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A minha explicagio & que ha luta de classes na cidade. Ou se remunera os capitais (...) ou se investe na reprodugao do tra- balhador: sate, educagao, transporte, moradia, saneamento.. O problema nao se resolve com a distribuigéo de renda ou do salario. Porque mais salério nado compra o transporte coletivo; nao compra uma boa localizagdo na cidade, porque isso fica mais caro. Aumento salarial é absorvido pelo custo da cidade e isso sé se resolve com politicas publicas. Reconhego que houve distribuigio de renda para comprar carros, motos, eletrodomésticos, uma televiséo melhor. condeno isso, pois uma maquina de lavar roupa, uma geladeira é importante... mas ninguém vive sé dentro de casa: vive na cidade. vNvaan : Este livro, composto por trés artigos e uma entrevis a, € mar cado por uma perspectiva clara - visivel também em toda trajetéria politica e tedrica da autora - a de que com o desenvolvimento do capitalismo gesta-se uma “crise urbana”, cuja saida sé pode ser pensada e realizada a partir da luta dos trabalhadores. O principal objetivo de Para entender a crise urbana é contri- buir na erradicagéo do “anal- fabetismo urbanistico”, isto 6, trazer reflexdes tedricas e politi- cas que auxiliem a compreensio da légica de funcionamento e de organizagiio do espaco urbano a partir da perspectiva da luta de classes. Esta se da entre o capital - imobilidrio, industrial e finan- ceiro - que conta com o apoio do Estado e da midia, e o trabalho cuja forca reside na organizacdo e na luta popular. Apesar de a crise urbana ser algo proprio do capitalismo, en- quanto sistema, as caracteristicas histéricas brasileiras - um_ pais da periferia do capitalismo com ampla tradigdo escravocrata - sio consideradas como — fundamen- tais para a compreensio dessa crise tal como ela se apresenta aqui. Entre outras, _mencione- -se a centralidade da questéo da terra - tanto no campo quanto na cidade -, um dos principais fatores de acumulagao do capital PARA ENTENDER A CRISE URBANA ERMINIA MARICATO PARA ENTENDER A CRISE URBANA la edigao EDITORA EXPRESSAO POPULAR Sao Paulo * 2015 Copyright 2015 © Editora Expressao Popular Revisio: Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida Edigdo: Rafael Borges Pereira Fotos: p. 7: Midia Ninja, p. 15: Marcelo Camargo/A Br, p. 55: Henrique Yasuda, p. 65: Eduardo Jorge Canella, p. 101: Felipe Canova Foto da capa: Midia Ninja Projeto grifico, capa e diagramagao: ZAP Design Dados Internacionais de Catal Maricato. Erminia M333p Para entender a crise urbana. / Erminia Maricato.— 1.ed.—Sao Paulo ; Expresso Popular, 2015. 112p. il. Indexado em GeoDados - hittp://www,ceodados.uem.br. ISBN 978-85-7743-258-5 | 1. Crise urbana. 2. Lutas de classe - Brasil. 3. Questéo urbana - Brasil. 4. Movimentos sociais - Brasil I. Titulo. cb 316.42 Catalogagao na Publicacao: Eliane M.S. Jovanovich CRB 9/1250 Todos os direitos reservados Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorizagao da editora. 1a edigdo: maio de 2015 Sa reimpressio: outubro de 2019 EDITORA EXPRESSAO POPULAR Rua Aboli¢ao, 201 - Bela Vista CEP 01319-010 - Sao Paulo - SP Tel: (11) 3112-0941 / 3105-9500 livraria@expressaopopular.com.br ‘www expressaopopular.com.br fb; ed.expressaopopular ig: editoraexpressaopopular SUMARIO APRESENTAGAO.. CIDADES E LUTA DE CLASSES NO BRASIL Introduga Cidade ¢ conflitos: a abordagem marxista... Cidade na periferia do capitalismo: a urbanizagdo dos baixos salério: Nas décadas perdidas: luta social pela cidade democratica. Cidades na conjuntura atual: a retomada do investimento publico e a surpreendente subordinagao do espago urbano ao capital. O império do automével. Transporte coletivo em ruinas.......... 42 Quando novissimos personagens entram em cena.. TERROR IMOBILIARIO OU A EXPULSAO DOS POBRES DO CENTRO DE SAO PAULO.. GLOBALIZAGAO E POLITICA URBANA NA PERIFERIA DO CAPITALISMO..... Globalizagio e poder.. O impacto da globalizagao nos paises periféricos... O legado do patrimonialismo... Os paradoxos das cidades periféricas. Planejamento urbano ¢ globalizagio... Do “Consenso de Washington” ao “Plano Estratégico” Que fazer?. MOVIMENTOS E QUESTAO URBANA NO BRASIL. ‘Manifestagio em Belo Horizonte (MG) APRESENTAGAO Em qualquer pais do mundo onde haja uma comunidade com consciéneia social, & frequente o MST ser reverenciado como 0 movimento social mais importante do planeta. A persisténcia na luta pela Reforma Agraria e a consciéncia de ; a recusa em fazer acordos que apenas a luta pode levar a el: que implicam a apropriagdo de cargos piblicos; a generosidade que resultou na entrega de tantas vidas para ver a utopia social realizada; a sensibilidade que o levou a incluir na agenda o alimento saudvel, em oposig¢do aos agrotéxicos produzidos pelas poderosas corporagées transnacionais; o respeito a natu- reza e em especial a terra, que o levou a endossar a proposta de agroecologia; a radical relagdo entre pratica e formacio teérica, que levou o movimento a fazer convénios com 60 universida- des brasileiras, além de fundar a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF); enfim, nao faltam motivos para justificar a admiragéio que o MST desperta internacionalmente. Por esse motivo, nao vacilei quando a Editora Expresséio Popular me convidou para langarmos um livro sobre a questo urbana no Brasil. Nao se pedia nada inédito, mas algo que buscasse preencher, na editora, uma lacuna com um tema tio importante. Demorei um ano para atender 4 minha promessa © entregar este pequeno trabalho. De um lado ocuparam-me os muitos compromissos derivados dos desdobramentos das manifestagdes de junho de 2013, que se estenderam por todo o ano de 2014. De outro, eu me detive em refletir 0 que iria propor para leitura e debate desses militantes, cujo tempo é tio precioso e cuja tarefa é tao extensa. Meu senso pratico exigia que eu fosse bem objetiva, direta e, acima de tudo, pedagégica, sem perder a dimensao tedrica. Infelizmente nao tenho o dom da psicografia, pois se tivesse poderia pedir a ajuda de Paulo Freire, nosso educador maior. Talvez 0 proprio Joao Pedro Stedile — uma das grandes liderangas brasileiras, ainda viva, felizmente - pudesse me ajudar se ndo fosse tio ocupado com tarefas mais impor- tantes. Mas solitéria, apés um certo tempo, percebi que teria de dar conta do recado com minhas parcas ferramentas. Essa tarefa me obrigou a um esforgo de meméria para relembrar os muitos anos que passei nas periferias da metrépole paulistana, como ativista de movimentos sociais, nos anos 1970 e comeco dos anos 1980. A luta pela Reforma Urbana hoje ainda implica, como entao, erradicar 0 analfabetismo urbanistico. Selecionei 3 textos e uma entrevista. Um deles é curto e tem formato jornalistico. Os outros dois sio um pouco mais desen- volvidos e, embora tratem de fatos da conjuntura e da historia urbana recente, apoiam-se em bibliografia, além de manter forre apoio também na vivéncia empirica. Estes pretendem explicar o aprofundamento da crise, tirando partido de trabalhos tedricos sobre a questo urbana. Finalmente, uma entrevista dada a Revista Alai - América Latina, na cidade de Quito, sobre a condigao urbana e os mo- vimentos sociais recentes no Brasil fecham o livro. 10 © primeiro artigo, “Cidades e luta de classes no Brasil”, esté organizado em trés tempos: a) apresenta uma sintese dos conceitos. basicos analiticos da cidade capitalista, vista como mercadoria e como produto social; b) trata da especificidade da cidade no capitalismo periférico, ainda que num pais conside- rado “emergente” como o Brasil; c) para, em seguida, remeter a historia recente da politica urbana no Brasil, que tem inicio com o fim do periodo ditatorial (1964-1985). O relato ¢ anélise mostram que essa histéria néo & banal. Ela foi marcada pela constituigdo de um forte movimento social nacional denomi- nado Reforma Urbana; conquistou um novo aparato legal ¢ institucional federal ligado as cidades; e incluiu exemplos de governos locais inovadores, que ficaram conhecidos no mundo todo. E 0 caso do “orgamento participativo”, festejado inter nacionalmente. © declinio dessa politica urbana no Brasil ainda requer maior desenvolvimento analitico, mas sem divida esti relacio- nado ao seguinte paradoxo: as priticas exemplares de governos locais “democraticos e populares” desenvolveram-se durante 0 periodo das décadas perdidas, isto é durante os anos de ajuste - 1980 e 1990. Com a volta dos investimentos federais em_politicas fiscal ¢ recuo dos investimentos em politicas ptiblicas urbanas - Programa de Aceleragio do Crescimento (PAC), Minha Casa, Minha Vida (MCMV)—alguns capitais (liga- dos ao ambiente construido) tomam o comando das cidades, concomitantemente ao enfraquecimento dos movimentos que criaram a agenda da Reforma Urbana. O texto atual deste primeiro artigo é uma versao resultante de varios trabalhos publicados em diversos livros e revistas. Podemos dizer que sua génese esti no livro de minha autoria O impasse da politica urbana no Brasil, cuja primeira edigéo é Ml de 2011. A politica urbana parecia ter desaparecido da agenda politica nacional. Quando estava presente, ela se restringia ao investimento em obras que, frequentemente, contrariavam 0 desenvolvimento urbano socialmente justo e ambientalmente da cr equilibrado . Novas manifestagé se urbana que se apro- fundava inspiraram novas redagdes sobre o “impasse ”, ¢ a mais recente delas se deu por emergéncia das Jornadas de Junho de 2013, quando novissimos personagens entraram em cena, para fazer referéncia ao livro de Eder Sader, Quando novos persona - gens entraram em cena, langado em 1988. Com novas formas de ago ,sc compararmos com os movimentos sociais_urbanos descritos por Eder Sader , os novis mos personagens trazem a questio urbana de volta a agenda politica nacional ,a partir da dificil, cara e irracional (social, econdmica e ambientalmente ) mobilidade (ou imobilidade) urbana vigente. ico, foi escrito sob O segundo texto, de formato jornali © calor dos acontecimentos e publicado no boletim eletrénico Carta Maior em 25 de janeiro de 2012. Trata da luta dos mo- vimentos sociais pela moradia no centro de Sao Paulo: “Terror imobilidrio ou a expulsio dos pobres do centro de So Paulo”. A reforma do financiamento imobilidrio, que tem inicio na década de 1990, logrou, finalmente, aquecer o mercado imobilidrio com o Programa Minha Casa Minha Vida, langado em 2009. Passamos a constatar eventos como despejos violentos e¢ incén- dios em favelas, impensdveis uma década e meia atrés, quando os movimentos ligados 4 Reforma Urbana ainda representavam uma forga social significativa e as cidades viviam um periodo de “vacas magras” em relagdo ao investimento federal em politicas sociais. Capital imobilidrio e movimentos de moradia aliados a pequenos comerciantes disputam o centro antigo da cidade, um patriménio construido de importincia incomensurivel - do 12 ponto de vista do valor de use, mas marcado pela ideologia da “deterioragdio” que exige “reforma”. O Estado, representado pelo governador Geraldo Alckmin e pelos prefeitos José Serra e Gilberto Kassab nao deixaram a menor duvida sobre 0 lado que apoiaram nas politicas para o centro da cidade, muito cobigado pelo capital imobilidrio. Para completar os instrumentos analiticos necessdrios para entender a tragédia urbana entre nds, o terceiro texto versa sobre um pano de fundo que marcou a segunda metade do século XX e esté mais presente do que nunca no século XXI: Globalizagao e politica urbana na periferia do capitalismo . A queda do Welfare State e ascensio do neoliberalismo tiveram consequéncias muito conhecidas: destegulamentagées, _privatizagdes, _precariedade nas relagées de trabalho, ampliagdo da concentragéo de capitais, ampliacio dos mercados, ampliagio da desigualdade, hege- monia do capital financeiro, enfraquecimento dos sindicatos e partidos de esquerda, mudanga na geopolitica mundial, entre outras. As cidades na globalizagéo também se tornaram obje- tos de estudos especificos, ja que a reestruturagdo produtiva tem forte impacto sobre © territério, e os ajustes impostos pelo idedrio neoliberal enfraqueceram os investimentos em politicas sociais; entre elas figuram as politicas urbanas_ estruturadoras como: transporte, habitagdo e saneamento. Também nesse texto, a andlise se ocupa da especificidade do urbano no capitalismo periférico. A entrevista dada a Revista Alai -América Latina, “Movi- mentos e questo urbana no Brasil”, trata das chamadas “jor- nadas de junho de 2013”. As massivas manifestagdes urbanas surpreenderam especial mente em funcgdo do prestigio dos gover- nos petistas no exterior. Nessa entrevista, defendo a opinido de que as condigdes urbanas de vida constituiram uma causa muito 1B importante para os acontecimentos, pois distribuigéo de renda n&o resolve problemas urbanos como habitagéo ou transporte coletivo. As referéncias aos novissimos personagens tém sido acompanhadas, nos meus textos ¢ falas, por um certo otimismo, como mostra a entrevista. A participagdo em encontros com jovens dos movimentos emergentes, além dos tradicionais MST e Via Campesina, alimentam a esperanga da renovago das forgas de esquerda que foram engolidas pelo espago institucio- nal. Mas a formagio desses jovens exige tempo de maturagdo e a conjuntura brasileira, alimentada pela crise econémica internacional, se acirra no momento em que escrevemos essas linhas. A elite brasileira, mais do que nunca representada pela grande midia, luta pelo impeachment da presidente Dilma, em que pese as concessées dadas a ela, por meio de representantes das forgas conservadoras que compéem seu governo. O presente é desafiador e, dada a dificuldade de escrever sobre as perspectivas, vamos finalizar essa apresentagdo com uma frase de Luiz Gonzaga Belluzzo, que relembra Marx: “Este € 0 alto prego que o presente agrilhoado ao p cobra do futuro”*. Erminia Maricato Sao Paulo, 9 de margo de 2015 * BELLUZZO, L. G. “A Constituinte ¢ os donos do Brasil”. Valor Econémico. Sao Paulo, 03 out. 2013. 14 Rs iat Manifestagio na Avenida Paulista (SP) CIDADES E LUTA DE CLASSES NO BRASIL* © urbano da conjuntura do inicio do século XXI Com muita frequéncia, (...) 0 estudo da urbanizagio se separa do estudo da mudanga social e do desenvolvimento econémico, como seo estudo da urba- nizago pudesse, de algum modo, ser considerado um assunto secundario ou produto secundério passivo em relagdo as mudangas sociais mais importantes e fundamentais. Harvey, 2005, p. 166 Introdugao Nunca é demais lembrar, como ja fizeram numerosos au- tores, que a existéncia das cidades precede o capitalismo. No entanto, com ele as cidades mudam. E mudam a tal ponto que & impossivel pens-lo sem elas. Especificidades no processo de urbanizagdo acompanham as diferentes fases do capitalismo colonial-industrial ou global financeiro nos paises centrais ou periféricos. Em algum momento da primeira década do século XXI o mundo passou a ser predominantemente urbano e essa crescente concentragéo de populagdo nas cidades traz novas caracteristicas para as sociedades e para a humanidade. Um * Este texto resultou da edigio de varios trabalhos publicados, mas especialmente do artigo de mesmo nome que integra a coleténea organizada pelas Fundagdo Perseu Abramo e Fundagdo Friedrich Ebert (orgs.). Classes? Que classes? So Paulo: Editora da Fundagio Perseu Abramo, 2013. 7 bom exemplo esté na concentragio de pobreza em niimeros 2006). Desde 0 periodo da revolugio industrial, quando os efeitos inéditos (Davi de aglomeragdo nas cidades ofereceram condigdes indispensaveis para © processo de acumulagio de base fabril até as chamadas “cidades globais”, que concentram poder internacional, 0 ¢s- pago urbano e, mais recentemente, metropolitano e regional, constitui forga produtiva fundamental, além de participar do processo de dominagaio hegeménica. Os capitais, em cada momento histérico, buscam moldar as cidades aos seus interesses, ou melhor, aos interesses de um con- junto articulado de diferentes forgas que podem compor uma alianga. Mas esse modelo de paisagem, ou ambiente construido, no resulta sem contradigées (Harvey, 1982). O que pode ser interessante aos promotores imobiliérios © proprictérios de terra também pode contrariar os interesses dos capitais industriais, apenas para lembrar um exemplo importante que marcou a historia das cidades nos paises centrais do capitalismo. O acir- ramento da luta social por melhores salarios, ou melhores condi- gdes de trabalho, ou ainda melhores condigdes de vida (moradia, saide, transporte etc.), aprofundam essas_contradigdes*. Um aumento salarial pode ser engolido pelo aumento da tarifa de transportes ou do preco dos aluguéis das moradias. Durante os anos do Welfare State (Estado providéncia ) os trabalhadores con- quistaram (como resultado de um processo de lutas) a produgao om massa de moradias. Essa politica determinou os capitais que iriam perder espago na disputa pelos lucros , juros ¢ rendas jé que havia necessidade de alojar os trabalhadores, diminuir o prego * Essas ideias aqui desenvolvidas esquematicamente foram inspiradas em Ball, 1981. da forga de trabalho e diminuir o prego da moradia. Os capitais rentistas - fundiarios e imobilidrios — foram subordinados ou regulados diante dos interesses do capital industrial. E dentre os capitais que participam da produgdo do espago (nos quais Harvey inclui a propriedade da terra) os capitais especulativos perderam espago para o capital produtivo*. A cidade pode ser objeto de diversas abordagens: pode ser lida como um discurso (como querem os semidlogos € semisti- cos); pode ser abordada pela estética - ambiente de alienagdo e dominago por meio da arquitetura e urbanismo do espetaculo; como manifestagéo de praticas culturais e artisticas mercadold- gicas ou rebeldes; como legado histérico; como palco de con- flitos sociais; como espago de reprodugio do capital e da forga de trabalho, entre outras. Essas diferentes ou dispersas formas de ver as cidades certamente tornam mais dificil situa-las como um objeto central estruturador das relagdes sociais. A midia do mainstream trata de cidades o tempo todo, entretanto raramente a toma como um produto, ou mercadoria que intermedia os conflitos entre as classes sociais. Afinal, o capital imobilidrio é um grande anunciante, patrocinador da grande midia. No entanto, isso ndo é suficiente para explicar porque a politica urbana esta tio ausente dos debates da esquerda e das propostas de politicas piiblicas, em especial, politicas nacionais de desenvolvimento econémico e social, nas Ultimas décadas do século XX e primeira do XXI. De fato, essa invisibilidade Jo** neoliberal (apos a década de € maior a partir da global * Ibid, p. 145-176. ** Iremos utilizar 0 conceito de globalizagao para referirmo-nos ao conjunto das mudangas (incluindo a ideologia, a cultura e a politica) ocorridas no mundo, a partir do que Harvey chama de reestruturagdo produtiva do capitalismo, que tem inicio nos anos 1970. 1970, nos paises centrais), quando se enfraquece o poder dos sindicatos © partidos de esquerda, ¢ o capital financeiro se torna hegeménico. Mas, nos paises capitalistas periféricos, sobretudo, essa invisibilidade é histérica, J& mostramos em diversos tra- balhos que, nesses paises, a habitagdo dos trabalhadores ndo é problema para o capital e, na maior parte das vezes, nem para © Estado. Por isso, os bairros de moradia dos trabalhadores sio construidos por eles mesmos, nos seus hordrios de descanso. E também por isso, as favelas fazem parte da reprodugdo da forga de trabalho formal. Foi assim durante 0 processo de industria- lizago por substituigdo de importagdes e é assim atualmente, nas cidades conhecidas como globais. As favelas integram as cidades de paises como 0 Brasil*. ‘A. incrivel auséncia do estudo da questo urbana nos cursos académicos de economia, sociologia, engenharia direito, além do desconhecimento dos setores de esquerda, nos remetem as muitas consideragdes feitas por intérpretes da “formagio nacional”, para adotar a expresso de Plinio Sampaio Jr. (Sampaio Jr, 1999) sobre a alienag&o do inte- lectual brasileiro em relagdo a realidade do pais (Fernandes, 1977; Viotti da Costa, 1999; Schwarz, 1973; Furtado, 2008). E inconcebivel que 0 BNDES (Banco Nacional de Desenvol- vimento Econémico e Social), um dos maiores fomentadores de desenvolvimento econémico e social na América Latina, em um governo de centro-esquerda, ignore o impacto de seus investimentos nas cidades ou regides, mas ¢ 0 que acontece**. Esse conceito de “desenvolvimento” parece nao passar pelo Temos desenvolvido esse conceito - geral, sdo parte estrutural de nos: Ver em especial Maricato, 1996, ** Conforme relato de Tania Bacelar & autora em 2012. s favelas ou moradias ilegais, cidades, nio constituem exceg! ;, de um modo , mas regra. 20 ambiente construido e, 0 que ¢ mais impressionante, nem pela questo fundidria. Além da alienagio decorrente da condi¢ao de dependéncia cultural, a maquina ideolégica midiatica de baixa escolaridade. Dai usarmos frequentemente a expressio também ocupa a fung’o de um entorpecente das mas analfabetismo urbanistico ou geogrdfico para expressar essa ignorancia predominante sobre a realidade e, em especial, a realidade do ambiente construido (Maricato, 2002). A produgéo do ambiente construido nos paises capitalistas foi objeto prestigiado de estudos e pesquisas durante a década de 1970, apés as revoltas estudantis do final dos anos de 1960. Merece destaque 0 esforgo da chamada Escola Francesa de Ur- banismo integrada por marxistas que tratavam de desenvolver e explicar a produgio do espaco urbano e os conflitos entre capitais e trabalho, Os estudos se detiveram em mostrar que a produgio do espaco urbano ou, de um modo geral, do ambiente construido envolvia alguns tipos especificos de capitais. Os con- frontos nao se dio apenas no chiio da fabrica, como pretendia a heranga histérica do movimento operario. A perda de prestigio da fungao social das cidades, no capitalismo central, coincide com a ascensdo das ideias neoliberais e concomitante perda de espago do Welfare State, acompanhando o enfraquecimento dos sindicatos de trabalhadores e perda de espago das forgas de esquerda. O presente texto vai tratar rapidamente: 1) da abordagem marxista sobre o tema da cidade; 2) da cidade no capitalismo periférico; e 3) a cidade na conjuntura brasileira. Portanto, vamos evitar um extenso e abstrato texto acadé- mico e buscar, dentre os marxistas que estudaram a questio urbana, algumas formulagées que poderio ajudar a reconhecer © que parece dbvio, mas nfo é tomado como tal. a Cidade e conflitos: a abordagem marxista A cidade 6 0 lugar por exceléncia de reprodugdo da forga de trabalho. Nao ha como nao entender essa formulagao. O mundo esta se urbanizando crescentemente ¢, nas cidades, a moradia, a energia, a Agua, o transporte, 0 abastecimento, a educagio, a satide, o lazer nao tém solugdo individual. Cada vez mais a reprodugdo da populagéo que compée a forca de trabalho, em sua maioria, se faz de modo coletivo ou “ampliado”, dependen- te do Estado, como desenvolveu Castells no classico livro La question urbaine, de 1972. Transporte coletivo, infraestrutura e equipamentos sociais sio necessidades que, apesar do fim do Welfare State ou apesar da tendéncia a privatizagao dos servigos publicos aps a década de 1980, ainda permanecem como ques- tées cruciais da luta social nos paises periféricos ou centrais da atualidade. Diferentemente da chamada reprodugéo simples da forga de trabalho, a reproducéo ampliada nao depende apenas do saldrio - ou, em termos mais precisos, da taxa de salario —, mas também das politicas publicas, parte das quais sio espe- cificamente urbanas, como se estas constituissem um saldrio indireto. Um aumento de saldrio pode ser absorvido pelo alto custo do transporte ou da moradia, por exemplo. Como ja foi mencionado, o capital em geral busca moldar o ambiente urbano as suas necessidades, mas interessa destacar aqui um conjunto dos capitais que tem interesse especifico na produgio do espaco urbano, por meio do qual se reproduzem obtendo luctos, juros ou rendas. 1) incorporagio imobiliéria (um tipo de capital comercial inicial- Faz parte desse grupo especifico os seguintes capitai mente estudado por Christian Topalov em 1974); 2) capital de construgdo de edificagdes; 3) capital de construgio pesada ou de infraestrutura; e 4) capital financeiro imobilidrio. Harvey 22 T | localiza nesse grupo também os proprictérios de terra que podem constituir obstaculos ao processo de reprodugao desses capitais ou se associar a eles*. A classe trabalhadora - entendida aqui num sentido amplo, incluindo os informais e domésticos - quer da cidade, num primeiro momento, 0 valor de uso. Ela quer moradia e servi- gos piblicos mais baratos e de melhor qualidade. Entenda-se: mais barato ¢ de melhor qualidade, referenciados ao seu estagio historico de reprodugao. Os capitais que ganham com a produgio © exploragio do espago urbano agem em fungdo do seu valor de troca. Para eles, a cidade é a mercadoria. E um produto resultante de determi- nadas relagdes de produgdo. Se lembramos que a terra urbana, ou um pedago de cidade, constitui sempre uma condigio de monopélio - ou seja, ndo ha um trecho ou terreno igual a ou- tro, e sua localizagio nao é reproduzivel - estamos diante de uma mercadoria especial que tem o atributo de captar ganhos sob a forma de renda. A cidade & um grande negécio e a renda imobilidria, seu motor central. A renda fundiéria ou imobiliéria aparenta ser uma riqueza que flutua no espago e aterrissa em determinadas propriedades, gragas a atributos que podem estar até mesmo fora delas, como por exemplo um novo investimento pablico ou privado feito nas proximidades. A legislagio e os investimentos urbanos sio centrais para “gerar” essa riqueza que iré favorecer (valorizar) determinados iméveis ou bairros. Esse é um dos principais * Poderiamos lembrar outros capitais envolvidos com os servigos urbanos ou que disputam os fundos piblicos, como transporte coletivo ¢ individual, iluminagao piblica, comunicagdo, limpeza, merenda escolar, atendimento A satide etc. Mas para 0 que nos interessa vamos nos restringir aqueles ligados a produgo do espago fisico. motivos para as disputas sobre os fundos publicos em obras. Por exemplo: 0 que seré construido e, especialmente, onde* Abertura de avenidas, pontes, viadutos, parques, pode mudar © prego do metro quadrado nas suas proximidades. Por isso, os lobbies imobiliérios atuam fortemente junto aos Executivos e Legislativos de todos os niveis de poder. Como j4 apontou inicialmente Marx e desenvolveu Harvey, entre © valor de troca da cidade mercadoria e o valor de uso da ci- dade condig&o necessdria de vida para a classe trabalhadora, ha uma profunda oposigio que gera um conflito basico (Harvey, 1982). Ao lado deste, outros conflitos (secundarios?) sio gerados pela forma andrquica como o ambiente construido cresce. De- pendendo das circunstancias histéricas, podem ser notiveis as entr divergéncias : a) © capital em geral e 0 capital imobilidrio (como o exemplo que demos no inicio deste texto); b) diver- géncias internas a fragdes do capital imobilidrio pela disputa dos ganhos; e c) divergéncia entre proprietirios de iméveis e capital imobiliério pelo mesmo motivo**. Podem ser notaveis ainda as divergéncias entre os préprios trabalhadores, especialmente entre os que so proprietirios ¢ 0s que nao so, Todos nés jé testemunhamos a oposigao feita por pequenos proprietérios de iméveis populares a favelas que, localizadas na vizinhanga, podem causar depreciagdo no prego de sua propriedade. Evidentemente a capacidade de “absorgao” * Ver o conceito “terra-localizagdo” desenvolvido por Flavio Villaga a partir do conceito “terra como capital” no excelente livro do autor Reflexdes sobre as cidades brasileiras. Cf. Villaga, 2012. ** © processo de realizagdo do capital na construgdo de edificagdes difere do proceso de ocupa 0 mesmo papel). Ha diferengas tenham elas uso residencial, industrial, servigos ete. esquematica, nao iremos entrar em detalhes aqui de infraestrutura (a terra 10 no interior do processo de construgao de edificagdes, Jomo a abordagem & dessa riqueza que, aparentemente, paira no ar e se “cola” a propriedade imobilidria sob a forma de renda ou de sua valo- rizagio & maior por parte dos capitalistas do ramo imobi idrio do que pelo trabalhador que tem uma modesta moradia, Mas ela pode chegar até mesmo nos cémodos das favelas, isto é, mesmo uma casa precdria em uma favela se valoriza com as vantagens crescentes de localizagio e pode propiciar ao seu dono rendimentos com aluguel E sempre € bom lembrar, hi uma parte dos trabalhadores explorados diretamente por esses capitais que ganham com a produgdo do espago urbano: trata-se dos trabalhadores de construgio que estio entre as categorias mais exploradas da classe trabalhadora e, segundo alguns autores, so _fontes extraordindrias de extragio de mais-valia (Ferro e Arantes, 2006; Maricato, 1984). Para completar esse quadro esquemitico, resta relembrar © papel, cada vez mais importante, do Estado na produgio do espaco urbano. E dele o controle do fundo piblico para inves- timentos, ¢ cabe a cle, sob a forma de poder local, a regulamen- taco © 0 controle sobre 0 uso © a ocupagio do solo (seguindo, hipoteticamente, planos e leis aprovados nos parlamentos). E, portanto, o principal intermediador na distribuigio de lucros, juros, rendas ¢ salarios (direto ¢ indireto), entre outros papéis. Ha, portanto, uma luta surda pela apropriagio dos _fundos publicos, que é central para a reprodugio da forga de trabalho ou para a reproducio do capital. Podemos citar como exemplo importante a disputa entre investimentos para a circulagao de automéveis ou investimentos para o transporte coletivo. As megaobras sempre, na histéria das cidades, tiveram um papel especial na afirmagao do poder religioso ou simplesmente politico, mas a associagéo entre a arquitetura e o urbanismo 25 dos grandes eventos, os processos imobilidrios agressivos e a gentrificagao, parece ter se tomado parte essencial das cidades apés a reestruturag&o capitalista ocorrida no fim do século XX (Arantes, 2000 ¢ Vainer, 2000). Cidade na periferia do capitalism urbanizagao dos baixos salarios Desigual e combinado, ruptura e continuidade, moderniza- go do atraso, modernizago conservadora, capitalismo travado, so algumas das definigdes que explicam o paradoxo evidencia- do por um processo que se moderniza alimentando-se de formas atrasadas e, frequentemente, nao capitalistas, strictu senso. As ci- dades séo evidéncias notaveis dessa formulacao tedrica, e, nelas, o melhor exemplo talvez seja a construgio da moradia (e parte das cidades) pelos proprios moradores (trabalhadores de baixa renda). Essa construgdo se dé aos poucos, durante seus hordrios de folga, ao longo de muitos anos, ignorando toda e qualquer legislagao urbanistica, em areas ocupadas informalmente. Francisco de Oliveira forneceu a chave explicativa para a gigantesca pratica da autoconstrugéo da moradia ilegal (uma espécie de produgéo doméstica) pelos trabalhadores ou pela po- no rebaixamento pulagdo mais pobre de um modo geral. Ela es do custo da forga de trabalho, que ocupa seus fins de semana (hordrios de descanso) na construgio da casa (Oliveira, 1972). Vamos nos concentrar no caso do Brasil para acompanhar as especificidades desse processo. Essa pritica (da autoconstrugiio das casas) contribuiu para a acumulagdo capitalista durante todo periodo de industrializa- g40 no Brasil, particularmente de 1940 a 1980, quando o pais cresceu a taxas aproximadas de 7% ao ano, e 0 processo de ur- banizagao cresceu 5,5% ao ano (IBGE). A industrializagio com 26 baixos salérios correspondeu a urbanizagdo com baixos salérios. (Maricato, 1976, 1979, 1996). O exemplo revela que uma certa modernizagio e um certo desenvolvimento (industrializagio de veis) dependeram de um capital intensivo, produgdo de bens dui modo pré-moderno, ou mesmo pré-capitalista (a autoconstrugio da casa), de produgo de uma parte da cidade. Essa imbricagdo foi (e ainda é) fundamental para 0 processo de acumulagio ca- pitalista nacional e internacional. Ela se aplicou perfeitamente a produgio das cidades que receberam a indistria automobilistica a partir de 1950 - Volkswagen, Chrysler, Mercedes Benz - e se aplica hoje nas cidades que so chamadas de globais. A terra urbana (assim como a terra rural) ocupa um lugar central nessa sociedade. O poder social, econdmico e politico sempre esteve associado & detengiio de patriménio, seja sob a for- ma de escravos (até 1850), seja sob a forma de terras ou iméveis (de 1850 em diante). E: também a privatizagio do aparelho de Estado, tratado como a marca - patrimonialismo - se refere coisa pessoal. O patrimonialismo est ligado A desigualdade so- cial histérica, notavel ¢ persistente, que marca cada poro da vida no Brasil. E a0 proceso de exportagfo da riqueza excedente para os paises sas caracteristicas, por outro lado, estio ligadas centrais do capitalismo, Celso Furtado mencionou varias vezes em seus trabalhos 0 convivio da exportagéo da riqueza excedente com uma estreita elite nacional consumidora de produtos de luxo. Esse quadro forneceria as caracteristicas de um mercado, por assim dizer, travado (Furtado, 2008). Recente relatorio da ONU-Habitat “Estado de las Ciudades de América Latina y el Caribe 2012” mostra que o Brasil, a sexta economia do mundo, mantém uma das piores distribuigdes de renda no continente, mesmo apés os avangos nesse sentido verificados nos governos do presidente Lula e da presidente 27 Dilma. Sao mais desiguais do que o Brasil, na América Latina, apenas Guatemala, Honduras e Colémbia. Essa marca, a da desigualdade, esti presente em qualquer Angulo pelo qual se olha o pais e, portanto, também nas cidades. Evidentemente, para esse capitalismo “funcionar” como parte da divisdéo internacional do trabalho, os trabalhadores urbanos integrados ao processo produtivo - mas excluidos de grande parte dos beneficios que 0 mercado de consumo assegura e, especialmente, excluidos da cidade — so submetidos a uma poderosa méquina ideolégica, quando nao pode ser simplesmen- te repressora. Além da poderosa maquina mididtica, a generali- zagao do débito politico ¢ o favor como mediagao universal sao relagdes que explicam muito a cidade e uma sui generis forma de cidadania no Brasil: direitos para alguns, modernizago para alguns, cidade para alguns... (Castro ¢ Silva, 1997). Nem todos os indicadores sociais sio negativos no processo de urbanizagio concomitante 4 industrializagio que se deu no decorrer do século XX, mais exatamente a partir de 1930. A mortalidade infantil, a expectativa de vida, o nivel de escolarida- de, o acesso a dgua tratada, a coleta do lixo e a taxa de fertilidade feminina apresentam uma evolugdo positiva a partir de 1940 até nossos dias, exatamente devido 4 mudanga de vida com a urbanizagio (IBGE, 2008). No entanto, os efeitos da doutrina neoliberal que acompanhou a chamada globalizagio afastaram a perspectiva de crescimento, ainda que acompanhado de con- centrago de renda (Schwarz, 2007). ‘A populagdo moradora de favelas cresceu mais do que a populagio total ou do que a populagio urbana nos iltimos 30 anos, isto é, de 1980 a 2010 (IBGE). Nao cabe qualquer divida sobre o forte efeito negativo que a globalizago, dominada pelo idedrio neoliberal, impés, com 28 a anuéncia das elites nacionais, 4s metrépoles brasileiras nas décadas de 1980 e 1990. As principais causas dessa tendéncia, j& tratada em vasta bibliografia, se deveram 4 queda brusca do crescimento econdmico com aumento do desemprego e a retragdo do investimento publico em politicas sociais. A sistematizagao d: propostas contidas no Consenso de Washington mostra a forga de tal dominagao politica que consegue impor a uma sociedade desigual, em parceria com as elites locais, agdes que seguem um caminho contrério ao interesse e necessidades da maior parte da populacio (Cano, 1995; Tavares e Fiori, 1997). As trés politicas do ambiente publicas urbanas estruturais (ligadas a produ construido) - transporte, habitagdo e saneamento - foram igno- radas ou tiveram um rumo erratico, com baixo investimento, por mais de 20 anos. Os precarios times de funciondrios publicos existentes no Estado brasileiro e as instituigdes que se formaram estavam em ruinas quando investimentos foram lentamente reto- mados em 2003, na gesto do presidente Lula (Maricato, 2011b). Talvez, 0 indicador que mais evidencia o que podemos chamar de tragédia urbana ¢ a taxa de homicidios, que cresceu 259% no Brasil entre 1980 e 2010. Em 1980, a média de assas- sinatos no pais era de 13,9 mortes para cada 100 mil habitantes, em 2010 passou para 49,9 (Weiselfisz, 2013). Certamente essa ocorréncia nao se deveu apenas a esses fatores e nem se limita as cidades brasileiras. Nao é possivel abordar um assunto to estudado em poucas palavras. Mas nio hd divida de que ela compée o quadro de abandono do Estado provedor, ainda que tratemos do provedor na_periferia capitalista, na qual a previdéncia nao era universal, tampouco a saiide ou a habitagio. O tema da violéncia, cujas origens estio na sociedade escravista que formalmente resistiu até 1888, se transformou numa das principais marcas das cidades brasileiras. 29 Nas décadas perdidas: luta social pela cidade democratica Movendo-se contra a corrente mundial de enfraquecimento dos partidos de esquerda, do declinio do crescimento econémico e da retrago do Estado provedor, o Brasil dos anos 1980 mostra- va um quadro contrastante. Enquanto a economia apresentava uma queda acentuada, ao mesmo tempo que lutavam contra o governo ditatorial, movimentos sociais e operérios claboravam plataformas para mudangas politicas com propostas programé- ticas. Na década de 1980, foram criados novos partidos, outros partidos de esquerda sairam da clandestinidade, novas entidades operdrias foram fundadas e ainda havia os movimentos sociais urbanos - uma novidade na cena politica brasileira, pelo menos com a expresso que ganharam na ocasiao. Um vigoroso Movimento Social pela Reforma Urbana recuperou as propostas elaboradas na década de 1960, no con- texto das lutas revoluciondrias latino-americanas. Tratava-se de construir a ponte com uma agenda que a ditadura havia interrompido a partir de 1964. Na década de 1960, 0 Bras tinha 44,67% da populagdo nas cidades (censos IBGE). Em 1980, ja eram 67,59%. Houve um acréscimo de cerca de 50 milhdes de pessoas nas cidades, e os problemas urbanos se aprofundaram. Esse movimento reunia entidades profissionais (arquitetos e urbanistas, engenheiros, advogados, assistentes sociais), entidades sindicais (urbanitdrios, sanitaristas, stor de transportes), liderancas de movimentos sociais, ONGs, pesquisadores, professores, intelectuais, entre outros. Por sua influéncia, foram criadas comissdes parlamentares e foram eleitos prefeitos, vereadores ¢ deputados. No que se refere ao destino das cidades, na agitada cena politica estavam presentes: a) as mobilizagdes sociais, os sindi- catos © os partidos politicos; b) a produgio académica que passa 30 a desvendar a cidade real (com diagnésticos sobre as estratégias de reprodugdo dessa forga de trabalho de baixos salérios), des- montando as construgdes simbélicas e ideolégicas dominantes sobre as cidades; ¢ c) governos municipais inovadores que expe- rimentaram novas agendas com programas sociais, econémica ¢ politicamente includentes ¢ participativos. Durante o regime de excegdo (1964-1985), os prefeitos da capitais eram indicados pelos governadores, que eram indicados pelo presidente da Repiiblica, que era indicado pelas Forgas Armadas e forgas econémicas que Ihes davam_ sustentacio. Portanto, as experimentagdes de gestio local democratica se davam nos demais municipios onde havia elei¢éo direta para prefeito. Entre os urbanistas, ganharam importincia nessa fase as experiéncias de Diadema, municipio operdrio da Regidio Me- tropolitana de So Paulo, com suas propostas de incluso social e urbana claboradas por profissionais ativistas em contexto de forte luta social. Apés 1985, com cleigées livres para prefeito nas capitais, duas mulheres foram cleitas para o governo do municipio de So Paulo, com um intervalo entre elas — Luiza Erundina (1989-1992) e Marta Suplicy (2001 e 2004), Suas administragdes deixaram marcas profundas nas areas do trans- porte, da cultura, da assisténcia social, que permanecem como paradigma apés muito anos. Chamam a atengdo as experiéncias de Belém, democratizan- do a participagdo com o Congreso da Cidade e modernizando a administrago com o cadastro muitifinalitério urbano; de Belo Horizonte, com as propostas de abastecimento doméstico que permitiram baratear o prego da comida; de Recife, com a poli- tica de forte afirmagio das raizes multiculturais , em especial da contra riscos misica afro-brasileira , além das agdes de prevent por desmoronamento nas areas de moradias pobres; de Santo 31 André, com a politica de sancamento ¢ habitacéo; de Caxias do Sul, com a insergo até mesmo das criangas na discusséo sobre © futuro da cidade, entre outras. Mas foi o orgamento partici pativo de Porto Alegre que constituiu a mudanga mais notdvel de rumo nas administragdes urbanas e no seu planejamento. O Orgamento Participativo praticado durante quase duas décadas em Porto Alegre constituiu uma mudanga no padrio dos investimentos urbanos. Ele significou a ruptura com o investimento piblico submetido aos interesses do mercado imobilidrio, 0 que, por sua vez, alimenta a segregagdo territo- rial e as desigualdades. Outros Jobbies muito bem organizados, que indefectivelmente atuam junto as Camaras Municipais , encontram dificuldades em agir. Os excluidos passam a sujei- tos politicos que participam diretamente das decisées . Podem , portanto, exercer algum controle sobre o Estado, que se torna mais proximo ¢ mais transparente . Rompe -se também com o indefectivel clientelismo politico, embora isso dependa do grau de democracia exercida no processo, pois o risco da cooptagéo e da relagio de troca de favores esti sempre presente . O orga- mento participative mudao lugar ¢ a natureza do planejamento urbano. Os governos municipais que inauguraram gestes inovado- ras, autodenominadas “democraticas e populares” orientavam- -se pela “inversio de prioridades” na discussio do orgamento piiblico e a participacdo social em todos os niveis. Os governos do PT foram tio bem-sucedidos que passaram a se diferenciar sob a marca do “modo petista de governar”. As propostas cram criativas e efetivas, respondendo com originalidade aos problemas colocados pela realidade local, Nesse sentido, os projetos arquiteténicos, urbanisticos © legais relacionados ao “passive urbano” (cidade ilegal, autoconstruida, ¢ precariamente 32 - urbanizada) ganha importincia, pois sempre foi ignorado pelo urbanismo do mainstream, Por isso, os programas de governo se dividiam entre os que buscavam recuperar a cidade ilegal consolidada (onde nio houvesse obstéculo ambiental para isso) © a produgao de novas moradias ¢ novas areas urbanas. Apenas para registrar um exemplo importante, uma das iniciativas mais bem-sucedidas em Sao Paulo buscava dar mais qualidade para a vida de criangas e adolescentes nos bairros pobres, por meio da construgdo e operagio de (CEUs) Centros Educacionais Unificados. Tratava-se de criar um edificio de destacada qualidade arquiteténica, bem equipado, que oferecia cursos regulares, cinema, gindstica, artes plisticas, programas teatrais e musicais, inéditos na periferia urbana, Incluiu-se no centro dos bairros periféricos um pedago de um_ universo discrepante, modernizante, em relago ao entomo precério. Imagem 1: CEU da Paz - Brasilandia, Sao Paulo, 2012 Fome: Googte Maps, 2012 33

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