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lrandé Antunes AULA DE portugues encontro & interagao TT 001920 10 \! canTuLo Bos Assumindo a dimensao interacional da linguagem idade pedagégica de de forma ex} que se realiza na de um conjunto objetos de es fos e espe- vezes, uma certa des » dos professores se trata de lhes oferecer mais referenciais tedricos Parece que sao meio descrentes da teoria. “Queremos pritica”, costumam dizer. Esta afirmagao pode signifi- car um certo ceticismo ou um descontentamento com explicagdes tedricas que Ihes chegam nos eventuais encontros ou “treinamentos”. Nesse caso, os professo- res podem ter razio, principalmente, se a teoria que estudaram nao ajudou a tornar sua atividade pedagogi- ca mais produtiva, mais relevante ¢ significativa. Mas o desinteresse pela teoria pode significar tam- bém uma incompreensdo do que seja “teoria” e “prati- ca’, de como uma e outra se interdependem ou se ali- mentam mutuamente. Como pode significar ainda uma certa acomodagao dos professores, que, passivamente, esperam que alguém venha dizer a eles 0 que fazer ¢ como fazer, dispensando-os, assim, do trabalho cons- tante de estudar, de “estar atentos”, de pesquisa, de avaliar, de criar, de inventar e reinventar sua pratica, 0 que naturalmente supse fundamentacao tedrica, am- pla, consistente ¢ relevante Nao pode haver uma pratica eficiente sem funda- mentagdo num corpo de princfpios teéricos sélidos & objetivos. Nao tenho dhividas: se nossa pratica de pro- fessores se afasta do ideal é porque nos falta, entre outras muitas condigées, um aprofundamento teérico acerca de como funciona o fenémeno da linguagem humana. O conhecimento teérico disponfvel a muitos professores, em geral, se limita a nogdes e regras gra- maticais apenas, como se tudo 0 que é uma lingua em ncionamento coubesse dentro do que é uma gramé- a. Teorias lingitisticas do uso da pros6dia, da morfos- sintaxe, da semantica, da pragmatica, teorias do texto, 40 Auta vs Powrwouns Tanne Avtones concepgdes de leitura, de escrita, concepgdes, enfim, acerca do uso interativo e funcional das linguas, é 0 que pode embasar um trabalho verdadeiramente eficaz do professor de portugues. Mas voltemos & questo dos principios tedricos. De uma forma muito geral, pode-se dizer que, ao longo dos estudos lingufsticos, duas grandes tendéncias tem marcado a percepgao dos fatos da linguagem: 2) uma tendéncia centrada na lingua enquanto sistema em potencial, enquanto conjunto abs- trato de signos ¢ de regras, desvinculado de suas condigées de realizacio; b) uma tendéncia centrada na lingua enquanto atuagao social, enquanto atividade interagao verbal de dois ou m im, peutores , a enquanto sistem do, portan- to, 4s circunstancias concretas e diversificadas de sua atualizacao, Evidentemente, essa segunda tendéncia teérica possibilita uma consideragao mais ampla da linguagem €, conseqilentemente, um trabalho pedagégico mais produtivo e relevante. Ou seja, a evidéncia de que as Imguas s6 existem para promover a interagdo entre as pessoas nos leva a admitir que somente uma concepedo ta da linguagem, eminentemente fun © contextualizada, pode, de forma ampla e fundamentar um ensino da lingua que se} ¢ socialmente, produtivo e relevante, interaci Se a lingua-em-funedo apenas ocorre sob a forma da textualidade — e esta ¢ ura segunda evidéncia que Astin TeRscio¥A on Linaunaes | 41 quero lembrar aqui — é natural admitir também que 86 0 estudo das regularidades textuais e discursivas, na sua produgao e interpretagao, pode constit de um ensino da lingua que pretenda ser, como se disse 0 € relevante, Assumo, portanto, que © nticleo central da pre- sente discussao € a conicepedo interacionista, al wagao social e através de praticas discursivas, materializadas em textos orais € escritos. E, pois, esse micleo que deve constituir ¢ pon- to de referéncia, quando se quer definir todas as op des pedagégicas, sejam os objetivos, os programas de estudo © pesquisa, seja a escolha das atividades e da forma particular de realizé-las e avali Vale a pena trazer & discussao mais um ponto: as aulas em questdo so “aulas de portugués”. Mas, de que portugues? Do portugués de Portugal? Do po uma questéo fundamental, que tem desdobramentos de toda ordem, $6 para dar um exemplo: querer aplicar a0 portugues brasileiro as regras da colocagao prono- minal do portugués europeu é gerar uma série de in- compatibilidades que apenas reafirmam aq de que o brasileiro fala mal. Como a colocagie prono- minal, existem muitas outras questées (veja-se a regén- cia de certos verbos e de certos nomes, para citar mais, um exemplo). Ou seja, a chamada “norma-padrao” 42 | ALTA pe Pontuctes Trane Avmises funcionamento da Itngua. De outra forma, se cria um fosso sem saida, um problema sem solucdo, (“uma pedra no meio do caminho” que nao pode ser afastada.) A essas consideragdes acrescento, como ponto de sustentagao mais ampla, 0 principio de que € 0 aluno 0 sujeito da aprerudizagem que acontece, ou seja, ele quem realiza, na interagio com o objeto da aprendizagem, a atividade estruturadora da qual resulta 0 conhecimento (cf, Kato, 1986), Vale a pena ter em conta, ainda, que tal conhecimento implica, no 0 armazenamento, em esto- que, de um conjunto de informagdes, de contetidos & regras, mas a exisiéncia de uma capacidade gerativa, isto é, uma capacidade de encontrar novas respostas para problemas inteiramente novos, em novas sittagies A seguir, apresento um conjunto de princfpios que, como disse, podem respaldar uma pritica pedagdgica de estudo e exploragao da oralidade, da escrita, da leitura & da gramatica. Em nenhum momento atribuo a esses principios a praticidade mecanicista de um receitudrio. Sao fundamentos. Sao "a pedra fundamental’ da cons- truco que professores e alunos vao empreender: Bons projessores, como a aranha, sabem que li- g0es, essas teias de pul podem ser tecidas io. Elas precisam de 108. Os fios, por ¢ leves que sejam, tém de estar amarrados a coisas soli- das: drvores, paredes, caibros, Se as amarras so corta- & soprada pelo vero, ¢ a aranha perde a casa. isso vale 105 solidas 0 rense... (RU- e483 Prevejo, para além da explicitag4o desses princi- pios, antes de tudo, uma base teérica bem mais abrangente — que, naturalmente, ndo cabe nos limites deste trabalho — cujas aplicagdes praticas exigem, além de estudo, pesquisa e reflexao, a criatividade e o discerni-= mento constantes dos professores Parece-me razoavel supor que este nao é o lugar adequado para descermos aos minimos detalhes do que- fazer pedagogico. E evidente que pretendo atingir a realidade cotidiana da pratica, da aplicagao, mas quero fazé-lo através da indicagdo de implicagoes, de pistas, pelas quais os professores podem descobrir os jeitos daquele que-fazer pedagégico. Tenho em mente um professor de portugués que é, além de educador, lin- gilista e pesquisador (como propoe Marcos Bagno em toda a sua obra), alguém que, com base em principios tedricos, cientificos e consistentes, observa os fatos da lingua, pensa, reflete, levanta problemas e hipéteses sobre eles e reinventa sua forma de abordé-los, de explicité-los ou explicd-los, Esses fatos da lingua so: mente vém A tona nas praticas discursivas, das quais 0 texto é parte constitutiva. Por isso é que sé os textos podem constituir 0 objet relevante de estudo da lingua, Vamos aos prineipios. 2.1. Explorando a escrita Para fazer wna frase de dez palavras sito Muon Feasanoes Aescrita, como toda atividade interativa, implica uma relagao cooperativa entre duas ou mais pessoas. 44 (Ana ve Pe Tax: ANTUNES Uma atividade é interativa quando é realizada, conjuntamente, por duas ou mais pessoas cujas agdes se interdependam na busca dos mesmos fins. Assim, numa irier-agdo (“ago entre"), o que cada um faz de- pende daquilo que 0 outro faz também: a iniciativa de um é regulada pelas condicdes do outro, ¢ toda decisao leva em conta essas condigdes. Nesse sentido, a escrita é Wo interativa, tao dialdgica, dindmica e negocidvel quanto a fala. Uma visio interacionista da escrita supée, desse sujeitos, modo, encontro, parceria, envolvimento ent para que aconteca a comunhio das idéias, das infor- magoes e das intengdes pretendidas. Assim, por essa visdo se supde que alguém selecionou alguma coisa a ser dita @ um outro alguém, com quem pretendeu interagir, em vista de algum objetivo. A atividade da escrita é, entio, uma atividade interativa de expresso, (ex-, “para fora"), de manifes- ago verbal das idéias, informagées, intengées, cren- gas ou dos sentimentos que queremos partilhar com alguém, para, de algum modo, interagir com ele. Ter 0 que dizer 6, portanto, uma condigo prévia para 0 éxito da atividade de eserever. Nao ha conhecimento linguistic (lexical ou gramatical) que supra a deficién- cia do ‘nao ter 0 que dizer’. As palavras sao apenas a mediagao, ou 0 material com que se faz a ponte entre quem fala ¢ quem escuta, entre quem escreve e quem 1€. Como mediagao, elas se limitam a possibi expresso do que é sabido, do que € pensado, do que € sentido, Se faltam as idéias, se falta a informagio, vio faltar as palavras. Daf que nossa providéncia maior deve ser encher a cabega de idéias, ampliar nosso repertério tar a Assunspo 4 diMENS\o ieTERACIONAL Ba LNGLAGE | 45 de informagées ¢ sensages, alargar nossos horizontes de percepgao das coisas. A{ as palavias virdo, e a cres- cente competéncia para a escrita vai ficando por conta da pritica de cada dia, do exercicio de cada evento, com as regras préprias de cada tipo e de cada género de texto, © grande eguivoco em torno do ensino da lingua tem sido 0 de acreditar que, ensinando andlise sintatica, ensinando nomenclatura gramatical, conse- guimos deixar os alunos suficientemente competentes para ler e escrever textos, conforme as diversificadas situagées sociais. Numa outra oportunidade, explorei a dimensao desse equivoco (ver Antunes, 2002). A visdo interacionista da escrita supde ainda que existe 0 outro, 0 1u, com quem dividimos 0 momento da escrita. Embora o sujeito com quem interagimos pela escrita nao esteja presente a circunstancia da pro- dugao do texto, ¢ inegavel que tal sujeito existe e é imprescindivel que ele seja levado em conta, em coda momento. Ou seja, a escrita, pelo fato de ndo requerer a presenga simultanea dos interlocutores em interacao, do deixa de ser um exercicio da faculdade da lingua gem. Como tal, existe para servir @ comunicagao entre sujeitos, os quais, cooperativa e mutuamente, se ajus- tam € se condicionam. Quem escreve, na verdade, es- iém, ou Seja, est em interagdo com outra pessoa. Essa outra pessoa é a medida, é 0 parimetro das decisoes que devemos tomar acerca do que dizer, do quanto dizer e de como fazé-lo. creve para Escrever sem saber para quem é, logo de saida, uma tarefa dificil, dolorosa e, por fim, ¢ uma tarela pois falta a referén: texto deve adequar-se, Como saber se dissemos de mais do outro, 2 quem todo wes Luswe Axroses 46 Auta ve Po ou de menos? Como avaliar se fomos precisos, se fo: mos relevantes, se dissemos “com a palavra certa” aq que tinhamos a dizer? Sem o outro, do outro lado da linha, ndo ha linguagem. Pode haver o treinamento mecinico ¢ aleatério de emitir sinais, 0 que, na verda- de, fora de certas situagdes escolares, ninguém faz. O outro, que caracteriza 0 ato inerentemente social da linguagem, paradoxalmente, s6 desaparece nas aulas de portugués, que até ja se chamaram de aulas de “Co- municacao ¢ Expressi Como lembra Bakhtin (1995: 113): Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela € determinada tanto pelo fata de que procede de alguém como pelo fato de que se dirige para alguém. (...) A palavra ¢ uma espécie de ponte langada entre mim e 6 outros. Se ela se apéia sobre mim numa extremida- de, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. A pa- lavra € 0 territério comum do locutar e do © professor no pode, sob nenhum pretexto, in- lar sem leitor, sem sistir na pratica de uma escrita es destinatario; sem referencia, portanto, para se decidir sobre 0 que vai ser escrito Acescrita, na diversidade de seus usos, cumpre funcoes comunicativas socialmente especificas e relevantes, Como uma das modalidades de uso da lingua, a escrita existe para cumprir diferentes fure¢ tivas, de maior ou menor relevancia para a vida da comunidade. Se prestarmos atengao a vida das pessoas nas sociedades letradas, constatamos que a escrita est fsctowdt BA ncuAcei| 47 Assumnito A oKeNS40 presente, como forma constante de atuagao, nas milli. plas atividades dessas pessoas — no trabalho, na famf- ia, na escola, na vida social em geral —e, mais ampla- mente, como registro do seu patriménio cientifico, his- torico e cultural. Dessa forma, toda escrita responde a um propésito funcional qualquer, isto é, Possi realizacio de alguma atividade sociocomunicativa en- tre as pessoas ¢ est inevitavelmente em relagdo com os Vversos conteXtos sociais em que essas pessoas atuam, Pela escrita alguém informa, avisa, adverte, anun descreve, explica, comenta, opi resume, documenta, faz literatura, organiza, registra ¢ divulga 0 conhecimento produzido pelo grupo. Se “fa- Jar € uma forma de comportamento”, como afirma Searle (1981: 27), escrever também o é, Ou seja, nunca dizemos nada, oralmente ou por escrito, que nao tenha conseqiiéncias (s6 a escola parece nao ver isso.) nte, ndo existe a esc “para nao ser ato de ling Dai por que nao existe, em nenhum grupo social, escrita de palavras ou de frases soltas, de frases inven- tadas, de textos sem propésito, sem a clara e inequivo- ca definigao de sua razio de ser, A escrita varia, na sua forma, em decorréncia das di- ferengas de fungdo que se propde cumprir e, conse- qientemente, em decorréncia dos diferentes gene- Fos em que se realiza. Vinculada aquela dimensao da funcionalidade da escrita esté a outra dimensao da sua forma de realiza- 40 © apresentacao. Assim como se admite que no 48 | Acta be Porruauts dase Axrunes existe fala uniforme, realizada de forma igual em dife- rentes situagdes € usos, também a produgao de textos escritos toma formas diferentes, conforme as diferen- tes fungées que pretende cumprir. Essas diferencas véo implicar diferencas de gene- ros de texto’, isto ¢, diferencas na forma de as diferen- tes partes do texto se distribuirem, se organizarem e se apresentarem sobre o papel. A chamada superestrutura do texto corresponde a essas formas diferentes de o texto organizarse e apresentar-se em duas, trés ou mais pattes, numa seqiiéncia mais ou menos definida, Assim é que uma carta, um relatério, um aviso, um requeri- mento tém um jeito proprio, um jeito tipico de aconte- cer, ou seja, so feitos de acardo com um certo modelo, com partes ou bloces mais ou menos estaveis, que vao suceder-se numa ordem também mais ou menos fixa. Como os textos siio de autoria das pessoas, delas unicamente provém ¢ a elas unicamente se destinam, tais modelos em que os géneros de texto se manifestam sao resultado de convengées historicas e sociais institui- das por essas mesmas pessoas. So convengdes, como todas as outras, criadas, modificadas ou deixadas de "A questao “géneros de te arengao dos pesquisadores, sobre: por estabelecer uma ponte entre a Meurer & Motta trabalhos sobre a ASSUMING 4 DIMENSAO NTERACIONAL mA LINGLE 49 lado, sempre que for necessario faz8-lo, Neste mbito, também se pode constatar a natureza complexa da lin- modelos e padres ¢, por outro, flexivel, passivel de alteragdes e mudangas. Assim, como ja se ressaltou em outro trabalho 98), 0 paradox da variacao e da organiza- 80 estével dos textos é apenas o reflexo da natureza mesma da linguagem, definida como sujeita a tradicao €, 20 mesmo tempo, subordinada & agao livre dos lantes. Se, por um lado, como admite Saussure (1973), almente incapaz de se defender” constantemente, a deslocam (p. 90), por outro, a solidariedade com o passado restringe e controla esse inevitavel deslocamento (p. 88) Os géneros de textos ev altamente complexa das re: sao diferentes, m 8 variagao dos fatores contextuais ¢ dos valores prag- icos que ineluem e, por outro lado, sko prototipicas, lenciam essa natureza a que servem, Em sintese, uma escrita uniforme, sem variagdes de superestrutura, de organizagdo, de seqiiéneia de suas vertida em puro treino e exercicio escolar, que ndo es- nem fascina ninguém, pois se esgota nos redu- !as paredes escolares. A escrita supde condigées de producao e recepcao diferentes daquelas atribuidas a fala. Aue ne Posrneves Taaxoe Asrexes Todo evento de fala corresponde a uma interacao verbal que se desenvolve durante o tempo em que dois ou mais interlocutores, em sitwagdo de co-presenga, al- ternamm seus papéis de falante e ouvinie, O discurso vai sendo, assim, coletivamente produzido, negociado, ao mesmo tempo em que vai sendo planejado, e sua se qliéncia é determinada, quase sempre, na propria con- tinuidade do didlogo. A.escrita corresponde a uma outra modalidade de eragdo verbal: a modalidade em que a recepgiéo é adiada, uma vez que os sujeitos atuantes ndo ocupam, a0 mesmo tempo, o mesmo espago. Além disso, ha um lapso de tempo, maior ou menor, entre 0 ato de elabo- ragdo do texto pelo autor e 0 ato de sua leitura pelo leitor. Como lembram Faraco & Tezza (2003: 10): O homem inventou a escrita, ha milhares de anos, quan- do s6 a conversa néo conseguia dar conta de todas as suas necessidades". Essas diferentes condicdes de produgao da escrita dao a quem escreve a possibilidade de conceder uma parcela de tempo maior a elaboragdo verbal de seu tex- to, bem como a possibilidade de rever e recompor 0 seu discurso, sem que as marcas dessa revistio e dessa recomposicie aparecam. Dai a ilusdo de que a verso escrita que aparece divulgada — arranjada e bem escri- — corresponde a versao inicial do autor Daf a outra jor ainda — de que a escrita mais bem elaborada, é mais “certa” que a fala. Al 10, vale a pena lembrar desse maior tempo na claboracao do texto ue é bem mais comum a -s ¢ objetos

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