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TEAM RABA NOME-NITRIX ...E DE NOVO A estrada parecia infinita, quase impossivel de se ver 0 que havia em frente gracas 4 extrema escuridao desta noite sem Lua misturada as sombras das arvores nas laterais, das quais cresciam ao receber as luzes dos faréis do meu carro. No meu relogio, marcava duas da manhi, era s6 eu e o volante versus a noite. No painel, 0 velho GPS mostrava um caminho em linha reta no qual deveria seguir, Era um atalho que diminuia a minha volta para casa em trinta minutos, por isso pisava mais fundo na luta contra o tempo e contra o escuro. So Cold, da Breaking Benjamin, comegava a tocar no meu celular preso no painel. Com um clique na tela, a foto da Ana, minha ex-esposa, aparecia no mesmo momento em que a chamada era aceita. — Alo, onde voce ta? Ja ta voltando? — To. To sim. A Gabriela ja dormiu? — Sim... Ela ficou a noite toda te esperando chegar enquanto desenhava. — Desculpe — suspirei. —, 0 chefe me empurrou uns hordrios obrigatorios para finalizar 0 wabalho de uma mulher que ele mesmo demitiu. — Mas também, né, Eduardo? Vocé deveria ter pelo menos inventado alguma desculpa para voltar cedo e ter vindo para o aniversario da menina! Tem ideia do quanto ela chorou na frente dos amiguinhos por sua causa? — As coisas nao funcionam tao facil assim no trabalho... Se eu fosse demitido também nao teria pensio — provoquei ela. — Nao é hora de fazer piadas! — O fone chiou com 0 grito. — Vocé faltou de novo no aniversario da sua filha, e sabe o que ela disse? Que nao gostava mais de vocé! Uma menina de nove anos odeia o préprio pai agora! — Eu levo ela para um parque de diversées amanha como um pedido de desculpas. Té dirigindo, entao nao é bom discutir agora. Pelo fone, escutava ela suspirando e, em seguida, um siléncio antes de terminar: — E por vocé nao entender o valor dessas coisas que nos separamos. Até mais. Quando ela desligou, eu estava abrindo a boca e querendo me justificar, mas era mais facil lidar com isso encerrando o assunto. Depois, por algum motivo, a minha playlist musical comegou a tocar a mesma musica da chamada, me zuando com o toque dramatico de violao, mas a melodia era tao boa que eu deixei tocar. A estrada continuava reta, lisa e macia para o carro acelerar. Pela janela aberta, o vento frio espantou o calor de nao ter um ar-condicionado no carro, que ja estava em cem por hora. Pelo canto do olho, minha visao insistia em apontar vultos estranhos na floresta, mas meu cérebro entendia elas como sombras das arvores. Como mie, a raiva da Ana era correta. Eu também sabia que deveria estar mais presente na infancia da Gabriela, como ela sempre cobrava, mas meu tempo nao permitia. Criar uma crianga era caro, por isso precisava trabalhar pelo futuro dela mesmo que eu tenha que perder algo em troca. E os presentes que sempre mando? Eles deveriam contar, droga! Minutos depois, a lista de reprodugao estava na Ultima musica, mas a estrada continuava. Foi s6 entéo que descobri que ainda eram duas horas da manha, e também, para minha surpresa, 0 tanque estava no vermelho. O que esta acontecendo? Ele estava cheio antes de sair do trabalho. Descontei a minha raiva no freio, pisando com tanta forga que os pneus gritaram com a parada subita. Mas entao o carro de repente desligou todas as luzes, e a minha cara ficou sendo iluminada apenas pela fraca luz da tela do celular. Puta merta... perdi 0 aniversdrio da minha filha e agora perco a bateria do carro. Té foda, viu. Parece que hoje nao era o meu dia de sorte. De qualquer forma, de acordo com o Google Maps, ha um posto a quinhentos metros daqui. Tudo que eu poderia fazer é seguir em frente e pedir por ajuda. Andar no escuro era medonho, principalmente com a diivida de ter algo me encarando entre as arvores. Tudo era igual e, com o breu dificultando a identificagéo de um ponto de referéncia, comecava a me perguntar se estava mesmo no caminho para o posto. A lanterna do celular era a minha tinica guia, mas s6 iluminava dois passos adiante. E mais dois passos eu dava, para os outros aparecerem. O indicador de horas no celular marcava dois minutos para as trés da manha. A minha respiragdo pesada era 0 unico som audivel e, junto com a batida forte no peito, enquanto eu tentava nao olhar para o escuro, sentia meus movimentos ficarem mais travados. S6 para sanar a duvida, apontava a lanterna de um lado para 0 outro. Deve ser coisa da minha cabeca. Imerso nesses pensamentos e andando sem olhar para o chao, meu pé tropecou em algo, fazendo o celular pular da mao. — Mais que inferno! — grunhi, ajoelhando no chao para tentar achar a bateria e o celular que se separam quando cairam em meio a escuridao. © chao contra as palmas estava frio e duro, com as pedrinhas do asfalto cutucando minha pele, mas sem sinal das duas pecas que mergulharam no mar de sombras. Arrastava as maos de um lado para 0 outro, quando me cortava com um objeto pontiagudo, levando o dedo a boca no mesmo instante. Gasolina. Por algum motivo, no meio dessa cagada toda, 0 cheiro de gasolina enchia minhas narinas. De primeira, o que me vinha a mente era a imagem de um frentista vindo me salvar com uma lanterna, mas nao tinha como alguém assim sair do meio do mato escuro. Contudo, o que me aliviava mesmo era que havia um poste de luz ao longe na pista, iluminando uma parte do posto. Chegando 14, 0 estabelecimento era diferente do que imaginava. As mangueiras de gasolina estavam jogadas no chao, jé o mercadinho tinha a porta automatica abrindo e fechando sozinha, com as luzes internas apagadas. Isso definitivamente nao era normal, eu pensava que algum tipo de arrastio tinha acontecido, mas o sangue s6 subiu para a cabeca quando um individuo sombrio saiu correndo de dentro e pulou no meio do mato. — Olé? Tem alguém ai? E-eu nao tenho nada para vocé levar! — gritei com as maos para 0 alto, enquanto o barulho de mato quebrando comecou, como um animal enfurecido arrastando-se pela floresta até mim. Nao perdi tempo parado. Se havia algo no mato em plena madrugada, entio eu nao queria saber o que era. Entéo, mesmo quase caindo quando 0 fazia, eu debandava pela direcao contraria. O barulho vindo do mato parava, e logo outro comegava. Parecia choque de cascos batendo no pincho seco; isso estava atras de mim, e a escuridao protegia a sua existéncia, enquanto enforcava a minha. Minha lingua prendia dentro da boca graca aos calafrios, impedindo meus gritos pela ajuda. Colocava tudo que tinha nas minhas pernas, fugindo desse satanas, mas meu corpo sedentario nao ajudava, com minhas articulacdes comegando a doer com os impactos dos meus pés contra o asfalto duro. A primeira coisa que via para proteg’o era o meu carro ao longe. Quando entrava nele as pressas, trancava tudo, esperando deitado sobre os bancos, pegando o um pequeno celular para emergéncias debaixo do terno. Entao, durante cinco minutos, o ambiente estava mais silencioso ainda, como se algo fosse pular e me atacar a qualquer momento. — £ 0 jeito pedir ajuda... — resmunguei, clicando na opcao de chamada de emergéncia, enquanto aquela velharia travava. Iria ser incomodo para a Ana vir me buscar com a Gabriela dormindo nessas horas, entao a melhor opgao era a policia. Entretanto algo puxou toda a minha atengao: varias notificagdes de chamadas perdidas vieram uma atras da outra, todas no namero da Ana, por isso retornei elas no préximo segundo. — Alo? Anal? — Zuu... coulde © chiando esquisito que seguia apés aquela voz estranha falar, perfurava os meu tipanos, me fazendo desligar a chamada instintivamente. A tela do pequeno pocket bugava e chiava logo depois, soando como se fosse uma respiracdo vinda de alguém. Alguém do lado de fora do carro. Eu estava sem ar. A noite nao passava, nao sabia onde ficava essa estrada e nem o carro ou qualquer coisa funcionava. Obviamente, algo muito ruim estava acontecendo com a Ana, mas eu também nao podia fazer nada a respeito. Talvez seja o resultado do medo de estar isolado no escuro dentro de um carro, mas a queimaco incémoda no peito apontando para algo la fora nao me deixava quieto, e os préximos segundos mostravam isso. Um objeto se chocava contra a parte de tras do veiculo, pesado o suficiente para balancar ele. Isso deslizava sobre o teto até parar perto do para-brisa, fazendo meus olhos lutarem para nao abrir enquanto todo meu corpo tremia. De forma calma e silenciosa, tentava acalmar o coracao, diminuindo a velocidade da minha respiragao frenética, mas uma explosao no peito surgia ao ouvir um: — Papai? ‘A adrenalina tomava o lugar do medo, fazendo meu corpo se mexer sozinho de imediato. Instintivamente, chutava a porta, e ela abria, pulando para fora do carro; meu ombro torcia quando o usava para amortecer a queda do pulo de desespero, mas me levantava preparado para tudo. Mas eu so dei conta da minha burrice quando senti uma respiragao soprando 0 topo da minha cabe¢a. — Atrds... de vocé... Eduardo. er O susto chutava 0 meu corpo para cima, mas 0 que realmente me acordava era a dor muscular intensa no ombro. Quando sentei na cama, percebi que estava no meu quarto. — Que sonho mais louco... — Limpei 0 suor da testa com a mio. Por mais que eu queira acreditar no que acabava de dizer, as palavras de certeza se quebravam ao se deparar com uma verdade maior. E, na parede frente a minha cama, escrita em vermelho sangue, uma frase me perguntava: “Nesta terra de ‘faz de conta’, morta e seca, vocé se senti sendo tao frio, Eduardo?" Algo me dizia que ja vi esta letra em alguma musica, contudo, antes de poder pensar em algo a mais, a porta se abria com um rangido vagaroso, antes de um sorriso ecoar através dela. Deve ser alguém querendo me zoar.. imaginei., observando do segundo andar as escadas que eu deveria descer para ir até a sala. Do meu ponto de vista, a sombra de alguém se estendia até a parede, onde havia presos papéis rabiscados por uma crianca; todos mostrando uma familia, em que o boneco-palito do pai estava separando-se da mie e da filha até sumir dos desenhos. — Ei, nao tem graca! — gritei. — Se nao ir embora, vou chamar a... policia. — Mas nao havia ninguém na sala, além dos moveis sendo iluminados pela luz vinda da janela, com um cabideiro sendo o dono da sombra. Suspirei. Esse dia s6 estava ficando mais estranho a cada momento que se passava, mas eu nao me lembrava de quando foi que voltei para casa. Pensando nisso, talvez seja hora de ir trabalhar. — Trés horas da manha!? — Verifiquei no celular que havia perdido antes. Nao tinha como as horas estarem certas com aquele céu branco e brilhante 14 fora, mas isso nao explicava como eu ainda estava vestido com © mesmo terno de ontem, sem falar que o celular e 0 relégio de parede estavam sincronizados... Isso deve ser uma coincidéncia. De repente, a batida da porta da frente se fechando espantava as minhas duvidas. Como ja estava fadado dessa brincadeira, comecei a perseguir 0 culpado, com a sombra dele servindo como guia. Nos corredores da casa, varias frases vermelhas estavam espalhadas pela parede: "Familia é importante”, “Trabalhar nao satisfaz o seu coragao”, “Fique com quem vocé ama”, eram algumas delas, mas ignorava essas pichacdes que me irritavam até chegar na porta, onde o culpado tinha saido Tentava usar tudo do meu chaveiro, mas nada funcionava, nem mesmo a chave original da porta. Com raiva de tudo, fui até a janela mais préxima para talvez ver o individuo, mas 0 que vi nao foi nada. Era como olhar para um papel em branco. Meu coragao se assolava com a sensacao de insignificancia e solidao quando observava que nao havia prédios, nem pessoas e carros 14 fora. Tentando compreender se essa visio é mesmo real, levantava a minha cabeca para olhar para o céu, mas, como antes, eu paralisava, espantado com o quao branco opaco ele era. O choque me fazia suar e perder a respiracdo. Tentar compreender a paisagem fazia minha cabeca duvidar se essa era a vida real ou nao. No préximo momento, eu estava perdendo o controle. Comecei a chutar a porta da frente enquanto gritava por ajuda, mas tudo que ganhei foi uma exaustao, Como se estivesse cagoando do meu esforco, a porta se abria lentamente enquanto eu descansava no chao. Apoiando-me na parede para levantar, resolvia sair da casa. Meu deus do céu... 0 que aconteceu com tudo? O vento espantava o calor, e ele era mais forte do que sempre foi, quase me fazendo cair no solo branco que parecia ser de ceramica ao tato. Enquanto andava de um lado para o outro, tentando ver adiante no horizonte, nada e ninguém aparecia. Depois de verificar ao redor da minha casa, que era 0 tinico objeto, fui a garagem e ld estava o meu carro. Verifiquei a gasolina e tudo mais, e ele estava pronto para rodar. Eu queria ver a situagao por todo o lugar, saber se a Ana e a Gabriela estavam bem, entao, ja dentro, pisava no acelerador e ia embora da garagem. No préximo segundo, tudo estava girando. O carro voou e foi jogado no chao. A minha cabeca bateu na janela, senti eu sendo jogado por ela, enquanto a parte do meu corpo foi forgado contra a porta, meu pé prendendo no maquinario se esmagando, entao fui jogando para fora do veiculo que continuou girando. Quando abri os olhos, vi-me estirado no chao e partido ao meio, com a queimagao das minhas entranhas contra o solo, me fazendo delirar de dor. Mas nao podia gritar, pois estava sem forgas. Com a minha visio turva se escurecendo, pude assistir uma sombra gigantesca se erguer por tras das chamas e da fumaca. Isso era bem maior que a minha casa, magro com membros longos e com uma cabeca grande e arredondada. Apertei meus olhos, tentando enxergar melhor, ¢ vi como um buraco em formato de sorriso crescia na face escura daquilo. Com a minha consciéncia se desvanecendo, eu assistia 0 monstro caminhar na minha direcdo. Quando pisquei, observei seu gigantesco corpo parado na minha frente, conseguindo apenas examinar as finas, longas e pontudas pernas dele. Como um rangido afinado e chiado, a voz dele, que se parecia com uma multidao, gargalhou: — Esta tudo bem, Eduardo... Eu nunca vou te deixar Vocé precisa sentir mais. A minha cabeg¢a doia, meu ombro e costelas também, mas eu nao estava mais em um acidente. Sentado novamente sobre a cama do meu quarto, voltei a encarar a frase em vermelho que desta vez era outra: “Mostre-me o quao indefeso vocé realmente 6, Eduardo. Esta tudo bem.” A situacdo ainda nao tinha batido bem, mas toda aquela dor das feridas que tive no segundo sonho era real, e essa frase também. O que isso esta tentando dizer? Como pode estar tudo bem? Como no meu quarto tinha uma janela, a primeira coisa que fazia era confirmar o lado de fora por ela. E para meu alivio, todas as construg6es estavam em seus lugares, entretanto, havia mais pessoas na rua do que deveria, com monstros ao seu lado; todas em fila para chegar até um grande buraco, quando — Meu Deus! Por que ele fez isso!? — Assisti a primeira pessoa na fila a ser jogada pela criatura acompanhada. Tentei esquecer tudo aquilo e nao pensar que estou em outro pesadelo, mas ao passar pela porta do quarto, cai de bunda no chao, segurando o vomito na garganta. Para todo lugar que eu via, um cadaver estava pendurado, preso ou estirado no ch4o; apenas a sua pele com cabelo servindo de decoracio. Berrei quando vi que estava de quatro sobre uma dessas, e 0 vOmito saiu na mesma hora. Enquanto comecava a chorar novamente, tentando nao sentir todo o fedor que parecia corroer as minhas narinas, 0 nojo de respirar aquele ar me fez gritar instintivamente até vomitar de novo. Ainda em choque, lia a frase escrita na pele de um dos cadaveres na parede: “Vocé esta seguro, Eduardo. A sua casa agora é feita com todos que vocé conhece e ama. Eles vao te proteger.” — Aa.. aabh....!? — A Wnica coisa que saiu da minha boca foi um gemido enquanto tentava voltar para o quarto seguro. Horas depois, 14 estava eu, abracando meus joelhos, sentado sobre a cama, protegido por quatro paredes normais. Eu conhecia aquelas pessoas... 0 que restou de todos os meus amigos da antiga escola, trabalho ou parentes distantes. Olhando para a luz vinda da janela, eu corria até ela, botando a cabe¢a para fora. — So-Socorro! Alguém, por favor! — Mas nada e ninguém me ouviu. As pessoas estavam ocupadas demais esperando pela sua vez para serem atiradas no abismo. Berrando, eu socava 0 vidro da janela, quebrando ele com as maos nuas. Entao pegava os cacos de vidro para jogar nos monstros que parecem rabiscos macabros feitos por uma crianga. Contudo, como nem isso funcionava, passei a agarrar os cabelos para me acalmar, até ouvir um: — Papai? Essa voz novamente. Isso nao era a minha filha, com certeza nao, mas e se for? Nao, vocé nao pode sair, Eduardo. Sua casa agora ¢ feita de pessoas mortas, nao tem como a Gabriela ficar tranquila nesse lugar... mas... mas... ese elaea Ana... Tampei meus ouvidos para nao escutar mais nada, nem meus proprios murmiurios que condenavam a minha covardia. Porém, um pequeno choro inconfundivel fez congelar e arrepiar a minha alma. — Pae... cadé voce... pae... Domado pela preocupacéo, e quase caindo de quatro, eu atravessava a porta, mesmo com as mdos sangrando, me chocando contra a parede cadaver. A Gabriela me chama de 'Pae' quando chora! Toda a paisagem feita de pele humana junto ao cheiro de sangue me fez tremer, enjoar ao ver os liquidos vazando deles. Cada passo a mais, significava mais dores diferentes. Deus... por que isso td acontecendo!? pisando em um dos meus amados. © eco do choro me levava até a porta da frente, na qual era normal, em comparagao as paredes, 0 teto e o piso. Nao podendo mais voltar atras, apertava meus olhos enquanto abria a porta, implorando para que os monstros que vi antes sejam uma ilusao. chorei, enquanto rangia os dentes, Falha total. Minhas pernas desabaram quando vi a fila de pessoas preenchendo todas as calgadas na minha frente e acompanhadas de monstros medonhos, afinados e feitos de escuridao. Eles pareciam nao me notar, e nem eu queria olhar para nenhum, por isso prosseguia com a procura ao redor da casa, tentando encontrar a Gabriela. Meus esforcos me levaram até Ana que, por algum motivo, estava parada no meio da rua e com um olhar distante. — Gragas a Deus! — choraminguei, apertando-a o mais forte possivel. Eu tentava dizer algo para ela, mas Ana seguia com a mesma expresso vazia, mesmo com tudo aquilo acontecendo, por isso parei no meio da tentativa. Mesmo assim, puxava a ruiva pelo braco, correndo com ela para o mais longe possivel dali. Minha cabeca palpitava com uma dor tremenda, ¢ as lagrimas ndo paravam de descer. Eu no sabia onde estava a minha filha, mas apenas pelo motivo de ter encontrado uma das pessoas que eu mais amava era aliviante. Paramos em um parque, onde tudo parecia bem e sem monstros. No meio do descanso, segurando a mao dela, notei que ela ainda usava a alianca do nosso casamento, mesmo assim, nao era hora para discutir isso. — Fi, Ana... a Gabriela. Onde..a-aaah!? Minha voz engasgou quando vi uma minhoca gigante e gorda abocanhando todo 0 tronco corporal da Ana; No susto, pulei para tras puxei o braco da mulher com todas as forcas, mas fui jogado para tras quando o membro foi decepado do corpo, que foi engolido diante de mim, mastigado até o resto ser engolido. Trémulo e incapaz de acreditar no que acabava de presenciar, nao pude fazer nada além de permanecer no lugar segurando a mao com a alianga, assistindo o corpo deformado do monstro se contorcer e comprimir em um mais pequeno, com sangue sendo jogado na minha cara, quando ele mostrou 0 seu verdadeiro eu. — Vocé nao pode levar a mame para longe de mim, Papai.. — sorriu a Gabriela banhada no sangue da propria mae. — Nés duas te odiamos, lembra? O que eu deveria fazer? O que caralhos eu iria pensar!? Meus gritos de desespero deixaram a minha voz rouca, e minhas pernas fracas tremiam tanto que doiam. Aquele monstro, a Gabriela apenas me ignorou e foi embora rua abaixo, com 0 mesmo sorriso que fez quando devorou a mie dela. Eu me acovardei do mundo e de tudo, tampei meus ouvidos e virei uma bola no chao, com os cotovelos na terra enquanto batia a testa contra © solo. A insanidade era demais para aguentar. Eu queria morrer, morrer, morrer, alguém me mate! Mas, entre toda aquela loucura em mim, 0 que me salvou foi quando eu martelei minha cabeca na mao da Ana. E ainda nao tinha soltado ela. Foi ent&o que transformei meu estresse em lagrimas, colocando a mao dela contra o meu peito, querendo ao menos nao sentir o frio da morte cruel que passou. — Esta tudo bem... Eduardo. — A mesma voz do monstro do segundo pesadelo ressoou nas minhas costas, fina, chiada, mas dessa vez profunda. — Eu vou dar a vocé uma outra tentativa... Quando me virei para encarar, havia uma mio feita de sombras na minha frente. Tao grande que agarrava toda a minha cabeca como uma magi. Por algum motivo, meu corpo nao obedecia, e tudo que eu poderia fazer era assistir, com a dor de ser esmagado lentamente se espalhando pelos meus nervos. — Esté tudo bem... esté tudo bem... Eo meu mundo explodia. see De novo... A diivida que eu tinha sobre 0 que era sonho e 0 que nao me enlouquecia. Sentado na mesma cama do maldito quarto repetido, e olhando para a porta que me passava o sentimento de repulsa, imaginava se morreria novamente quando sair. Quais monstros mais iria ver? Quantos pesadelos tinha que passar? A entropia dessa realidade engolia as esperangas de uma realidade normal. Nao, eu nem mesmo sabia se o que eu vivia antes de chegar aqui era real. — Talvez.. a Gabriela e a Ana também nao eram reais... tudo foi feito apenas para me torturar grac¢as ao que sinto por elas... — resmunguei com as maos na cabeca, olhando para o piso de madeira. — A Gabriela era o monstro da mae dela... entao o meu € aquele? Toda essa loucura me fazia delirar. Sentindo meus olhos pesados, encarei a porta, observando uma mulher entrando no quarto. Era a Ana trazendo uma bandeja de biscoitos. — Ah, vocé acordou. O seu dia deve ter sido muito ruim para fazer essa cara... — Ela colocou a bandeja sobre a mesa do computador e me olhou com um sorriso bonito. — Como se sente? Parece que viu um fantasma. — Isso... era para ser engracado? Vocé... nao é ela. — Como? — retrucou Ana. — Edu-Eduardo, vocé esta suando. Ta tudo bem contigo? Enquanto ela se aproximava de mim com um olhar de preocupacdo, eu rangia os meus dentes em faria. Isso foi o que me fez sentir nojo da minha filhinha e perder a mulher que amava. A encarando, ergui uma coisa que ainda nao tinha largado. — Vem logo e me mostra quem vocé é, desgracado do caralho! — berrei, exibindo o brago arrancado da verdadeira Ana. — Para de fingir ser a minha esposa! A impostora ouviu meus gritos com um olhar sem brilho, perdendo o sorriso no mesmo segundo. Entio, ela respondeu com um sorriso grande e malicioso, antes de comegar a sair tentaculos negros de dentro do corpo dela, espalhando sangue pelas paredes. — Ao vocé encontrar a sua familia... vocé nao chora? — A criatura perguntou com seu sorriso de orelha a orelha se formando na face totalmente preta. Entio, ela se pds de pé na minha frente, curvando para me encarar bem de perto. A firia no momento era maior do que qualquer medo, mas, com aquelas garras gigantes e pontudas, ela poderia me estracalhar, por isso apenas continuava a encarando com todas as lagrimas escorrendo. Para a minha surpresa, isso se gargalhou e sentou-se no chao com as méos sobre os joelhos extremamente finos como laminas. Ele parecia com um homem palito desenhado por uma crianga. — Por que... isso td acontecendo comigo? — resmunguei de cabeca baixa, aceitando a minha fraqueza enquanto estremecia em face desse horror. — Nao, nao, Eduardo. — A voz da criatura, ao contrario dos outros sonhos, era idéntica a de um homem educado e animado, de portugués melhor que o meu. — Isso esta acontecendo com todos no mundo. Na verdade, ha tempos que a sociedade humana caiu. Nada mais me surpreendia. Sentia que algo tinha perdido algo dentro de mim depois de encontrar a Gabriela atual, que fez aquilo com a Ana. As pessoas la fora eram como bonecos e para cada um havia um monstro. Eu nao queria viver sozinho nesse tipo de mundo, mas esse monstro também nao me deixava morrer. — O que vocé vai... fazer comigo? A sombra torceu 0 pescoco e riu, me encarando com a face inclinada. — Vocé & tio frio, Eduardo. Por que ndo perguntou o motivo do seu mundo ter sucumbido a esse estado? Sim, eu estava curioso, mas nao tinha sentido saber. O que eu poderia fazer? Salvar o mundo? Minha filhinha agora é um monstro que devorou a prépria mie, a sociedade colapsou de uma hora para outra e todos os que conheco se tornaram partes decorativas da minha casa. Mesmo assim, meu coragio tremia por nao conseguir fazer nada nem por mim mesmo. Entdo eu ri. De angustia, com lagrimas de desespero e arranhando © meu rosto com minhas unhas enquanto tremia de medo, na esperanga de que a dor no meu peito suma se eu sangrasse. — Porque eu s6 sou um humano, merda! O pescogo da criatura torceu e voltou para o lugar instantaneamente como uma vara elastica, ficando ereta enquanto me encarava com uma feigao séria. — Vocé é um perdedor, Eduardo. Um total iniitil que nao merece existir. Levantando a minha cara, chocado com o quao medonho a criatura ficava quando com raiva. Era como se todo o corpo dela crescesse a ponto de preencher todo 0 quarto com a escuridao profunda que fazia parte dela. — Vergonhoso, patético, nojento, ridiculo, baixo! — gritou com a gigantesca boca dela que quase me abocanhou. — Vocé é a escéria de toda a humanidade! Seu lixo do universo! Tentava me afastar, mas ficava contra a parede, assistindo sem palavras enquanto isso me chingava com toda a vontade, com rios de sangue jorrando como lagrimas dos buracos que pareciam os olhos dela. — Antes vocé nao fazia nada pela sua familia, e agora também nao o faz! Nao importa quantas vezes eu te traga de volta, vocé nem ao menos |é as coisas que escrevi para vocé! Por que, Eduardo? Por que é tao frio!? Com as gigantescas garras dela, a criatura prendia meus bracos contra 0 meu corpo, me agarrando como um boneco, enquanto fazia um escandalo. — Por que vocé nao me entende, Eduardo!? Porque nao ouve o seu coragao? Eu sei © que é melhor para vocé, mas nunca segue o que digo! Foi entaéo que entendi o que estava acontecendo. O monstro chorando como uma crianga furiosa, enquanto esmagava 0 meu corpo com forga, era 0 meu coracdo. Ele se corrompeu e se materializou por um mal que desconhego. — Vocé abandonou elas, Eduardo! Vocé deixou a Gabriela e a Ana para morrerem sozinhas. Me diga quem é 0 real monstro!? A dor da inutilidade, de nao ter feito nada para estar ao lado delas em todos os momentos criou um monstro no meu coragao. E eu deixei esse monstro devorar todos os meus desejos e sentimentos por elas, escolhendo nao lidar com os assuntos complicados que tinha com a minha familia. — Eu vou te fazer sofrer, Eduardo. De novo ¢ de novo e de novo até que entenda o quao errado vocé sempre esteve. Eu vou te dar um julgamento final! O mundo teve que acabar para que eu finalmente entendesse o quanto amava elas. Meu coragao teve de virar um monstro louco para que eu o compreenda. Eu deixava tudo isso no fundo do meu peito apenas para viver como um egoista livre e esquecia de tudo que era importante. — Vamos, Eduardo. Vocé precisa enfrentar outro pesadelo até vocé entender todas as dores e erros, afin: Eu sou tao frio.

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