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és — encontro & interagdo lrandé Antunes AULA DE portugues encontro & interagao Tr. o0/s20 10 UL CAPITULO DO'S Assumindo a dimensaéo interacional da linguagem Toda atividade pedagégica de ensino do portu- gués tem subjacente, de forma explicita ou apenas in- tuitiva, uma determinada concepgdo de lingua. Nada do deixa de estar dependente que se realiza na sala de aul de um conjunto de principios teéricos, a partir dos quais os fendmenos lingtlisticos sao percebidos e tudo, con- seqiientemente, se decide. Desde a definigao dos obje- tivos, passando pela selec’o dos objetos de estudo, até a escolha dos procedimentos mais corriq cfficos, em tudo est4 presente uma determinada con- ros e espe- cepedo de lingua, de suas funcoes, de seus processos de aquisicao, de uso e de aprendizagem. Tenho presenciado, por vezes, uma certa descon- fianca ou uma certa restricdo dos professores quando ASSUMINDO A DIMENSAO ISTERACIONAL DA LIN se trata de hes oferecer mais referenciais tedricos, Parece que sao meio descrentes da teoria, “Queremos pratica”, costumam dizer. Esta afirmacao pode signifi- car um certo ceticismo ou um descontentamento com explicagées tedricas que lhes chegam nos eventuais encontros ou “treinamentos”. Nesse caso, os professo- res podem ter razao, principalmente, se a teoria que estudaram ndo ajudou a tornar sua atividade pedagégi- ca mais produtiva, mais relevante e significativa. Mas o desinteresse pela teoria pode significar tam- bém uma incompreensdo do que seja “teoria” e “préti- ca”, de como uma e outra se interdependem ou se ali- mentam mutuamente. Como pode significar ainda uma certa acomodagao dos professores, que, passivamente, esperam que alguém venha dizer a eles o que fazer ¢ como fazer, dispensando-os, assim, do trabalho cons- tante de estudar, de “estar atentos’, de pesquisar, de 1, de criar, de inventar e reinventar sua prética, 0 que naturalmente supde fundamentacdo tedrica, am- pla, consistente e relevante. Nao pode haver uma pratica eficiente sem funda- mentagao num corpo de principios tedricos sélidos e objetivos. Nao tenho diividas: se nossa prética de pro- fessores se afasta do ideal € porque nos falta, entre outras muitas condigées, um aprofundamento teérico acerca de como funciona o fenémeno da linguagem humana. O conhecimento tedrico disponivel a muitos professores, em geral, se limita a nogdes e regras gra- maticais apenas, como se tudo 0 que € uma lingua em funcionamento coubesse dentro do que é uma gramé- tica. Teorias linguisticas do uso da prosédia, da morfos- sintaxe, da semantica, da pragmatica, teorias do texto, 40 | Auta ve Portuaues Tranpe ANTUNES concepsées de leitura, de escrita, concepgées, enfim, acerca do uso interativo e funcional das linguas, € 0 que pode embasar um trabalho verdadeiramente eficaz do professor de portugués. Mas voltemos & questdo dos principios tedricos. De uma forma muito geral, pode-se dizer que, ao longo dos estudos linguiisticos, duas grandes tendén: tém marcado a percepco dos fatos da linguagem: a) uma tendéncia centrada na lingua enquanto sistema em potencial, enquanto conjunto abs- trato de signos e de regras, desvinculado de suas condigdes de realizagao; b) uma tendéncia centrada na lingua enquanto atuacdo social, enquanto atividade e interagio verbal de dois ou mais interlocutores e, assim, enquanto sistema-em-funedo, vinculado, portan- to, as circunstdncias concretas e diversificadas de sua atualizacao. Evidentemente, essa segunda tendéncia te6rica possibilita uma consideragio mais ampla da linguagem €, conseqiientemente, um trabalho pedagégico mais produtivo e relevante. Ou seja, a evidéncia de que as Iiguas s6 existem para promover a interacdo entre as pessoas nos leva a admitir que somente ima concepedo interacionista da linguagem, eminentemente funcional e contextualizada, pode, de forma ampla e legitima, fundamentar um ensino da lingua que seja, individual e socialmente, produtivo e relevante. Se a lingua-em-fungdo apenas ocorre sob a forma da textualidade — e esta é uma segunda evidéncia que incea| 41 ASSUMINDO A DIMENSAO INTERACIONAL DAL quero lembrar aqui — € natural admitir também que s6 0 estudo das regularidades textuais e discursivas, na sua producio e interpretacao, pode constituir 0 objeto de um ensino da lingua que pretenda ser, como se disse acima, produtivo e relevante. Assumo, portanto, que o nticleo central da pre- sente discussio € a concepedo interacionista, funcional e discursiva da lingua, da qual deriva o princfpio geral de que a lingua s6 se atualiza a servigo da comunicagao intersubjetiva, em situagdes de atuagdo social e através de praticas discursivas, materializadas em textos orais e escritos. E, pois, esse nticleo que deve constituir o pon- to de referéncia, quando se quer definir todas as op- oes pedagégicas, sejam os objetivos, os programas de estudo e pesquisa, seja a escolha das atividades e da forma particular de realizé-las e avalid-las Vale a pena trazer & discusstio mais um ponto: as aulas em questo sao “aulas de portugués”. Mas, de que portugués? Do portugués de Portugal? Do portu- gués do Brasil? E claro que € do portugués do Brasil, aberto, porém, @ andlise de outras variedades. Essa é uma questo fundamental, que tem desdobramentos de toda ordem. $6 para dar um exemplo: querer aplicar a0 portugués brasileiro as regras da colocagio prono- minal do portugués europeu é gerar uma série de in- compatibilidades que apenas reafirmam aquela idéia de que o brasileiro fala mal. Como a colocagao prono- minal, existem muitas outras questées (veja-se a regén- cia de certos verbos e de certos nomes, para citar mais um exemplo). Ou seja, a chamada “norma-padrao’ objeto de andlise na escola deve ter como parametro os uusos préprios do Brasil, nos diferentes contextos de 42 | AULA oe Pormuoves Tranbe ANTUNES funcionamento da lingua. De outra forma, se cria um fosso sem saida, um problema sem solugao, (“uma pedra no meio do caminho” que nao pode ser afastada.) A essas consideragdes acrescento, como ponto de sustentacao mais ampla, 0 principio de que é o aluno 0 sujeito da aprendizagem que acontece, ou seja, é ele quem realiza, na interagio com o objeto da aprendizagem, a atividade estruturadora da qual resulta o conhecimento (cf. Kato, 1986). Vale a pena ter em conta, ainda, que tal conhecimento implica, nfo 0 armazenamento, em esto- que, de um conjunto de informagdes, de contetidos regras, mas a existéncia de uma capacidade gerativa, isto é, uma capacidade de encontrar novas respostas para problemas inteiramente novos, em novas situagdes. A seguir, apresento um conjunto de princfpios que, como disse, podem respaldar uma pritica pedagégica de estudo e exploragio da oralidade, da escrita, da leitura e da gramatica. Em nenhum momento atribuo a esses principios a praticidade mecanicista de um receituério. Sio fundamentos. Séo “a pedra fundamental” da cons- trugdo que professores ¢ alunos vao empreender: Bons professores, como a aranha, sabem que li- ¢6es, essas teias de palavras, ndo podem ser tecidas no vazio. Elas precisam de fundamentos. Os fios, por finos e leves que sejam, tém de estar amarrados a coisas séoli- das: drvores, paredes, caibros. Se as amarras sao corta- das, a teia é soprada pelo vento, e a aranha perde a casa. Professores sabem que isso vale também para as pala- vras: separadas das coisas, elas perdem seu sentido. Por si mesmas, elas ndo se sustentam. Como acontece com a teia de aranha, se suas amarras as coisas solidas séo cortadas, elas se tornam sons vazios: nonsense... (Ru- bem Alves, 2001: 19). ASSUMINDO A DIMENSAO INTERACIONAL DA LINGUAGEM | 43 Prevejo, para além da explicitagdo desses princi- pios, antes de tudo, uma base tedrica bem mais abrangente — que, naturalmente, ndo cabe nos limites deste trabalho — cujas aplicagées praticas exigem, além de estudo, pesquisa e reflexdo, a criatividade e o discerni- mento constantes dos professores. Parece-me razoavel supor que este ndo é o lugar adequado para descermos aos minimos detalhes do que- fazer pedagégico. E evidente que pretendo atingir a realidade cotidiana da pratica, da aplicagdo, mas quero fazé-lo através da indicagao de implicacées, de pistas, pelas quais os professores podem descobrir os jeitos daquele que-fazer pedagégico. Tenho em mente um professor de portugués que é, além de educador, lin- gitista e pesquisador (como propée Marcos Bagno em toda a sua obra), alguém que, com base em princfpios tedricos, cientificos e consistentes, observa os fatos da Imgua, pensa, reflete, levanta problemas e hipéteses sobre eles e reinventa sua forma de abordé-los, de explicité-los ou explicé-los. Esses fatos da lingua so- mente vém & tona nas praticas discursivas, das quais 0 texto é parte constitutiva. Por isso é que 6 os textos podem constituir 0 objeto relevante de estudo da lingua Vamos aos princfpios. 2.1. Explorando a escrita Para fazer uma frase de dez palavras sdo necessdrias umas cem. Mito FeRxawpes Aescrita, como toda atividade interativa, implica uma relacdo cooperativa entre duas ou mais pessoas. 1 be Porrucuits Inanoe ANTUNES Uma atividade é interativa quando € realizada, conjuntamente, por duas ou mais pessoas cujas acgées se interdependam na busca dos mesmos fins. Assim, numa inter-agdo (“agao entre”), o que cada um faz de- pende daquilo que o outro faz também: a iniciativa de um € regulada pelas condigées do outro, e toda decisao leva em conta essas condigdes. Nesse sentido, a escrita é tdo interativa, tAo dialégica, dinamica e negociavel quanto a fala. Uma visdo interacionista da escrita supoe, desse modo, encontro, parceria, envolvimento entre sujeitos, para que aconteca a comunhio das idéias, das infor magoes e das intengGes pretendidas. Assim, por essa visdo se supée que alguém selecionou alguma coisa a ser dita a um outro alguém, com quem pretendeu interagir, em vista de algum objetivo. A atividade da escrita 6, entéo, uma atividade interativa de expresso, (ex-, “para fora”), de manifes- tagdo verbal das idéias, informagées, intengées, cren- gas ou dos sentimentos que queremos partilhar com alguém, para, de algum modo, interagir com ele. Ter 0 que dizer é, portanto, uma condigao prévia para o éxito da atividade de escrever. Nao hé conhecimento lingiiistico (lexical ou gramatical) que supra a deficién- cia do “nao ter 0 que dizer”. As palavras so apenas a mediago, ou o material com que se faz a ponte entre quem fala e quem escuta, entre quem escreve e quem le, Como mediacao, elas se limitam a possibilitar a expressio do que é sabido, do que € pensado, do que é sentido. Se faltam as idéias, se falta a informacao, vo faltar as palavras. Daf que nossa providéncia maior deve ser encher a cabega de idéias, ampliar nosso repert AsstnNo & DIMENSAO INTERACIONAL DA LINGUAGE de informagées e sensagées, alargar nossos horizontes de percepgio das coisas. Af as palavras virdo, e a cres- cente competéncia para a escrita vai ficando por conta da pratica de cada dia, do exercicio de cada evento, com as regras préprias de cada tipo e de cada género de texto. O grande equivoco em torno do ensino da lingua tem sido o de acreditar que, ensinando anélise sintatica, ensinando nomenclatura gramatical, conse- guimos deixar os alunos suficientemente competentes para ler e escrever textos, conforme as diversificadas situagdes sociais, Numa outra oportunidade, explorei a dimensao desse equivoco (ver Antunes, 2002). A visdo interacionista da escrita supde ainda que existe 0 outro, 0 tu, com quem dividimos 0 momento da escrita. Embora o sujeito com quem interagimos pela escrita nao esteja presente a circunstancia da pro- dugao do texto, é inegavel que tal sujeito existe e é imprescindivel que ele seja levado em conta, em cada momento. Ou seja, a escrita, pelo fato de nao requerer a presenca simulténea dos interlocutores em interagao, no deixa de ser um exercicio da faculdade da lingua- gem. Como tal, existe para servir @ comunicagdo entre sujeitos, os quais, cooperativa e mutuamente, se ajus- tam e se condicionam. Quem escreve, na verdade, es- creve para alguém, ou seja, esta em interagdo com outra pessoa. Essa outra pessoa é a medida, é 0 parametro das decisdes que devemos tomar acerca do que dizer, do quanto dizer e de como fazé-lo. Escrever sem saber para quem é, logo de safda, uma tarefa dificil, dolorosa e, por fim, é uma tarefa ineficaz, pois falta a referencia do outro, a quem todo texto deve adequar-se. Como saber se dissemos de mais 46 | AULA ve Porrucues Iravoe ANTUNES ou de menos? Como avaliar se fomos precisos, se fo- mos relevantes, se dissemos “com a palavra certa” aquilo que tinhamos a dizer? Sem 0 outro, do outro lado da nha, no ha linguagem. Pode haver o treinamento mecanico e aleatério de emitir sinais, o que, na verda- guém faz. O outro, que caracteriza 0 ato inerentemente social da de, fora de certas situagées escolares, linguagem, paradoxalmente, sé desaparece nas aulas de portugués, que até ja se chamaram de aulas de “Co- municagio e Expressio’ Como lembra Bakhtin (1995: 113): Na realidade, toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém como pelo fato de que se dirige para alguém. (...) A palavra é uma espécie de ponte langada entre mim e 0s outros. Se ela se apéia sobre mim numa extremida- de, na outra apéia-se sobre o meu interlocutor. A pa- lavra é o territ6rio comum do locutor e do interlocutor. © professor nao pode, sob nenhum pretexto, in- a de uma escrita escolar sem leitor, sem sistir na pra destinatério; sem referéncia, portanto, para se decidir sobre o que vai ser escrito. A escrita, na diversidade de seus usos, cumpre funcdes comunicativas socialmente especficas e relevantes. Como uma das modalidades de uso da lingu: escrita existe para cumprir diferentes fungdes comunica- tivas, de maior ou menor relevancia para a vida da comunidade. Se prestarmos atengdo a vida das pessoas nas sociedades letradas, constatamos que a escrita esté Asstninbo A DIMENSAO INTERACIONAL DA LINGUAGEM | 47 presente, como forma constante de atuacdo, nas miilti- plas atividades dessas pessoas — no trabalho, na fami- lia, na escola, na vida social em geral —e, mais ampla- mente, como registro do seu patriménio cientifico, his- t6rico e cultural. Dessa forma, toda escrita responde a um propésito funcional qualquer, isto é, possibilita a realizagao de alguma atividade sociocomunicativa en- tre as pessoas e est4 inevitavelmente em relagdo com os diversos contextos sociais em que essas pessoas atuam. Pela escrita alguém informa, avisa, adverte, anuncia, descreve, explica, comenta, opina, argumenta, instrui, resume, documenta, faz literatura, organiza, registra e divulga 0 conhecimento produzido pelo grupo. Se “fa- lar € uma forma de comportamento”, como afirma Searle (1981: 27), escrever também o é. Ou seja, nunca dizemos nada, oralmente ou por escrito, que nao tenha conseqiiéncias (s6 a escola parece no ver isso.) Em suma, socialmente, ndo existe a escrita “para nada”, “para ndo dizer’, “para ndo ser ato de linguagem”. Daf por que nao existe, em nenhum grupo social, a escrita de palavras ou de frases soltas, de frases inven- tadas, de textos sem propésito, sem a clara e inequivo- ca definico de sua razio de ser. A escrita varia, na sua forma, em decorréncia das di- ferencas de fungo que se propde cumprir e, conse- qiientemente, em decorréncia dos diferentes géne- ros em que se realiza. Vinculada aquela dimensao da funcionalidade da escrita esta a outra dimensao da sua forma de realiza- S40 e apresentagéio. Assim como se admite que nao 48 | Auta ve Porrucues Ieaxpe ANruNes existe fala uniforme, realizada de forma igual em dife- rentes situacdes € usos, também a produc de textos escritos toma formas diferentes, conforme as diferen- tes fungées que pretende cumprit: Essas diferengas vao implicar diferencas de géne- ros de texto’, isto é, diferencas na forma de as diferen- tes partes do texto se distribuirem, se organizarem e se apresentarem sobre o papel. A chamada superestrutura do texto corresponde a essas formas diferentes de o texto organizar-se e apresentar-se em duas, trés ou mais, partes, numa seqiiéncia mais ou menos definida. Assim € que uma carta, um relatério, um aviso, um requeri- mento tém um jeito préprio, um jeito tipico de aconte- cer, ou seja, sdo feitos de acordo com um certo modelo, com partes ou blocos mais ou menos estaveis, que vo suceder-se numa ordem também mais ou menos fixa. Como os textos sio de autoria das pessoas, delas unicamente provém e a elas unicamente se destinam, tais modelos em que os géneros de texto se manifestam sio resultado de convengoes hist6ricas e sociais institui- das por essas mesmas pessoas. So convengées, como todas as outras, criadas, modificadas ou deixadas de " A questdo “géneros de texto” tem cada vez mais atraido a atengdo dos pesquisadores, sobretudo, daqueles que se interessam por estabelecer uma ponte entre a lingUistica ¢ a pedagogia do ensino de Iinguas. J4 se encontra uma bibliografia razodvel sobre 0 assunto — que deve ser cuidadosamente estudada pelos professores —€ mais novidades esto por vir. Veja-se, como exemplo apenas, fem portugués: Antunes (2002); Biasi-Rodrigues (2002); Brandio (2000); Dionisio, Machado & Bezerra (orgs.) (2002); Meurer & Motta- Roth (2002). Estes dois tiltimos trazem muitos trabalhos sobre a questao dos generos. ASSUMINDO A DIMENSLO INTERACIONAL DA LINGUAGEM | 49 lado, sempre que for necessario fazé-lo. Neste ambito, também se pode constatar a natureza complexa da lin- guagem, que é, por um lado, prototipica, regida por modelos e padrées e, por outro, flexivel, passivel de alteragées ¢ mudancas Assim, como j4 se ressaltou em outro trabalho (Antunes, 1998), 0 paradoxo da variaco e da organiza- Gao estavel dos textos é apenas o reflexo da natureza mesma da linguagem, definida como sujeita & tradicao €, a0 mesmo tempo, subordinada & aco livre dos fa- lantes. Se, por um lado, como admite Saussure (1973), uma lingua é “radicalmente incapaz de se defender” dos fatores que, constantemente, a deslocam (p. 90), por outro, a solidariedade com o passado restringe e controla esse inevitavel deslocamento (p. 88). Os géneros de textos evidenciam essa natureza altamente complexa das realizagées lingiifsticas: elas sdo diferentes, multiformes, mutaveis, em atendimento a variagdo dos fatores contextuais e dos valores prag- miticos que incluem e, por outro lado, s4o prototipicas, so padronizadas, sio estaveis, atendendo & natureza social das instituicdes sociais a que servem Em sintese, uma escrita uniforme, sem variagdes de superestrutura, de organizacao, de seqiiéncia de suas partes, corresponde a uma escrita sem fungao, artifi- cial, mecanica, inexpressiva, descontextualizada, con- vertida em puro treino e exercicio escolar, que nao es- timula nem fascina ninguém, pois se esgota nos redu- zidos limites das proprias paredes escolares. A escrita supde condigées de producao e recepcao diferentes daquelas atribuidas a fala. 50 | Auta pe Porrucues Inne Axrunes Todo evento de fala corresponde a uma interacao verbal que se desenvolve durante 0 tempo em que dois ou mais interlocutores, em situagdo de co-presenca, al- ternam seus papéis de falante e ouvinte. O discurso vai sendo, assim, coletivamente produzido, negociado, ao mesmo tempo em que vai sendo planejado, e sua se- qiéncia é determinada, quase sempre, na prépria con- tinuidade do didlogo. Aescrita corresponde a uma outra modalidade de interagéo verbal: a modalidade em que a recepeao é adiada, uma vez que os sujeitos atuantes nao ocupam, a0 mesmo tempo, o mesmo espaco. Além disso, hé um lapso de tempo, maior ou menor, entre 0 ato de elabo- rac&o do texto pelo autor e 0 ato de sua leitura pelo leitor, Como lembram Faraco & Tezza (2003: 10): “O homem inventou a escrita, hé milhares de anos, quan- do s6 a conversa ndo conseguia dar conta de todas as suas necessidades” Essas diferentes condigdes de produgdo da escrita dio a quem escreve a possibilidade de conceder uma parcela de tempo maior a elaboragdo verbal de seu tex- to, bem como a possibilidade de revere recompor o seu discurso, sem que as marcas dessa revisio e dessa recomposigao aparecam. Daf a ilusdo de que a versao escrita que aparece divulgada — arranjada e bem escri- ta — corresponde a versio inicial do autor. Daf a outra ilusio — maior ainda — de que a escrita é mais bem elaborada, é mais “certa” que a fala. Além desse maior tempo na elaboracao do texto escrito, vale a pena lembrar que é bem mais comum & escrita a referéncia a pessoas, propriedades e objetos AsSuMINDO 4 DIMENSAO INTERACIONAL D8 LINGUAGEA | SI ausentes da situagdo, o que requer uma maior explicitagao lingtifstica dessas referéncias, ampliando-se e diversifi- cando-se, assim, na escrita, 0 emprego das unidades lexicais e de formulacées sintéticas mais completas. Os sinais de pontuagdo e 0 uso explicito de conectivos, entre muitos outros recursos, tendem a suprir instrugdes que, na fala, sdo dadas por recursos como a entonagio, as Pausas, os acentos de voz etc. (cf. Kato, 1986). Evidentemente, convém chamar a atengdo para o fato de que ndo existe um padréo tinico de fala, ndo existe também um padrdo tinico de escrita, Nao falamos nem escrevemos todos do mesmo jeito, em qualquer situac4o ou para quaisquer interlocutores. Falamos e escrevemos, com maior ou menor formali- dade, mais ou menos a vontade, com maior ou menor espontaneidade e fluéncia, Hé momentos, de fala ou de escrita, em que tudo o que vai ser dito pode ser dito sem muita ou sem nenhuma formalidade, como ha momentos em que tudo precisa ser cuidadosamente planejado e controlado como Naturalmente, a diferena que pretendo ressaltar aqui € aquela entre a fala mais informal e a escrita mais formal. Quanto maior for a distancia entre as duas, mais salientes sero as diferengas. A fala informal esta normalmente presente nos contextos mais corriqueiros da conversagdo coloquial e caracteriza-se, em geral, por um vocabulario comum, restrito a esses contextos cor riqueiros, por uma sintaxe permeada de expressdes faticas (“ndo 62”, “sabe como €2", “té ligado?", “certo”), de hesitagdes, de superposicées ou de frases inacabadas (nao que isso signifique “erro” ou desleixo). Sua coe- sao, além de outros aspectos discursivos, é estabelecida 52 | Auta pe Porrucues Inanne AxTUNES por meio de recursos paralingiifsticos (como os gestos, as express6es faciais) e supra-segmentais (como a entonagao, 0 aumento da intensidade, o alongamento das vogais, as pausas). Além disso, a presenga de refe- rentes concretos deixa, quase sempre, 0 texto falado informalmente cheio de incompletudes e “vaguezas”, 0 que ndo afeta a coeréncia do que é dito, pois sao facil- mente supridas pelo contexto. Dai que apenas a fala informal nao pode servir de suporte para 0 desenvolvimento da compreensio de como acontece a escrita de textos formais. Ou seja, s6 pelo contacto com textos escritos formais é que se pode apreender a formulagao prépria da escrita formal. Con- seqiientemente, s6 com textos orais os alunos no che- gam a competéncia para o texto escrito (e ndo espere- mos por milagres!) No interior de um elevador, constava uma placa com os seguintes dizeres: Atengdo Capacidade licenciada: 6 passageiros ou 420 kg A utilizagdo acima destes limites é perigosa e ilegal sujeitando os infratores as penalidades da legislagao. Pode-se prever que, em contextos da fala informal, as informagées que sao dadas neste texto teriam uma formulagdo bem diferente. Certamente, as palavras se- riam outras, a composicao das frases seria outra, Sem pretender estabelecer um marco nitidamen- te divisorio entre a fala e a escrita — até porque, na ASSUMINDO A DIMENSAO INTERACIONAL DA LINGUAGEM | 53. verdade, hé muito mais de semelhante entre as duas do que de diferente —, sem pretender os muitos simplismos com que a fala e a escrita tém sido distinguidas’, vale a pena, contudo, chamar a atengao para as diferentes condigdes de produgio de uma e de outra e ter em conta como essas diferencas interferem na sua realiza- 40 conereta. A escrita compreende etapas distintas e integradas de realizacao (planejamento, operacao e reviséo), as quais, por sua vez, implicam da parte de quem escre- ve uma série de decisées, Elaborar um texto escrito € uma tarefa cujo su- cesso niio se completa, simplesmente, pela codificagéo das idéias ou das informagées, através de sinais grdficos, Ou seja, produzir um texto escrito ndo é uma tarefa que implica apenas o ato de escrever. Nao comega, portanto, quando tomamos nas maos papel e lépis. Supée, ao con- trério, varias etapas, interdependentes e intercomplemen- tares, que vo desde o planejamento, passando pela escri- ta propriamente, até o momento posterior da revisdo e da reescrita. Cada etapa cumpre, assim, uma fungdo especi- fica, e a condigao final do texto vai depender de como se respeitou cada uma destas fungGes. A primeira etapa, a etapa do planejamento, corresponde todo 0 cuidado de quem vai escrever para: »Para aprofundar esta questo da relagtio entre fala e escrita, vale a pena, entre outras leituras, a consulta a Marcuschi (2001), principalmente o primeiro capitulo, onde 0 autor apresenta uma sintese das vérias perspectivas em que a fala e a escrita so obser vadas. 54 | Auta DE Porrucues Inanoe ANTuNes. a.delimitar 0 tema de seu texto e aquilo que Ihe dard unidade; b.cleger os objetivos; c. escolher 0 género; d.delimitar os critérios de ordenagdo das idéias; e. prever as condigées de seus leitores e a forma ingiiistica (mais formal ou menos formal) que seu texto deve assumir. Na escolha dos critérios de ordenacdo das idéias, € relevante prever como a informagao vai ser distribui- da ao longo do texto, isto é, por onde se vai comesar, que seqiténcia se vai adotar, como se vao dividir os t6picos em subtépicos e em que ordem eles vo apare- cer. E 0 momento de delinear a planta do edificio que se vai construir. A segunda etapa, a etapa da escrita, corresponde a tarefa de pdr no papel, de registrar o que foi planeja- do. E a etapa da escrita propriamente dita, do registro, quando concretamente quem escreve vai seguir a plan- ta esbogada e dar forma ao objeto projetado (imagine 0 que € fazer uma construgdo sem planejamento!). E quando aquele que escreve toma as decisdes de ordem lexical (a escolha das palavras) e de ordem sintatico- semantica (a escolha das estruturas das frases), em conformidade com o que foi anteriormente planejado e, evidentemente, em conformidade, ainda, com as condigdes concretas da situagdo de comunicagao. Sem- pre atento, sempre em estado de reflexdo, para garantir sentido, coeréncia, relevancia. A terceira etapa, a etapa da revisdo e da reescrita, corresponde o momento de andlise do que foi escrito, ASSUMINDO 4 DIMENSAO INTERACIONAL DA LINGUAGED | 55 para aquele que escreve confirmar se os objetivos fi ram cumpridos, se conseguiu a concentracao tematica desejada, se ha coeréncia e clareza no desenvolvimento das idéias, se hé encadeamento entre os varios segmen- tos do texto, se ha fidelidade as normas da sintaxe e da semantica — conforme prevéem as regras de estrutura da lingua — se respeitou, enfim, aspectos da superficie do texto, como a ortografia, a pontuacdo e a divisio do texto em pardgrafos. E, como disse, a hora da revisdo (da primeira, talvez), para decidir sobre o que fica, o que sai, © que se reformula. Como afirmou Hemingway: “A cesta de papéis é 0 primeiro mével na casa de um escritor’ A natureza interativa da escrita impée esses dife- rentes momentos, esse vaivém de procedimentos, cada um implicando anilises e diferentes decisdes de alguém que € sujeito, que é autor de um dizer e de um fazer, vos e coope- para outro ou outros sujeitos, também rantes. Carlos Drummond de Andrade parecia bastante consciente das exigéncias de uma escrita cuidadosa (que supe tempo e disposigao para planejar, fazer e refa- zer), quando anotou em seu didrio: Margo 12. Tanto trabalho para redigir a carta de res- posta a uma diretora de servi dou observagées sobre uma crénica que publiquei no Jomal do Brasil. Problema: achar 0 tom adequado, a palavra justa, a expresso medida e insubstituivel, nem piiblico que me man- © mesmo Hemingway ygrafo de Adeus ds Ar ibuida a se comprida. Nao tive tempo de fazé-la egistrou: “Reescrevi is antes de me sentir s escrevi carta 56 | AULA ve Portuaues Inawpe Axrunes mais nem menos. Chego a conclusio de que escritor & aguele que nao sabe escrever, pois quem ndo sabe escre- ve sem esforco. 34 Manuel Bandeira era de outra opi- niio: “Se vocé faz uma coisa com dificuldade, é que ndo tem jeito para ela.” Duvido. (grifo meu) Carlos Drummond de Andrade, O observador no escritério A realidade de nossas salas de aula mostra exata- mente 0 contrério, pois a falta de esforco, a improvisa- do a pressa com que nossos alunos escrevem pare- cem indicar que lhes sobra competéncia e arte. Esque- cemos, como disse alguém, que “o que & escrito sem esforgo € geralmente lido sem prazer”. Para facilitar a compreensdo das distintas etapas da producdo escrita de um texto, mostradas anterio mente, talvez valha a pena conferir o esquema a seguir. Etapas distintas e intercomplementares implicadas na atividade da escrita 1. PLANEJAR | _2. ESCREVER 3. REESCREVER | E actapa para | Eactapa para | £ a etapa para o suelo 0 sujeto | 0 sujet: ampliar seu por no papel o que | rever o que foi | repertoro; | fol plangjado: | escrito, delimitar o tema | realizar a tarefa | confirmar se os eescoler 0 motora de objetivo foram | ponto de vista a | escrever cumpridos fertratado; | cleger 0 objet | cuidar para que os vo, finalidade | itene planejados com que vai | sejam todos excrever: cumpridos. y y ’ ASSUMINDO A DIMENSAO INTERACIONAL DA LNOUAGE | $7 escolher os | observar a Como se vé, ndo basta o cumprimento da etapa | criterios de | concatenacao de escrever. E preciso que se providencie uma etapa ordenacéo das entre 0s periodos, apes 5 anterior e uma outra posterior a escrita propriamente, entre 0s pardgra P fos; ou entre os Cada uma tem uma funcdo de grande importancia para | | blocos ee que nossas produgées lingitisticas resultem adequadas ¢ relevantes. prover as cond | grain a dareza Possivelmente, a qualidade, por vezes pouco dese- Jos possiveis | do que foi 5 , eee essai jével, dos textos escritos por nossos alunos se deva 2 adequa- mbém a falta de oportunidade para que eles plane- Seeaectan jem e revejam esses textos. A pratica das “redagoes” | | stuacto: escolares — normalmente re de tempo, freqiientemente improvisada e sem objetivos considerar @ Enfim, essa é uma mais amplos que aquele de simplesmente escrever — leva os alunos a produzir textos de qualquer maneira, sem um planejamento prévio e, ainda, sem uma di nite , revistio em busca da melhor forma de dizer aquilo que se rever o.que fol | conforme prevé a pretendia comunicar, Essa busca da “melhor forma” fica certtag prema ae sinalizada no texto pelas rasuras, que indicam exatamen- te a outra opefio que parecer mais adequada que a ante- rior. O professor, normalmente, tem inibido 0 uso da situagao em que | etapa intermedia- ria, que prevé a atividade anterior o text circul cea quanto 3s oe eerie C) rasura, deixando passar a falsa idéia de que palavra certa nee jd se encontra na primeira tentativa. Como lembra Calil podem deixar 0 pontuacao, a (1998: 59): “Para a Escola, a rasura é apenas uma marca texto adequado 8 ortografia © 2 fe i . aoe Caen que deve ser eliminada”, pois suja 0 texto que, por isso ‘em paragrafos. mesmo, deve ser passado a limpo', Apagam-se, assim, os estar seguro quan- | Normalmente, a es- to a0 que pretende | cola tem concen- le a pena a leitura do livro de Eduardo C: lado dizer a seu trado sua atencéo Autoria: a crianga ea escrta de historias inventadas. Nesse trabalho, | parceiro; enfim, | na etapa de escre- 6 autor faz uma andlise bastante interessante acerca do que podem estar seguro ver e tem enfocado significar as rasuras que as criangas fazem na produgdo de seus quanto a0 nucleo | apenas a escrita textos. De fato, seria proveitoso que 0 professor de portugues pro- de suas ideiase | _gramaticalmente curasse no desperdigar 0 sentido que as rasuras podem ter: Sio ie suas eancoee | pcorreta indicios, sto is poderiam nascer dat. Tape ANTUNES ASSUMINDO A DIMENSKO INTERACIONAL Da LiNcUAGEM | 59 [ sinais de que entre a primeira versio ¢ 0 texto passado a limpo houve uma leitura avaliativa e se decidiu por uma outra forma considerada mais adequada. ‘A maturidade na atividade de escrever textos ade- quados e relevantes se faz assim, ¢ € uma conquista inteiramente possivel a todos — mas é “uma conquis- ta’, “uma aquisigio”, isto é, ndo acontece gratuitamen- te, por acaso, sem ensino, sem esforgo, sem persistén- cia. Supée orientagao, vontade, determinacao, exerci- cio, pratica, tentativas (com rasuras, inclusive!), apren- dizagem. Exige tempo, afinal. A escrita, enquanto sistema de codificacao, ¢ regida por convencées gréficas, oficialmente impostas. Existe, para os padrées da escrita, um conjunto de convengées que estipulam a forma como as palavras devem ser grafadas. Em alguns contextos, € possivel estabelecer uma série de regras que determinam o emprego de certos grafemas, 0s quais, como se sabe, nao correspondem univocamente aos sons dos fonemas. No caso do portugués, as convengées ortograficas obedecem, em geral, a motivos etimolégicos (relativos & origem das palavras) e s6 muito raramente sofrem alteragoes. Como convengées, as regras ortograficas devem ser estudadas, exploradas e progressivamente domina- das. No entanto, deve-se ter todo 0 cuidado para pres- tar atengaio a outros aspectos do texto, para além da corregao ortogréfica. A tradicdo escolar tem conferido, por vezes, uma importancia exagerada ao dominio da ortografia, criando a impressdo de que basta a corre- 60 | Auta De Porrucuts Tape ANTUNES ¢40 ortografica para garantir a competéncia de escre- ver bons textos, Nao raramente, a referéncia das pes- soas ao fato de que “os alunos nao sabem escrever” tem como pressuposto a constatagio de que eles escrevem com erros de ortografia. Na verdade — e a escola deve cuidar para que isso aconteca — é de se esperar que, a0 final do ensino médio, os alunos nao demonstrem difi- culdades ortograficas. O mais elementar é que cles dominem as regras, as vezes meio aleatérias, da orto- grafia; mas apenas isso ndo pode constituir 0 ideal da escrita adequada e relevante, embora nao possa deixar de merecer cuidado. 2.4.1. Implicagdes pedagégicas 0 conjunto de prinefpios acima apresentados con- tém, inevitavelmente, uma série de implicagées peda- g6gicas. Isto é, aceitar aqueles principios implica acei- tar determinadas perspectivas, escolher determinadas atividades e atitudes praticas. Noutras palavras, no podemos concordar com aqueles principios sem ado- tarmos determinadas praticas. Uma coisa leva natural- mente a outra. Por essas implicagées, 0 professor de portugues deve intervir para que 0 trabalho com a escrita tenha as caracteristicas que passamos a enumerar. * Uma escrita de autoria também dos alunos — A producio de textos escritos na escola deve in- cluir também os alunos como seus autores. Que eles possam “sentir-se sujeitos” de um certo dizer que circula na escola e superar, assim, a inica condigao de leitores desse dizer. Como observa- ASSUINDO 4 DIMENSKO INTERACIONAL DA LINGUAGEA | 61 ram Ferreiro & Palacio (1987), a escrita escolar, como producao de textos, se distribui desigual- mente entre professores e alunos. S40 muitas as oportunidades da vida da escola em que os alunos poderiam atuar como autores de textos. Essa pratica, além do mais, colocaria os alunos na circunstancia de exercitar a participagao social pelo recurso da escrita. Uma escrita de textos — A escrita escolar deve realizar-se também com o fim de, por ela, se estabelecerem vinculos comunicativos. Nessa dimensio, nao pode deixar de ser, sempre, escrita de textos; de textos relacionados com 0 que se passa no ambiente social em que vivem os alu- nos. A escrita de palavras ou de frases soltas s6 faz inibir a competéncia que € necesséria para a produgio de textos coesos e coerentes, que é a competéncia para juntar, para articular palavras, oragoes, perfodos, paragrafos. E com essa articu- lacdo que nos expressamos naturalmente. Nin- guém sai por af “formando frases”. Socialmente, © que conta € nossa capacidade para totalizar, para integrar, num plano global, os dados de nosso dizer. Contraditoriamente, s6 nas aulas de portu- gués é que se exercita a artificialidade de formar frases, 0 que nega, como vimos, a prépria for- ma da linguagem acontecer. Uma escrita de textos socialmente relevantes — As propostas para que os alunos escrevam tex- tos devem corresponder aos diferentes usos sociais da escrita — ou seja, devem corresponder aquilo que, na verdade, se escreve fora da esco- 62 | AULA pe Porrucues Inane Axrunes. Ja —e, assim, sejam textos de géneros que tém uma fungo social determinada, conforme as praticas vigentes na sociedade. A famosa “reda- 40” — que aparece sempre como um texto de caréter dissertativo — parece ter assumido a con- dicdo de género escolar tinico, pois pouca coisa diferente se escreve na escola, sobretudo nas sé- ries do Ensino Médio, Nao admira, pois, que, mais tarde, escrever qualquer outro género de texto se torne uma tarefa praticamente invidvel. Voltare- mos a esse ponto mais adiante para sugerir a escrita de diferentes géneros de texto. Uma escrita funcionalmente diversificada — As diferengas formais que os textos exigem (dife- rencas na escolha das palavras, na estruturagdo sintatica das oracdes e dos periodos, na organi- zagio do texto) decorrem das diferentes fun- Bes que esses textos tém a cumprir: Assim, cada jeito diferente de escrever um texto ganha sen- tido e se justifica porque responde a uma dife- rente fungdo interativa. Nao é o mesmo escre- ver um texto com fungio apelativa ou com fun- 40 informativa, por exemplo. Impossivel é es- crever bem um texto sem saber que fungio ele vai cumprir ou, pior, sabendo que ele apenas vai cumprir a fungao de ser exercicio escolar e, dessa maneira, pode ser de qualquer jeito Uma escrita de textos que tém leitores — Os tex- tos dos alunos, exatamente porque sio atos de linguagem, devem ter leitores, devem dirigirse a. um alguém conereto. Quando possivel, a lei- tores reais, a leitores diversificados, que podem AsSUMINDO 4 DIMENSAO INTERACIONAL DA LINGUAGEAE | 63, ser previstos ¢ devem ser tidos em conta no momento da escrita, para que, como j disse- mos, quem escreve possa tomar as devidas de- cisbes na seleco do que dizer e de como fazé-lo. * Umaescrita contextualmente adequada — As par- ticularidades lexicais e sintaticas da escrita for mal, propria dos contextos da comunicacao piiblica, ou aquelas da interaco coloquial priva- da, somente podem ser entendidas se a escola providenciar contextos diferentes, nos quais esses padrdes sejam reconhecidos como adequados, Nessa perspectiva, o bom texto sera nao obriga- toriamente o texto correto, mas, inevitavelmente, © texto adequado a situagdo em que se insere 0 evento comunicativo. Dessa forma, nao é “a gra- matica” apenas que vai dizer se 0 texto esté bom ‘ou no: so as regras sociais presentes no espaco de circulagao do texto que definem sua qualida- de. Tem faltado ao professor esse olhar para as situagées de uso da lingua, Tem sobrado o olhar para o que a gramatica prescreve, independente- mente de qualquer contexto. + Uma escrita metodologicamente ajustada — To- das as providéncias devem ser tomadas para que os alunos tenham as necessarias condigoes de tempo e de planejamento para construir seus textos. Como vimos no quadro exposto atras, qualquer texto deve ser devidamente planejado, escrito e revisado. O ideal é que se crie, com os alunos, a pritica do planejamento, a pratica do rascunho, a pritica das revisdes, de maneira que a primeira versdo de seus textos tenha sem- pre um cardter de produgao proviséria, e os A pe Porrucuts Iaspe ANruxEs, alunos possam viver, como coisa natural, a ex- periéncia de fazer e refazer seus textos, tantas vezes sejam necessarias, assim como fazem aqueles que se preocupam com a qualidade do que escrevem. Talvez seja preferivel que os alu- os escrevam menos, mas que possam revisar seus textos, até mais de uma vez, tornando-se essa revisio, assim, um habito jé previsto nas atividades escolares com a escrita. Uma escrita orientada para a coeréncia global — Entre tantos aspectos, o ideal sera que o profes- sor conceda a maior atengo aos aspectos cen- trais da organizagio e da compreensio do tex- to, tais como a clareza e a precisdo da lingua- gem (a escolha da palavra certa), a adequacao das expressdes & funco do texto e aos elemen- tos de sua situago, 0 encadeamento dos varios segmentos do texto, bem como o sentido, a re- levancia e o interesse daquilo que € dito. A fi- xagdo nos padrées da corregao ortogrifica, por exemplo, desviou a atenc&o do professor que dessa forma, deixou de perceber a coesio, a coeréncia, a informatividade, a clareza, a conci- so e outras propriedades do texto, Uma escrita adequada também em sua forma de se apresentar — Aspectos da superficie do texto devem merecer 0 devido cuidado. A ortografia, os sinais de pontuag&o (que devem ser percebi- dos na sua estreita relaco com a coeréncia, com o valor informativo e expressivo das uni- dades do texto), a organizagéo das varias subpartes do texto (que transparece na subdivi- so do texto em diferentes pardgrafos) consti- ASSUMINDO A DIMENSAO INTERACIONAL DA LINGUAGEN | 65, tuem sinais da competéncia de quem escreve para se adequar as exigéncias da situagdo co- municativa. Um texto funciona como um mapa com instrugées, com pistas, com indicages que precisam ser seguidas. O cuidado com a apre- sentagao desse mapa faz parte da cooperagio do escritor com o leitor, para que ele chegue aos sentidos e as intengdes pretendidos. Como se pode ver, ha muito o que fazer de extrema- mente relevante numa sala de aula de portugués. Com certeza, explorando cada uma das implicacdes apresenta- das acima, nao vai sobrar tempo para que acontegam as intermindveis classificagdes morfoldgicas e os inécuos exercicios de andlise sintatica. Vai ficar gente sem saber distinguir 0 complemento do adjunto adnominal. Mas vai ter muita gente escrevendo bem melhor, com mais clare- za e preciso, dizendo as coisas com sentido e do jeito que a situago social pede que se diga. E af teremos, de fato, autores. Gente que tem uma palavra a dizer e sabe como dizer. Dessa forma, acima de tudo, a escola tera cumprido seu papel social de intervir mais positivamente na formagdo das pessoas para o pleno exercicio de sua condigio de cidadas. J4 ndo é sem tempo! 2. Explorando a leitura Ler € outro modo de ouvir. Maxcos Bacxo Aleitura ¢ parte da interacao verbal escrita, enquan- to implica a participacao cooperativa do leitor na in- terpretaao e na reconstrugo do sentido e das in- teng6es pretendidos pelo autor. 66 | AULA De Porruavts Thane ANruNes A atividade da leitura completa a atividade da producao escrita. E, por isso, uma atividade de interagao entre sujeitos e supde muito mais que a simples decodi- ficagio dos sinais gréficos. O leitor, como um dos su- jeitos da interagao, atua participativamente, buscando recuperar, buscando interpretar e compreender 0 con- tetido e as intengdes pretendidos pelo autor. Nessa busca interpretativa, os elementos gréficos (as palavras, os sinais, as notagdes) funcionam como verdadeiras “instrucdes" do autor, que ndo podem ser desprezadas, para que 0 leitor descubra significacoes, elabore suas hipoteses, tire suas conclusdes. Palavri- nhas que poderiam parecer menos importantes, como até, ainda, jd, apenas, e tantas outras, sao pistas signi- ficativas em que devemos nos apoiar para fazer nossos célculos interpretativos. Todo esforco para entender essas instrugdes — isto 6, 0 que est sobre a folha de papel — s6 se justifica pelo que elas, as instrugées, representam para a compreensio global do ato comu- nicativo do qual o texto é suporte. Evidentemente, tais instrugdes “sobre a folha do papel” nao representam tudo 0 que a gente precisa saber para entender o texto. Muito, mas muito mesmo, do que se consegue apreender do texto faz parte de nosso onhecimento prévio”, ou seja, € anterior ao que lé esta. Um texto seria invidvel se tudo tivesse que estar explicitamente presente, explicitamente posto. O que € pressuposto como ja sabido, o que é presumtvel a par- tir do conhecimento que temos acerca de como as coisas estdo organizadas, naturalmente, jé ndo precisa ser dito. Com base neste principio é que van Dijk (1984) diz que os textos sao inevitavelmente incompletos ¢ que um texto hipercompleto seria incoerente, além de comunicativamente inadequado. ASSUMINDO A DIMENSHO ISTERACIONAL DA LINGUAGEM | 67 Lembro-me de um texto, que circulou ha poucos anos atrds, no qual se fazia propaganda do Carnaval de Pernambuco e em que se dizia: Carnaval de Pernambuco: o melhor do Brasil. Do Galo ao Bacalhau. Certamente, quem nao soubesse que existem dois blocos carnavalescos, “O Galo da Madrugada” e “O Bacalhau do Batata”, que, respectivamente, iniciam e fecham os dias do Carnaval no Recife e em Olinda, nio tinha condicdes de entender o antincio. Mesmo que consultasse um diciondrio ou uma gramética do portu- gués. S6 0 conhecimento daquelas informagoes é que poderia sustentar uma interpretacao coerente do texto em questo. Um outro exemplo digno de nota esté numa matéria publicada pela revista Veja, por ocasido das comemoragées dos 500 anos do Descobrimento. O tex- to comegava dizendo: “As comemoragées dos 500 anos nauifragaram em ritmo de samba-enredo”. E mais adian- te conclufa: “A festa dos 500 anos acabou na Margués de Sapucai". Ora, nem mesmo os falantes de portugués entenderao esse trecho se no souberem: primeiro, que a Marqués de Sapucai de que se fala aqui é uma ave- nida da cidade do Rio de Janeiro; segundo, 0 que la acontece cada ano e, terceiro, o valor cultural e simbé- lico desse acontecimento. Mantendo a analogia, 0 texto finalizava com esse outro trecho: “Muito discurso, muito lufa-lufa, muito mau teatro de todos os lados, e, no fir, todo mundo de volta a rotina na Quarta-Feira de Cin- as”. Outra vez se pode perceber o quanto a interpreta- 68 | Auta pe Porrucuts Tranpe ANTUNES do de um texto depende de outros conhecimentos além do conhecimento da lingua. O professor de portugués nfo pode deixar de reconhecer a importancia desse principio e, por isso, ndo pode ficar to preso aos co- nhecimentos especificamente linguisticos. Para finali- zar esse ponto, no posso deixar de referir que uma alusio ao insucesso das comemoragées foi feita com a seguinte observacio: “De nau a pior”, 0 que supde tam- bém muitos saberes para além dos gramaticais. Nao é muito interessante tudo isso? Continuemos essa linha de anilise. Quando le- mos uma placa com os dizeres: Curva perigosa, inter pretamos que nao se trata apenas de uma informagao. Com essa placa, ndo est4o apenas querendo nos dizer que naquele lugar existe uma “curva perigosa”. Na ver dade, nosso conhecimento de outras situagdes nos faz interpretar esses dizeres como sendo uma “advertén- cia’, o que passa a ter sobre nés um efeito bem diferen- te. Da mesma forma, se chegamos atrasados a uma reunido e dizemos: O transito estd horrivel, nao estamos simplesmente trazendo uma informacdo, mas estamos desculpando-nos de um atraso indesejavel. Todo texto tem um percentual maior ou menor dessa dependéncia de conhecimentos que sio anteriores ao texto. Em sintese, os sinais (palavras e outros) que esto na superficie do texto sdo elementos imprescindiveis para sua compreenso, mas ndo so os tinicos. O que esté no texto e 0 que constitui o saber prévio do leitor se comple- tam neste jogo de reconstrugo do sentido e das inten- Ges pretendidos pelo texto. E preciso que o professor entre pelo conhecimento da pragmatica, para “abrir” os horizontes com que vai perceber esse jogo da linguagem: ASSUMINDO A DIMENSNO IXTERACIONAL DA LINGUAGEM | 69 A leitura é uma atividade de acesso ao conhecimen- to produzido, ao prazer estético e, ainda, uma ativi- dade de acesso as especificidades da escrita. Este princfpio, como se pode ver, se desdobra em trés pontos. Vejamos. A atividade da leitura favorece, num primeiro plano, a ampliagdo dos repertérios de informagéo do leitor, Na verdade, por ela, o leitor pode incorporar novas idéias, novos conceitos, novos dados, novas € diferentes informagées acerca das coisas, das pessoas, dos acontecimentos, do mundo em geral. Nesse sentido, a leitura escolar dos textos de ou- tras disciplinas representa uma oportunidade bastante significativa de aquisicao de novas informagées. Como se sabe, informagées de um texto de geografia ou de histéria podem ser bastante relevantes para apoiar os argumentos apresentados num comentério, por exem- plo. A quase extrema obviedade de certos textos dos alunos (quando dizem 0 que todo mundo ja sabe) ou, pelo menos, a sua irrefutavel irrelevancia (quando zem 0 que no precisa ser dito), comprometem a qua- lidade desses textos. E pobreza de repert6rio, falta de informagao, nao ter 0 que dizer nao sao problemas que se solucionam com regras de gramatica nem com exercicios de anali- se sintatica, Para escrever bem, é preciso, antes de tudo, ter 0 que dizer, conhecer 0 objeto sobre 0 qual se vai discorrer. O grande tempo destinado a procura dos digrafos, dos encontros consonantais, & classificagao das funges do que e outras questdes semelhantes (po- | Auta ve Porrucuts, Teanbe ANTUNES bres questdes!) poderia ser muito mais bem aproveita- do com a leitura e andlise (didria!) de textos interessan- tes, ricos em idéias ou imagens, sejam eles literérios ou ndo. Esse comentario me lembra uma passagem de Ru- bem Alves, que, falando de sua experiéncia escolar, diz: Estudei muito a andlise sintética. Sofri tanto que, na- quele tempo, escrevi num relatério para o colégio em que estudei, o Andrews, no Rio, que eu queria ser engenheiro; eu era bom em matemética, mas nao gos- tava das coisas da lingua. A andlise sintdtica me ensi- nou a ter raiva da literatura, S6 muito mais tarde, depois de esquecer tudo 0 que aprendera na anilise sintatica, aprendi as delicias da lingua. (...) Lia e me entregava ao puro prazer de ler Num segundo plano, a leitura possibilita a expe- rigncia gratuita do prazer estético, do ler pelo simples gosto de ler, Para admirar. Para deleitar-se com as idéi- as, com as imagens criadas, com 0 jeito bonito de dizer literariamente as coisas. Sem cobranga, sem a preocu- pacdo de qualquer prestacdo de contas posterior, Ape- nas sentindo e, muitas vezes, dizendo: “Que coisa boni- ta!” Outra vez Rubem Alves (2001: 27-28), para nos lembrar que: as palavras também podem ser objetos de fruicdo, se nos ligamos a elas pela mesma razio que nos ligamos a um pordo-sol, a uma sonata, a um fruto: pelo puro prazer que nelas mora... Brinquedos, fins em si mes- mas, palavras que nao sto para ser entendidas, sio comida para ser comida: 0 caminho da poesia. E para este plano de leitura que se destinam os textos literarios: romances, contos, crénicas, poemas ASSUMINDO A DIMENSAO INTERACIONAL DA NGUAGEM | 71 | (esses, sobretudo). Reduzi-los a objetos de anélise sin- tatica, a pretexto para exercicio de ortografia, por exem- plo, é uma espécie de profanagao, pois é esvazid-los de sua fungio poética e ignorar a arte que se pretendeu com 0 arranjo diferente de seus elementos lingdsti- cos*, O gosto e o encantamento por esta fungao poética dos textos literdrios, como todos os outros gostos & encantamentos, precisam ser cultivados, estimulados, exercitados. H4 uma imensa maioria de livros didéticos que parecem desconhecer esse principio. Ou, como observa Rubem Alves, “sao rarissimos os casos de amor a leitura desenvolvido nas aulas de estudo formal da lingua.” Em Conversas com quem gosta de ensinar (p. 84), 0 mesmo autor comenta: “E agora eu me pergun- taria sobre o discurso que tem flufdo de nossas praticas educativas, do jardim da infancia as pés-graduagées. Que amores tém sido inflamados? Que auséncias tem sido choradas e celebradas? Que horizontes ut6picos tém sido propostos?” A titulo de ilustracao, valia a pena transcrever aqui uma proposta de atividade apresentada em um livro didético a partir de um texto poético. Vejamos 0 texto. 0s livros didaticos, apesar de tantas orientages em contré- rio, ainda trazem poemas ou outro género de texto literdrio sim- plesmente para explorar questdes de anilise sintaética ou de orto- srafia, Por exemplo, o “Soneto da Separacio”, de Vinicius de Moraes, era explorado num livro com a finalidade de mostrar que a expres. ‘io “de repente” se escreve assim e, ndo, “derrepente”. Pode-se dizer: “Mal empregado soneto! 72| Auta De Porruaves Teanpe AxTUNES Ave alegria Sylvia Orthof olamoné contigo, bendita é alrisada| Salve a justica’ ea lliberdade! Salve a verdada, a(delicadeza @ o[pdo|sobre a mes Ave |alegria!) Na proposta de exploragao desse texto, primeiro, a tinica observagao feita era: “Ave = salve (é uma inter- jeigdo”). Nao se encontrou outra coisa mais interessan- te sendo indicar a classe gramatical a que pertence a palavra. Segundo: o que se pede ao aluno é 0 seguinte: 'screva trés substantivos e forme frases com eles”. Como se pode ver, no texto todos os substantivos vém dentro de um retangulo, tirando do aluno até mesmo a tarefa de descobrir que palavras seriam essas. (0 céus! 0 vida! — como geme a hiena do desenho animado!) Essa atividade, além de “matar” toda a poesia do texto, porque nem a reconhece, favorece, no final, a que 0 aluno exercite a “competéncia” de formar frases soltas, o que, como se sabe, vai na direcdo oposta da textualidade. Merece comentar ainda que 0 tinico crité- rio para selecionar as palavras que hao de constituir as ASSUMINDO A IMENSAO INTERACIONAL BA LINGUAGEM | 73. frases é outra vez o da classe de palavras. Seré que ndo haveria outras motivagdes para se explorar esse texto? Bastava comegar pela graga da sua intertextua- lidade (depois, é claro, de se falar sobre “intertextualida- de” e de sua fungdo nos textos) e recuperar a clara alusdo que se faz no poema a oragao da “Ave Maria” Para isso, 0 professor poderia identificar no texto os segmentos que retomam explicitamente a conhecida prece, como: “Ave”, “cheia de graca”, “é contigo” (pode- ria até, dependendo da série, apresentar a versio origi- nal da “Ave Maria”, para que esse confronto fosse ainda mais revelador). Nessa mesma linha de andlise, poderia ainda recuperar outros pequenos textos ou expressbes que remetem para outras preces bem conhecidas, como, apenas para dar um exemplo, “o pao nosso de cada dia”, expresso téo comumente reutilizada em muitas alusées textuais. Util também poderia ser a exploragao da associacao semantica entre as palavras do texto, todas remetendo para um campo seméntico positivo: gria”, “graca”, “amor”, “risada”, “gargalhada”, “justic “liberdade”, “verdade”, “delicadeza” e, por metonfmia, “pao sobre a mesa”, Se poderia observar ainda que a nica palavra que se opée a esse quadro positive é a palavra “tristeza”, justificada pelo uso do “abaixo”, em razao do que a série de palavras mencionada recupera sua orientagdo positiva. Nesse ponto, valeria a pena considerar ainda que palavras como “alegria” e “triste- za" podem aparecer no texto em uma mesma direg’o de sentido, ou seja, como ndo-antonimas, bastando para isso o acréscimo de uma palavra de valor negativo como “abaixo”, “nao” ou outra equivalente. Também se pode- ria mostrar a equivaléncia seméntica entre as palavras 74) Auta ve Poerucues Tranpe ANTUNES “ave” e “salve” (e explorar os contextos de ocorréncia dessas palavras), além de se chamar atencdo para a densidade e conciso do texto que se expressa pelo uso apenas de substantivos, sem nenhuma “restrigao adjetival. Poderia ainda merecer um comentario 0 uso de tantos pontos de exclamagao, justificado, ¢ claro, pelo teor altamente expressivo do texto. Além disso, se © professor considerar oportuno, poderia derivar do tema ou da forma desse texto propostas de outras pro- dugées, Evidentemente, todo esse trabalho deve ser posterior a uma emocionada leitura e releitura do tex- to, para que, antes de tudo, possamos desenvolver no aluno o gosto € 0 aféto pela apreciagao da literatura. Num terceiro e dltimo plano, e de forma mais especifica, a atividade da leitura permite, ainda, que se compreenda o que é tipico da escrita, principalmente 0 que ¢ tipico da escrita formal dos textos da comunica- 0 publica’. Quer dizer, é pela leitura que se apreende 0 voca- buldrio especifico de certos géneros de textos ou de certas éreas do conhecimento e da experiéncia. E pela leitura, ainda, que apreendemos os padrées gramaticais (morfoldgicos e sintaticos) peculiares @ escrita, que apreendemos as formas de organizagdo seqiiencial (como comecam, continuam e acabam certos textos) e de apre- sentagdo (que formas assumem) dos diversos géneros de © Sabe-se que a escrita de textos da comunicagao privada, familiar, coloquial — em que, normalmente, aspectos do contexto extralingtistico sdo partilhados com mais intensidade — dispensa ‘uma elaboragéo mais formal, mais distante dos padrées da fala cologuial AssUMINDO 4 DIMENS\O EXTERACIONAL DA LINGUAGEM | 75

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