja de repente para reunir as duias partes iguais da nolte em uma, Se anda sobre Umuarama ou Desterro de Entre Rios ‘ou Dores do Turvo tanto faz dane-se a lua. Esta mensagem sera entregue amanha (0 mesmo que nunca mais). B quem sabe eu ainda viva quando ve estiver on-line. 38 er f nao bastasse todo o ouropel Nada poderia ser mais cruel que jantar sozinho no restaurante do hotel entre veludos a luz de velas. Ennio bastasse todo 0 ouropel, havia um pianista, néo menos, dedilhando um repertério deplorével. Felizmente guardava, para tais ocasiées, a ironia com que evitar 0 repasto fécil , pior que tudo, sentimental ‘Mas 0 peixe boiando em molho bechamel, © piano mole, a penumbra, sentiu no peito, no nariz, nas mos ‘que ldgrimas the desciam largas pela cara. Depois de muita mégoa de si mesmo, depois de uma infelicidade de si mesmo, levantou-se, voltou-se para o pianista € disse alto, bem alto: © senor toca muito mal! 39 Bera.a mais pura verdade, Alliés, tudo ali naquela noite (também agora, este poema) foi a mais pura verdade, 40 A ill Quando ja desfeita a mimica Voc® diz coisas de amor a boca no obedece. Tica parada, calada. Como acreditar, entio, que voce disse 0 que disse? (E por isso que o cinema € muito mais convincente. Nos filmes, cuida-se disto: que haja sineronizacio, essa coisa indispensavel,) Quando, depois, foi preciso dizer apenas que nao, ‘a boca ja se ocupava de outra frase, bem mals longa —ainda que bem mais fraca, Quando houve a esperanga de um pedido de socorzo, apalavza, quando veio, bateu num muro fechado, A morte era inevitavel. 4 A gravidade de agora exige que vocé diga alguma coisa importante, por exemplo: eu confesso; eu juro que nao fui eu; Son eternamente grato; vamos parar por aqui. ‘Mas vejas6, que absurdo, a frase soa mais tarde, quando jé desfeita a mimica —em que além da boca havia um altear de sobrancelhas — e leva ao riso a plateia, ‘que nem percebe seu drama. Outra vex agora é tarde, Até seus demtes jé sabem. de cor a declaracio: suonca mats te dire ssot 86 que hoje, hoje mesmo, vvoct jé disse mil vezes © que jurou nao dizer; seu rosto e até seus cabelos, exaustos de repetir, chegam 6 depois da fala —o que € ainda mais ridfculo, a essa vez era verdade? Nunca mais diria aquilo? ‘Mas o intervalo entre o som eos ldbios — que nunca dura ‘mais do que uns poucos instantes — 6 tempo suficiente _pra que seu filho ou amante ‘ou seu pai lhe dé as costas e sala. O descompasso centre seus lébios € a frase largada no ar, parada, faz qualquer cena improvavel. Alguém duvida que a vide 6 um neg6cio perdido em que ninguér acredita? 8 As palavras vos fizeram Jé no hé nexo em vés: acumulastes livros sfo estas montanhas inflorescéncias pesadas compactas mas logo velhas litografias abanam ao vento ¢ onde as folhas se unem uma boca se rolonga faminta grita correm no ar separatas volumes desaparecem escapam do olho propagam-se rebentam batem contra pedias mutos ou num salto mergulham vém flutuar nas 4guas até que se deixam engolfar ¢ as vagas turvas de tratados engrossam lentamente param — pasta fibrosa a beira das estradas na boca dos tineis aluviso embaragando o teinsito 0 horizonte — nao hé nexo em nada as palavras vos fizeram papel confusamente 0 mundo sem movimento perplexo papel. F como se rissem de tudo lé vdo aquelas aves em doida orcem alfabética, 44 Rapidos e vao embora Dizem nada como um dia apés © outro ‘como se no dia seguinte viesse inevitavel um remédio um diamante mas ha dias em que 0 dia apés 0 outro nao é nada ‘mais que um dia idéntico ao de ontem um dado ‘com todos os lados o mesmo relégio magro desses que nos devoram répidos ¢ véo embora 0 diabo o dé 0 diabo o leva o dia seguinte pode ser s6 a res- saca ou aquele em que desaba 45 a catéstrofe um dia apés 0 outro dizem. como se nos ensinassem a nadar: 0s bragos assim, a frente, 0 outro, agora 0 outro, isso, el vamos n6s adiante bragadas contra 0 calendétio até que — as vezes é assim morremos hoje — um apés © outro vido dias e dias sem nés sem que nunca venha 0 dia do juizo. 46 A nitida impressao Em certas brechas do sonho ou da vigilla quase vemos os fios que nos conduzem ‘umas vezes com tal zelo umas veres com total desleixo. £ quando Nos movemnos com a nitida impressio de um teatro atado aos ossos ede que somos arrastados contra a nossa prépria vida. 86 0 que chamamos de absurdo parece dar a tudo algum sentido, a Index Um cavalo morto ndo pode ler poemas. Um ledo morto néo pode ler poemas. ‘Uma érvore morta nfo pode ler poemas. 0 afogado nao pode ler poemas. Morto com 19 anos de idade no dia 19 de abril, Domingo de Ramos, Gary English, atropelado por um Land Rover do exército briténico sob 0 ataque de coquetéis molotoy, no pode ler poemas ‘Todos os que morreram com 19 anos néio podem ler poemas. Entdo o avido explodiu no céu da Ucrania Oriental © um dos cadaveres atravessou o telhado da casa de Irina Tipunova, Os mortos no campo de girassdis no podem ler poemas, Como explicar a poesia a uma baleia morta? Como explicar a poesia? O siléncio multiplica-se, incompreensivel, no vento. Mas 0 selo, inconfundivel, nao deixa diivida, Bo siléncio, Como vem de longe, tem fome. ‘Dois amigos bebiam na cidade de Init, nos montes Urais, 0 anfitrifo insistiu que a verdadeira literatura era a prosa, enquanto 0 convidado, um antigo professor, afirmava que era a poesia. A discussdo literéria tornou-se rapidamente num conflito ‘€ 0 amante da poesia matou o oponente a facadas, disseram os investigadores, Os desaparecidos, até que ressurjam, mesmo que séculos depois, até que sejam sepultados estardo Impedidos de ler quaisquer poemas. (Os mortos em Ruanda, na China, na Bésnia, no Congo, no Libano, no Paquistao, nenhum deles nunca mais ler um s6 poema, € preciso que se diga, ‘Meu pai ndo pode ler este poema. 49 Sem saber o que fazia Escuta a linda cango que nos fala da lebre que cagou o homem que saiu para cacar uma lebre. Bscuta a linda cangao que nos fala do homem que dormiu sob a sombra da rvore e a lebre tomou sua arma. Bscuta a linda cango que nos fala do homem que acordou coma arma apontada para sua cara, Que linda cangéo nos fala do homem que fugit: gritando, Fscuta que linda cangdo nos fala da lebre perseguindo sem trégua o homem que saiu para cagé-la cacerta altura da fuga tropegou caiu num pogo ea lebre acertou o alvo bang! em cheio. Entdo a lebre foi & casa do homem que saiu de casa para mais um dia de caga. Sua mulher estava bebendo café quando bang! disparou a lebre. Bscuta a cangio da lebre que depots voltou para seu quarto e sala atirou contra 0 pr6prio filho sem saber 0 que fazia, Escuta a terrivel cangio de amor da Jebre que os préprios miolos ang! 5° O Ruby Passion Senta-se em frente & televisio. ‘Ou melhor, antes disso vai ao cabeleireiro cobre as raizes brancas com 0 louro intenso mimero 8 e ainda pede ao Ricardo que the apare as pontas ressecadas, Depois pega da bolsa o Ruby Passion passa-o nos labios trés quatro vezes cuidadosamente, im casa, senta-se em frente a televiséo liga naquele programa que dé informagdes valiosas de beteza ¢ satide féceis de inserir no dia a dia e seguindo as orientagoes da mulher que explica tudo com voz calma pée a cohuna ereta faz inspiragGes e expiragdes profundas st enquanto aperta com a mao direita © revélver que 0 marido esconde nna gaveta pequena da cémoda. Yoeé nao sabe segurar uma arma pensa que talvez nao dé certo mas eu no sou uma boba voce diz.a si mesma € preciso tentar cu sou uma mulher tem que dar certo diz baixinho encostando 0 cano ne lado. do coragio que bate alto acelerado posso ouvir daqui. 52 Nessas horas num momento ‘Transmito em nome de todos os mais profundos sentimentos todo o apoio possivel nesse momento tio diffcil nossa solidariedade afeto forga nesse momento tio diff condoléncias um beijo um abraco fraterno quero deixar aqui meu abraco minha solidariedade (0 muito minhas sinceras nese momento to dificil que a paz esteja com _meus sentimentos nessa hora palavras so insuficientes, para consolar meu pesar minha solidatiedade munca sei o que dizer nessas horas num momento assim a tinica coisa a fazer € consolar a famflia nao poderei ir ao velério. 3 ALEGRIA. Entéo ‘Te faz infeliz? Te dé vontade de ir embora? Te deixa tonto? Te predispde a bater a porta com toda a forca? Te impele a langar fogo nas cortinas e nunca mais dormir? ‘Te desperta a vontade absurda de sofrer? ‘Nunca foi assim? Acredito, Nunca foi festa coisa cor-de-rosa doce mole goma agarrada na camisa e no cabelo? Nunca uum lébio de tantos dedos? # realmente comovente, Nunca antes um tal desejo dessa matéria ordindria que vendem com o nome de felicidade mole doce cor-de-rosa? f de fato desprezivel. Tua vida nunca mais outrora foi um festim? Instila em tio suborno para que o espelho te diga sim é& belo? Noutra hora te provoca iso? Te faz pobre de tie te faz dizer coisas tolas assim? Reacende em tua bova a adoleseéncia © rosto de nenhum tem arabescos de gosto duvidoso? Por certo os poemas pioraram a olhos vistos. ‘Te induz a atrancar toda a lu dos olhos © sonhas inutilmente um dia sezes rei num pafs de cegos? ‘Te fere? Concedes? 7 Cedes 0 melhor lugar ao desgosto? Te predispde a arrancar de tia pele do que viveste para deixar apenas esta silhueta vazia que flutua ja de safda ‘onde antes havia um jardim? ‘Te convence de que a luz as coisas a palavra a sombra so a mesma matéria? Ha sempre avides 4 postos para cidades-mares de papel? ‘Te espicaga? Te desafia a dizer no? Nao dizes? Nao diés? Dize-me entio: € a alegria? 38 Y Novelas Porque ele mandou a mulher ir pentear macaco la foi Ese apaixonou pelo macaco, © macaco por ela. Viveram na floresta a invengdo do amor puro perfeito. Até que um dia ela nao péde mais suportar aquilo precisava partir precisava usar palavras ser infeliz, Porque a mulher disse ao homem vA ver se eu estou na esquina ele foi. 39 Fld estava ela. Na esquina. ‘86 que mais leve mais doce mais bonita. Dali mesmo foram juntos comprar cigarros para sempre. 60 Fabula ‘A luz da geladeira faz mais escuro 0 escuro ‘onde as raizes brancas do cabelo ralo brilham em arco sob 0 acaju. Quem se disporia a erguer paldcios num dia, um condominio mfnimo que fosse, com o mérmore azul de suas varizes? Anninguém apetece dormir sobre o tapete amarrotado de seu colo. Quem quereria noivar com seu batom que escorre para fora a resina rubro-cintilante de anteontem? Ninguém quer casar com dona Baratinha. Mas ela quer amor, Hla quer amar. Hoje, por exemplo, acordou bem e se sentiu outra vez jovem e bela entre bibelds girando na penteadeira. A pensio do falecido no teria melhor destino: uma chizia de alegrias, umas companhias. Quem quer casar com dona Baratinha? But dizem os rapazes apaixonados. a Dona Baratinha sé quer um pouco de amor. B seria muito triste se ndo pudesse comprar um pouco disso. eo ae I Geografia Brasil laranja Uruguai verde Argentina amarel diz que se lembra das cores dos paises zo globo de quando era crianga; vou pela mao dos seus olhos que voltam a ver ‘0 México roxo os Bstados Unidos amarelo © Canadé rosa; até seus cabelos parecem concentrados na evocagio da esfera que gita perfeita em pedagos; Portugal acho que era verde Bspanha era laranja Franca era verde entéo Portugal no era verde acho que era rosa; faz uma pausa; a Alemanha ra Jaranja a Illa era roxa 0 Reino Unido cera rosa a Irlanda era verde a Suécia laranja; ‘outra pausa mais longa sob as sobrancelhas compactas graves porque o mundo std inacabado; @ Dinamarca era rosa diz com seguranga: parece tocar a terra quando a Riissia cra — silencio — era laxanja ‘a Mongélia era verde a China era roxa 0 Jap era rosa a Australia era ros por um instante penso que tudo serd rosa ‘uma rosa? mas logo a Indonésia era Jaranja © Ind era amarelo o (como se 0 flo que sustenta o bale por um instante se soltasse ¢ um lago imenso sem nome ou terra perdida no tempo sépia alastrasse). Néo sei (diz para emendar em ritmo acelerado que) 0 Egito era rosa a Africa do Sul era rosa © Lesoto era verde; acho inerivel que se lembre do Tesoto sorrio; © Madagascar era rosa © Chade era roxo ndo o Suddo era roxo 0 Chade eu nio lembro Angola era amarelo Marrocos era rosa a Ucrania era amarelo 0 Paquistio cra rosa ¢ Libia era verde: seus olhos tém uma cor que s6 eu vejo; a Arébia Saudita era laranja Oma — tem um pais debaixo da Ardbia Saudita que se chama Oma? — era verde; nao sei se lembro mais condlui, Numa esquecerei aquele dia quando 0 mundo esteve em paz nitido & luz da manbé ¢ eu podia beijé-lo eu o beijei muitas vezes seguidas vezes. 64 + Quem (ela) Por ela hio de rir-se os reis momos eos trapezistas por ela ho de cair ainda verdes os poms dos mais altos galhos ‘bem como os domos dos edificios esfacelados ‘agora na praga em que de espanto ho de revoar os pombos mas de nada valeré procurar 0 norte se por ela hdo de virar pedra os controles remotos hd de se embebedar de ventos a rosa e de rosas os bobos ¢ héo de ser por ela (0s maus os bons porque a seus pés cairemos todos tolos perderemos ‘0 sono zonz0s felizes infelizes sem nenhum motivo a nao ser este: por ser ela. Quem (ele) Homem? Menino? Como defini-lo? ‘Mal a palavra se aproxima, © que nele o revelasse escapa repentino. Como apanhé-lo? Comparé-lo a um fruto? De ver, verde ou maduro? Como sabé-lo se, fruto, vive alto na arvore de um bosque distante ou do sonho? Ese vive em téo vago palicio, como chamé-lo? Rainho? Princeso? 66 Yr ge, ainda mais alto, pissaro, como reté-lo entre os dedos? qucano branco de olhos negros. o Escada De transformar-se o amador na coisa amada transformam-se o pescador em peixe 0 eapitéo em arma em piano o pianista em desastre © equilibrista 0 arquiteto desaparecido ‘quem sabe converteu-se em luz no livre alto vao da escada como ela em espiral transformam-se em madrugada a namorada em dcido 0 quimico em mégica 0 magico em livro 0 bibliotecirio em pocta o poema o poema em agua € por virtude de muito imaginar hoje sou voce graga — de ver em mim a parte desejada. 68 Graga -Milhdes de palevras derramadas intiteis ‘mas teu rosto néo; arvores tombadas livros partidos tudo se vende mas teu rosto nao; sangue de cldades e eriangas mas teu rosto segue limpo; em cada canto um inimigo; ino teu rosto nfo; rosto onde nao cabe ‘guetta; rosto sem inmao; teu rosto o teu nome o diz. 99 Seria facil comparar as araucérias a candelabros. Mas cu digo que clas se parecem com aquele rapaz que, bracos, cabelos, surgiu devagar sob a luz de junho, timida de orvalho. Yeio em minha direcio. E trazia o horizonte nos seus ombros larges. 7 Digo Imagino que seu nome é outra areia outra fébula outro nu outro tédio outro ladritho. ‘Ainda assim & vocé, Se seu nome fosse outro do outzo lado da linha outro nervo outra nostalgia ainda era voce ¢ 56 por isso acenderia a alegria de 0 ser mesmo que seu nome nao valesse o cinema minimo de o escrevermos numa pagina e pudesse até ro pertencer a este mundo € tivesse que ser dito com luvas de borracha, Name que andasse descalgo ‘mas sem queixa da sorte porque ainda assim quebravam nos seus passos as tardes de jumho. Podia ser um nome que néo cantasse que mal se sentisse que nao condurisse a0 coragio dos velhos trens de carga. Mas seu nome longe disso ¢ berilo abrindo seu brilho na lingua cada ver que o digo. Frondoso é ¢ sob sua sombra descansa talvez uma onga ¢ na mais alta sflaba ‘um inseto finca seu alfinete e zine, ‘Mas podia nao ser nada disso. Seria por exemplo onde batesse aleatério o dedo na pigina do dicionétio, imagino. F deduzo que enquanto houver nomes sobre a Terra haveré discérdia e haverd poemas. a Soube a impressao de eternidade quando diante da tua juventude intuf que a imagem duraria através de mim e para além dos meus othios mesmo depois de eu morta porque teu corpo exposto & luz €& dgua tinha a solldez da escarpa que no entanto se curvava para atingir 0 pé com uma das mos : ¢ tudo aquilo compreendi ser o cumprimento de algo ras alto que o finito; entendi porque vi — como escutasse — no teu limite humano a extensio indizivel do que outros chamariam o espitito. > Perfeito Me disse nos meus bragos vot parece lum menino eu disse nos seus bracos ‘eu 50u um menino eu podia ter dito trago pela mao um girassol um livro ‘um violino eu devia ter dito eu nao disse Sou um verso que teci com seus cabclos sou o peixe vermelho no aquétio de Matisse eu diria ainda mas. deixei que s6 a respiracio dissesse ‘que eu exa a presenga Jonginqua da maresia por entre os pinheiros de Curitiba ‘um menino sim um gro de mostarda um sobrado em Braga branco € branco eu despertava e Amsterda sob a neve parecia mais pequenina uma sflaba espera de uma sflaba que a tarde trazia entre dentes mitidos; tudo sob o lago prestes a desatar e cair B & maneira de um copo que se parte; ‘mas por ora nada tina peso nada era grave ¢ 0 tempo sem as horas ‘munea soube de n6s ali onde 6 mundo permaneceria daquele modo suspenso perieito, ™ Perfect Nem sempre foram dias de lazer. Houve dias de trabalho. [Nao parecia porque aquilo que nao fosse a alegria de estarmos juntos era carta fora do baralho com que jogdvamos sem medo de perder 0 tempo € 08 dias pareciam passatempos perfcitos. Nao? Nao. Mas aquelas horas voltam a meméria como dias de folgar ¢ gozar tudo o que parecia existir para ser o prazer de haver e a invengdo de novos écios. Se nem sempre distraidos fluimos de esqui entre littos € que perfect days (voce disse) as vezes sio dificels de viver. a cartegando voce, minha cabeca ¢ um baldo ballando entdo. Sim, daqui a cordilheira dos Andes é nitida. scute, escreverel uma coisa Simples tio simples assim: voré é meu sol. Porque vocé me deixa com a cabeca Se vocé no sai da minha cabega, . quente. EB sem juizo, imaginando. minha cabega € seu apartament. Ja voe’, sendo vocé, é um chapéu que uso dentro, como se usa um carogo. 3 Porque minha cabega todo 0 tempo esté em voce, suas pernas nao saem da minha cabeca e sinto seus bragos se formarem nos mesmos escaninhos. ‘Nao tenho cabeca para outro assunto, . guarda-chuva chapéu pernas ou versos que no sejam vocé. Devia pensar noutras coisas — alfinetes perdidos, convicgdes perdidas praias desertas ‘ou novas medidas de seguranga para a cena do atirador de facas. Perdi a cabegs ¢ jé nao hd remédio. ‘Mas quem havia de a querer no lugar se seus dedos brotam em meus cabelos? ‘Vocé me subiu 8 cabega — forgas belezas alegrias me pertencem. Havia muito sangue na calgada dizem. Ai, sou um equilibrista em queda livre. Desempregado. B se giro por af com a cabeca no ar 76 Lance A velha capa de chuva que perdi talver passcie sob as tempestades Sem corpo que a preencha e de nylon € também a noite quente de agitear € morcegos entre as copas altas. Sem noticias tuas as horas sio muitas © apodrecem no meu pulso, Mas sci que existem horizontes como existem violinos trens abelhas nebulosas de estrelas novas © € para ld que meus olhos se voltam: o telefone. we Nao é um privilégio dos ouvidos. ‘também meus dedos pernas ¢ —€ 0s joelhos! — estou certo de que escutam tua voz, ‘que pode vir em riste qual navalha nas méos de uma criange distraida (os meus cabelos murcham de amargura e era melhor que os bragos fossem surdos). ‘Mas tudo em mim esté atento, © hoje, em meio a tantas pausas ¢ palavras, foi nitida a cangao entre teus dentes rompendo, displicentes, de termura um gro. 9 Isto Talvez voce ndo seja mais que isto: alguém, de costas, tenta acender um cigarro ao vento. Um oceano abstrato ven bater em nosso quarto. £ preciso cuidado, nao so poucas ¢ sio altas suas ondas; escuto, mas quem compreenderia a valsa dos afogados, feita de uma boca intraduafvel? © vento dispersa 0 que eu ditia, nao chego a voce, a seus ouvidos; asim também minha mio que desmorona antes de alcangar seu rosto onde do que entre nés alguma vez foi nftido embaragam-se 05 fios; 0 vento derrama seus olhos para longe, dessalga e seca nos meus a hipstese da queixa; vento da noite, que espalha suas pedras negras no imenso metro entre nds. Talver 0 mundo mais perlcito seja apenas isto: vocé, enfim, acende seu cigarro. 80 Beira-mar Nao € 0 afogado. Posso ver que nao é 0 afogado. Posso ver pelos seus bragos, vivos, seus olhos, ristalinos; 0 modo como suas mos se movem, vivas, posso ver, néo € o afogado. Bsteve no mar ¢ voltou vivo. Havia areia cansago alegria na sua pele; ‘nao lembro de algas entre seuis cabetos mas lembro de seus cabelos, flutuavam; ¢ nftido era o barulho das ondas nos seus olhos, vivos, cristalinos. Nao € 0 afogado. O modo como sain da agua, reto, as pernas perfeitamente pernas de homem que foi ao mar e voltou ¢ se deixou secar 20 sol. Espanto-me de alegria por ele nao ser 0 afogado. ‘Todo 0 meu terror se enche de alegria. Nao penso. Encho-me de gratidao, As nuvens ardem por dentro € a tarde se dobra na diregéo das falésias. Nao € o afogado. Mas € de tal modo delicado que cle esteja vivo que receio tocar seu rosto, Est aqui, entre os barcos que voltaram entre as coisas que existem: coqueiro vento flauta. Esteve no mar. Os bragos abriain a dgua ¢ a 4gua se fechava; os bragos insistiam e outra ver a agua Teunia suas 4guas; bragos espuma pernas lutavam ou dangavam: entdo ele ergueu a cabega para fora € respirou. Nao ¢ o afogado. Digo o nome Dews a por ele respirat. Digo o nome Deus por cada vex que ele respire, Maravilhosamente, espantosamente estd vivo, Esteve no mar. Eu vi, Mas voltou vivo. ‘Toquei seu rosto, vivo ¢ cristalino, & Certo Hoje quero te falar de permanecer vivo. Observa que hd drvores velhas e a juventude é longa; perde ao menos uma hora restaurando os azulejos brancos da tua inféncia; sobretudo abre as janelas que dio para o céu de Nova Friburgo, terra onde as terras sio principados de toda a gente © vista nua divisamos planetas em varandas alvorogadas por malmequeres s6 de luz; hoje quero te falar de junhos nervosos de tantas alegrias. Se tudo te parece frdgil é yerdade ¢ frégil tudo; ‘mas venho te dizer que tudo permanecerd vivo nesta hora em que te digo agora. Alguém Nao quer ser Lufs no quer ser Luisa quer estar deitado numa praia lisa gua nada biizio quer estar sozinho num jardim de pedra onde bata um sol de luz desconhecida; nfio quer ser Jodo nao quer ser Joana nao quer ser aquele ndo quer ser fulana quer scr a roldana de outros destinos a resvalar por entre pedras e remoinhos sem ser Damiao sein ser Juliana; nem Felipe nem Felipa quer ser outra hip6tese terra provisdria ferida abrindo- -se no centro do pensamnento que tudo classifica em tons de rosa em dentro ou fora — quer estar noutra pele noutro lugar no tempo-seré da incerteza conduzindo asi mesma na direcao de outros nomes. ‘Meméria é uma frigideira suja que no nos animamos a lavar edo fundo gorduroso se descola ~alguma coisa como agora a voz do locutor no radio dizendo: vida, somente vida. ‘Avor elétrica fazi vida, somente vida. tudo mais grave: (0 menino nfo entendia ‘mas aquilo pesava sobre ele uma comogio estranha estragava seu dia como &s seis horas escutar a ave-m: ‘ou futebol entre cigarras nas tardes de domingo abaladas sob as copas das amendocicas, Hoje entendo perfeitamente o que significava (que significa no haver nada por trés disto: Vida, somente vida, 89 Legitima estupidez a minha (a dos que amam): deixar o mel a tona, ‘Melancolia previsivel que agora moscas 0 comam, ORELHAS is Palen Amo a margem esquerda onde irrompe o poema onde principia esse espago que semelha um patio onde o vazlo recua para que a vor grafica se faca. Diante do ovo das nuvens do ermo da seda do mar aberto do céu incerto a margem esquerda induz ao gesto e forga a mola que salta para além do branco. Amo ¢ margem esquerda a escarpa contra @ qual © mundo se espedaga e o mundo recomega para morrer algumas éguas adiante. Amo a margem esquerda o zero da régua projetando-se para a praca onde em Iinhas que unem paisagens distintas 0 tempo danga ainda sua infancia, Mas antes que 0 poema exista a margem esquerda 6 apenas um ramo invisivel — galho provvel na drvore que imaginamos ¢ que s6 vive quando um verso exausto de também ndo ser se apoia na parede reta nas encostas ésperas da pagina que espera. 5 Bu te digo que é preciso ndo morrer no poema; que € preciso amar € ndo parar o pulso de amar no poema; que é preciso nao perder no poema © amigo; que € preciso nao temer dormir s6 € nu sob os relémpagos que estendem seus gallos sobre 0 papel em que; € preciso no mentir, ¢ saber dizer nunca mais, porque As vezes é preciso; deixar que o inimigo descanse em paz aqui enquanto queimamos a noite a procura de pio justica ediffcios impossiveis labios que parecem guardar a égua exata do nosso nome ali onde: eu te digo que é preciso aceitar o verso ruim dar a outra face ao siléncio do poema no poema ver partir sem pena 0s verbos que sagrados 36 se digam sob o teto de jamais 05 pronunciarmos; preciso deixar que no poema venha quebrar a maré rasa das palavras ultrajadas repetidas repisadas nos jornais nos livros nos mercados apanhadas com o coragéo na boca ¢ o engano dos sentidos ¢ do espfrito entre os dentes; palavras tantas vezes obras que pobres nfo valem a tinta de novamente serem ditas; dizé-las, no poema; eu te digo que é preciso perdoé-las. 136

You might also like