You are on page 1of 36
Introducgao de Mary Douglas Sacriticios humanos e espititos ndo chegam a constituir um problema sério na cultura moder- nna, e 0 mesmo se pode dizer dos cultos demo- nfacos do canibalismo. Se os idolos mancha- dos de sangue tém algum lugar em nosso es- quema de idéias, esse lugar € na ficco cienti- fica e nos filmes de terror. O final dessas histé- rias sangrentas nunca explica a crueldade dos sacerdotes ¢ de seus faniticos seguidores, exce- to através de um toque fantasioso, como a insinuagio da existéncia de poderes satinicos 4 solta no mundo ou — mais moderadamen- te — apresentando os vildes como luniticos perigosos. Mas esses mesmos temas, hoje usa- dos no entretenimento, foram objeto de gran- de interesse intelectual e provocaram reflexdes sérias entre os eruditas de ha cem anos. © alvorecer do pensamento humano foi um problema de importancia fundamental para os pensadores do século XIX. Num certo momen- to de sua evolugdo, nossos ancestrais se distin- guiram dos animais selvagens, ¢ certamente a consciéncia que passaram a ter de si mesmos foi gradualmente eliminando os resquicios da origem animal. Os mais remotos esforcos do homem para compreender 0 mundo segura- mente devem ter sido marcados por crueldades bestiais e ertos grosseiros. Os costumes dos povos primitivos proporcionaram algumas cha- ves para a compreensio do pensamento arcai- co, € informacdes novas sobre crencas aparen- temente insanas chegaram em profusio & Europa gracas aos relatos de exploradores, comerciantes e missiondrios. Dar sentido a0 que parecia insensato e absurdo foi o grande desafio daquela época, A ateneao popular voltou-se para os antrop6logos, que se empe- nhavam numa corrida internacional pata deci- frar um cédigo que ento parecia Zo excitante quanto qualquer coisa que os fisicos possam dizer a um piblico moderno sobre a vida em outros planetas. ‘Bem se pode dizer que James Frazer venceu a corrida, ¢ de maneira tio completa que, com © iiltimo volume de O ramo de ouro, ela pode ser dada como terminada, O respeito que con- quistou em vida mostra que ele derrotou seus rivais, Uma cétedra universitéria de antropolo- gia social foi criada para ele em 1927 — pela primeira vez no mundo. Frazer foi feito lorde em 1914, tornou-se membro da Royal Society em 1920 € recebeu a Ordem do Mérito em 1925. Muitas universidades, na Gra-Bretanha © no exterior, concederam-Ihe titulos honord- rios. Muitos eruditos conquistam alto prestigio ainda em vida e sio depois esquecidos, Mas no foi esse © destino de Frazer. Embora a maioria dos antropélogos dele discordem num fou noutro ponto, dificilmente havera quem se considere tio importante a ponto de julgar-se rebaixado por criticar Frazer, ou de achar que isso seria perda de tempo. Frazer no foi es- quecido, pois € atacado com freqtléncia, 20 asso que os nomes dos contemporineos que © criticaram sao ignorados: é essa a prova de que seu trabalho ainda tem significacao. Os treze volumes de O ramo de ouro constituem um monumento, Como evoluiu esse monumen- to? Qual o seu valor atual? Qual a sua rele- vaneia para nossas preocupacdes de hoje? Antes de examinarmos como evoluiram os treze volumes de O ramo de ouro ou levantar: ‘mos seus pontos fortes e seus pontos fracos, devemos situar Frazer no seu contexto, pois cle deve ser lido e conhecido como um pensa- dor representativo do século XIX, inclusive pela elegancia de seu estilo. Frazer nasceu em 1856, Todos os dias, seu pai lia em voz alta, para a familia, um trecho da Biblia, mas sempre fechava o livro sem comentarios. A leitura era um ato ritual de f. Suponho que essa experiéncia infantil esteja na origem do respeito que Frazer sempre evi- denciou pelo sentimento religioso, mas tam- bém de sua notavel falta de intui¢o religiosa, E claro que aquelas histérias estranhas impres- sionaram sua imaginagao juvenil; Abraio dis- posto a merguthar 0 punhal do sacrificio em seu préprio filho, intervencdes miraculosas, dillivios punitivos que se abatem sobre 0 mun. do inteiro, criangas incdtumes em meio a0 fogo, a separacdo das aguas do mar Vermelho, e Deus sempre presente diante de seu povo, misterioso e por vezes cruel, dele exigindo um comportamento perigoso ou imoral. Em 1878, Frazer concluia seus estudos classicos em Cam- bridge, durante os quais teve oportunidade de ler mais sobre religides exéticas, Os profundos ensinamentos morais ¢ a: visio extitica da tra- digo greco-romana inspiraram-Ihe admiracdo pelo que chamava de poesia da religiio; mas também o intrigavam as lendas dos deuses gre- g0s, inescrupulosos & Iascivos, perseguindo-se mutuamente ou comendo atris de rapazes ou ‘mogas, ciumentos e vingativos, Pareciam quase humanos, mas nao totalmente: a inconseqiién- cia e a gratuidade marcaram-Ihes as intengdes © as vidas. Explicar as crueldades e atitudes irracionais da mitologia foi um dos grandes problemas do mundo crudito, no periodo 1870-1910. © ramo de ouro comeca num tom de mist rio: um bosque sagrado na Itilia, um sacer- dote que ronda uma arvore com a espada na mio, 0 mito de que ele era o guardiéo do san- twirio de Diana, cujo destino era ser morto pelo seu sucessor, a suposicao de que a drvore era um carvalho, que o sacerdote protegia um ramo de visco e era 0 consorte humano da deusa Diana — dificilmente se poderia imagi- ‘nar que seriam necessérios treze volumes para desvendar as origens dessa hist6ria, a partir de evidéncias tao frégeis, Por que Frazer Ihe dou tanto destaque? Ji se chegou mesmo a di- zer que O ramo de ouro & apenas uma longa e dispersiva nota de pé de pagina a um verso de Ovidio sobre 0 santurio de Diana proximo a0 lago de Nemi (Fasti, VI, 756). Se & assim, por que Frazer escolheu esse verso e no ou. tro, e por que voltou sempre a essa histéria? Em minha opiniao, o sacerdote de Nemi ¢ mesmo o dure ramo de visco nio so a ori- gem, nem o objetivo principal do livro, mas artificios da caixa de mégicas de um nartador talentoso. O sacerdote de Diana e o deus nér- 10 dico Balder, presentes no inicio e final do ivro, sio o que Henry James chamou de uma “ficelle”, wm fio essencial que mantém coesa 4 narrativa ¢ ajuda o leitor a sentir a estrutura antes que toda ela se revele. ‘Uma das restrigdes mais comuns a O ramo de ouro € que Frazer teria acumulado fato sobre fato, estabelecendo entre eles ina liga- cio preciria, e que todo o edificio tetia se tornado tio pesado que a idéia inical se per- era de vista. Firmou-se uma tendéncia a des- carté-lo como um colecionador senil e incoe- rente de fatos curiosos, como, alids, pode de falo ter parecido nos seus iiltimos anos. Até mesmo seu bom amigo, 0 Professor E. O. James, disse: “A medida em que o livro crescia fem suas maos, 0 frégil fio de ligaglo com 0 assunto original ameacava romper-se sob 0 peso de cada edigdo sucessiva da obra” (Dictio- nary of national biography). Mas tal observa io realmente no procede: se um estudioso teve algum dia uma preocupacio exclusiva, esse estudioso foi Frazer, que nunca se afastou do toma do deus imolado, Nossa nova edigio separa 0 argumento central da massa de deta- Ihes. A Dra, MacCormack, que tio competen- temente reduziu os treze volumes a estas pro- poredes modestas,insiste em que Frazer niio se distancia nunca de seu argumento. Ela me pa- rece ter conseguido fazer um resumo que deixa claro 0 significado e toma vivo o interesse, sem que nada se perca do famoso estilo, Em sua nota editorial, & pagina 251, ela descreve como este livto foi feito © as decisdes editoriais que feve de tomar para apresentar 0 texto desta maneira direta A teoria de Frazer foi delineada em trés etapas. A primeira, em 1888, quando escreveu 08 verbetes sobre totemismo ¢ tabu para a Encyclopaedia britannica. Ele nos conta que, naquela época, © por toda a sua vida, sofreu profunda influéncia de seu amigo. William Robertson Smith, autor de um livro que goza- tia de fama justificada, Religion of the semites, © que seria publicado em 1889. E provivel que, como estudioso, a primeira intengio de Frazer fosse fazer em relagio a tradicgio greco- latina o que seu amigo havia feito em relagio a tradicdo judaica po fo Pa ta of in ho di Sn tic rel ter ha gia ces est nid dai de pre pre ge qua ger da 189 Diz do vad de! Oo gina ara ato tou c10 a 10- em gue esta jue, rou tes, svel de G0 Durante toda a sua vida, Robertson Smith foi um cristio devoto e praticante, cuja tarefa crudita era a de submeter a Biblia a um exame hist6rico rigoroso para, com isso, protegé-la das criticas destrutivas dos cientistas. Sua ma- neira de defender a Biblia dos ataques intelec- tuais que a ameacavam foi escolher o que nela havia de nobre e racional e deitar fora 0 que parecia primitive ¢ irracional, Ele ¢ Frazer escreveram nos vinte a cingiienta anos imedia- tamente posteriores ao abalo que The origin of species, de Darwin, havia causado a velhia interpretagdo fundamentalista da Biblia: foi o homem criado por um iinico ato divino, como dizia 0 livro sagrado, ou evoluiu a partir do macaco? A mancira engenhosa que Robertson Smith encontrou para responder & onda de cri- ticas A Biblia foi mostrar que a hist6ria da religido judaica também havia evoluido, As ver- tentes da justica da misericérdia sempre nela haviam estado presentes, vidveis e com ener- gia suficiente para sobreviver, ao passo que as tendéncias barbaras haviam sofrido um pro cesso de selegao gradual. A magia, disse cle, estava ligada ao culto de errantes deménios maléficos, sem ligagdo com 0 deus da comu- nidade. A magia acabou dando lugar, no ju- daismo, a0 culto de um s6 deus. O sacrificio de sangue deu lugar ao arrependimento dos coragdes humildes, e 0 animal abatido que re- presentava o deus da comunidade deu lugar & uma concepcao espiritual do culto sacrifical. ‘A esséncia do tema do deus imolado, que preocupou Frazer durante toda a sua vida, sur- ge no seu primeiro artigo sobre totemismo, no qual descreve a representacio da morte e do renascimento em ceriménias de iniciagao su- Bere que 0S ritos totémicos sao realmente sa- crificios nos quais o deus morre pelo set. povo. ‘A segunda ctapa corresponde a publicacio da primeira edigio de O ramo de ouro em 1890 (dedicada “ao meu amigo W. R. Smith”). Diz Frazer em seu preficio que a idéia central do livro € 0 coneeito do deus imolado, deri- vado de Robertson Smith. £ aqui que apare- cem pela primeira vez o sacerdote condenado de Nemi e Balder, 0 deus nérdico que morte. objetivo do livro € descobrir a unidade ori- ginal do pensamento religioso, desde 0 culto primitive dos arianos, que se difundiria pelos bosques de carvalhos da Galia, da Prissia ¢ da Escandindvia, tendo se mantido em sua for- ‘ma quase original no bosque sagrado de Nem: “O rei do bosque viveu € morreu como uma encarnagéo do supremo deus dos arianos, cuja Vida estava no visco, ou ramo de ouro”. As re- Tigides baseavam-se todas numa intima comu- hao entre os adoradores ¢ seu deus sacerdote. Quando afirmou que © deus imolado era a idgia central de O ramo de ouro, Frazer real- mente devia pretender que assim fosse, Tal como Robertson Smith, ele acreditava num pro- cesso de evolugio social que jé entio havia formulado um juizo irreversivel contra todas as imolagées rituais, quer a vitima fosse um animal ou um ser humano, ou 0 préprio deus fosse morto para ser oferecido a si mesmo, em favor de seu povo. A ambicio profunda de O ramo de ouro & colocar todas as doutti- nas sacrificsis do cristianismo e, com elas, as doutrinas da Encarmaco, da Imaculada Con- cxigdio ¢ da Ressurreicio, sob a mesma perspec- tiva da adoragio totémica, lado a lado com as luxuriosas excentricidades do panteao grego ¢ com as carcacas queimadas ou ensangiientadas dos antigos altares dos israelitas. Quaisquer que fossem as histérias, deviam ser considers- ddas como verses parciais, imperfeitas. Surgia agora uma visio mais completa, mais profunda © vigorosa. Essa visio moderna identifica a evolugio fluente da religido, desde os seus sig- nificados carnais até seus refinados significa dos espirituais, Bssa nfo poderia ter parecido idéia arriscada a defender no contexto cultural racionalista da década de 1890. Os que ainda se apegavam ao dogma religioso fundamenta- Tista levantariam objecdes, mas, para os meios académicos esclarecidos, a tarefa a que se pro- punbam os sucessivos volumes de O ramo de ouro significaria a adug2o de evidencias cada vez. maiores da evolueao mundial rumo a uma espiritualidade mais pura Mas, entre 1890 ¢ 1910, na terceira fase do seu pensamento, Frazer desenvolveu. novas, idéias sobre a mancira pela qual 0 pensamento magico funcionava e como se enquadrava na psicologia moderna, Argumentou, basicamente, que © estagio mais remoto da evoluczo filosé- n fica era mégico, 0 segundo, religioso, € 0 ter- ceiro, cientifico. Frazer admitia que 0s primi vyos podiam pensar suficientemente bem quan- do se tratava de constrair uma casa, cacar um gamo ou parir filhos, mas achava que, sem as vantagens da ciéncia moderna, eles tendiam a reforgar suas aces tecorrendo & magia sim- itica. Prevalecia entéo, de um modo geral, a idéia de que toda magia funcionava segundo tum principio simpético. Mas Frazer distinguiu dois tipos de simpatia: a simpatia das partes ‘ongiinicas e a simpatia das semelhancas obser- vadas. A primeira supunha que coisas antes reunidas e depois separadas conservavam per- manente poder umas sobre as outras: assim, quando dois amigos bebiam mutuamente os respectivos sangues, cada um deles, a partir de entio, entrava em comunicagio fisica direta com 0 outro, podendo saber quando perigos ameacavam a este ou até mesmo definhando cou morrendo quando 0 outro era atacado, Ja ‘0 segundo tipo de simpatia & bastante diverso do primeiro. Se, por exemplo, 0 ouro € con- siderado como sendo de um amarelo positive © a ictericia como de um amarelo negativo, entdo 0 ouro seré usado na cura desta, para subjugar 0 tipo negativo de cor amarela. Esses dois princfpios de contégio e similaridade de- ‘vem ser considerados como uma influéncia po- derosa no pensamento primitivo. Em toda a literatura do pensamento primi- tivo repetem-se essas simpatins, Organizando- as como similaridade e contégio (ou contig dade), Frazer relacionou-as com a moderna Psicologia da associacao mental, € com isso atualizou todo 0 seu assunto, Os principios de associagio ocupam, ainda hoje, tum lugar curioso na psicologia e na fi- losofia. Tendem a ser tratados como uma ener- gia espontiinea, incontrolada, da mente indi Vidual, uma energia que é gradualmente domi- nada ¢ ensinada pelo raciocinio analitico. E sé ‘agora se comeca a admitir a necessidade de um grande poder analitico para reconhecer a si milaridade. Todos nds estamos sujeitos a asso- ciagdes errdneas de idéias. Rompemos essa su- Jeigéo pelo caminho que levou a cigncia, Mas, para Frazer, a mente primitiva néo estava for. witamente @ mercé das associagées enganosas. 2 Ele estava decidido a revelar uma inelinacio particular, uma inquietagao que dominava nos- sos ancestrais, ou seja, a concepciio, tdo antiga quanto 0 homem, de que a humanidade faz parte da natureza, Essa concepeio povoava a natureza de espititos animados ¢ exigia wm sentido do maravilhoso atrelando culpas ¢ es- perancas impossiveis. Ela produziu o protéti- po de todas as religides, a crenga no deus en- camado, que morre para redimir seu povo e € ressurreto no momento adequado. ‘Ser preciso mencionar algumas restrigdes hoje feitas a O ramo de ouro. As principais criticas modernas so, primeiro, que Frazer era infoleravelmente arrogante em relagio a mentalidade primitiva e, segundo, que tratou superficialmente de assuntos profundos. & cer- to que ele faz dos supostos selvagens uns per- feitos idiotas. Se alguém escrevesse hoje dessa forma sobre a mentalidade primitiva, seria acusado de racismo. Mas Frazer nfo era um racista, tal como habitualmente se entende essa expressiio. Ele néo visitou nunca nenhum dos Povos ou lugares que descreveu, e seus exem- plos siio, com freqiiéncia, colhidas em sua pro- ria raga, em Londres, na Escécia, na Irlanda, na Franca ou na Alemanba, bem como em terras mais distantes. Também é certo que Fra- zer trivializa reflexdes graves sobre a morte & a divindade. E que teve certa tendéncia a tritu- rar duendes e deuses, imparcialmente, pela ‘mesma méquina analitica. Mas 0 erro esta em tratar Frazer como um autor do século XX s6 porque ele viveu até 1941, Ele nao estava dando com um problema moderno. Seu pen- samento jé estava formado em 1910, € 0 pi blico de sta escolha continuou sendo constit do pelos eruditos de sua juventude, Frazer con- siderava seu trabalho sobre a religido como relacionado com a pré-hist6ria, algo passado concluido: “a longa tragédia da loucura e do softimento humanos que se desdobra ante os Ieitores destes volumes ¢ sobre a qual a cortina se prepara, agora, para baixar”. O Professor E. O. James, que 0 conhecia bem, disse que “Frazer eta impressionado sobretudo pelo que Ihe parecia ser a total inutilidade do mundo que estudava”. Para julgar se cle de fato me- receu esas criticas de superficialidade ¢ arro- Ne I EE EE EEEG60Oo™“”™m gincia, devemos situé-lo corretamente na sua Epoca. Os contemporiineos de Frazer achayam, sem diivida, que a idade da religido dogmatica e da superstigéo estava chegando ao fim, As eriticas de superficialidade © arrogincia aplicam-se apenas se retirarmos Frazer do contexto de sua época. A visio que Frazer tinha da met talidade primitiva era positivamente elevada em comparagio com a de alguns de seus contem- pordneos, muito cultos e respeitados. Um deles chegou a se perguntar, a sério, se a humanidade no haveria atravessado uma fase de loucura temporiria — e concluiu que assim deve ter acontecido, Max Miller, 0 grande fildlogo, tentou imaginar nossos primeiros ancestrais i= tando com a fala, fazendo uso de apenas uns poucos tempos verbais € incapazes de desen- volver idéias abstratas. Era natural que eles se confundissem horrivelmente quanto as transfe- réncias de significados entre individuos cujos nnomes tinham origem em certos eventos e 0s eventos que haviam dado nome as pessoas, Admitindo-se que cada palavra supunha um individuo ¢ Ihe atribufa um géneto gramatical, entio com uma palavra masculina para sol, como “o que britha”, € uma palavra ferinina pata a aurora, “a que queima”, seria impossi- vel dizer que 0 sol vem depois da aurora, sem sugerir com isso um macho perseguindo uma famea, Como todos os outros estudiosos da Epoca, Miller achava facil compreender hist6- Flas sobre deuses nobres e justos, mas era ne- cessério invacar alguma teoria sobre a confu- so meotal primitiva para que se pudesse com- preender “o elemento tolo, insensato e selva- gem”. A explicagao dos mitos por meio da confusio entre palavras que designam coisas da natureza sugere que todos os mitos surgi- ram originalmente como mitos da natureza. O problema é que podemos considerar como mi- tos da natureza tudo 0 que desejarmos. Até mesmo a histéria de Chapeuzinho Vermetho pode ser considerada como um mito da natu- reza, se tomarmos sua capa vermelha e a sua juventude como o alvorecer, a av6 jdosa como a luz do entardecer e grande lobo que engo- Je toda a avé com suas mandibules negras, com a noite; felizmente, lenhador mitico salva o alvorecer ¢ assim o sol se levanta mais uma vez, Frazer desprezou desde 0 inicio essas teorias baseadas num mal-entendido verbal. Cem anos depois, aprendemos alguma coisa além de es- pecular desmedidamente sobre 0 primeiro mo- ‘mento da fala humana, embora reconhecamos que se trata de um tema fascinante. As teorias do proprio Frazer eram, certa- ‘mente, muito menos superficiais do que as su- geridas pelos mitélogos. Em lugar de ver a humanidade primitiva como paralisada de es- panto pelos seus primeiros € canhestros esfor- 0s para falar, Frazer prefere vé-la na contem- placio dos mesmos temas que os cristios de sua propria época, E por isso que ele pode falar da deusa virgem Diana ao mesmo tempo em que fala da Virgem Maria e evocar os deuses imolados ¢ as divindades encarnadas sob a perspectiva da teologia crista. Gracas sua formagio e ao respeito pelas religides, ele tem 0 cuidado de néo ofender. Nao procura humilhar os eristios nem causar-Ihes constran: gimentos. Mas também nfo tenta proteger a doutrina deles dos ataques cientificos. Para Frazer, a chave do entendimento futuro esté na ciéncia, nao na religito ou na magia. Muitos concordardo com ele: ha progresso na ciéncia, hé prova de transformacdo cumulativa, mas, na religido, as verdades reais parecem ser as ver- dades antigas, © ha um esforgo permanente para reconquistar ¢ proteger uma visto antiga e ameacada, ‘Apesar de tudo isso, Frazer néo pode fugir & acusagio de superficialidade, Ble preferiu ‘ocupar-se de reflexes sobre a vida e a morte, a humanidade e a animalidade, a divindade ¢ a imortalidade. “Que estreiteza de vida espi- ritual encontramos em Frazer”, diz Ludwig Wittgenstein, “e, em conseqiiéncia disso, como Ihe foi impossivel compreender um modo de vida diferente do modo de vida inglés de sua época!” (“Remarks on Frazer’s Golden bough”, The Human World, maio de 1971). Trata-se, em parte, de uma questo de estilo. Quando esereve com espirito, a idéia é bem apresenta- da e bem transmitida, mas quando Frazer ado- ta o tom solene, ha algo que soa pomposo ¢ mesmo falso. E como se Frazer soubesse que B € fécil ironizar a religido dos outros, e tentasse evitar o solecismo adotando um tom de voz untuoso. Mas a superticiatidade nao ¢ a diferenca que separa a antropologia moderna do ponto de vista de Frazer. Nenhum antropélogo moderno, por mais sensivel que seja, pode aplicar os ins- trumentos de seu oficio a um sistema religioso cestrangeiro e escapar totalmente & mesma cri tica. Os mais modernos instramentos de and- lise so necessariamente imperfeitos, 0 que te velam é parcial, a visio final € tosca ¢, com freqiiéncia, cética. A diferenca essencial esté fem que 0 antropdlogo moderno pretende estu- dar um sistema simbélico, ao passo que Frazer da menos énfase & simbolizagao consciente ¢ mais aos erros inconscientes sobre a realidade fisica, Citando novamente 0s comentérios de Wittgenstein sobre Frazer: “Vejo, entre muitos exemplos similares, o de um rei da chuva na Africa a quem 0 povo recorre para que faca chover, quando chega a estacdo chuvosa. Mas isso significa, sem divida, que nfo acreditam que ele possa realmente fazer chover, pois se acreditassem pediriam chuva nos periodos de seca, durante os quais a terra é ‘um deserto crestado e rido”. Pois mesmo que suponhamos ter sido a estupider. que outrora levou as pes- soas a instituir esse cargo de rei da chuva, ainda assim € evidente que elas sabiam, pela expe- rigncia, que as chuvas comecam em margo € que a obrigacao do rei da chuva era desempe- nhar suas atribuigées em outros periodos do ano, Ou ainda: ao amanhecer, quando 0 sol est na iminéncia de surgir, celebram-se os ritos do comeco do dia, mas o mesmo nao ocor- re ao anoitecer, quando apenas se acendem as lampadas”. Embora Frazer reconhecesse nao ser 0 ritual automaticamente eficiente como um rito mégico, toda a forca de seus argumentos esté voltada para descobrir o modo de pensar caracteristico dos primitivos. ‘A abordagem moderna do problema esco- Ihido por Frazer dé énfase a0 aspecto simbé- lico do comportamento humano, aos ritos de celebracdo, sem insistir demais em distinguir © que € simbélico © o que & prético, tareta muito mais dificil do que parece. O antrop6lo- go se detém na cultura local como se fosse 14 tum sistema completo, com todas as suas expli- cacdes contidas em si mesmo. Nao pula de uma cultura em Bornéu para outra no Peru ‘ou na Roma antiga, pois néo supe que isso leve a respostas adequadas. A primeira coisa a fazer € compreender um sistema cultural co- ‘mo uma maneira racional de comportamento para pessoas que se conhecem e que partem dos mesmos pressupostos. A crenga em demé- nios € deuses, feiticeiros e poderes misteriosos de abenigoar € amaldigoar, tem sentido se co- mhecemos a totalidade do contexto no qual é usada. A maior diferenga com relagio ma- neira pela qual Frazer apresenta o problema esté na suposigao de que todas as crencas tém emprego ativo. Ele pensava que as crengas se estruturavam de maneira contemplativa, como numa ligao de catecismo dominical. Hoje, € mais comum traté-las como objeto de utiliza- Gio pritica, no aqui © agora da agitacio da vida social. Assim, quando se acredita que um rei 6 capaz de fazer chover, sendo essa a sua principal responsabilidade perante seu povo, 0 interesse politico se focaliza no momento em que a chuva tarda — estaria ele aborrecido? Teria alguém cometido uma ofensa contra 0 reino, que 0 rei € seus ancestrais puderam perceber? Se assim for, o crime deve ser re- velado imediatamente, confessado e expiado, para que o rei se acalme e libere as nuvens de chuva, A rivalidade dindstica reveste-se de especial interesse politico. Suponhamos que seca persista porque a coroa foi tomada pelo rei errado, que expulsou o rei de dircito, de- tentor do poder de fazer chover. O farsante deve ser desmascarado © o herdeiro legitimo, instalado no trono. Vemos assim como as idéias sobre a magia da chava podem ser uti lizadas politicamente, constituindo uma espé. cie de prova meteorolégica da legitimidade po- fitica, B essa a tendéncia atual na interpreta do da magia. O exemplo mostra o campo de aco para o ceticismo e para a reducio da rica tessitura de crencas que uma cultura estran- geira oferece & analise, A tarefa de compreen- der tomou-se muito mais dificil do que antes. Em lugar de tentar compreender a totalidade, ‘0s antropélogos tendem hoje a isolar um frag- Pal ai po Po int ho do tic lis ‘mento © a desenvolver instrumentos refinados para a sua interpretagdo. Hé uma concentra- 40 nos instrumentos, nos métodos ¢, com isso, uma humildade que equivale a duvidar se poderemos jamais compreender outra cultura, Por enquanto o problema fundamental que interessava os contemporaneos de Frazer de maneira to apaixonada esté posto de Lado. Esses contempordncos realmente actedita- vam que as grandes crueldades cometidas pelo homem contra o préprio homem eram coisa do passado. Sentiam-se indignados com a pra~ tica de sacriicios humanos ou com 0 caniba- lismo ritual, ¢ surpresos de que alguém pudes- se acreditar em fantasmas sugadores de sangue ou num céu habitado por divindades amantes das orgias © que toleravam atrocidades. Eram muitas as crueldades que © homem praticava contra o homem na década de 1890, mas no: sos sdbios daqueles dias viviam vidas muito protegidas. Podiam ter esperancas em relacao A evolugio humana. £ dificil, para nés, com- preender até que ponto a elite intelectual podia estar protegida e provida de antolhos. Até mes- ‘mo aos professores universitérios era poupada a confrontacao direta com os alunos. O prd- prio Frazer, depois de nomeado para a cétedra de antropologia social de Liverpool, no tardou a concluir que the era mais conveniente tra- balhar doze horas por dia em suas pesquisas no Trinity College, em Cambridge, embora nao The tenha parecido necessério renunciar a c tedra de Liverpool, Houve uma modificacdo em nossa conscién- cia, Duas guerras mundiais contribuiram para OT abalar a confianga na bondade humana; uma profundidade maior marca a percepcao que te- ‘mos de nosso potencial de agir crueimente e de nossa propria cegueira para com a crueldade que nos cerca. Vivendo com a guerrilha urba- na, as explosées de bombas © o terrorismo aberto, néo podemos acreditar que o livro da oucura humana tenha sido fechado. Isso faz uma certa diferenca, Quem criticar Frazer, hoje, esta criticando nao tanto um autor, mas todo 0 periodo que ele representou, ha cerca de cem anos. Por si s6, essa jé é uma boa razao para ler O ramo de ouro. Nao ha muita certeza de que © ponto de observacio a partir do qual voltamos 0 olhar para aquela época esteja cla- ramente acima dela, Temos a nossa propria auto-estima ¢ arrogiincia, que nos earacierizam como membros de nossa civilizagao. Por exem- plo, certas pessoas, entre nés, se chocam com a observagio de Frazer de que o homem igno- rante € pouco inteligente tende a acreditar na ‘magia, Espantar-se com isso, porém, pareceré antes uma atitude um tanto acanhada para quem estiver convencido da superioridade in- vencivel de nossa eigneia moderna, Dentro de menos de cem anos, as nossas atitudes parece- to paternalistas quanto as de Frazer. Jé ento poderemos ter conhecido pessoas que ignoram a ciéncia, mas sio perfeitamente ver- sadas no significado dos sonhos, ou capazes de falar com animais, ou de controlar seu pen- samento € seu corpo gracas a aptiddes que nossa ciéncia é incapaz. de compreender. Mary Douglas 15 1. O rei do bosque “The still glassy lake that sleeps Beneath Aricia’s trees — ‘Those trees in whose dim shadow The ghastly priest does reign, The priest who slew the slayer ‘And shall himself be slain.” Macautay Diana ¢ Virhio ‘Quem niio conhece © quadro de Turner sobre © ramo de ouro? A cena, banhada do brilho dourado da imaginacdo com que Turner im- Pregnava e transfigurava até mesmo a mais bela paisagem natural, é uma visio onfrica do Iago silvestre de Nemi — “Espelho de Diana”, como era chamado pelos antigos. Quem tenha visto aquela égua calma ao fundo de uma de- pressio verdejante dos montes Albanos, jamais poder esquecé-la, As duas aldeias caracteris- ticamente italianas que dormem as suas mar- gens, e 0 paldcio igualmente italiano cujos jar- dins aterragados descem em declive acentuado até o Tago, nao chegam a perturbar a trangili- lidade, a solidio mesmo, desse cendtio. A propria Diana ainda poderia vagar por essas ‘margens solitiias, cacar ainda nessas florestas. Aqui, no proprio coragzio dos montes verde- jantes, sob 0 declive abrupto hoje coroado pela aldeia de Nemi, a deusa silvestre Diana tinha um antigo e famoso santuétio, freqiien- tado por peregrinos de todas as partes do Lé- cio. Era conhecido como 0 bosque sagrado de Diana Nemorensis, ou seja, Diana dos Bosques. Lago e bosque eram por vezes chamados de Aricia, nome da cidade mais proxima, Mas esta, a Aricia moderna, esta a cerca de cinco quilémetros de disténcia, ao pé dos montes, separada do lago por um longo ¢ acentuado declive. O santudrio estava situado num espa- “Imével dorme 0 cristina lago ! De Arieia sob as rvores, / A culo sombra nemorosa reina ! 0 tvide sacerdote, / Aquele que matou um matador, 7 E por sua vez morto serd"(N. do T.) 20 050 terrago, ou plataforma, limitado ao norte © a leste por grandes muros de sustentago que Penetravam nos flancos do monte e os firma- vam, Nichos semicirculares cavados nesses muros, com colunas & sua frente, formavam uma série de capelas que, nos tempos moder- nos, produziram uma rica seara de oferendas votivas. Do lado do lago, o terrago repousava sobre forte muralha, com mais de duzentos metros de comprimento e nove metros de altu- ra, constfuida sobre botaréus triangulares, como os que vemos diante dos pilares das pon. tes © que se destinam a romper o gelo flutuan- te. Nos dias de hoje, muro e terraco ficam a algumas centenas de’ metros do lago; outrora, seus botaréus podem ter sido banhados pelas guas. Se comparado com as proporcoes do sitio sagrado que rodeava, o templo em si era grande, mas suas ruinas mostram que era de construcdo limpa e sélida, de blocos macigos de peperino? e adornada’de colunas éricas do mesmo material. Complicadas cor- nijas de mérmore e frisos de terracota contri buiam para o esplendor externo do edificio, que parece ter sido ainda mais ressaltado por telhas de bronze dourado. ‘Uma grande quantidade de estatuetas de Dia- na, devidamente vestida com a tinica curta ¢ os altos cotunos de cacadora, a aljava penden- te do ombro, foi encontrada no local. Algumas elas representam a deusa com 0 arco nas mos, ou um cao de caga ao lado. Lancas de bronze ¢ de ferro © imagens de veados e corcas encon- tradas a0 redor do santuério podem ter sido oferendas de cacadores & sua deusa, destinadas a propiciar o éxito na caca. Da mesma forma, tridentes de bronze, também encontrados em Nemi, talvez.tenham sido levados por pesca- dores do Iago, ou mesmo por cacadores que haviam lanceado javalis nos bosques, pois esse animal foi cacado na Ttslia até 0 fim do sé- Rocha granulada, sedimentiria © vuledniea, cor de pimenta, muito comum na regiao romana. (N. do T) {A senlora dos animals (© alto da deusa slada que segura le6es foi trazido do ABAXO, A ESQUERDA. Friso em terracota do Templo Oriente Préximo para a Itilia no infelo dos tempos ddo Diana em Nemi. Castle Museum, Nottingham. hitoricos. Na Grésia e em Roma, essa antiga Foto publicada originalmente em G. H. Walls, divindade da floresta foi adorada como Diana, a Classieal antiquities from Nem, 1893. protetora dos cagadores, saxo, A pitta. O Imperador Trajano faz um ‘anateo. Dina com seus lees, num colar de ouro de saerficio a Diana depois da caca. Medalhio do Arco Rodes, séewio VIII a.C., British Museum, Londres. de Constantino, em Roma. Foto" Anderson, orte que sses ler ndas ntos, atu. pon uan- ma ora, elas do que cor ntri- culo primeito da nossa era: Plinio, 0 Jovem, com a sua habitual © encantadora afetacio, rnos conta como estava sentado junto &s redes, meditando ¢ lendo, quando trés javalis foram por elas colhidos, E mesmo mil ¢ quatrocentos anos depois, esse género de caga cra ainda passatempo favorito do Papa Leo X. Um fri so de terracota com relevos pintados encontra~ do no santuario de Nemi, e que pode ter ador- nado o Templo de Diana, retrata a deusa sob a forma conhecida como Artemis Asiética, com asas que Ihe saem da cintura e um leio com as patas pousadas em seus ombros. Algumas toseas imagens de vacas, touros, cavalos e por- cos, desenterradas no local, talver indiquem ter sido Diana ali adorada também como pro- tetora dos animais domésticos, além dos ani- mais selvagens do bosque. ‘Até o declinio de Roma, observou-se em Nemi um costume que nos parece remontar imediatamente da civilizagdo para a barbiti Havia no bosque sagrado uma certa frvore, em torno da qual, a qualquer hora do dia provavelmente até tarde da noite, uma figura sombria podia ser vista rondando de guarda, Levava na mio uma espada nua ¢ todo o tem- po olhava cautelosamente & volta, como se esperasse ser atacada a qualquer momento por ‘um inimigo. Era sacerdote e assassino, e © ho- ‘mem a quem espreitava iria maté-lo, mais cedo ‘ou mais tarde, para ocupar seu lugar como sacerdote. Era essa a regra do santuério, O candidato 20 oficio sacerdotal s6 poderia as- cender a ele matando o sacerdote ¢, concluido © assassinato, ocupava o posto até chegar a sua vez de ser morto por alguém mais forte ‘ou mais habil. B verdade que esse posto, em que ele se instalava tao precariamente, conferia 6 titulo de rei: mas certamente nenhuma cabe- ga coroada jamais esteve t0 pouco segura sobre os ombros, ou foi visitada por piores sonhos, do que a sua. Ano apés ano, no verio ‘ou no inverno, com bom ou man tempo, o rei do bosque tinha de manter sua solitéria vigilancia ©, toda vez que se arriscava a um cochilo agitado, fazia-o com perigo de vida A estranha regra desse sacerdécio nao tem paralelo na Antiguidade classica, que nfo a explica, Para compreendé-la teremos de nos 22 aventurar mais longe. Ninguém negaré, prova- velmente, que esse costume tem o sabor de uma idade bérbara e, tendo sobrevivido até os tempos imperiais, contrasta, por seu notével isolamento, com a refinada sociedade italiana da €poca, como uma rocha primeva que se exguesse num terreno perfeitamente aplainado, E a propria crueza e barbirie do costume que nos permite a esperanca de encontrar a sua explicacao. Pesquisas recentes sobre a histéria remota do homem revelaram uma similaridade essencial subjacente is muitas diferencas sue perficiais na forma pela qual a mente humana claborou a sua primeira ¢ imperfeita filosofia de vida. Assim sendo, se pudermos mostrar que um costume bérbaro, como 0 do culto de Nemi, existiu em outros lugares; se pudermos perceber os motives que levaram a sua insttui- G40; se pudermos provar que esses motivos existiram de maneira geral, talver. universale mente, na sociedade humana, produzindo, em circunstancias variadas, numerosas institu especificamente diferentes, mas genericamente semelhantes; se pudermos mostrar, finalmente, gue esses mesmos motivos, com algumas das instituig6es doles derivadas, existiram efetiva- mente na Antiguidade clissica, entio podere- mos deduzir, com justeza, que numa época mais remota deram origem a regra de acesso ao sacerdécio de Nemi. Essa deducio, a falta de evidéncias diretas de como esse sacerdécio nna verdade apareceu, jamais podera ter pre- tensdes & comprovacao, Ser, porém, mais ou menos provivel dependendo das _proporedes om que satisfaca as condigSes que indicamos. © objetivo deste livro é atendendo a essas condigées, oferecer uma explicagio provavel do sacerdécio de Nemi. Comecamos expondo os poucos fatos € len- das que chegaram até nés relacionados com 0 assunto. De acordo com um dos relatos exis- tentes, 0 culto de Diana em Nemi foi instituido por Orestes, que, depois de matar Toante, rei do Quersoneso Téurico (a Criméia), fugiu com sua irma Ifigénia para a Itélia, levando a ima- gem de Diana Taurica escondida num feixe de gravetos. Quando morreu, seus ossos foram le- vados de Aricia para Roma e enterrados diante do Templo de Saturno, no monte Capitétio, 20 ‘ s va de até wel ana se gue sua, ria ade ana fia rar de nos tui- vos sale te ate, va ere oca alta mre ou Bes 105, sas ivel Diana, deusa da natureza Cimurata, ramathetes de acruda em prata, com simbolos migicos, foram considerados como um remanescente do culto de Diana. Na Ilia do seculo XIX, ainda eram usados como talisma para atzair bon sorte e prosperidade. Hé dois mil anos, bbjetos semelhantes eram oferecidos a Diana. Na fgema romana, Diana segura um ramo e uma vasiha ‘com frutas, Ao seu lado, 4 cotea Sagrada. No ALTO. Cimurata, século XIX, Pitt Rivers Museum, Universidade de Oxford. acta: Gema, Antikenruseum, Bildarchiv; Preussischer Kulturbesitz, Berlim Ocidental, Foto: Isolde Lucker. Jado do Templo da Concérdia, © ritual san- grento, atribuido pela lenda a Diana Téurica, € conhecido dos leitores dos cléssicos: todo estrangeiro que desembarcava nas praias da ‘Téurida era sacrificado em seu altar. Transpor- tado para a Italia, porém, 0 rito assumiu for- ma mais moderada, Dentro do santuério de Nemi crescia uma certa érvore da qual nao se podia cortar nenhum galho. S6 a um escravo fugido era permitido arrancar um de seus ra- ‘mos, se 0 pudesse fazer. O éxito nessa tenta- tiva dava-the o direito de lutar com o sacer- dote em combate singular, © se 0 vencesse, passaria a reinar em seu lugar, com 0 titulo de rei do bosque (rex nemorensis). Segundo a ‘opiniso geral dos antigos, o ramo fatidico era aquele ramo de ouro que, por instrades da Sibila, Enéias atrancou antes de iniciar sua perigosa jornada ao mundo dos mortos.* Di- via-se que a fuga do escravo representava @ fuga de Orestes; seu combate com 0 sacerdote era uma reminiscéncia dos sacrificios humanos outrora oferecidos a Diana Téurica. Essa 1e- Bra de sucesso pela espada foi observada até ‘0s tempos imperiais, pois, entre suas outras Joucuras, Caligula, achando que o sacerdote de Nemi ja vinha ocupando o cargo hi muito tempo, contratou um rufio mais forte para mati-lo; ¢ um viajante grego que visitou a Itilia na época dos Antoninos observa que @ dignidade sacerdotal ainda era o prémio da vitoria em combate singular Hé ainda outros tragos marcantes que podem ser identificados no culto de Diana em Nem, Evidencia-se, pelas oferendas votivas encontra- das no local, que ela era considerada especial- mente como uma cagadora e, cm seguida, como propiciadora de fertilidade para homens ¢ mulheres, proporcionando a estas iitimas um parto facil. Também o fogo parece ter desem- penhado um papel destacado no seu ritual, pois durante sua festa anual, realizada @ 13 de agos- to, na época mais quente do ano, em seu bos- que luziam iniimeras tochas, cujo brilho aver- melhado se refletia no ago. E por todo 0 terri- t6rio da Itélia essa data era comemorada com Fitos sagrados em cada lar. Estatuetas de bron- ze encontradas no local do templo representa 23 a propria deusa com uma tocha na mao direita erguida, © as mulheres a cujas preces dera ouvi- dos vinham coroadas de grinaldas e condu- TO trecho de Virgilio a que Frazer se rejere, e a0 ‘qual volta repetidamente no decorrer deste Iivko, en Contravse no canto sexto da Enel. Respondendo aa fapelo de Enéias para que the ensine 0 caminho ¢ abra 4 portas sagradas do inferno, a Sibila diz (133-148): ‘Quod si tantus amor ment, si tanta eupido est / bis Seysios innare lacus, bis nigra uidere Tartara, et insano tuuat indulgere labor, ? accipe quae peragenda pris. Later arbore opaca /’ aureus ef flit et lento Iilmive ramus, 7" lunoniinfernae dicius. sacer: hune tegit-ommis /lucus et obscaris elaudunt conuallibus lumbrae. 7‘Sed rom ante datar telluris operta subire ? uricomos quam qui decerpserit arbore fetus. / Hoc Si pulelra suo ferri Proserpina mans institut Primo auolso mon’ deficit alter 7 aureus, ef similis frondescit uirga metallo. / Ergo alte westiga oculis fr rive repertums } carge mana; namgue ipse facilsque Sequetur, / si fata wocant; alter non ulribus uli 7 tuincere ‘nec duro poteris conuellee ferro". ('Se tens 10 grande deseo, tal avidex de atravessar duas vetes ‘as ondas do Estige, de duas veees ver o sombrio Tar- taro, e se te agrada mpreender essa tarefa insensato, ‘uve primeira o gue tens de fazer. Um ramo, cule fle= Xivel haste ¢ at jothas s0 de ouro, ocultase sob wma Grvore copada consagrada a Juno infernal. Todo 0 orque a protege, e 0 vale escro a envolve com sta somtbra. Mas é tmpossivel peneirar ar profundezns ita terra antes de ter arrancado da drvore’o rama de fox Ihagem dourada. Eo presente que Prosérpina exige para a sua beleza. Atrancado 9 ram, outro nace, de ‘ura camo 0 primelro, ¢ ewia haste se cobre das mes- ‘mas fothas de metal precioso. Assim, levanta os olhos busca. Quando 0 rverer encontrado, colhe-o com a Indo, segundo 0 ritor ele se soltard facilmente por si Imesino, se 0 destino te chama; se ndo, ndo.haverd orga que o possa dobrar, nem ferro que 0 possa a= vancar"| No caminko, Enéias encontra duas pombas que the servem de guia até a drvore do ramo de on ro: “Inde ui uenere ad fauces graue olentis Auer, P"tollunt se celeres liquidumque per aera lapsae./ sedibus optatis geminae super arbore sidunt, / discolor nde aurt per ramos aura refulsit. / Quale sole sits brumali frigore uiseum / fronde uirere nows quod non sua seminat arbos, / et croceo fetu teetis cirewmdare fruncos, /talis erat species auri frondentis opaca Mee, sie len! crepitabat brattea uento. / Corie ‘Aeneas extemplo auidusgue refringit / cunctantem, et iatis portat sub tecta Sibyllae”. (201-211) ("Chegadas 46 gargantas pestlentas do Averno, elas se elevart ‘com tm bater de asat ¢, deslizando mo ar limpido, Dousam ambas no ugar sonhado, na drvore onde o Feflexo dourado Dritha e contrasta entre as folhagens. Como enire as Brumas do inverno, no Jando do bos. que, 0 visco, estranho ds drvores que 0 abrigam, re hhasce com folhas novar ¢ envolverthe o¢ trancot re dondas com seus fratos cor de agafrdo, a folhagem dowrada surge na azinheira cerrada e suas fothas bri- Thanwes Balangam ao vento ligeiro. Enéias imediata: ‘mente pusaco para si e arranca avidamente 0 ramo que ewsta a desprenderse, eo leva d morada da SibI- TaN. do EY 24 Zindo tochas acesas até 0 santuério em cum- primento de suas promessas. Um anénimo dedicou a deusa uma chama perene, numa pequena ermida em Nemi, pela seguranca do Imperador Ciéudio e de sua familia. As lanter- nas de terracota encontradas no bosque talvez tenham servido a fins semethantes, para pes- soas mais modestas. Se assim foi, a analogia com 0 costume catélico de acender velas bentas nas igrejas seré Sbvia. Além disso, o titulo de ‘Vesta, usado por Diana em Nemi, indica clara- mente 2 manutengio de um fogo sagrado per- pétuo em seu santudrio. Em sua festa anual, comemorada em toda a Itilia a 13 de agosto, os ces de caga eram coroados.e os animais selvagens nao eram, mo- lestados; os jovens se submetiam a ceriménias puriticadoras em sua honra. Bebia-se vinho Comiam-se carne de cabrito, bolos servidos bem quentes em pratos de fothas € macas ainda pen- dentes dos ramos. A Igreja Catélica parece ter Diana homenageada na vindima seins. Cabeea coroada de folhas e eachos de uss, ‘fereraa votiva romana encontrada em Nomi. Castle Museum, Nottingham. Foto publicada originalmente em G. H. Wallis, Classical antiquities from Nemi. 1895. 40 LADO. Criangas com tochas ¢ oferendss de vas diante de uma imagem de Diana. Mural de Ostia, séeulo T, Vaticano, Roma. Foto: Anderson A oda nias jem en ter santificado essa grande festa da deusa virgem, transformando-a de maneira engenhosa na fes- ta catélica da Assungio de Nossa Senhora, a 15 de agosto, A diferenca de dois dias entre as datas no € um argumento decisivo contra sua identidade, pois um deslocamento seme- Ihante de dois dias ocorre no caso da festa de Sio Jorge, a 23 de abril, que & provavelmente jdéntica 3 antiga festa romana das Parflias, comemorada a 21 de abril. Sobre as razdes que Tevaram a essa transformacio da festa da vir gem Diana na festa da Virgem Maria hi luzes num trecho do texto sirfaco intitulado A parti da de Nossa Senhora Maria deste mundo, © que diz. 0 seguinte: “E os apdstolos ordenaram também que houvesse uma comemoracio da Bem-Aventurada a 13 de ab [isto € de agos- to}, porque as vinhas trazem cachos [de uvas] @ porque as arvores dao frutos e para que as nuvens de granizo, com as pedras do 6dio, nao possam vir, © as drvores nio sejam quebradas, € seus frutos e as vinhas com seus cachos”. Diz-se resse trecho, claramente, que a festa da Assungio da Virgem foi fixade a 13 ou 15 de agosto para proteger as vinhas que amadure- ciam ¢ outros frutos. Até hoje, na Gréeia, a 15 de agosto, as uvas maduras e outras frutas si0 levadas &s igrejas para serem abencoadas pelos padres. Ora, ouvimos falar de vinhas e planta ges dedicadas @ Artemis, de frutos a ela ofe- recidos, e de seu templo em meio a um pomar: Podemos conjeturar, portanto, que sua irma italiana Diana também era reverenciada como protetora das vinhas e das drvores frutiferas ¢ que, 2 13 de agosto, os donos de vinhedos & pomares Ihe prestavam homenagem em Nem, juntamente com outros membros da. comuni- dade. Diana no reinava sozinha em seu bosque de Nemi. Duas divindades menores partilha- vam do seu santuario silvestre. Uma delas era Egéria, ninfa das fguas cristalinas que, naseen- do da rocha basilica, caiam em graciosas cas- ‘eatas até 0 Tago, no lugar chamado Le Mole, porque ali foram instalados os moinhos da aldeia moderna de Nemi. As mulheres gravidas geralmente ofereciam sacrificios a Exéria por acreditarem que ela, como Diana, Ihes poderia proporcionar um bom parto. Dizia a tradicio que a ninfa havia sido esposa ou amante do 25 sdbio Rei Numa, que a ela se unira no recesso do bosque sagrado, e que as leis que ele deu aos romanos haviam sido inspiradas pela co- munhio com a divindade, Plutarco compara essa lenda com outras, dos amores de deusas por mortais, como © amor de Cibele e da Lua pelos belos jovens Atis e Endimiio. Podemos supor que a fonte que desaguava no lago de Nemi cra a verdadeira Egéria original e que, quando os primeiros habitantes desceram dos montes Albanos para as margens do Tibre, Jevaram com eles a ninfa e deram-Ihe uma nova morada no bosque, fora dos muros. As ruinas dos banhos descobertas perto do tem- plo, juntamente com muitos modelos de virias partes do corpo humano em terracota, sugerem que as dguas de Egéria eram usadas para curar enfermos, que teriam expressado suas espe- rancas, ou testemunhado sua gratidio, ofere- endo reprodugdes dos membros doentes & deusa, de acordo com um costume ainda obser vado em muitas partes da Europa, A fonte parece conservar, até hoje, as suas proprieda- des medicinais, A outra divindade menor de Nemi era Vir- bio. A lenda afirma que Virbio era o jovem her6i grego Hipélito, casto e belo, que apren- dera a arte da caca com 0 centauro Quiron passava seus dias na floresta cagando animais selvagens, tendo a virgem cacadora Artemis (a verso grega de Diana) como tiniea compa- nhia. Orgulhoso dessa sociedade divina, des- prezou o amor das mulheres, e foi 0 que © perdeu. Ferida pela sua indiferenca, Afrodite inspirou a Fedra, madrasta de Hipélite, um incontrolivel amor pelo entendo, Quando Hi- polito rejeitou as criminosas pretensées amoro- sas de Fedra, esta levantou contra ele falsas acusagdes junto a Teseu, pai de Hipétito e seu marido. A calinia surtiu efeito, ¢ Teseu pediu a0 seu deus, Poséidon, que vingasse a suposta afronta, Assim, quando Hipélito passava de carro as margens do golfo Sardnico, 0 deus do mar fez sait das ondas um touro feroz ¢ langou- © contra 0 jovem. Os cavalos, aterrorizados, empinaram, lancando Hip6lito ao chio e piso- teando-o até a morte, Mas Diana, pelo amor que votava a Hipélito, persuadiu 0 médico Es- culdpio a trazer de novo 3 vida 0 seu jovem e 26 belo cagador, levando-o em seguida para lon- ge, para as valeiras de Nemi, onde 0 confiow ninfa Egéria, para que ele ali vivesse, desco- nhecido e solitério, sob o nome de Virbio, nas profundezas da floresta italiana. Ali reinow Hipélito, onde dedicou um templo a Diana. Vitbio era adorado como deus néo sé em Ne- mi, mas também em outros lugares: havia na Campania um sacerdote especialmente dedica- do ao seu servigo. Os cavalos estavam exclul dos do bosque e do santudrio ariciano porque haviam matado Hipélito. Era proibido tocar sua imagem, Houve quem 0 considerasse como © sol. “Mas a verdade”, diz Sérvio, “é que le € uma divindade ligada a Diana, como Atis esté ligado & mae dos deuses, Erecteu a Mi- nerva e Adénis a Vénus.” Nao seré necessiria uma argumentacio muito cerrada para nos convencer de que as Tendas contadas para explicar 0 culto de Diana em Nemi nada tém de histéricas. A incon- gruéncia desses mitos de Nemi é evidente, jé que a fundacao do culto é atribufda ora a Ores- tes ora a Hipélito conforme se queira explicar este ov aquele aspecto do ritual. O verdadeiro valor desses relatos esté em que servem para ilustrar a natureza do culto, fornecendo um elemento de comparacdo, e sobretudo para, in- diretamente, dar testemunho da sua venerdvel ‘dade, mostrando que a sua verdadeira origem perdeu-se nas brumas da Antiguidade lendaria, Ante ipétito As lendas aricianas de Orestes e Hipélito, em- bora nenhum valor possuam como histéria, tém uma certa importincia por nos ajudar a melhor compreender 0 culto de Nemi, comparando-o com os rituals € os mitos de outros santuarios. Por que 0 autor dessas Iendas recorreu a Ores- tes e a Hipélito para explicar Vitbio e o rei do bosque? Em relaco ao primeito, a resposta é Sbvia: Orestes e a imagem da Diana Téurica, que s6 se apaziguava com sangue humano, fo- ram lembrados para tornar inteligivel a regra assassina da sucesso, ao sacerdécio ariciano. Com relagao @ Hipolito, porém, 0 caso ndo & tao simples. © modo como morreu sugere uma evidente razio para a exchusio dos cavalos do EE bosque; mas isso, em si, dificitmente poderia explicar a identificagdo. Devemos ir mais fun- do, examinando 0 culto e a lenda ou mito de Hip6lito Hip6lito tinka um santudrio famoso em Tre- zena, sua localidade de origem, situada beira de uma bela baja quase separada do mar. E meio is éguas azuis ¢ trangiilas da baia de Trezena, ¢ abrigando-a do mar aberto, eleva-se a ilha sagrada de Poséidon, cujo ponto culmi- nante & velado pelo verde sombrio dos pinhei- ros, Dentro do santuério de Hipélito havia um templo com uma imagem antiga. O servigo es- tava a cargo de um sacerdote vitalicio: realiza- vam-se, todos os anos, festas em sua honra, € sua morte prematura era chorada anualmente, com cantos plangentes e melancélicos, por donzelas que ofereciam mechas dos prprios cabelos ao templo antes de se casarem, Existia um témulo de Hipélito em Trezena, que nao era mostrado a ninguém. J4 se disse, com certa plausibilidade, que no belo Hipélito, amado de Artemis, desaparecido em plena juventude & anualmente chorado por donzelas, temos um daqueles amantes mortais de uma deusa 120 freqiientes na religiao antiga e dos quais Adénis € 0 mais conhecido. Alguns pretendem que a rivalidade entre Artemis e Fedra pelo amor de Hip6lito reproduz, sob diferentes nomes, a ri- validade entre Afrodite e Prosérpina pelo amor de Adénis, pois Fedra é apenas outra versio de Afrodite, Sem dtivida, no Hipdlito, de Euri- pides, a tragédia da morte do hersi é atribufda diretamente a ira de Afrodite e ao desprezo de Hipélito pelo seu poder, sendo Fedra ape- nas um instrumento da deusa. Além disso, no local do santuario de Hipélito em Trezena havia um templo de Afrodite, a que espreita, assim chamado, a0 que se diz, porque desse lugar a apaixonada Fedra costumava observar Hipélito quando este praticava seus esportes masculinos. E claro que © nome seria ainda mais adequado se a observadora tivesse sido a propria Afrodite. Ao lado desse templo de Afrodite havia um pé de murta de folhas per- furadas, que a infeliz Fedra, em seu sofrimento de amor, havia atormentado com seu punhal, Ora, a murta, com suas fothas brithantes ¢ sem- pre verdes, suas flores vermelhas e brancas ¢ seu intenso perfume, era a arvore da prépria Afrodite, ¢ a lenda a associava 20 nascimento de Addnis. Também em Atenas, Hipslito era estreitamente ligado a Afrodite, pois no lado sul da Acropole, voltado para Trezena, via-se uum sepulero em sua meméria, ao lado do qual estava um templo de Afrodite que teria sido fundado por Fedra e tinka 0 nome de templo de Afrodite ¢ Hipdlito, A conjuneao, tanto em Trezena como em Atenas, do timulo de Hips- lito com um templo da deusa do amor & sign: ficativa Se essa verso das relagdes entre Hipolito Artemis ¢ Afrodite € correta, & notavel 0 fato dde que ambas as divinas enamoradas de Hi- polito parecam estar associadas, em Trezena, a carvalhos. Afrodite era ali cultuada sob o nome de Aseraia, que significa “a do carvalho sem frutos”; e Hipdlito teria encontrado a mor- te nas proximidades de um santudrio de Arte- mis Saroniana, isto 6, Artemis do carvalho 0co, pois ali se podia ver a oliveira silvestre em que as rédeas de seu carro se haviam embaracado, provocando com isso a sua queda Outro aspeeto do mito de Hipslito que me- rece atencao & a presenca constante de cava- Jos, O nome Hip6lito significa “liberto pelo cavalo” ou “libertador de cavalos”. Ble consa- grou vinte cavalos a Esculépio no Epidauro, foi morto por cavalos, a Fonte do Cavalo cor- ria provavelmente no muito distante do tem- plo por ele construido para Artemis Loba, ¢ 0s cavalos eram sagrados para 0 seu deus, Po- séidon, que possuia um antigo santuério na ilha coberta de bosques da bafa de Trezena, cujas ruinas ainda podem ser vistas entre os pinhei- ros. Finalmente, afirma-se que 0 santuério de Hipolito em Trezena teria sido fundado por Diomedes, cuja ligagao mitiea com cavalos e lobos € comprovada. Assim, Hipélito estava associado 20 cavalo de muitas maneiras, ¢ tal associagio pode ter sido usada para explicar outras caracteristicas do ritual ariciano, além da simples exclusio desse animal do bosque sagrado, (© costume observado pelas jovens de Tre- ena, que ofereciam trangas de seus cabelos a Hipélito antes do casamento, coloca-o em 1e- lagéo com o matrimdnio, © que, & primeira 27

You might also like